Introdução
O artigo tem como objetivo analisar as atuais políticas para a educação infantil no que se refere às categorias políticas da universalização e qualidade para essa etapa da educação básica no Brasil. Trata-se de uma análise histórica que aborda os aspectos desafiadores para que a educação infantil seja de fato uma etapa do ensino que atenda a todas as crianças sem estar amparada na visão assistencialista, mas com políticas efetivas e intersetoriais que visem a universalização do acesso, da qualidade e da formação adequada de professores; aspectos que são essenciais para a democratização do direito à educação infantil e para a superação das desigualdades educacionais e sociais.
Para dar conta do proposto, o texto apresenta uma mediação analítica sobre os pressupostos históricos da educação infantil no Brasil. O recorte temporal se assenta precisamente a partir de 2006, momento em se encerrou o período denominado de ‘década da educação’, instituída pelo artigo 87 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394 (1996). Nesse sentido, o texto evidencia os avanços e retrocessos ocorridos na política para a educação infantil, a fim de compreender sobre o processo de luta e enfrentamento que foi travado para a construção de uma política que alcance a universalização e a qualidade nessa etapa educacional. Por fim, refletimos sobre a categoria qualidade e sua relação com a formação e a prática pedagógica de professores, temática proeminente em um momento em que se contratam e criam funções e cargos para os quais não se exige qualificação alguma para educar e cuidar de crianças e bebês na educação infantil.
Diante da necessidade de compreender e analisar o contexto da educação infantil para apreender como as políticas educacionais são delineadas, julga-se necessário analisar as contradições em processo e os mecanismos engendrados nas definições para as políticas delineadas, aprovadas e colocadas em prática a partir de 2006. A análise se configura como documental e bibliográfica por considerar a investigação centrada a partir de documentos oficiais, normativos e legais que apresentaram as principais políticas para a educação infantil no período. Buscamos, ainda, compreender a temática a partir de outras fontes secundárias que abordam sobre a história, política e prática pedagógica na educação infantil brasileira.
Ao afirmar a necessidade de analisar as contradições em processo na política para a educação infantil, salientamos a escolha da categoria contradição nessa pesquisa como um instrumento metodológico no qual cabe examinar as proposições e mediações que sugerem as relações e políticas econômicas, sociais e, nesse caso, educacionais, com ênfase nas políticas para a educação infantil, ao considerar que
Nas contradições, há uma relação entre o que há de comum a todos os fenômenos e o que há de específico a cada um deles. O universal existe no particular, e o que leva a distinguir um fenômeno de outro é a captação do que existe de comum entre um fenômeno e os outros, e aí notar o que nele há de específico, ou seja, o que o diferencia qualitativamente de outras formas de movimento (Cury, 1987, p. 32).
A pesquisa se justificou como relevante, pois se propôs elucidar o processo e os mecanismos de construção e desconstrução das políticas para educação infantil. A temática e a problemática anunciadas na pesquisa referem-se à continuidade e ao aprofundamento das investigações propostas pelos grupos de pesquisa que as autoras lideram.
Educação infantil: um passado presente!
Ao analisar os pressupostos históricos da educação infantil no Brasil, cabe considerar que os problemas que persistem nela possuem raízes históricas assentadas no passado, uma vez que as mazelas do passado ainda ecoam no presente (Kramer, 1987; Kuhlmann Jr., 1998; Moreira & Lara, 2012; Bogatschov & Moreira, 2006).
A educação de crianças pequenas no Brasil, desde a colonização e a partir das primeiras instituições, seguiu modelos de atendimento assistencialistas, compensatórios ou preparatórios; foram espaços destinados a guardar as crianças, suprir suas misérias e substituir a ação da família (Abramovay & Kramer, 1985). Bogatschov & Moreira (2006) corroboram com as autoras e destacam que no transcorrer da história do atendimento à infância começou com o atendimento assistencialista, passando pelo atendimento compensatório ou preparatório e, na atualidade, chegou à concepção educativa Outro aspecto é que foram poucas as ações específicas para o atendimento às crianças pequenas no período de 1500 a 1874, por não termos registros que apresente algum tipo de educação formal às crianças dessa faixa etária (Kramer, 1987).
De 1874 a 1899 foram elaborados projetos de grupos particulares de médicos e sanitaristas para a criança pequena. De 1899 a 1930 foram fundadas instituições, aprovadas leis que regulamentaram o atendimento à infância. De 1930 até 1980 pode-se afirmar a marca de uma nova caracterização do atendimento à criança pequena. Essas mudanças em cada período histórico e sua forma de atendimento à infância foram determinadas pelo modo de conceber a criança e de como a sociedade e o mundo do trabalho a relacionam enquanto sujeito histórico (Kramer, 1987; Bogatschov & Moreira, 2006).
Educar e cuidar como uma concepção indissociável foi e tem sido uma conquista recente na educação infantil brasileira. Nomeadamente, a partir de 1998, por meio do documento denominado Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), tem-se o desafio de compreender e definir a relação educar e cuidar nos espaços educativos, denominados de creche (0 a 03 anos) e pré-escola (04 e 05 anos).
Aliado a esse desafio, ainda era muito presente a característica herdada historicamente de uma educação infantil que nasceu assistencialista e compensatória (Kramer, 1987; Oliveira, 2002). Portanto, vivencia-se um contexto de três décadas em que a organização e a estruturação da educação infantil têm sido responsabilidade do Ministério da Educação e dos Sistemas de Ensino Municipal. A luta incessante é fazer valer uma concepção realmente educativa para todas as crianças dessa faixa etária.
Inaugura-se, nesse contexto, o desafio dos Sistemas de Ensino Municipal em tornar essa etapa um período para o desenvolvimento integral das crianças pequenas e considerá-las como “[...] sujeito social e histórico que faz parte de uma organização familiar que está inserida em uma sociedade, com uma determinada cultura, em um determinado momento histórico” (Parecer CNE/CEB nº 22, 1998, p. 21). Porquanto, o sujeito social criança recebe as marcas do meio onde vive, mas também age e deixa marcas no seu tempo histórico, pois é sujeito singular que pensa, sente de maneiras próprias, se desenvolve e aprende na interação com os outros, utilizando várias formas de expressão para significar, ressignificar e criar conhecimentos. Portanto, as instituições de educação infantil devem unificar o cuidar com o educar, pois desde muito cedo a criança já é sujeito ativo no meio onde vive e aprende nas relações e interações que experimenta. Afirmam Bogatschov & Moreira (2006, p. 9) que
[...] o cuidado envolve a compreensão de como ajudar o outro a se desenvolver, portanto, significa valorizar e ajudar a desenvolver capacidades, envolve a dimensão afetiva e os cuidados com os aspectos biológicos do corpo. Verifica-se que o conceito de cuidado se expande para além dos aspectos biológicos.
Um aspecto a destacar é que ao final da década da educação, em 2006, tornou-se obrigatória a inserção das crianças a partir de seis anos no primeiro ano do ensino fundamental, por meio da aprovação da Lei nº 11.274 (2006). Até a presente data nos preocupa a admissão das crianças nessa faixa etária em virtude do número crescente que adentra à escolarização no ensino fundamental de forma precoce, pela ausência de uma política de corte etário não estar adequadamente definida em alguns Estados brasileiros. Outra questão é que dados da Avaliação Nacional de Alfabetização - ANA noticiados em 20141 comprovaram que uma em cada cinco crianças de oito anos não estão alfabetizadas e sabem ler apenas frases (Moreno & Rodrigues, 2015). O resultado na ANA, em 2016, não foi diferente, pois mais da metade dos alunos do terceiro ano do ensino fundamental apresentou nível insuficiente nas provas de leitura e matemática: O índice de alunos com nível insuficiente em leitura era de 56,17% e ficou em 54,73% (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [INEP], 2017).
Dados mais atuais foram evidenciados por Amarante & Moreira (2019), ao se referirem à Avaliação Nacional da Alfabetização [ANA] (2013), ressaltam que seus resultados revelaram que mais da metade dos alunos matriculados no terceiro ano do ensino fundamental tem nível insuficiente em leitura e matemática. As consequências dessas comprovações acentuam na educação infantil, que passa a ser considerada apenas como uma etapa preparatória com ênfase precoce na alfabetização. Assim ponderam as autoras que
Com relação aos resultados dessa avaliação, constata-se que a alfabetização como direito social está sendo ofertada às crianças com insucesso e situações de insucesso têm sido recorrentes. Acredita-se que o direito à educação, instituído no Art. 205 da Constituição Federal, vai além de um direito que visa apenas o conhecimento e a aprendizagem escolarizada. Esse direito deve abranger uma ampla formação do sujeito, que vive e interage em uma sociedade movida por constantes transformações históricas e sociais (Amarante & Moreira, 2019, p. 5).
Após uma década de ampliação do ensino fundamental não se justifica a retirada das crianças com seis anos da educação infantil, pois o fracasso escolar é um continuísmo e o argumento de que as crianças com seis anos teriam um tempo a mais para a socialização com a alfabetização e o letramento parece não ter colaborado para o alcance do direito à aprendizagem desse conhecimento.
Nesse sentido, ao tratar sobre os desafios da educação infantil deparamo-nos com a polêmica do recorte da faixa etária. Ainda questionamos a forma precoce de entrada das crianças no ensino fundamental e a forma de práticas formativas na educação infantil que se caracterizam por serem preparatórias para o ensino fundamental e desconectadas do conceito real do que é o desenvolvimento integral na educação infantil. Cada vez mais cedo estamos a desestimular a aprendizagem por meio do brincar, das experiências lúdicas, da fantasia, da criatividade e da arte e suas diferentes linguagens. Essas têm sido substituídas pela sistematização demasiada das práticas escolarizadas, atividades apostiladas, impressas e realizadas em espaços não apropriados para aprender, sob responsabilidade de profissionais não formados ou com formação a desejar, sendo também levadas precocemente às avaliações estandardizadas.
Em 2009, no Brasil, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 59 (2009) regulamentou-se a matrícula obrigatória das crianças a partir de quatro anos na educação básica. Com essa expansão ocorreram implicações na ampliação dessa obrigatoriedade e suas intencionalidades nas políticas para a formação de professores e nas práticas pedagógicas.
O desafio da universalização na educação infantil
A universalização da educação infantil como um direito, de todas as crianças é bem recente na história da educação brasileira. Somente na Constituição Federal de 1988 é que a criança foi concebida como sujeito de direitos e, teve, portanto, assegurado legalmente o direito à educação. Esse direito foi reafirmado no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n. 8.069/1990) como um dos direitos fundamentais da criança. Conforme Victor (2011, p. 118), “O Estado tem o compromisso perante a população de desenvolver políticas públicas tendentes a universalizar o acesso de qualidade a creches e pré-escolas”.
Originalmente a Constituição de 1988 estabeleceu como dever do Estado em garantir “[...] atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, art. 208, IV, p. 138). Entretanto, essa garantia foi fragilizada, ao não se estabelecer com clareza no texto constitucional, quem seria responsável por essa etapa da educação básica, ao constar apenas que aos municípios compete atuar prioritariamente no ensino fundamental e na pré-escola (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Observa-se que na organização colaborativa dos sistemas de ensino, o compromisso é somente com a educação pré-escolar, que fica sob a responsabilidade dos municípios. Não há, portanto, compromisso com a faixa etária do nascimento aos três anos. Desse modo, a creche fica sem responsável direto que garanta esse direito a todas as crianças dessa faixa etária.
Em 1996, com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [LDBEN] (Lei nº 9.394, 1996), a educação infantil passou a ser considerada a primeira etapa da educação básica (art.29), e ficou definido que as creches e pré-escolas deveriam integrar-se aos sistemas de ensino (art.89). Conforme Kramer (2006, p. 20): “Todos esses documentos são conquistas dos movimentos sociais, movimentos de creches, movimentos dos fóruns permanentes de educação infantil [...]”, na luta por sua democratização no país.
É possível afirmar que a educação infantil foi legalmente reconhecida como um direito, no entanto, a priorização dos recursos da educação para o ensino fundamental, por meio da criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério [FUNDEF]2, evidenciou naquele contexto, a ausência de condições materiais para que o direito à educação infantil fosse de fato garantido. Ao priorizar a maior parte dos recursos vinculados, para o ensino fundamental, os municípios, em sua maioria, tiveram dificuldades para assegurar esse direito às crianças pequenas. Fica evidente a contradição posta, por um lado, o reconhecimento legal da educação infantil como primeira etapa da educação básica; por outro, a não destinação de recursos em quantidade suficiente para que esse direito seja garantido.
A partir desse momento, a luta pelo direito à educação infantil passa do âmbito legal para o âmbito político e pedagógico. São necessárias ações e políticas que garantam o estabelecido em lei. Nessa acepção, foram elaborados alguns documentos referência para a educação infantil, entre eles: o já mencionado, Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil [RCNEI] e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Parecer CNE/CEB nº 22, 1998; Resolução CEB nº 1, 1999).
Juntamente a esses documentos, somaram-se as reivindicações por mais recursos financeiros e pela inclusão da educação infantil no FUNDEF. Como resposta às reivindicações foi estabelecimento na meta n.21 da educação infantil, no Plano Nacional de Educação de 2001 (Lei nº 10.172, 2001) “Assegurar que, em todos os Municípios, além de outros recursos municipais, os 10% dos recursos de manutenção e desenvolvimento do ensino não vinculados ao FUNDEF sejam aplicados, prioritariamente, na educação infantil” (Lei nº 10.172, 2001, p. 14). O objetivo era atender, até o final da década, 50% das crianças de zero a três e 80% das crianças de quatro a seis anos. Algumas metas do PNE (2001-2010) não foram alcançadas pelos nove vetos presidenciais ocorridos na ocasião da tramitação do PNE/2001, sendo que um dos vetos não aprovou a elevação do percentual de gastos públicos em relação ao PIB, aplicados em educação, para atingir o mínimo de 7%; no qual previa que os recursos deveriam ser ampliados, “[...] anualmente, à razão de 0,5% do PIB, nos quatro primeiros anos do Plano e de 0,6% no quinto ano” (Valente & Romano, 2002, p. 105).
Em 2005 foi aprovada a Lei nº 11.114, que tornou obrigatória a matrícula das crianças de seis anos de idade no ensino fundamental. No ano seguinte, a Lei nº 11.274 (2006), de 06 de fevereiro de 2006, ampliou o ensino fundamental para nove anos de duração, com a matrícula obrigatória a partir dos seis anos de idade e estabeleceu prazo de implantação, pelos sistemas, até 2010.
Ainda em 2006, em substituição ao FUNDEF, foi criado, pela Emenda Constitucional nº 53, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação [FUNDEB] e regulamentado pela Lei nº 11.494 (2007). Esse fundo passou a atender toda a educação básica e foi implantado de forma gradual, em três anos para a educação infantil e o ensino médio.
Em âmbito legal, ocorreu uma mudança substancial no direito à educação infantil com a aprovação da Emenda Constitucional n. 59 (2009). Pela primeira vez, parte da educação infantil (a fase pré-escolar) passou a ser obrigatória e de direito público subjetivo. Cury (2002) esclarece o que significa um direito dessa natureza.
Direito público subjetivo é aquele pelo qual o titular de um direito pode exigir direta e imediatamente do Estado o cumprimento de um dever e de uma obrigação. O titular desse direito é qualquer pessoa, de qualquer idade, que não tenha tido acesso à escolaridade obrigatória [...] Trata-se de um direito subjetivo, ou seja, um sujeito é o titular de uma prerrogativa própria deste indivíduo, essencial para a sua personalidade e para a cidadania. E se chama direito público, pois, no caso, trata-se de uma regra jurídica que regula a competência, as obrigações e os interesses fundamentais dos poderes públicos, explicitando a extensão do gozo que os cidadãos possuem quanto aos serviços públicos. O sujeito deste dever é o Estado sob cuja alçada estiver situada essa etapa da escolaridade (Cury, 2002, p. 21).
A Emenda Constitucional nº 59 (2009) ampliou a escolaridade obrigatória para a educação básica dos quatro a 17 anos de idade e estabeleceu a implementação progressiva pelos sistemas de ensino, com apoio técnico e financeiro da União, até 2016. Portanto, o não atendimento a essa faixa etária implica na responsabilização da autoridade competente, que no caso da educação infantil (04 e 05 anos) é o município. A obrigatoriedade implica também a obrigação dos pais ou responsável em efetuar a matrícula na educação básica a partir dos quatro anos de idade (Lei nº 9.394, 1996, art.6º).
Como já mencionado anteriormente a entrada precoce de crianças no ensino fundamental esteve em diversos momentos em cena no país, pois foi anunciada em outras estratégias políticas. Além de ecoar em mudanças significativas na forma de educar as crianças na educação infantil, essa alteração na faixa etária trouxe problemas na convivência das crianças e provocou alterações na organização pedagógica. Destacou Kramer (2007) no documento organizado pelo Ministério da Educação e intitulado Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade.
A criança não se resume a ser alguém que não é, mas que se tornará (adulto, no dia em que deixar de ser criança). Reconhecemos o que é específico da infância: seu poder de imaginação, a fantasia, a criação, a brincadeira entendida como experiência de cultura. Crianças são cidadãs, pessoas detentoras de direitos, que produzem cultura e são nela produzidas. Esse modo de ver as crianças favorece entendê-las e também ver o mundo a partir do seu ponto de vista. A infância, mais que estágio, é categoria da história: existe uma história humana porque o homem tem infância. As crianças brincam, isso é o que as caracteriza (Kramer, 2007, p. 15).
É importante destacar, que parte da educação infantil, a creche, não foi contemplada com a obrigatoriedade, mesmo com a aprovação do novo Plano Nacional de Educação (2014-2024) pela Lei nº 13.005 (2014, p. 3), que estabeleceu como parte da Meta 1: “[...] ampliar a oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o final da vigência deste PNE”. Conforme os resultados da Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD, 2018), a taxa de escolarização de crianças de zero a três anos era de 34,2% e no grupo de quatro a cinco anos, faixa correspondente à pré-escola, essa taxa foi de 92,4%. Destacamos, portanto, que o desafio de universalizar a educação infantil, mesmo em âmbito legal, ainda não está garantido. Que a luta dos movimentos sociais pelo direito à educação infantil precisa se intensificar, pois além da garantia de acesso é preciso assegurar a qualidade dessa educação.
Nas Conferências Nacionais de Educação (Conae, 2010, 2014) foram intensos os debates em prol do direito à educação infantil. Ao discutir as bases para a democratização do acesso, da permanência e do sucesso escolar, como instrumento da qualidade social da educação, em relação à educação infantil, foi destaque no Documento Final da Conae de 2010.
a) A consolidação de políticas, diretrizes e ações destinadas à ampliação do acesso à educação infantil, visando à garantia do direito à educação de qualidade às crianças de 0 a 5 anos de idade. Isto porque, considerando a extensão do mecanismo da obrigatoriedade a partir dos quatro anos, o Brasil não pode correr o risco de deixar de priorizar o aumento de matrículas na etapa da creche em favor da expansão das matrículas na pré-escola. A educação infantil não pode ser cindida. [...]
b) A garantia de aporte financeiro do Governo Federal para a construção, reforma, ampliação de escolas e custeio com pessoal, para aumento da oferta de vagas em 50%, até 2010, e a universalização do atendimento à demanda manifesta, até 2016, especificamente às crianças da faixa etária de 0 a 3 anos de idade, em período integral, a critério das famílias, assegurando progressivamente seu atendimento por profissionais com nível superior e garantia de formação continuada (Conae, 2010, p. 68).
A Conae 2010 deveria ter sido referência para a elaboração do Plano Nacional de Educação, no entanto, não foi o que ocorreu em relação à educação infantil. Com o objetivo de universalizar o atendimento na educação infantil, a Conae 2014 propôs, em seu Documento Referência a universalização da educação infantil na pré-escola para as crianças de quatro a cinco anos de idade até 2016 e a ampliação da oferta de educação infantil em creches, de forma a atender 100% da demanda das crianças de até três anos, até o final da vigência deste PNE (Conae, 2014).
Participaram ativamente desse processo de reivindicação da garantia do direito à educação infantil a sociedade civil organizada por meio de entidades, as associações e, de modo especial, o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil [MIEIB]3. O MIEIB, no Brasil, tem sido um movimento social importante na construção e acompanhamento das políticas para a educação infantil; o movimento defende também que a garantia aos bebês, às crianças muito pequenas e pequenas do direito à educação infantil deve se efetivar por meio de “[...] políticas públicas que corroborem com a efetivação do direito à Educação Infantil pública, laica, gratuita, inclusiva e de qualidade social para todas as crianças brasileiras de zero até seis anos” (MIEIB, 2018, p. 4).
No âmbito das atuais recomendações internacionais para a educação infantil, um elemento a considerar para compor o entendimento da conjuntura política nesta etapa educativa está na cooperação internacional configurada pela Agenda de Desenvolvimento Sustentável Pós-2015 (2015 a 2030), efetivada pelos países membros da Organização das Nações Unidas [ONU], no qual o Brasil acordou em concretizar a Agenda E2030 para a educação, a partir das definições contidas no Objetivo de Desenvolvimento Sustentáve 4 para a Educação, denominado pela sigla ODS4.
Moreira (2019), ao analisar os aspectos que delineiam as políticas nacionais, a partir dos mecanismos de regulação transnacional, por meio da cooperação internacional proveniente do acordo da Agenda E2030, revela as principais categorias políticas recomendadas para a educação infantil nos documentos internacionais da Agenda E2030: a Declaração de Incheon e Marco de Ação para a implementação do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (Unesco, 2016) e na Declaração de Buenos Aires (Unesco, 2017), conforme apresentado na Tabela 1.
As principais categorias políticas recomendadas para o delineamento da política educacional aos países da América Latina e o Caribe, no que tange à educação infantil para os próximos 15 anos, são: a focalização na pobreza que prioriza o atendimento aos marginalizados e excluídos, a defesa de uma educação infantil como etapa preparatória para o ensino fundamental e ciclos posteriores, atenção e cuidado sendo promovidos não exclusivamente pelo Estado, mas pelo terceiro setor; parecerias com equipes multissetoriais e intersetorias. Além de não priorizar a profissão do professor na educação infantil, pois não se encontra registro da palavra deste profissional, sendo considerados o ‘pessoal’, como também não há registros de recomendações para a obrigatoriedade e universalização da educação infantil (Moreira, 2019).
Declaração de Incheon e Marco e Marco de Ação para a implementação do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (Unesco, 2016) | ||
Categoria | Enunciado | Página |
Ausência de universalização | Instituir políticas e leis integradas e ‘inclusivas’ que garantam a oferta de pelo menos um ano de educação pré-primária compulsória e de ‘qualidade’, com especial atenção em alcançar as ‘crianças mais pobres e desfavorecidas’ por meio de serviços de ECCE4. Isso inclui ‘avaliações’ de políticas e programas de ECCE para melhorar sua ‘qualidade’. | 39 |
Inclusão | ||
Qualidade | ||
Focalização na pobreza | ||
Avaliação | ||
Multissetorialidade e intersetorialidade | Instituir políticas e estratégias ‘multissetoriais’ de ECCE, apoiadas pela coordenação entre ministérios responsáveis por nutrição, saúde, proteção social e infantil, água/saneamento, justiça e educação, além de garantir recursos adequados para sua implementação. | 39 |
Profissionalização do pessoal | Elaborar políticas, estratégias e planos de ação claros para a ‘profissionalização do pessoal’ de ECCE, para aprimorar e monitorar seu desenvolvimento profissional, seu status e suas condições de trabalho. | 39 |
Ausência da denominação de professor | ||
Qualidade | Conceber e implementar programas, serviços e infraestrutura de ‘qualidade’, para a primeira infância, que sejam também ‘inclusivos’, acessíveis e integrados e abranjam necessidades de saúde, nutrição, proteção e educação, principalmente para crianças com deficiências, e o apoio a famílias como os responsáveis pelos primeiros cuidados das crianças | 39 e 40 |
Inclusão | ||
Declaração de Buenos Aires (2017) | ||
Categoria | Enunciado | Página |
Etapa preparatória | De aquí a 2030, velar por que todas las niñas y todos los niños tengan acceso a servicios de atención y desarrollo en la primera infancia y a una enseñanza preescolar de calidad, a fin de que estén ‘preparados’ para la enseñanza primaria. | 6 |
Focalização na pobreza | Reafirmamos el compromiso de continuar avanzando en la expansión de los programas de atención y educación de la primera infância, priorizando aquellos ‘grupos marginados y/o excluidos’, a partir de una oferta de ‘calidad’ que promueva el desarrollo integral de niños y niñas, con la participación activa de las familias y comunidades, y que se encuentre articulada interinstitucional e ‘intersectorialmente’, asegurando así el éxito escolar en los ciclos sucessivos. | 8 |
Qualidade | ||
Parcerias | ||
Intersetorialidade |
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de Moreira (2019).
Perante as contradições existentes nas recomendações internacionais apresentadas pela Agenda E2030, em 2018, num contexto político turbulento, ocorreu a III Conferência Nacional de Educação (Conae) que, em relação a Educação Infantil enfatizou a importância da política de cooperação e colaboração ente a União, Estados e Municípios para a garantia de sua universalização. Nesse sentido o Documento Final da Conferência afirma que “[...] cabe aos entes da federação: [...] II - garantir a universalização da matrícula conforme a demanda manifesta para crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos em creches” (Conae, 2018, p. 44). O discurso enfatiza agora a primeira etapa da educação infantil pela segunda fase, a pré-escolar ter se tornado obrigatória.
Paralelo à Conae-2018, ocorreu a Conferência Nacional Popular de Educação (Conape, 2018) organizada pelo Fórum Nacional Popular de Educação [FNPE]5 composto por um “[...] processo coletivo de articulação de 35 entidades da sociedade civil que defendem a educação pública e democrática” (Conape, 2018, p. 3). Com relação a Educação Infantil além de garantir a universalização e qualidade da escolaridade obrigatória prevê “[...] garantir a universalização da matrícula conforme a demanda manifesta para crianças de zero a três anos em creches sem prejuízo dos investimentos no sistema já consolidado” (Conape, 2018, p. 7). Com intuito de garantir que as proposições apresentadas ganhem materialidade apresentaram como urgente a luta pela derrubada da Emenda Constitucional nº 95 (2016), que ao institui o Novo Regime Fiscal congelou e subtraiu os investimentos nas políticas sociais por 20 anos.
Foram pauta de discussão tanto na Conae (2018) como na Conape (2018) a aprovação da Base Nacional Comum Curricular [BNCC] (2018), embora com diferentes posicionamentos: a primeira, com uma perspectiva de que a implementação da BNCC é condição para melhorar a qualidade da educação básica em todas as suas etapas, inclusive a educação infantil; a segunda, contraria a implementação da BNCC por entender que essa engessa e homogeneíza o currículo ao excluir temas sociais fundamentais à formação integral do cidadão. Mediante esses impasses os sistemas de ensino estão a vivenciar o processo de implementação da BNCC na educação infantil, que conforme a Resolução do CNE/CP nº 2 (2017) estabelece como prazo máximo, para adequação dos currículos da educação infantil, o início do ano letivo de 20206.
A prática pedagógica e os professores que ensinam na educação infantil
Um aspecto imprescindível a considerar nas políticas para a educação infantil é a definição do papel que o professor na educação infantil exerce e a sua formação. Defendemos nesse cenário educacional que a educação infantil carece de professores tão qualificados como em qualquer outro nível, etapa ou modalidade de ensino, pois esse profissional, além do cuidar, ensina e viabiliza o acesso aos conhecimentos. Assumir esse posicionamento é defender não somente o professor, mas a própria concepção de infância, uma vez que aprender não é algo natural ou espontâneo, mas um processo que envolve mediação e que precisa ser organizado intencionalmente pelo professor.
Conhecer o processo de desenvolvimento integral da criança e as formas adequadas de realizá-lo no trabalho educativo é um desafio constante para a formação contínua dos professores, para a organização e planejamento adequado das vivências de atividades plásticas, práticas e lúdicas; contudo, sem escolarizar o ensino, pois “[...] a criança pequena aprende de um jeito diferente dos adultos” (Mello, 2015, p. 8) e isso exige uma formação pedagógica apropriada.
O trabalho educativo na educação infantil se organiza a partir da concepção de quem é a criança, suas necessidades e especificidades. Cuidar e ensinar são processos que caminham juntos, sendo ambos essenciais a uma educação de qualidade, entendida como sendo de qualidade aquela que respeita o direito infantil ao conhecimento enquanto “Direito esse propulsor do desenvolvimento infantil” (Arce, 2010, p.31).
O debate em torno do binômico cuidar-educar que aparece nas políticas para a educação infantil está carregado de uma polarização que pouco contribui para o entendimento das especificidades na educação infantil, já que “[...] se prende às dimensões operacionais aparentes desses fenômenos e não se preocupa em esclarecer como e para que educar - e cuidar de - crianças nas instituições de educação infantil” o “[...] cuidado e educação constituem dimensões intrinsecamente ligadas e talvez inseparáveis do ponto de vista da práxis pedagógica” (Pasqualini & Martins, 2008, p. 77). A discussão demasiada em torno do binômio educar-cuidar ou cuidar-educar é uma forma de desqualificar a real função da educação infantil. Pensar no trabalho educativo com crianças pequenas exige a necessidade de uma estruturação pedagógica, calcada na compreensão científica de suas instituições (Martins & Arce, 2010) e alicerçada em um projeto político pedagógico, que seja instrumento real para uma educação infantil efetivamente democrática, pautada em um trabalho coletivo:
Assim, o desenvolvimento de ações que promovam maior horizontalidade nas relações de trabalho na escola contribui para o incremento da própria natureza do trabalho escolar. Ou, dito de outra forma, quão mais horizontal a escola consegue operar, mais coletiva ela se faz. Quão mais coletiva ela se produz, mais se aproxima da sua função formadora e de promoção da ação comunicativa, portanto, torna-se uma instituição com mais qualidade educacional (Souza, 2019, p. 279).
Defendemos que é no ambiente escolar democrático onde se torna possível o desenvolvimento dos indivíduos em suas máximas capacidades humanas, sejam elas físicas, sociais e psíquicas, por meio da apropriação do conhecimento historicamente acumulado pelo homem, por meio da “[...] intervenção pedagógica como agenciadora dos recursos disponíveis nas crianças e da oferta de problemas que explicitem os seus limites e as impulsionem à busca de recursos psíquicos mais sofisticados, entre eles o pensamento, a linguagem, a memória, a atenção” (Dickel & Sartori, 2020, p. 11). Enfatizam as autoras que se faz necessário avançar na ideia de que a “[...] intervenção educativa se constitui como ajuda proporcionada às crianças em seu processo construtivo, ajuda essa que se ajusta a esse processo, avançando um pouco em relação a ele (Dickel & Sartori, 2020, p. 12). Sendo assim, não se pode negar a importância e necessidade do papel imprescindível do professor e de uma formação qualificada. Cabe aos professores promoverem intencionalmente situações desencadeadoras de aprendizagem e vivências para ensinar.
Martins & Arce (2010, p. 11) alertam sobre a necessidade de revertermos o “[...] esvaziamento valorativo da função da escola, do ato de ensinar e do trabalho do professor”. Nessa direção ressaltam que os professores sejam
[...] política e pedagogicamente comprometidos com uma educação infantil justa, de qualidade e para todos, objetivam o ensino sistematizado como eixo articulador das atividades que realizam. Sem medo, assumamos o ensino em educação infantil como expressão do direito das crianças pequenas ao seu pleno desenvolvimento e do direito do professor ao efetivo exercício de sua profissionalidade ( Martins & Arce, 2010, p. 11).
O reconhecimento da criança e a garantia do seu direito à educação infantil tem sido um longo caminho percorrido na história. Os sujeitos desse processo, as crianças e os professores, necessitam de condições objetivas favoráveis e, quanto a isso, estamos longe do ideal. Salientamos a necessidade de investimentos adequados e programas que possibilitem uma formação de qualidade ao professor para que possa conduzir o trabalho com as crianças pequenas da melhor maneira, potencializando o desenvolvimento infantil pleno.
Considerações finais
Ao analisar aspectos históricos e políticos envoltos nas categorias universalização, direito, qualidade e formação de professores, ressaltamos que permanece a necessidade de uma educação infantil, enquanto etapa educativa que priorize o desenvolvimento pleno das crianças pequenas. Que seja uma etapa verdadeiramente responsável pela transmissão-assimilação do conhecimento sistematizado, a fim de que todas as crianças alcancem sua humanização, seu direito à aprendizagem, na formação de um patrimônio humano-genérico.
Diante do contexto de crise e retrocesso no país, a partir de 2015 e após a mudança de gestão no Ministério de Educação (MEC), no governo provisório de Michel Temer (PMDB), vivenciamos uma avalanche de reformas provenientes de mecanismos políticos conservadores, definidos por meio de condutas partidárias e corruptas, movidos por repressões e negócios. Esse contexto que não é algo novo na história do país, representa formas do estabelecimento de um processo da crise cíclica do capital, que culmina para o desmonte da educação pública, não efetivação do direito à educação infantil e para o aumento das desigualdades educacionais e sociais na nação. Vislumbramos a materialização de uma política que favorece a nova fronteira entre o público e o privado de diversas formas (Peroni, Oliveira, & Fernandes, 2009).
Ao encerrar esse texto salientamos para a necessária e urgente empreitada na consolidação de políticas efetivas que promovam de fato a universalização e a democratização do acesso à educação infantil, a qualidade e a formação adequada de professores e profissionais que desempenham a função educativa; aspectos essenciais para a superação das desigualdades educacionais e sociais.
Urge-se por educar e cuidar todas as crianças enquanto sujeitos históricos, conhecedores da sua realidade e produtores de novos conhecimentos. Todavia, sabemos que os desafios na educação infantil aumentam mediante as contradições do capital existentes nesse processo e das premissas políticas internacionais anunciadas na Agenda E2030, que dão ênfase às competências, habilidades e ao cuidado na primeira infância em instituições de educação infantil que são consideradas como etapas preparatórias para a minimização da pobreza. Os embates e enfrentamentos políticos crescem e a resistência para que os avanços históricos conquistados permaneçam precisam continuar, por meio da mobilização intensa dos movimentos sociais e dos segmentos educacionais.