Introdução1
Afetivos motivos
Aprendi que se depende sempre / De tanta muita diferente gente
Toda pessoa sempre é as marcas / Das lições diárias de outras tantas pessoas.
E é tão bonito quando a gente entende / Que a gente é tanta gente (Gonzaguinha, 1982).
Neste tópico inicial - Introdução - procuro fazer uma breve contextualização de minha pertença à Educação de Jovens e Adultos (EJA) e apresentar os emotivos motivos daquilo que intento apreender como objeto deste artigo.
Vigotski, em muitos de seus textos (1999 2; 2000a; 2000b; 2000c; 2001a; 2001b; 2003; 2004; Vigotski, Luria, & Leontiev, 1988), deixa marcas à orientação teórica sobre a constituição do ser humano, que se faz de relações e interações sociais. A hominização se dá na arena da história e da cultura. Assim, a explicação para a constituição das individualidades das vidas não pode ser buscada em outras instâncias que não a de suas historicidades e das formas de relações em que se estabeleceram.
Constituímo-nos nas interações sociais, nas trocas intersubjetivas - eu-outro-outros -, sempre mediados pelos conhecimentos, no simbólico terreno da cultura. Essas aprendizagens, necessárias à formação de nossa humanidade, não podem se fazer no silenciamento, na mecânica tarefa de reprodução de letras e palavras, mas no compartilhamento entre gentes, como muito bem captou o poeta, em seus versos, na epígrafe desta introdução. Aqueles termos que usamos, hoje, como subjetividade, singularidade, identidade são constituídos nas relações sociais. Assim, tanto para Vigotski, no campo acadêmico, como para Gonzaguinha, na literatura, a subjetividade é essa tessitura que leva as marcas das lições diárias que aprendemos e apreendemos com tantas, muitas e outras tantas pessoas.
Essa compreensão impõe uma direção ao se olhar, pesquisar e analisar o ambiente sociocultural que constituem as classes de EJA. Vidas em aberto: jeitos diferentes, comportamentos diversos, modos conflitantes: silêncios, quietudes, agitação, paciência, rebeldia, olhares perdidos, concentração. Como compreender esse universo de situações existenciais, de singularidades? Quais condições de hominização tiveram ou têm acesso esses alunos? Em que condições vêm se singularizando nos programas de EJA? Questões instigantes.
Classes de Aceleração! Pois como analisara acertadamente Arroyo (2000), ao chamar a atenção para o fato de que a exclusão social e a seletividade que as instituições sociais e educacionais reproduzem, “[...] não é um pesadelo nem uma fruta temporã, não amadurecida, que podemos amadurecer em tempos de progressão e aceleração, em câmaras (classes) especiais. Soluções pontuais para problemas estruturais” (Arroyo, 2000, p. 43).
A EJA e seus sujeitos - adolescente, adultos, velhos, velhas, professoras e professores - estiveram imbricados na minha experiência - teórica e prática - desde muito, deixando em mim marcas indeléveis. Estimula-me a compreensão de que os sujeitos vão se constituindo historicamente, reproduzindo e também indo além das determinações estruturais que, à primeira vista, parecem inexoráveis. Sociologicamente, admito que uma modalidade educativa ofertada pelo Estado não se encontra acima dos indivíduos, como força unicamente coercitiva e como portadora de um mecânico determinismo (a escola como locus da reprodução) hermeticamente impermeável ao movimento contraditório, a uma relação dialética entre macro e microestruturas. Múltiplas contradições e complexidades permeiam as ações do Estado. O fazer educativo se faz, igualmente, prenhe de contradições, pois devemos considerar essas complexidades para pensar saídas alternativas à educação. Diz Gadotti (1983) que buscar trabalhar essa contraditoriedade se apresenta como desafio a ser enfrentado à efetivação de uma educação de caráter popular.
Esses aportes teóricos volveram-me a examinar o fazer cotidiano de produção das relações de ensino e aprendizagem e os sujeitos nela envolvidos. Nesse percurso, minhas indagações/preocupações se centraram nas seguintes suposições: o processo de aprendizagem, voltado aos educandos da EJA, não pode ignorar as suas especificidades, suas diversidades e singularidades; e nem os ver apenas como sujeitos de cognição, mas sim como sujeitos de múltiplas dimensões, entre as quais, a cognitiva e a socioafetiva. A dimensão afetiva, como constitutiva do processo de produção das relações de ensino e aprendizagem, isto é, das relações professor - aluno - conhecimentos, passou a centralizar a minha atenção. Passei a tomá-la como dimensão indispensável para a compreensão do processo de aprendizagem nas classes da EJA sem, no entanto, desconsiderar as condições estruturais de produção da vida material e da própria educação enquanto espaço de produção simbólica.
Assim, diante dos emotivos motivos expostos, este artigo tem como objetivo analisar a inter-relação afetividade, conhecimentos escolares e desenvolvimento cognitivo que se evidenciam nas práticas de ensino e aprendizagem de uma classe de educação de jovens e adultos.
A seguir, procuro apresentar meu entendimento sobre a relação entre afetividade- conhecimentos-cognição-práticas pedagógicas de ensino e aprendizagem em classe de EJA.
Aproximações: afetividade, conhecimento e cognição
Somente sou quando em verso. /[ ...]
Para chegar até onde / não me presumo, mas sou,
sigo em forma de palavra (Mello, 2001, p. 27).
No cotidiano da EJA, entre muitos profissionais - e até mesmo no ambiente extraescolar - circula opinião generalizante de que os alunos e alunas dessa modalidade de ensino são carentes, principalmente, carentes afetivos. ‘Coitados, são muito carentes de afetos, esses alunos’, ouvimos quase sempre. As rebeldias, as zangas, as ‘bagunças’, os comportamentos de retraimentos, a indiferença às atividades de aprendizagem, o abandono da sala - todos, geralmente, atribuídos à carência de afetividade, falta de amor, falta de autoestima.
A exclusão estrutural - econômica, social, cultural; a seletividade educacional, com suas escolas precarizadas, é justificada por esse pueril psicologismo. Os excluídos dos bens materiais são vistos como carentes afetivos. Patto (1993), em A produção do fracasso escolar, faz uma revisão crítica dessas ‘psicologias da carência’, no tópico sobre ‘As teorias racistas’. Décadas já se passaram, desde sua publicação, e, no entanto, essas ‘psicologias’ ainda povoam o senso comum predominante do meio educacional voltado às crianças, aos jovens e aos adultos em situação de exclusão socioeconômica e cultural/educacional.
A questão parte da suspeita de que o afetivo não está só na falta, na carência, que seria intrínseca, ou mesmo seria uma disposição psicológica do indivíduo-aluno-aluna. Buscamos demonstrar a inter-relação entre afetividade-conhecimentos-cognição-práticas pedagógicas de ensino e aprendizagem. Sinteticamente, pressupomos que a dimensão afetiva e a prática pedagógica - com seus conteúdos programáticos - provocam ou desencadeiam as percepções e demandas afetivas e cognitivas.
Assim, com essa pressuposição analisamos a inter-relação afetividade e conhecimento e constituição dos sujeitos nas práticas escolares (aprendizagem da leitura e da escrita) em classes de EJA. E, como corolário, consideramos que o afetivo é um mediador indissociável da apropriação desse conhecimento, evidenciando-se, assim a indissociabilidade entre conhecimento e desenvolvimento cognitivo3.
Em termos teórico-metodológicos, buscamos, assim, focalizar a dinâmica interativa em seu acontecer, em seu movimento, em seu processo de produção na sala de aula e, nela, captar os indícios das manifestações e interações cognitivas-afetivas que se produziam nas relações de ensino.
Como, então, essa dimensão afetiva se materializaria nessas relações? Ela se manifestaria no campo simbólico, nos signos: nas palavras, nos gestos, nos olhares, nas expressões fisionômicas, no tom em que as palavras são pronunciadas, nos silêncios, no ausentar-se da sala de aulas - todos eles compreendidos na perspectiva de que significam porque são historicamente constituídos, ou seja, nascem nas relações entre sujeitos sociais situados.
Em busca de um cantinho
A pesquisa de campo foi realizada em uma classe de EJA, numa escola municipal, localizada no Bosque dos Arvoredos4, distante periferia de Primavera do Sol - bela e rica cidade do interior paulista. A professora, gentil e acolhedora, procurava, com seus conhecimentos técnicos e didáticos, alfabetizar uma turma composta de irrequietos, na faixa etária de 14 a 18 anos e adultos, em medianas idades e alguns poucos de 50 a 62 anos, aproximadamente.
Vigotski (2000a; 2004), em sua abordagem teórico-metodológica, recomenda que o estudo de um fenômeno deve ser realizado em suas condições sociais e imediatas de produção. E, considerando, com base nesse autor, que a dimensão da singularidade dos sujeitos é central à compreensão da organização e das transformações da afetividade, privilegiei, na construção dos dados, a descrição e análise da dinâmica interativa, instaurada e mediada pela linguagem e, dentro delas, os indícios da configuração única das experiências vividas pelos indivíduos em sua própria história singular.
Assim, em conformidade com a recomendação acima, recorri a uma abordagem qualitativa-etnográfica (André, 1995). Na sala de aula, como observador, registrei em meu ‘diário de campo’, por cerca de dois semestres letivos, episódios interativos produzidos na sala de aula, envolvendo os alunos e alunas, a professora e eu mesmo. No registro dos fragmentos, observei as condições sociais de produção das interações, bem como os dizeres, gestos, escritas e posturas assumidas pelos sujeitos nelas envolvidos.
Ao longo das observações, minha atenção foi direcionada para alguns alunos e alunas, jovens ou adultos, os quais apresentavam alguma singularidade nos momentos interativos, por meio de gestos, atitudes, linguagens corporais, suas raras verbalizações e longos silêncios em que permaneciam durante as aulas, em suas carteiras. Assim, com esforço e disciplina acadêmica, procurei descrever, em detalhes, a experiência e vivência das interações dos estudantes com os conhecimentos, com a professora e consigo mesmos.
Nos momentos extraclasse, como a entrada dos alunos, a hora do lanche, eu aproveitava para conversar com a professora, ou com algum aluno ou aluna, objetivando compreender ou saber mais detalhes de suas vidas e de suas percepções sobre a condição de docente e de estudante. Esse esforço de captar os detalhes, de registrar as minúcias, levou-me a transformar alguns alunos e alunas em singulares personagens.
Para a construção, organização e interpretação dos dados empíricos, considerei a narrativização como uma técnica adequada para apresentar os sujeitos nas dinâmicas interativas em que estavam inseridos, na riqueza de seus dizeres, gestos, expressões, sem perder de vista igualmente, seus interlocutores. Por meio dessa técnica, eu poderia dar visibilidade às entonações, ao tempo, ao próprio movimento interativo em que os afetamentos recíprocos iam se deixando entrever.
Chamo de narrativização a essa técnica de descrição minuciosa dos personagens, do cenário, das interlocuções entre eles, de suas reações verbais e não verbais. Nesta, procuro dar visibilidade aos modos como os sujeitos se relacionam com os outros, com as palavras, com os conhecimentos envolvidos nas situações, sem descuidar das condições sociais de sua produção.
Chamo a atenção do leitor, ainda, que, no próprio momento narrativo, vou analisando e destacando os indícios das relações afetivas, que vão sendo tecidas na sala de aula, mediadas pelo conhecimento em circulação e elaboração cognitiva. Acho importante destacar, ainda, que estou utilizando o termo ‘narrativa’ para tratar da minha experiência como pesquisador na sala de aula, da minha experiência de aproximação das tramas afetivas que se tecem entre os sujeitos, nas interações com os conhecimentos, em seu processo de desenvolvimento cognitivo.
A seguir, descrevo fragmentos das relações pedagógicas que se desenvolvem em sala de aula e, ao mesmo tempo, analiso as interações que se dão a ver entre afetividade, conhecimento e cognição. O foco empírico e analítico é sobre uma personagem singular, aluna, adulta, aqui denominada, ficticiamente, de D. Maria José.
A narrativa - ‘Não dá pra mudar um pouco?’
O diálogo não pode existir sem um profundo amor pelo mundo e pelos homens (Freire, 1980, p. 83).
Certo dia de aula
Como nos anteriores dias de observação, em sua previsível e costumeira prática, a professora passa o exercício no quadro negro: ‘1) vamos relembrar as vogais; 2) as consoantes; 3) dê o plural das palavras: lata, lixo, caixa, bilhete, dúzia, azeitona, salada, bebida [...]’. Alunas e alunos continuam chegando; sentam-se, em silêncio; copiam a matéria. Os adultos, em silêncio. Os adolescentes, em alegre tagarelice.
A algumas carteiras, um pouco distante de mim, D. Maria José, em seu fictício nome, igualmente, em previsível rotina, diariamente observada, dá início a seu rosário de treino das vogais. Ela faz umas letras graúdas e irregulares, que preenchem praticamente todo o espaço entre linhas. Às vezes, para de copiar, olha para o quadro e retoma novamente a atividade; depois, olha o caderno, para um lado, para outro, sempre em silêncio. Para de escrever e recomeça; aparentemente, indiferente a tudo o que acontece na sala de aula. Cabeça baixa, apenas os movimentos das mãos. À mente, me vem fragmentos do livro A menina repetente: “O silêncio na menina é um sintoma, não só de recusa, de falta, mas também de desejos, é preciso potencializar essa fala e significar esse silêncio” (Abramowicz, 1995, p. 60).
A professora interrompe a escrita no quadro e se aproxima de D. Maria José: “─ Todo dia a gente tem que ir lá, fazendo tudo de novo, tá relembrando?!” - diz, depois de examinar o caderno da aluna, que, em sua ininterrupta, repetível e imperturbável tarefa de copiar vogais e números, mal olha para a professora.
D. Lia está no quadro fazendo separação de sílabas: macarrão. “─ O que foi, seu Nestorino, acabou o macarrão?” - brinca a professora. Ele sorri. E observa atentamente a separação de sílabas. D. Socorro copia calmamente. “─ Ela é caprichosa, veja o capricho”. A professora me mostra o caderno bem cuidado dela. As letras são feitas com esmero. No papel, observa-se que ela apaga muitas vezes até que a letra ganhe uma forma bonita. Seu caderno é limpo e asseado. Ela é esposa de seu Nestorino. Mas eles raramente se falam na sala de aula. Ela parece buscar a perfeição da caligrafia. Sua mão desliza vagarosamente sobre o papel. E, de repente, a borracha a apagar tudo. Sacrifício, dedicação, compensação, uma caligrafia legível, regular, bonita. Enquanto isso, em sua carteira, D. Maria José observa seu caderno, leva as mãos aos olhos, depois apoia o queixo numa das mãos, olha em volta da sala. Finalmente abaixa a cabeça, toma o lápis e recomeça a escrever as vogais.
A professora, atenta e vigilante em seu oficio de ensinar, aproxima-se dela. “─ Que letra é essa?” - pergunta, apontando uma letra específica. “- A, E, I, O, U” - vai lendo D. Maria José, todas as vogais, de forma maquinal, muito rapidamente, como quem as decorou, apenas. A professora, por sua vez, pareceu se contentar com aquela mecânica leitura. “─ Agora vamos juntar as letrinhas, mas a gente precisa saber se você já reconhece as letrinhas. Vamos, escreva agora a letra ‘a’, sem olhar [para o caderno]”. D. Maria José hesita, olha para a professora, tenta olhar para o caderno. “─ Sem olhar para o caderno!” - a professora a impede. Ela se mexe e se remexe na carteira, desconfortável, olha para a professora, para o lado, para longe. Não consegue escrever a letra ‘a’. Com um sorriso de impaciência, a professora pergunta: “─ Como você não lembra? Você acabou de fazer! Você tem que juntar as letrinhas, dar as mãos uma à outra, se você não consegue vou continuar passando as vogais” - diz em tom, sutilmente, ameaçador. A professora mostra as vogais para D. Maria José, apontando-as no seu caderno.
Observo aquela senhora, cenho franzido, em triste olhar a buscar um ponto fixo. A professora se afasta. Outros lhe demandam a presença. Dias corridos vem, ela, copiando essas vogais e agora, a professora vai tomar-lhe a lição e ela não reconhece nem mesmo o “a”, que por tantas vezes, incansavelmente, desenhou. O exercício mecânico a que é submetida parece não surtir nenhum efeito positivo. Ela copia, dezenas de vezes as mesmas letras, mas não as reconhece. Exercício puramente maquinal. Pobre D. Maria, ainda terá muito rosário de cópia de letrinhas pela frente. A escola está investida de práticas alfabetizadoras de que ela não consegue se apropriar, o que me evoca a personagem de Infância, de Graciliano Ramos (2009), em seu iniciático aprendizado das letras, com o personagem narrando que sua alfabetização começou sobre o balcão da venda do pai, com a indicação de cinco letras e que “[...] no dia seguinte surgiram outras, depois outras - e iniciou-se a escravidão imposta ardilosamente” (Ramos, 2009, p. 110). Certa relação analógica parece evidenciar-se entre a prática de aprendizagem da linguagem escrita, narrada em Infância (Ramos, 2009), e a que experimenta D. Maria José, que persistem no tempo, centradas na memorização mecânica e na descontextualização.
Intervalo de aula
Enquanto distribuo bolachas e a professora Zeza enche os copos dos alunos com um líquido que, com muito custo, identificamos algum sabor de banana; ela aproveita para tecer o seguinte comentário:
“─ Você viu a D. Maria José? Ela termina de ler as letrinhas, eu pergunto para ela: que letra é essa?”. “Não sei”, ela diz. Agora mandei ela juntar o ‘o’ com o ‘a’. E pergunto, ela diz que não sabe. O caderninho dela está cheio de letras. Ela diz: não dá pra mudar um pouco? Aí eu mudo um pouco. Mas, eu pergunto a letra e ela não sabe mais. Seu Nestorino falou: “─ Eu preciso aprender, tô ficando velho, burro”. Eu disse: “─ O senhor vai aprender, devagar, mas vai aprender”. Aí ele falou: “─ Eu não quero fazer só isso, quero aprender Primavera do Sol...” “─ Aí com ele, eu fiz o processo inverso, mas de vez em quando tô do lado dele... [cobrando as letrinhas]”.
Nos dizeres da professora, podem-se perceber os indícios de sua vigilância sobre a episteme de sua metodologia e de sua prática. Em alerta, não se deixa de descurar de que a alfabetização tem seu ritmo e sua norma: o árduo e rígido aprender as letrinhas. “Aí, com ele, eu fiz o inverso, mas de vez em quando tô do lado dele...”. Cobrando que faça as letrinhas, isto, é que faça longas e entediantes cópias de vogais e consoantes, em páginas a perder de vista. Vigilância epistemológica!
D. Maria José pede à professora para mudar um pouco. Ela não quer ficar mais aula após aula, dia após dia, copiando as vogais, enchendo páginas e páginas de vogais sem saber reconhecê-las, juntando ‘o’ com ‘a’. D. Maria José não encontra na relação com a escrita e a leitura. A alegria e o prazer, também traduzidos em afeto, por reconhecer-se progredindo, aprendendo, apropriando-se do conhecimento, ela não os tem. Diante dela, a muralha da escrita e da leitura a vencer; trabalho duro e difícil e, até o momento, sem recompensa. Sacrifício, apenas, é o que paira em seu horizonte de aprendiz. Está insatisfeita com sua aprendizagem e a relação de conhecimento que a prática escolar lhe oportuniza também não a satisfaz. Deseja possuir as letras e fruir o ‘luxo’ de ler e escrever, transpondo as barreiras da analfabeta servidão. Na sala de aula, na inglória luta com as letrinhas, esforça-se para saber e ser. Mas essa luta não produz resultados, nem emoções de alegria e satisfação, mas enfado e tristeza. Tudo parece quimera, trabalho infrutífero, como no poema de Cecília Meireles (1985, p. 41): “Leva sempre a minha imagem / a submissa rebeldia / dos que estudam todo dia / sem chegar à aprendizagem [...]”.
Em seus mais de 60 anos de idade, mas fisionomia a indicar uns 70; a pressão alta a complicar-lhe a vida, ainda encontra forças e energia para lutar com as palavras e com uma aprendizagem estéril; é moradora de um bairro nada considerado. Desgarrada de sua terra, Alagoas, vive a aridez de uma aprendizagem, tal como Sinhá Vitória, personagem de Vidas Secas (Ramos, 1972), vagando pelo chão estorricado pelo Sol, escapando da seca nordestina. D. Maria José foge do analfabetismo, mas enfrenta a muralha cultural que, historicamente, se interpôs, não unicamente a ela, mas, a todos os pobres e excluídos, viventes nos sertões de terra rachada e de secura atroz ou nas periferias das grandes e ricas cidades paulistas, como Primavera do Sol.
Parece-me, cansada de viver a exclusão do mundo das letras, busca a escola para nela penetrar. Quer dar-se a esse ‘luxo’, mesmo nesse final de vida, porque empreender utopias possíveis é o que nos faz humanos: sujeitos de desejos. A escola para ela, no entanto, não se resume a esse ‘luxo’ de ser letrada. Nela, talvez sonhe ainda encontrar alento, vencer a solidão de uma vida desterrada, migrante, inserida num contexto sociocultural e econômico diferente do seu. E também é um caminho para vencer a depressão de viúva recente. Mas a escola, com seu método estéril, trabalhoso e ingrato, na prática, inviabiliza esses pequenos ‘luxos’. Ousadia, seria, sentir-se partícipe de uma classe de 1 e 2ª etapas da EJA? Cujo objetivo não é ensinar as letras, alfabetizar: ler, escrever e fazer cálculos em dignidades de métodos?
“─ O médico aconselhou-a a continuar vindo para a escola. É melhor para ela... Ficou viúva recentemente. Tem pressão alta... toma remédio controlado” - dizia-me a professora, certo dia, enquanto a contemplávamos naquele trabalho solitário de treino das letras, em sua carteira.
Morena, cabelos compridos, bem longos, sempre enfiados em tranças, vestidos quase cobrindo os pés. Vem calmamente, em passos vagarosos. O caderno aprumado no braço, à altura do peito, a caixinha de lápis, borracha e apontador, tudo nela lembra uma assídua mocinha em seu ar de colegial. Sonho no coração. Desejo que se esvai na relação com as letras. Sozinha e solitária em meio a tanta gente na sala de aula; a aprendizagem se lhe apresenta semeadura sem colheita. O afetivo, nessa relação com a leitura e a escrita, revela-se no seu lado mais doloroso: é emoção em sofrimento.
Em seu silêncio, resta ela em sua carteira, indiferente às tagarelices dos adolescentes, em suas rusgas verbais; em seus entra e sai da sala, arrastando carteiras e empurrando uns aos outros. Verbalizações, nenhuma; apenas o mover das mãos sobre o caderno; a cabeça meneando para um lado e outro, ou o fixo olhar sobre aquelas mal arrumadas letras, como tentando perscrutar suas fugidias significações.
Na velhice, em uma sociedade que tolera o velho e sem a defesa de bens acumulados, D. Maria José, sozinha, sem marido, instalada em um bairro de migrantes, removidos de outras ‘invasões’, em sua maioria, igualmente, pobres como ela, vem para a escola, que abre suas portas aos deserdados das letras, embora, no seu interior, contraditoriamente, feche essas mesmas portas, negando o acesso ao saber por meio de uma prática pedagógica que, historicamente, traz as marcas da exclusão.
A professora a seu lado, paciente, mas exigente, ajudando-a. E um dia, talvez, domadas as letras rebeldes, pudesse escrever seu nome: Maria José. Mas, no entanto, tudo corria sem muito proveito. Dias e dias num trabalho infindo, sem frutos para saborear. Para que lhe servirão ainda as letras? Que serventia terá esse ‘saberzinho’ que debalde se esmera por aprender, que a professora tenha lhe incutir aos pedacinhos?
Em sua luta com as letras, em seu silêncio, solitária e deprimida, é sujeito da busca de sentidos de sua vida presente. Na escola não encontra o espaço para compartilhar experiências e saberes apreendidos ao longo dos seus 60 anos. E tomá-los como objetos de reflexão e aprendizagem das letras. Não encontra a reciprocidade da interlocução, tecida na conversa, na discussão de opiniões e de ideias, na troca de ‘conselhos’. Encontra a letra vazia de sentidos, que embora requeira esforços e sacrifícios, inerentes à aprendizagem, nesse caso, parece não levar a lugar nenhum, na medida em que não leva àquele momento esperado, depois do trabalho árduo, da fruição da alegria, emoção maior desejada por todo ser humano.
Outro dia de aula
D. Maria José olha os colegas irem ao quadro. Parece absorta, como que magnetizada, atraída por aquele processo, por aquela relação que se desenrola a sua frente e da qual resta excluída. Um e outro vão ao quadro; erram, acertam, riem; a professora ajuda; outro colega ajuda, opina, às vezes opina errado, mas, ali, há vida, há interlocução na aprendizagem. Seus lábios se movem como que degustando aquela relação, pressentindo um sabor diferente daquele que vem experimento no isolamento e na solidão de suas áridas tarefas.
À frente, uma imagem diferente se mostra: quase todos os dias, um ou outro vai ao quadro. E ela? Não! Sempre, só, com seu caderno, em abertas folhas e em ‘letrinhas’ coberto, irregulares e disformes, é certo. Eles, seus colegas, até mesmo alguns dos mais velhos, são escolhidos, e chamados pela professora para ir ao quadro. Ela, não. Somente o contato esporádico e espaçado com a professora, a cuja autoridade apõe um tímido pedido: “Não dá pra mudar um pouco?”, quase em sussurro.
Se há, por conseguinte, uma autoridade que regula; se há obediência; por entre as fissuras dessa autoridade, há sinais de vida; vida que mostra seu descontentamento; uma vida que, por entre as aparências de fragilidade e aceitação passiva, expõe marcas emocionais e afetivas de contestação; germe de uma comportada rebeldia? Quase inaudíveis, sua voz parece dar visibilidade ao protesto contra a relação de aprendizagem que experimenta. É, sem dúvida, um grito comportado, educado, por que não dizer. Mas nele, a contestação se enrosca, a desaprovação se mostra plena e clara. Escolheu a forma considerada civilizada, as palavras apropriadas para se dirigir à autoridade “─ Não dá pra mudar um pouco?” Em humildade se mostra o seu descontentamento. Disse sua palavra e dizendo-a, insinua-se em desejos de subversão de sua condição de aluna em tristeza e solidão posta.
Seu pedido para mudar revela seu contido desejo de viver aprendizagens significativas, emocional, afetiva e cognitivamente. Interações com os conhecimentos que lhe permita saber-se conhecendo, avançando, lendo e escrevendo com significação. Qual emoção cognitiva fruiria ela ao juntar ‘o’ com ‘a’, a pedido da professora? O + A = OA. Tarefa vazia de significados e de sentidos e, por fim, de algum sentimento. Na palavra, indiciam-se elementos afetivos-volitivos (Vigotski, 2000a).
Para ela se faz necessária uma experiência com a escrita que não se reduza a mera cópia de fragmentos do alfabeto, mas de uma escrita que instaure a interlocução com os caminhantes de aula, com os seus colegas, com a própria professora e que traga as marcas de seu contexto sociocultural; uma escrita, assim, que esteja inscrita em seu universo de sentidos e significados, na qual ela possa se reconhecer como autora e leitora. Essa prática tolhe o movimento que o sujeito faz em direção à apropriação do conhecimento. Ao invés de constituir-se, aniquila-se na relação com a escrita e a leitura. O investimento afetivo de aproximação transforma-se em afastamento, destruição. Emoção de recusa. Aquela singela e simpática imagem registrada - chegando à escola, com os cadernos aprumados sobre o braço, o cabelo em tranças bem arrumado, a roupa limpa e passada, o olhar para frente, queixo levantado - deixa transparecer certo ar de grandeza e de importância. Na sala de aula, no entanto, cansada, queda-se sobre a carteira, desimportante, sem grandeza, ante uma aprendizagem sem sentido que o Estado arruma para pobres como ela.
Aula de revisão - final de semestre
Buscamos palavras / que possam contar / de nossos ofícios.
Mas todas, embora / do fundo brotadas, / resvalam, deslizam
por sobre a camada / de tempo e distância (Mello, 2001, p. 29).
Atividade de hoje: 1) leitura; 2) revisão. São 19:25 h. Conversas amenas ocorrem entre a professora e alunas e alunos. Antes de iniciar a escrever no quadro, explica-me sua aula de hoje e demonstra sua preocupação com a aprendizagem das “letrinhas” de sua turma. Faltam poucos dias para o fim das aulas e a frequência tornou-se, agora, muito mais irregular e rarefeita.
“─ Hoje vou trabalhar só com revisão com eles, trabalhar bastante revisão, leitura das palavras, é assim... letramento mesmo... Aqueles que vão passar para a 3ª série não podem mais ter dúvidas nas ‘letrinhas’” - explica-me ela.
Senta-se, então, no meio da sala e comanda a aula. Vai indicando alunas e alunos e pedindo que escrevam as palavras que dita. Alguns apresentam muitas dificuldades para escrever. Ela repete, corrige, soletra letra por letra, sílaba por sílaba, com certa irritação e desconforto com os erros constantes. Enquanto isso, D. Maria José, em calmaria e solidão, exercita-se na cópia das vogais, para não fugir a rotina a que viveu durante todo o semestre letivo.
Por fim, a pedido da professora, D. Maria José vai ao quadro fazer as vogais. Ela pega uma pedra de giz e escreve: a 1 1. Depois: A a 1 u. E fica parada em frente ao quadro, por algum tempo. “─ Eu vendo, eu lembro” - diz, toda sem jeito, voltando-se para a professora, que continua no meio da sala. “─ Agora quero que você faça sem olhar” - pede a professora, com certa impaciência, chegando junto ao quadro. D. Maria José escreve: 1. “─ Não, isso não é letra “e”. Hoje você já fez elas”. “─ Então deixe eu ver...” - e volta, rapidamente, para sua carteira e começa a abrir o caderno. “─ Não! Não é pra olhar!” - intervém a professora, proibindo-a. D. Maria José fica parada, estática, em frente à sua carteira, com a mão sobre o caderno, por um momento, sem saber o que fazer.
A professora, diante dessa situação, parece constrangida. Fica em silêncio por um momento, observando a aluna em sua posição estática. “─ Ela saber fazer, faz tudo direitinho, mas ela não consegue lembrar” - fala-me, então, explicando o insucesso de D. Maria José. A professora também, parece, mostra-se decepcionada. “─ Vou passar uns ‘deverzinhos’ pra você fazer” - contemporiza, falando para D. Maria José, que continua de pé, com uma expressão de desalento, entristecida. “─ Se eu esquecer, eu olho no caderno...” - murmura. “─ Olha só ela, se ela se esquecer ela olha no caderno!” - comenta professora, para mim, sorrindo. D. Maria José sorri também. Não conseguiu escrever as vogais no quadro. Logo ela, que vem treinando incessantemente em toda aula, copiando vogais no seu caderno, ao longo de um semestre! “─ Vou copiar para você” - diz a professora. “─ Se a senhora copiar eu vou adorar” - responde, com um sorriso. “─ Olha, só professor, ela diz que se eu copiar ela vai adorar” - diz a professora, dirigindo-se a mim. Ambas sorriem.
A professora vai até o quadro e escreve as vogais: a e i o u.; D. Maria José copia embaixo. As letras vão surgindo no quadro, nervosas e trêmulas. Está na 5ª linha, agora, sozinha, escreve: u, a, e, u, a, o, o, fora de ordem. A professora atende outro aluno no quadro e volta-se novamente para D. Maria José: “─ Que letra é essa?” - pergunta “─ i” - responde. “─ Não, o ‘i’ é o que tem o pinguinho”. A professora, então, ensina D. Maria José a escrever o ‘i’, a qual repete, então, seguidos ‘is’: i, i, i, e.
A professora volta a orientar a aluna e, em seguida, diz: “─ Vou passar uma liçãozinha pra você treinar com mais calma na sua casa”. A professora, finalmente, aparentemente, deu-se por vencida. Parecia muito impaciente e decepcionada com o rendimento da aluna. Preferiu encerrar a atividade recorrendo ao costumeiro pilar dessa prática de alfabetização que venho observando: o treino cego, ininterrupto dos elementos da escrita. O que, para D. Maria José, tem-se mostrado infrutífero e inconsequente.
D. Maria José, no entanto, não é a única, a apresentar dificuldades. Muitos outros alunos não sabem, e isso afeta profundamente a professora. Vejo decepção em seu rosto. Sentada a umas duas carteiras de mim, no centro da sala, de onde comanda os alunos ao quadro, sinto a angústia dela: está impaciente, suas expressões demonstram frustração, decepção. Seu rosto, sempre alegre, hoje parece cansado, um pouco mais ruborizado do que de costume; as contrações lhe vincam a face. Suas atitudes com os alunos e alunas, sempre mantendo a fleuma, sempre sorrindo, sempre complacente com as brincadeiras de alguns adolescentes, hoje estão afetadas por certo sentimento de impotência, de ver seu trabalho desmoronar.
Alguns apresentam dificuldades para, até mesmo, escrever as vogais e as consoantes e isso a desestabiliza. Impacienta-se com os alunos e alunas que vão ao quadro. Percebo seu esforço em se manter tranquila, em não explodir. Seus comandos, para os alunos, no entanto, são forçados, carregados de irritação; uma irritação que vejo em seu rosto, em sua fisionomia, que ela procura não transferir para as palavras, mas a emoção escapa-lhe.
Acho que minha presença, na sala, torna, ainda, mais difícil e constrangedora a sua situação: os alunos e alunas, no quadro, estão demonstrando que não aprenderam o mínimo a que ela se propõe ensinar, que são as ‘letrinhas’. “- Aqueles que vão passar para a 3ª série não podem mais ter dúvidas nas letrinhas” - dissera-me ela, logo no início da aula.
Minha presença a perturba, eu sinto isso. Comigo, na sala, ela precisa conter-se, manter a calma. Não pode explodir abertamente, parece. Tenta esconder a irritação, quando se dirige aos alunos, mas a entonação deixa transparecer o quanto está insatisfeita com o rendimento deles e delas. “─ Não, Alex!!!”. “─ Benedita! O que você escreveu mesmo aí?!”. A cognição e a presença do outro mediatizam o controle emocional de descontentamento em que a professora sente, nesse momento. As emoções são constrangidas e moduladas pelos aportes da cultura e das relações sociais.
Meses seguidos de tantos exercícios, de cópias e cópias a que submeteu seus alunos e alunas, de treinos das ‘letrinhas’. “─ Como digo para eles... Claro que vou ter paciência, se não aprendeu em seis meses, a gente continua tudo de novo” - fala-me, como que tentando explicar o fracasso da aprendizagem de seus alunos.
Para a professora, a aprendizagem apresenta-se como repetição, memorização de letras e palavras e cujo tempo não se constitui como problema. Esse é seu horizonte de possíveis. jovens e adultos atrasados em sua aprendizagem, e que por isso, têm pressa, ânsia, desejo e necessidade de aprender e rápido. Não têm muito tempo, pois o mundo do trabalho já os arrebatou ou os atrai com força e determinação: pobres, não podem prescindir do trabalho. Essa dimensão não está inscrita na percepção da professora. Ela não questiona, em nenhum momento, o seu método de ensinar, e que talvez não seja somente uma questão de tempo. Mas como questionar?
Precisaria de parâmetros para fazer tais questionamentos, de outras concepções de alfabetização senão essa que pratica na sala de aula: o treino de letras vazias de sentido, dia após dia. Esse é seu método, esse é seu modo, seu aprendizado do ser professora; foi assim que se constituiu historicamente, na aprendizagem formal, no curso de magistério, nas relações de trabalho. Não pode negar sua subjetividade. Ela não é uma espécie de ator que criou seu próprio script. Sua subjetividade forjou e se forja historicamente e é um agregado das relações sociais (Vigotski, 2000c).
Não pode, ela, atirar pela janela aquilo que lhe é mais caro: o domínio de um saber fazer, de um discurso que dá forma, segurança e estabilidade a seu ser professora, pois tais discursos (técnicas e práticas) são socialmente constituídos e cuja episteme instaura determinadas formas de relação social.
“─ Você vai para a minha sala hoje?” - perguntou-me ela, certo dia, quando nos dirigíamos para as salas. “─ Não, vou pra sala da Iracy. “─ Logo hoje, que eu precisava fazer umas perguntinhas para você. Você sabe que hoje a supervisora da minha escola [supervisora das creches] chegou pra mim e perguntou: ‘qual é seu método?’. Veja só! Nunca disseram pra gente nada, nunca explicaram nada e agora vêm perguntar que método a gente usa? Eu falei que meu método é ‘aprender brincando’ porque são crianças pequenas... dois anos... Eu queria que você me dissesse quem é o autor que é mais importante hoje. Eu estudei Fröebel, Piaget, Vigotski, mas essas coisas mudam, eu queria saber...”.
Logo, estamos diante de uma prática que, histórica e socialmente, dá visibilidade ao “[...] modo como os homens [professores, alunos] determinados em condições determinadas criam os meios e as formas de sua existência social, reproduzem ou transformam essa existência social que é econômica, política e cultural” (Chauí, 1981, p. 20).
Na relação, a professora sofre, angustia-se. Queda-se nas teias dos efeitos de sentidos que a mediação provoca. A professora é uma profissional responsável, preocupada, ciente e consciente do que deve fazer para ensinar as letras. Não se descuida. Zela e vela por seus alunos e alunas. O acompanhamento, o treino, a leitura das letras - é o que sabe fazer e o que faz com cuidado, certeza e fé. Ela não se dá conta de que há outras possibilidades para os alunos se relacionarem com a escrita. Para ela, o caminho, único e possível é o treinamento. Leituras essas, possíveis, pelas marcas deixadas por suas enunciações e por sua prática. Nessas marcas, a professora dá-se a ver em sua singularidade. “Singularidade e significação inscrevem-se nos gestos e nas posturas dos indivíduos, deixando marcas em seus corpos. Entremeiam-se a suas palavras e a seus silêncios, deixam indícios em seus dizeres” (Fontana, 2000, p. 105).
Se o olhar dá visibilidade às manifestações afetivo-emocionais de D. Maria José na sua árdua relação com a escrita e a leitura, não se pode deixar de dar visibilidade, também, às manifestações afetivo-emocionais da professora na sua relação com os alunos, significadas nas suas enunciações verbais e não verbais. Os acontecimentos da sala de aula tocam e afetam a professora em sua subjetividade: ela sofre e angustia-se. Sentimento de fracasso por não ver seus objetivos atingidos. Os alunos, à sua frente, errando, errando mais que acertando, são a materialização do fracasso, não só do aluno, da aprendizagem, mas do ensino: é como se o mundo desabasse sobre os seus ombros, fardo pesado que suporta. Queda-se, sozinha, em sua angústia. Experimenta também a solidão, tal qual D. Maria José, em seus momentos de treino.
A professora reverbera sobre si mesma os efeitos de sentidos de uma prática pedagógica que a constituiu, que não criou, mas que se apropriou sem benefício de um inventário, como diz Gramsci (1978). Ela não se faz imune em suas relações de ensino com os alunos. Ambos se afetam e são afetados. Eventos de alegria, de tristeza, de angústia e de júbilo não são atributos exclusivos de um ou de outro, num jogo dicotômico e maniqueísta. São evidências das condições de produção das relações intersubjetivas vividas em sala de aula, tendo o conhecimento como um mediador fundamental.
Digressões 1
A presença, em sala de aula, de D. Maria José, mulher, pobre, negra, analfabeta e em sua longeva idade, evidencia formas de opressão a que os velhos, em sua condição social de economicamente improdutivos, enfrentam, entre os quais, a submissão a uma vida de silêncio e afastamento. Na moderna sociedade capitalista, a decrepitude biológica de homens e mulheres sinaliza, sem pudor e sem cerimônia, o fim último de sua posição social: o abandono e o banimento da vida social e cultural, principalmente aos sem posses. Por conseguinte, todos deveriam encarar, sem maiores ilusões, um inexorável destino, feito de incertezas e exclusões, em suas diversas formas e matizes, em suas sutilezas e banalizadas crueldades.
Aos mais pobres e aos muito pobres, a velhice se mostra em sua dureza maior, como segregação e esquecimento. Sem a posse de bens materiais, como definidora de posições sociais, como sobreviverão estes? Em muitos casos - e em sua maioria - com apenas os poucos proventos de uma indigente aposentadoria, quando há. Isso quando não mais lhes restam a força necessária e o vigor muscular para completar a renda com alguma forma de precário trabalho.
A velhice vai sendo esquecida e isolada em lugares deliberados: na solidão dos lares ou na vida em comum, mas igualmente solitária, dos asilos, seja naqueles que são pagos ou nos mantidos pela assistência social do poder público ou de alguma instituição benemerente. Na sociedade, o destino irresoluto de ‘ser’ velho é viver ou, como diz Chauí, “[...] sobreviver sem projeto, impedido de lembrar e de ensinar, sofrendo as adversidades de um corpo que se desagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez mais viva, a velhice, que não existe para si, mas somente para o outro, o opressor” (Bosi, 1983, p. XVIII).
Excluídos e oprimidos, os velhos são impedidos de se dizerem, de comunicarem o que aprenderam nos longos anos de vida e de trabalho, simplesmente porque ninguém os quer ou não tem tempo para ouvi-los, ocupados que se encontram em atender as céleres demandas da volátil ordem do capital. A experiência, enquanto saber que se foi elaborando ao longo do tempo, já é sem valor nessa ordem. Não é senão essa a razão por que Benjamin (1987) lamenta a morte da narrativa, pela qual se compartilhava a sabedoria acumulada pelos indivíduos. Em uma sociedade instituída por processos que valorizam o que é descartável, na pressa e na velocidade, a escuta, a relação intersubjetiva de compartilhamentos e troca de experiências, não encontra mais um lugar reconhecido. Esquecidos e empurrados para a margem dos processos produtivos, os velhos não têm a quem falar, não encontram a quem possa ouvi-los, a quem possam dar ‘conselhos’. Benjamin (1987) lamenta essa perda da habilidade de se dar ‘conselhos’ e vê nisso um inelutável caminho para a simplificação da experiência e da vida humana.
Digressões 2
É na relação plural que apreendemos, compreendemos o mundo e nos constituímos em nossas singularidades. Como descobrir sentidos e significados numa aprendizagem fragmentária, de uma alfabetização que nega a aventura de conhecer, de envolver-se com os conteúdos culturais? Snyders (2001), em sua obra, Alunos felizes, apresenta a emoção - a alegria - na escola, não como algo fortuito, mas como decorrente de relações com o saber na qual os estudantes enfrentam situações que implicam dificuldades, dedicação e trabalho árduo. A aprendizagem, que não é unicamente prazerosa, deve pressupor a alegria como fruto de dificuldades transpostas.
Para Charlot (2000), aprender, por sua vez, é apropriar-se desse mundo, é entrar em relação com outros sujeitos, significados, valores, artefatos etc. Nesse processo de inter-relação o sujeito se constrói a si mesmo, sempre mediado pelo outro, sempre com a ajuda de outros e, assim, vai significando e dando sentido às relações em benefício de sua própria singularização. Ou seja, esse movimento ininterrupto no qual construímos e somos construídos pelos outros é o que denominamos amplamente de educação. “Eu só posso educar-me numa troca com os outros, com o mundo” (Charlot, 2000, p. 54).
Para esse autor, é significativo aquilo que produz inteligibilidade sobre alguma coisa, aquilo que nos ajuda a compreender o mundo; aquilo que pode ser comunicável e, portanto, pode ser entendido em uma troca com os outros. O sentido é, assim, produzido nas inter-relações com outros parceiros, dentro de um sistema. Aprender, por conseguinte, é apropriar-se de significados e sentidos que, de alguma forma, nos mobilizam, nos impelem a agir. O sujeito deseja aprender porque deseja se apropriar de um mundo que é essencialmente humano e, portanto, sempre desejável (Charlot, 2000).
O que, então, esperar, diante das práticas de conhecimento - leitura e escrita - descritas, que foram vivenciadas pela aluna, D. Maria José? Um mundo de sentidos e significados, de objetos culturais cognitivos e afetivos parece que lhes são negados por uma prática alfabetizadora mecânica e estéril.
Considerações finais
As manifestações afetivas, sejam de aceitação ou de negação, trespassam os sujeitos nas relações intersubjetivas e adquirirem visibilidade nas relações de ensino, de aprendizagem, de apropriação do conhecimento, afetando, de forma radical, as demandas ao desenvolvimento cognitivo dos sujeitos e sua estabilidade subjetiva.
Refletindo sobre o empírico, consideramos que as evidências parecem indiciar que não se pode pensar a questão emocional e afetiva, na prática pedagógica, desvinculada do sucesso na aprendizagem, condição para o desenvolvimento cognitivo e demais dimensões da vida psíquica. Há, assim, que se atentar, no exame das relações pedagógicas à questão da indissociabilidade entre emoção-afetividade-conhecimentos escolarizados e desenvolvimento cognitivo. Emoção-afetividade-conhecimento-cognição faz parte de uma indissociável dimensão psíquica e subjetiva.
A narrativa apresenta indícios do esforço de se ensinar, mas, ao mesmo tempo mostra não houve a esperada aprendizagem daquilo que foi proposto em cada dia de aula. Logo, parece que a escola não realizou aquilo que dela se esperava, promover o desenvolvimento cognitivo/intelectual. Vivenciando uma prática de aprendizagem mecânica, repetitiva, calcada no mero desenhar, redesenhar e copiar letras e números; restou a nossa personagem, como aluna, experimentar-se em emoções de angústia, sofrimento e tristeza.
A análise parece evidenciar que é o conhecimento que modula as relações pedagógicas em sala de aula. O não apreender e aprender os conhecimentos (conteúdos programáticos), no caso específico dessa narrativa, ler e escrever provocou expressões emocionais e afetivas que se indiciavam em gestos corporais aleatórios e instintivos, por exemplo, menear aleatório do corpo para um lado e outro; estados de languidez; lábios que se moviam incessantemente; olhares vagos, perdido; fisionomia a evidenciar estados de desprazer, tristeza. Assim, o sentir-se não aprendendo imobiliza os investimentos afetivos-cognitivos para novas aprendizagens, para a apropriação de novos conhecimentos.