Introdução
A ampliação da temática da qualidade na gestão escolar, em especial a partir da década de 1990, tem colocodo à escola obrigações e responsabilidades que nem sempre condizem com as suas condições reais e objetivas de operacionalização. O movimento do ‘planejamento eficaz’ e do ‘fazer mais com menos’, eregido no contexto do Fundescola (implantado no ano de 1998), tornaram-se slogans balizadores do que posteriormente se chamou de Plano de Desenvolvimento da Escola (ou PDE Escola, em 2006) e, num segundo momento, Plano de Desenvolvimento da Escola Interativo (ou PDDE Interativo, em 2012), quando da criação de uma plataforma online própria para tal programa. Partimos do pressuposto de que, além de condições financeiras e estruturais nem sempre favoráveis ao melhor desempenho das escolas, há entraves de ordem técnica e burocrática, como a definição, a priori, de onde, como e quanto investir, engessando, por vezes, o gestor escolar numa inversão da autonomia a que se propõe e que o PDDE Interativo apenas informatiza tal burocracia, embora oficialmente se dê a isso o nome de ‘modernização da educação’.
As referências à corrente denominada como ‘escola eficaz’ aduzem a viabilidade de se adotar o modelo de administração gerencial (ou empresarial) ao campo da gestão educacional a partir da reforma. A dissertação de mestrado intitulada: O Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE-Escola), como expressão do gerencialismo em educação (Speck, 2012) evidencia o fato de que o PDEE Escola, por meio de seus manuais e textos oficiais, pode ser considerado uma ‘ferramenta gerencial’ que objetiva ‘facilitar’ e ‘modernizar’ a gestão da escola e, para tanto, utiliza-se de ferramentas como o planejamento estratégico e a definição de metas, além da prestação contas e da responsabilização (accountability). Segundo a autora, há um esforço constante do programa em atribuir racionalidade aos processos de gestão, enfatizando a eficiência e a qualidade. Para tanto, a fim de que se cumpram os objetivos concernentes a essa pretensa eficiência e qualidade, o programa defende a criação e o aperfeiçoamento de mecanismos de monitoramento e controle da gestão tendo em vista os resultados a serem alcançados.
A discussão sobre a regulação da gestão escolar via políticas públicas educacionais, no Brasil, nos leva necessariamente à discussão sobre a modernização do aparelho administrativo do Estado, objetivado a partir da década de 1990, à luz dos princípios da New Public Managment (NPM) ou Nova Gestão Pública (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, 1995). A NPM incorpora experiências internacionais, como as da Inglaterra, Estados Unidos e Nova Zelândia, bem como orientações de agências internacionais, como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), que difundiram, aos países em desenvolvimento, a necessidade de se adotar uma reforma administrativa como meio para a assistência financeira por esses órgãos. A ênfase de tais orientações reside na adoção de práticas de gestão importadas da iniciativa privada, objetivando maior eficiência para a administração pública.
As orientações do Banco Mundial no documento intitulado ‘Estratégia 2020 para a educação’ (The World Bank Group, 2011) prescreve, aos denominados países parceiros, a criação de sistemas de informação e monitoramento da gestão educacional, que confluirão no sentido da criação de uma ‘base global de conhecimentos’, orientadora da reforma educativa. Essa base global, por sua vez, refere-se a um sistema de informação desenvolvido pelo próprio BM, denominado Sistema de Avaliação e Comparação de Resultados em Educação (SABER). Neste artigo, problematizamos os principais aspectos do PDDE Interativo, buscando apontar suas vinculações às orientações preconizadas pelo Banco Mundial no documento ‘Estratégia 2020 para a Educação’. Nesse documento, os ‘países parceiros’ são orientados a desenvolverem uma ‘cultura de monitoramento’, indicando a criação de ferramentas que permitam a construção de um banco de dados online, que servirão para orientar as reformas no sistema educacional (The World Bank Group, 2011).
Pretende-se, com este artigo, discutir a regulação enquanto medida política e administrativa, engendrada em observada em campos estratégicos como na gestão escolar. Ao longo do texto também se discute o PDDE Interativo como expressão da regulação sobre a gestão escolar, na medida em que, a partir do momento em que o PDE Escola passa a ser PDDE Interativo, criam-se as bases práticas, legais e institucionais para a ampliação do controle e do monitoramento dos resultados escolares, por meio de eixos estratégicos de avaliação. Evidencia-se que tais medidas encontram-se de acordo com as orientações da ‘Estratégia 2020 para a Educação’ (The World Bank Group, 2011), documento orientador do Banco Mundial aos seus países parceiros. Como fruto de cláusula de contrato entre o Ministério da Educação e o Banco Mundial, o PDE Escola introduz uma lógica administrativa empresarial à gestão escolar e associa mecanismos que objetivam ampliar o grau de gerenciamento sobre ‘o que’ a escola produz e ‘como’ produz.
Nesse cenário, a objetivação da intensificação do controle e da regulação sobre a gestão escolar e seus resultados, no Brasil, encontra espaço no Plano de Desenvolvimento da Escola Interativo (PDDE Interativo), um programa do MEC para a gestão escolar, lançado no ano de 2012 pelo governo federal e apresentado como uma ferramenta online de planejamento institucional. Baseado na perspectiva do gerencialismo, do accountability, da escola eficaz e do autodesenvolvimento, o PDDE Interativo está ancorado nas correntes denominadas ‘escola eficaz’ e ‘gestão baseada na escola’, princípios também patrocinados pelo BM.
Para alcançar os objetivos propostos, a metodologia adotada foi a de pesquisa bibliográfica e análise documental, em fontes primárias e secundárias, tendo como documento referencial o Relatório do Banco Mundial denominado: Learning for all: investing in people’s knowledge and skills to promote development (The World Bank Group 2011), em português ‘Aprendizagem para Todos Investir nos Conhecimentos e Competências das Pe,ssoas para Promover o Desenvolvimento’. Esse documento é também conhecido como’Estratégia 2020 para a Educação’.
A regulação como política
Durante o movimento de modernização do Estado brasileiro, empreendido a partir da década de 1990, a regulação no campo educacional se constrói como medida política e administrativa, voltada ao monitoramento e controle, concretizando-se em campos estratégicos do sistema escolar, como na área da gestão.
Na educação, se promovem, se discutem e se aplicam medidas políticas e administrativas que vão, em geral, no sentido de alterar os modos de regulação dos poderes públicos no sistema escolar (muitas vezes com recurso a dispositivos de mercado), ou de substituir esses poderes públicos por entidades privadas, em muitos dos domínios que constituíam, até aí, um campo privilegiado da intervenção do Estado. Estas medidas tanto podem obedecer (e serem justificadas), de um ponto de vista mais ‘técnico’, em função de critérios de modernização, desburocratização e combate à ‘ineficiência’ do Estado (new public management), como serem justificadas por imperativos de natureza ‘política’, de acordo com projectos neoliberais e neoconservadores, com o fim de ‘libertar a sociedade civil’ do controlo do Estado (privatização), ou mesmo de natureza ‘filosófica’ e ‘cultural’ (promover a participação comunitária, adaptar ao local) e de natureza ‘pedagógica’ (centrar o ensino nos alunos e suas características específicas) (Barroso, 2003, p. 83, grifos nosso).
Sejam de natureza técnica, política, cultural ou pedagógica, tais medidas administrativas têm em comum o fato de que expressam formas de intervenção do Estado na educação. Nesse cenário, à regulação caberia o papel de aferir às políticas públicas educacionais o estatuto da qualidade, da eficiência e da modernização, na promoção de meios técnicos e políticos que possibilitem auferir resultados (é o caso das avaliações em larga escala e dos indicadores de qualidade), promover maior participação local (controle social, gestão participativa e transparência) e responsabilizar os sujeitos envolvidos no processo educativo (accountability).
Algumas das características da gestão da qualidade, derivadas de metodologias gerenciais tais como planejar, estabelecer objetivos e metas, construir métricas, acompanhar indicadores, analisar resultados e propor planos de ações preventivas ou corretivas, aparecem como cláusula de contrato no acordo de empréstimo entre o BM e o MEC, que deu origem ao Fundescola. Lá, encontra-se especificada a criação de órgãos, projetos e ações em nível local, esperadas pelo BM para o repasse das parcelas, tais como a criação de unidades executoras para a gestão financeira, ações de fortalecimento do conselho escolar, promoção do comprometimento público no processo educacional e participação dos pais na gestão da escola por meio de financiamento de subprojetos, além de subprojetos de recuperação administrados pela escola (Brasil, 2002).
Tais elementos podem ser compreendidos em um contexto de regulação na medida que se referem a medidas voltadas a determinado ajustamento das ações, visando garantir o alcance de metas e resultados preestabelecidos. Ao passo que regulam, também enquadram, controlam, fazem convergir ações num “[...] processo ativo de produção de regras de jogo [...]”, que “[...] compreende não apenas a definição de regras (normas, injunções, constrangimentos, etc.) que orientam o funcionamento do sistema, mas também o seu (re)ajustamento” (Barroso et al., 2006, p. 13).
O risco que se espreita nas formas de responsabilização por desempenho diz respeito à pressão por produtividade sobre as escolas e os professores, com o possível (e indesejável) efeito da diferenciação entre profissionais e instituições dentro do mesmo sistema público. Esse é um dos pilares da ‘Estratégia 2020 para a educação’, em que se propõe condicionar financiamento a resultados e sugere divulgação sistemática dos resultados por escola, capacitando os pais para a intervenção (The World Bank Group, 2011).
Regulação institucional e a ênfase no auto-desenvolvimento da escola
O termo ‘regulação’, bastante conhecido e utilizado nos âmbitos da economia e da sociologia, adquire maior ênfase no campo social a partir dos processos de privatização de empresas públicas e da alocação, no mercado, de bens e serviços sociais que ocorreram com as reformas de Estado das últimas décadas (Oliveira, 2005). Alegando a necessidade de maior eficiência na prestação dos serviços públicos, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado destaca que, no setor de produção de bens e serviços para o mercado, a eficiência é também o princípio administrativo básico, e a administração gerencial, a mais indicada. Em termos de propriedade, dada a possibilidade de coordenação via mercado, a propriedade privada é a regra. A propriedade estatal só se justifica quando não existem capitais privados disponíveis - o que não é mais o caso no Brasil - ou então quando existe um monopólio natural. Mesmo nesse caso, entretanto, a gestão privada tenderá a ser a mais adequada, desde que acompanhada por um seguro sistema de regulação (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, 1995).
A regulação que se efetiva dentro dos diferentes níveis do sistema educativo é caracterizada, por Barroso (2005), como uma ‘regulação institucional’, por estar ancorada em normativas e controle. Nesse sentido, o autor destaca a existência de três níveis interdependentes por onde se opera a regulação: o nível nacional, o intermediário (localizado entre o nacional e o local - que inferimos serem os núcleos e as secretarias estaduais e municipais de educação); e o local (a unidade escolar).
Convergente com essa interpretação é a planificação apresentada por Maués (2008), que identifica um núcleo de regulação nacional (em que situa o Estado ou o governo), um intermediário (onde se encontra o secretário de Educação) e um local (onde tem ação o diretor da escola). Destaca a autora que a acepção de regulação, nesse cenário, adquire o sentido de ‘autoridade reconhecida’, já que emana de um poder constituído e aceito, de onde provêm as regras, as leis, a hierarquia, o poder e as competências delegadas, bem como os dispositivos de controle e avaliação. A autoridade reconhecida é representada por aquele que possui autoridade legítima para orientar e coordenar uma atividade pública, no caso, o gestor público, presente em cada um dos núcleos de regulação explicitados (nacional, intermediário e local). Dessa forma, a ideia de regulação por “[...] autoridade reconhecida, ou legítima, estabelece um conjunto de regras, de convenções e de mecanismos de controle a fim de orientar as ações dos atores sobre os quais essa dita autoridade tem poder” (Maués, 2011, p. 82).
Ambos os autores situam a regulação no contexto da administração pós-burocrática e por isso, às vezes, se referem a ela como ‘nova regulação’, que diz respeito às novas formas de intervenção do Estado na educação. A mesma expressão (‘nova regulação’) é utilizada por Oliveira (2005), quando caracteriza as orientações contidas nos programas de reforma que incidem sobre a educação. Tais orientações pretendem reconfigurar a regulação da política educacional, consolidando uma “[...] tendência internacionalmente observada de centrar-se na performatividade da escola” (Oliveira, 2005, p. 764). O núcleo dos programas de reforma educacional das últimas décadas segue a tendência de “[...] focalizar a escola como unidade do sistema, transformando-a em núcleo da gestão e do planejamento [...]”, citando o exemplo do Programa Dinheiro Direto na Escola - PDDE (Oliveira, 2005, p. 763).
O PDE Escola é a expressão exata dessa tendência. Ele surge com o propósito de ser um instrumento de gestão ‘da escola’, um diagnóstico ‘da escola’, com foco no desenvolvimento próprio dessa. Esse autodesenvolvimento é apontado, inclusive, como o fator ‘inovador’ nas reformas das últimas décadas e que a ausência dessa tendência é que explica o insucesso das reformas anteriores.
A maioria dos governos está comprometida com a melhoria de seus sistemas educacionais. A atenção ao crescimento e expansão dos sistemas educacionais vem sendo complementada e até mesmo substituída pela crescente preocupação com a qualidade do processo educativo e pelo controle de seus resultados. ‘Um traço distintivo da abordagem adotada há cerca de duas décadas é o movimento em direção a uma situação em que as escolas são estimuladas e mesmo exigidas a tomar para si a responsabilidade do seu próprio desenvolvimento’. A ênfase no autodesenvolvimento é conseqüência da tendência registrada em muitos países de descentralizar a responsabilidade pela implementação das reformas educacionais. O principal mecanismo tem sido o de deslocar em maior ou menor grau a governança do sistema educacional das autoridades centrais para as escolas. As correntes conhecidas como escola eficaz, melhoria da escola e gestão baseada na escola são expressões dessa tendência (Como Elaborar o Plano de Desenvolvimento da Escola, 2006, p. 5, grifo nosso).
A ênfase no desenvolvimento próprio coloca, às escolas, a responsabilidade pela melhoria do próprio sistema como um todo. Por tal perspectiva, os problemas relativos à qualidade, à eficiência, os resultados considerados insuficientes poderiam, sob a perspectiva do autodesenvolvimento, serem equacionados apenas no âmbito da própria escola. O deslocamento do eixo do ‘funcionamento do sistema’ e do papel das ‘autoridades nacionais’ para o ‘funcionamento da escola’ sob a gerência do ‘gestor local’.
Por que a ênfase na liderança? Porque é ela que conduzirá o processo de elaboração e implementação do PDE e porque o sucesso da escola depende em grande parte de uma liderança competente. Sem o compromisso, o envolvimento e o suporte explícito e enérgico da liderança, não há como elaborar e implementar o PDE. [...] A escola para ser administrada como uma organização, como um sistema, precisa planejar, organizar-se, ter uma forte liderança e o controle das ações, dos processos e dos diferentes recursos que podem viabilizá-la [...] (Como Elaborar o Plano de Desenvolvimento da Escola, 2006).
A direção da escola, nessa compreensão, é identificada mais com os aspectos administrativos e gerenciais (planejamento, organização, controle de ações e recursos) e menos com os pedagógicos. O próprio sucesso da escola aparece vinculado a essa capacidade do gestor em exercer uma ‘liderança competente’. Transparece, de forma indireta, a construção de uma analogia sistemática entre a escola e uma empresa, tendo os princípios dessa como horizonte a ser perseguido. Dentre esses princípios destacamos o do ‘gerenciamento eficaz’.
Nos documentos oficiais do PDDE Interativo, observa-se uma preocupação constante em “[...] conferir racionalidade ao funcionamento do sistema [...]”, em “[...] melhorar a qualidade da gestão do sistema [...]” e em “[...] estabelecer mecanismos de monitoramento e avaliação dos resultados” (Como Elaborar o Plano de Desenvolvimento da Escola, 2006, p. 7). A racionalidade que se pretende imprimir à gestão escolar, apontada como fator de qualidade, poderá conferir satisfação aos usuários do serviço prestado. É o que podemos apreender em trechos como o que segue:
Mas, a construção de escolas de qualidade não pode prescindir de procedimentos e instrumentos de gerenciamento eficazes, devendo ser administrada como uma organização viva e solidária em seus objetivos, voltada para o atendimento das necessidades e expectativas de seus alunos, pais, comunidade e sociedade. Em resumo, deve estar preparada para entregar serviços de qualidade. [...] A escola como organização terá sucesso quando conseguir administrar seus componentes e recursos de modo a fazer certo as coisas (eficiência); fazer as coisas certas (eficácia) (Como Elaborar o Plano de Desenvolvimento da Escola, 2006, p. 9).
É possível captar a assimilação da gestão escolar aos modos do gerenciamento do setor privado, numa constante analogia com o mundo econômico e suas formas de organização e produção. É o espírito da empresa e a lógica da gestão gerencial que constituem o pano de fundo do programa e organizam boa parte das proposições que esse contém.
O PDE Escola pode ser entendido, nesse contexto, como a tentativa de se construir uma padronização dos métodos e técnicas de gestão, que se efetiva pela implantação do PDDE Interativo, via plataforma eletrônica, disponibilizada pelo MEC para todas as escolas públicas do país.
Do PDE Escola ao PDDE Interativo: instrumento de gestão informatizado ou regulação em tempo real?
Até o ano de 2011, o plano de desenvolvimento da escola era realizado apenas por escolas com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), que, por isso, eram consideradas prioritárias. A partir de 2012, o MEC criou e disponibilizou uma ferramenta virtual que denominou de PDDE Interativo, alocado-o em seu Sistema de Monitoramento, Execução e Controle (SIMEC). Por meio desse programa, as escolas passaram a fornecer uma gama significativa de informações distribuídas em seis grandes eixos de avaliação1.
A partir do diagnóstico gerado por essa ferramenta, a escola é conduzida para a próxima etapa da ferramenta, em que elabora o seu ‘plano de ação’, sendo possível receber verbas suplementares para a sua execução. Essa etapa corresponde ao que está previsto, inclusive, no acordo de empréstimo, que especifica a elaboração de planos plurianuais por escolas participantes, os quais dizem respeito a procedimentos e instrumentos de implementação, estabelecimento de metas específicas de melhoria educacional e identificação dos insumos e atividades, necessários à realização de tais metas (Baraúna, 2009). O contrato também estipula a criação do ‘SPA’, que significa Sistema de Planejamento e Acompanhamento, e refere-se à criação de um ‘sistema computadorizado de planejamento, monitoramento e gerenciamento’ pelo qual se dará o ‘fornecimento de todas as informações necessárias para a preparação dos Relatórios de Gerenciamento do Projeto’ (Baraúna, 2009).
O contexto analisado evidencia que a elaboração e implementação do PDE Escola não se deram de maneira aleatória, isolada, mas articulada com um projeto maior que deu corpo à institucionalização de processos regulatórios em diferentes áreas da atividade pública, inclusive no campo educacional. Nesse caso, poderíamos considerar o Banco Mundial a própria agência reguladora, visto que o monitoramento é uma de suas exigências.
A regulação do sistema depende do desenvolvimento de um sistema de regulações, ou ‘nós da rede’, conforme cunhou Barroso (2005). O sistema educativo pode ser entendido aqui como um desses ‘nós’, que é, por sua vez, reforçado por mecanismos específicos de controle e monitoramento. Por meio desses mecanismos, torna-se possível ao Estado reafirmar-se como regulador, ao passo em que se utiliza destes sistemas de monitoramento para avaliar os resultados.
A função regulatória do PDDE Interativo, enquanto sistema de informação, pode ser mais bem compreendida a partir de dois elementos estruturais, a destacarmos: os inputs e os outputs. Os inputs (ou dados de entrada), conforme detalharemos adiante, realizam a função de padronizar as informações dadas pelas diferentes unidades escolares, visto que todas utilizam a mesma plataforma online. Os campos fechados de respostas exercem a tarefa de filtrar a informação e limitá-las ao que se pede. Como consequência, tem-se um ‘alinhamento’ das ações de planejamento e organização em virtude do que poderá ‘caber no sistema’. Em outras palavras, esses inputs contribuem para o condicionamento do que se faz, tendo-se em vista o que precisará ser informado.
Os outputs (ou dados de saída) referem-se ao diagnóstico, gerado pelo próprio programa, e que, em tese, indica quais são os problemas críticos das escolas, além de compor a base dos seus planos de ação. Nesse âmbito, verificamos o encaminhamento de soluções em nível da escola, e não em nível do sistema, já que o programa tem como pressuposto que tais pontos críticos são problemas da gestão escolar ao mesmo tempo em que enfatiza a necessidade do autodesenvolvimento.
A elaboração do Plano de Desenvolvimento da Escola representa para a escola um momento de análise de seu desempenho, ou seja, de seus processos, de seus resultados, de suas relações internas e externas, de seus valores, de suas condições de funcionamento. ‘A partir dessa análise ela se projeta, define aonde quer chegar, que estratégias adotar para alcançar seus objetivos e a que custo’, que processos desenvolver, quem estará envolvido em cada etapa e como e a quem se prestará conta do que está sendo feito (Como Elaborar o Plano de Desenvolvimento da Escola, 2006, p. 11, grifo nosso).
Evidencia-se, nesse trecho, que cabe à escola a tarefa de se planejar, estipular os seus resultados e suas estratégias e seus objetivos, os custos e, ainda, realizar a prestação de contas. Observa-se o incentivo ao autodesenvolvimento ‘da’ e ‘pela’ própria escola, do início ao fim do processo.
Um traço distintivo da abordagem adotada há cerca de duas décadas é o movimento em direção a uma situação em que as escolas são estimuladas e mesmo exigidas a tomar para si a responsabilidade do seu próprio desenvolvimento. A ênfase no autodesenvolvimento é conseqüência da tendência registrada em muitos países de ‘descentralizar a responsabilidade pela implementação das reformas educacionais’. O principal mecanismo tem sido o de deslocar em maior ou menor grau a governança do sistema educacional das autoridades centrais para as escolas. As correntes conhecidas como escola eficaz, melhoria da escola e gestão baseada na escola são expressões dessa tendência (Como Elaborar o Plano de Desenvolvimento da Escola, 2006, p. 5, grifo nosso).
A ferramenta que se dispõe a ‘auxiliar a escola e melhorar a sua gestão’ é, na verdade, um mecanismo de responsabilização pela implementação das reformas educacionais. Os outputs exercem a função de apontar as, assim consideradas, fragilidades da escola e promover um ajustamento de sua prática. Esse é, conforme evidenciaremos, o modus operandi dos processos regulatórios, à medida que permitem o alinhamento às grandes diretrizes. Neste alinhamento, os conflitos e divergências de um sistema não são evidenciados em sua totalidade e, quando há distorções, elas não se tornam incompatíveis com a reprodução do sistema maior, ainda que permeado por contradições.
Organismos internacionais e a regulação transnacional da educação
Até a década de 1980, muitos países tinham um modelo de organização das políticas educativas baseado na regulação ‘estatal, burocrática e administrativa’, também denominado de modelo burocrático-profissional, baseado numa aliança entre Estado e professores (Barroso, 2005). Em oposição a esse modelo encontram-se os arranjos atuais, que são designados como ‘pós-burocráticos’ e consolidam-se em torno dos conceitos de ‘Estado-avaliador’2 e ‘quase-mercado’.
Ao realizar um estudo comparado entre Argentina, Brasil e Chile, Oliveira (2009) observou que existem traços comuns que permitem supor a existência de uma lógica na dinâmica das reformas. Entre esses traços comuns, a autora destaca “[...] uma nova regulação educativa assentada em três eixos: a gestão local; o financiamento per capita; e a avaliação sistêmica [...]” (Oliveira, 2009, p. 46).
Por sua vez, enfatizando as transformações na organização produtiva e do mundo do trabalho, Laval (2004) traz à tona a discussão sobre a ‘nova ordem escolar’, alicerçada nos pressupostos neoliberais, oriundos das transformações na economia capitalista.
O novo modelo escolar e educativo que tende a se impor está fundamentado, inicialmente, na sujeição mais direta da escola à razão econômica. [...] O ‘homem flexível’ e o ‘trabalhador autônomo’ constituem, assim, as referências do novo ideal pedagógico. Uma dupla transformação tende a redefinir a articulação da escola e da economia em um sentido radicalmente utilitarista: por um lado, a concorrência desenvolvida no seio do espaço econômico tornado mundial; por outro lado, o papel cada vez mais determinante da qualificação e do conhecimento na concepção, na produção e na venda dos bens e serviços (Laval, 2004, p. 3, grifos nossos).
A compreensão dos desdobramentos e da configuração das reformas educativas no cenário internacional, pelo que se apresenta, está longe de resultar de simples coincidências de adaptação dos diferentes sistemas de ensino ao modelo enunciado pelo campo econômico mundial. Antes disso, podemos depreender que tais similitudes são, na realidade, decorrentes de uma objetivada padronização de modelos educativos em escala mundial.
Quer a similitude da retórica subjacente - as exposições de motivos, as contextualizações sociais e os objectivos gerais - cujos traços principais quase se decalcam de país para país, quer a simultaneidade da sua enunciação, são factores que evidenciam, desde logo, não só um relativo consenso ideológico entre políticas educativas nacionais de diferentes países, mas também um progressivo grau de padronização de estruturas organizativas e de modelos curriculares (Azevedo, 2007, p. 13).
A construção desse consenso ideológico quanto aos modelos educativos, que visam à adaptação dos sistemas educativos locais, pode ser compreendida como uma “[...] internacionalização homogeneizadora [...]’ que reflete a “[...] dominação crescente dos sectores modernos da economia e da sociedade no processo da sua integração na sociedade mundial moderna” (Azevedo, 2007, p. 61).
Evidencia-se a adaptação dos sistemas escolares à pressão exercida pela estrutura econômica predominante em nível mundial e ao apelo deste setor à ‘modernização’ da escola. Esse apelo, por sua vez, está ancorado na generalização de prescritivas por maior ‘eficácia’ e no ‘fazer mais com menos’. Esse é, por sinal, o lema do Plano de Desenvolvimento da Escola.
Na linha de frente desse movimento homogeneizador, encontram-se as organizações internacionais que, com poderio financeiro e influência política, tem levado à construção de uma linha comum nas reformas educacionais ao redor do mundo.
As organizações internacionais (OMC, OCDE, Banco Mundial, FMI, Comissão Européia) contribuem para essa constrição transformando as ‘constatações’, as ‘avaliações’, as ‘comparações’ em muitas ocasiões de fabricar um discurso global que tira sua força cada vez mais de sua extensão planetária. Nesse plano, as organizações internacionais, além de seu poderio financeiro, tendem a ter, cada vez mais, um papel de centralização política e de normalização simbólica considerável. Se as trocas entre sistemas escolares não são novas, nunca havia sido tão claro que um modelo homogêneo podia se tornar o horizonte comum dos sistemas educativos nacionais e que seu poder de imposição viria justamente de seu caráter mundializado (Laval, 2004, p. 14, grifos nossos).
Atuando no sentido de servir como referência normativa de nível internacional, verifica-se a ação pontual dessas organizações na direção de validar e legitimar determinadas mudanças. Alinhadas entre si, as suas orientações tornam-se referência normativa na organização dos sistemas educativos. Suas recomendações são baseadas em ‘estudos técnicos’, ‘diagnósticos’ e considerando as ‘melhores práticas’ em educação.
Dispondo de grande capacidade para influenciar os governos e as políticas públicas locais, esses organismos, entretanto, nem sempre buscam compreender, de fato, as características dos sistemas educativos para os quais oferecem remédios.
Sin embargo, las recomendaciones de política de los organismos regionales e internacionales buscan imponerse más allá de las historias y especificidades de los diferentes sistemas educativos, de modo tal de instalar temas en las agendas sobre los cuales se discute su forma de implementación, pero no su incorporación como política pública. En este sentido, es elocuente la implementación de sistemas nacionales e internacionales de evaluación de la calidad: se discute cómo definir e implementar estos sistemas, pero no es materia de debate su propia existencia, aún cuando su impacto en términos de mejora de la calidad dista de ser evidente. En este sentido cabe preguntarse cómo estos temas logran condicionar las prioridades de política de los gobiernos nacionales (Feldfeber, 2007, p. 447).
As orientações preconizadas pelos organismos internacionais não possuem, como se poderia entender, o objetivo de resolver os problemas dos diferentes sistemas educativos, mas, antes, impor-lhes uma ‘agenda’ global e uma forma de implementação preestabelecida e sempre referendada em âmbito internacional.
É assim que, por exemplo, o Banco Mundial vem elaborando seus prognósticos para o Brasil, identificando os principais males (o que denomina de restrições prioritárias, como deficiências no setor público e fragmentação institucional) e o remédio que trará a solução para os problemas (o que nomina de oportunidades potenciais, como o estímulo à prestação de serviços pelo setor privado e a gestão baseada em resultados).
Há um esforço em destacar os benefícios de uma gestão com enfoque gerencial (foco na qualidade e nos resultados, parcerias, prestação de serviços) para o setor público. Ao mesmo tempo, sugere-se que a formulação de políticas necessita ser feita a partir de evidências, ensejando a adoção de instrumentos avaliativos, balizadores das políticas e que funcionam como importantes instrumento de regulação.
Observa-se um constrangimento exercido por essas organizações no sentido da formatação dos sistemas educativos, apresentada sempre do ponto de vista de suas limitações, com referência às necessidades globais de desenvolvimento econômico. São essas necessidades, em última instância, que veicularão a reconfiguração dos sistemas.
De facto, a evolução das políticas educativas nacionais, em qualquer país do mundo, são a expressão de uma construção social contínua, tensa, silenciosa e quase imperceptível, o sistema educativo mundial. Este actua como um perfume que trespassa as vestes nacionais, regionais e locais típicas para revelar fragrâncias encantatórias e legitimadoras, cuja fonte está bem longe de ser o local, o regional ou o nacional (Azevedo, 2007, p. 7).
A condução das políticas educacionais locais e nacionais em direção a uma política educacional global é verificada a partir da constatação de uma ‘crescente convergência’ entre os sistemas educativos (pelo menos nos países industrializados) que se reformam e se reordenam, lançando efeitos semelhantes sobre a organização da educação. A esse fenômeno, Barroso et al. (2006, p. 44) denominou de “[...] regulação transnacional [...]”, que indica o “[...] conjunto de normas, discursos e instrumentos (procedimentos, técnicas, materiais diversos, etc.) que são produzidos e circulam nos fóruns de decisão e consulta internacionais”.
É assim que, por exemplo, o Banco Mundial justifica a criação de um instrumento global de monitoramento educacional, denominado SABER (que, conforme explicado anteriormente, deriva da sigla de System Assessment and Benchmarking for Education Results, e que em português: Sistema de Avaliação e Comparação de Resultados em Educação), contanto hoje com 140 países conectados. O objetivo, dizem, “[...] é ajudar os países na definição de um quadro de dados, coleta, análise e uso, ajudando a desenvolver uma cultura de monitoramento dos resultados e avaliação para aumentar a eficácia dos investimentos nacionais e internacionais” (The World Bank Group, 2011, p. 62, tradução livre)3.
Os programas de cooperação elaboram diagnósticos sobre a educação dos países parceiros, apontando as lacunas e, também, as soluções. Como referência, utilizam as reformas de países parceiros que, em tese, funcionaram, muitas vezes se utilizando do axioma numérico para referendar a estratégia oferecida. Por exemplo, na Estratégia 2020 para a educação, o Banco Mundial afirma que o documento reflete “[...] as melhores percepções e conhecimentos sobre o que funciona na Educação [...]”, e que a informação sobre o que funciona originou-se “[...] a partir de consultas de âmbito mundial aos governos, professores, estudantes, pais, sociedade civil e parceiros no desenvolvimento em mais de 100 países” (The World Bank Group, 2011, p. v, tradução livre)4.
As prescrições surgem acompanhadas da referência numérica a respeito de quantos países foram consultados, ou de quantos países estão implementando-as, mesmo que não consigamos saber ao certo o alcance e a efetividade de sua aplicação. O documento ‘Estratégia 2020 para a educação’ está repleto dessas ‘melhores práticas’, que são apresentadas como modelo a seguir. Há, por exemplo, a descrição de uma parceria público-privada no Paquistão, que oferece um subsídio mensal por aluno que estude em escolas privadas de baixo custo. A subvenção está condicionada a um mínimo de desempenho em testes. Há bônus para grupos de professores e estímulo à competitividade. Afirma o banco que, “[...] embora o programa esteja em vigor apenas por um curto período, os resultados da avaliação inicial do impacto sugerem efeitos positivos nas matrículas e insumos escolares, como professores, salas de aula, e quadros negros [...]’ (The World Bank Group, 2011, p. 69, tradução livre)5.
As sugestões ou prescrições baseadas em exemplos considerados bem sucedidos também são vocalizadas pelos ‘especialistas’ ou consultores, autoridades locais e nacionais e até mesmo por figuras públicas, que abalizam a orientação formulada.
É o que acontece com os inúmeros programas de cooperação, apoio, investigação e desenvolvimento com origem em diferentes organismos internacionais (Banco Mundial, OCDE, UNESCO, União Européia, Conselho da Europa, Fundação Soros, etc.) que reúnem especialistas, técnicos, ou funcionários de diferentes países. Estes programas sugerem (impõem) diagnósticos, metodologias, técnicas, soluções (muitas vezes de maneira uniforme) que acabam por constituir uma espécie de ‘pronto-a-vestir’ a que recorrem os especialistas dos diferentes países sempre que são solicitados (pelas autoridades ou opinião públicas nacionais) a pronunciarem-se sobre os mais diversos problemas ou a apresentarem soluções (Barroso et al., 2006, p. 45, grifos nossos).
Por meio da estratégia de referendar reformas educacionais de outros países, destacando os supostos resultados positivos, busca-se legitimar e validar as reformas, criando-se um consenso em torno de sua conveniência. Azevedo (2007) denomina esses ‘exemplos do estrangeiro’ como ‘a externalização dos sistemas nacionais’, e assim a define:
[...] a externalização apresenta-se como um modo particular de afirmação do sistema educativo mundial e de construção de homogeneidade nos sistemas educativos nacionais, ou seja, desenvolvem-se comparações com modelos estrangeiros e com situações mundiais, mobilizam-se indicadores internacionais e visitam-se outros países, no intuito de captar ideias e estímulos para o desenvolvimento da política interna. Através deste processo, de cariz político, os países recorrem [...] a uma ‘contemplação transnacional’. Ou seja, o olhar para fora das fronteiras próprias, para países comparáveis, constitui um acto de ‘absorção de significação suplementar’. A externalização tende a ser usada como fonte de significado suplementar, de autoridade e de legitimação das reformas nacionais, uma espécie de recurso a ‘bandeiras de conveniência’ [...] ainda que o uso destas bandeiras [...] seja um acto político predominante na fase preparatória e inicial das reformas educativas e que desvanece à medida da sua aplicação (Azevedo, 2007, p. 93, grifos nossos).
Os indicadores internacionais e as comparações entre países têm adquirido cada vez maior visibilidade. O rankeamento internacional, originado a partir de avaliações estandartizadas, quantifica e posiciona o desempenho nacional em uma escala que servirá para ‘atestar’ o quão eficiente é a educação naquela nação. É a comparação pura e simples que se objetiva. O seu caráter não é pedagógico. Pelo contrário, é um ato político, que servirá para justificar as soluções possíveis, apontadas pela vertente reformadora, cuja fórmula, por sua vez, deverá conter os ingredientes das reformas bem-sucedidas dos países desenvolvidos e que possuem uma ‘educação de qualidade’.
São conhecidas as referências às ‘boas práticas em educação’, traduzidas nos indicadores da OCDE, os ‘professores excelentes’, do Banco Mundial (BM) ou, ainda, ‘a educação para o século 21’ da UNESCO. No caso da OCDE, por exemplo, são divulgados dados sobre a educação, evidências, análises das políticas da educação e estatísticas na série Indicadores Educacionais em Foco. Esses se referem a publicações periódicas do órgão e disponibilizadas na página eletrônica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que informa que os indicadores divulgados permitem, aos formuladores e gestores de políticas educacionais, “[...] compararem seus sistemas educacionais em relação aos de outros países e, juntamente com a OCDE, refletir sobre os esforços empreendidos em políticas educacionais” (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [INEP], 2017).
Tais referências contribuem para tornar os países mais comparáveis, compelindo-os a modificarem as suas políticas, adaptando-as a parâmetros que lhes permitam ‘competir’ com melhores estatísticas. Com efeito, tal externalização atua com o efeito simbólico de ‘emprestar’, às reformas educacionais, a garantia de sua indispensabilidade.
Embora desconsidere as condições locais em que as estatísticas são geradas, tal estratégia compele os países a repensarem sua política educacional, exercendo forte ação regulatória e de ajustamento local. Robertson (2013) afirma existir uma agenda global com estratégias de governança para a educação, com estímulo para resultados demonstráveis e ações competitivas. Diz a autora:
[...] embora arriscando em exagerar o meu argumento, essas tecnologias de governança global possuem muitas das características dos ‘aviões militares não tripulados’ (drones) os quais são cada vez mais preferíveis em espaços difíceis de luta militar. Semelhante a esses aviões não tripulados, classificações (rankings) e indicadores (benchmarks) são poderosos quando são capazes de se embrenhar nas fronteiras nacionais não apenas como coletores de dados mas como agentes à distância, quando são capazes de modular, direcionar, agir, refinar e redirecionar sem estarem presentes fisicamente. Como aviões não tripulados, essas tecnologias globais [ou reguladoras, conforme expressão utilizada pela autora em outra passagem do texto] são capazes, ao longo do tempo, de coletar suficientemente os dados precisos de um terreno e de sua topografia e usar essas informações para preparar uma ação (Robertson, 2013, p. 22).
Fica evidenciado o caráter modular e diretivo da externalização da política educacional, via classificações e indicadores. Como exemplo, uma dessas tecnologias globais (ou reguladoras) e que foi desenvolvida pelo BM denomina-se SABER-Teachers, programa que visa reunir informações sobre o trabalho docente com vistas a criar o perfil do ‘bom professor’ (Robertson, 2013).
A criação dos Sistemas de Informação de Gestão da Educação (EMIS), de acordo com o organismo em pauta, possibilitará a esse o conhecimento sobre as forças e fraquezas de cada país, de forma que ele possa dar o direcionamento das reformas locais, entre ações que vão desde a formação e a contratação de professores à responsabilização das escolas. Essa “[...] nova estratégia enfatiza a importância de alinhar os arranjos de governança, financiamento, incentivos, mecanismos de responsabilização e ferramentas de gestão com metas educacionais nacionais” (The World Bank Group, 2011, p. 46, tradução livre)6.
Considerações finais
A ‘nova’ estratégia anunciada pelo banco, que culmina na promoção reformas pelo mundo, objetivando adequar os sistemas de educação de seus países parceiros à competição econômica, não é, contudo, novidade. Já no relatório Prioridades y estrategias para la educación (Prioridades y Estrategias para la Educación, 1995), o objetivo de reduzir a distância entre a reforma educativa e a reforma das estruturas econômicas é colocado como desafio fundamental. O elemento novo, então, talvez seja a criação de uma base global de conhecimentos, que norteie a efetivação daquelas e a forma de captação das informações.
A criação de uma base global de conhecimentos é referendada na ‘Estratégia 2020’ do Banco, justificando tratar-se de uma “[...] base de conhecimento de elevada qualidade sobre a reforma do sistema educacional” ( The World Bank Group, 2011, p. 46). De acordo com o documento, reunir as informações relativas a programas e políticas de educação é essencial para o trabalho de análise, a partir de provas concretas e para melhorar o desempenho dos sistemas educacionais em todo o mundo. Por meio dessa base global, o banco afirma que espera poder ajudar os países parceiros a responderem às questões-chave que informam a reforma da educação.
No contexto de internacionalização do capital, é crescente a diminuição da autonomia dos Estados nacionais que, cada vez mais, são constrangidos a novas formas e instâncias de regulação global, pautada em uma agenda política global. A regulação exercida pelos organismos internacionais, nesse contexto, representa diminuição da autonomia de decisão dos Estados-nação (Afonso, 2001).
Tais ações, que no contrato aparecem associadas à ampliação da qualidade da gestão escolar, impõem, à escola, obrigações e responsabilidades que nem sempre condizem com as suas condições objetivas. Além de condições financeiras e estruturais nem sempre favoráveis ao melhor desempenho das escolas, há entraves de ordem técnica e burocrática, como a definição, a priori, de onde, como e quanto investir, engessando, por vezes, o gestor escolar numa inversão da autonomia a que se propõe.
A eficiência operacional, preconizada pelo PDDE Interativo, é, conforme destacamos, consequência de sua abordagem gerencialista, ancorada na modernização da gestão, na adoção do modelo de planejamento estratégico, na racionalização e na demonstração de resultados. Nesse programa, embora seja evidenciada a importância da construção da autonomia da escola, existem importantes obstáculos à sua efetivação. Dentre eles, destacamos os condicionantes externos quanto à utilização de recursos financeiros, realizada por instâncias superiores às escolas (como as secretarias municipais, estaduais e também o MEC), mas, sobretudo, pelo próprio cofinanciador do programa, o Banco Mundial, que estabelece os critérios para a aplicação dos recursos disponibilizados.
A efetivação da descentralização e da autonomia, nos moldes em que ocorreu no PDDE Interativo, resultou na criação de uma metodologia operacional em que as possibilidades de envolvimento do coletivo escolar, com o ato de planejar e realizar uma gestão participativa, foram praticamente anuladas. A figura do usuário online e a possibilidade de sua ação autônoma, no que tange à discussão e problematização das questões do programa e do diagnóstico, reduziram a possibilidade de envolvimento do coletivo escolar. Ou seja, por sua metodologia, o PDDE Interativo altera os condicionantes institucionais da participação, a medida que fragiliza os mecanismos oficiais de participação.
Compreendemos que é por meio do exercício da participação democrática, mediatizada pela reflexão crítica dos condicionantes políticos e econômicos que influenciam o fazer educativo, que será possível perceber a gestão para além de um instrumento meramente burocrático, e que tais instrumentos não venham a se configurar como a própria razão de ser da gestão escolar.
A racionalidade técnica e operacional, que constitui o PDDE Interativo, conforma um tipo de gestão centralizadora, que afasta o coletivo escolar da discussão dos principais problemas da escola. Ademais, por ser denominado como um sistema de informação, o programa se apresenta como inquestionável e os números ‘atestam’ os resultados obtidos e justificam o que a escola é ou não é, faz ou deixa de fazer. Tal situação se revela conflituosa na medida em que seu caráter de obrigatoriedade e de vinculação à formas de financiamento acabam por sobrepor tal programa ao próprio Projeto Político Pedagógico das escolas, instrumento de planejamento coletivo e fundamentado no contexto local.
A medida que se consolida como um instrumento técnico e de informação, que não pressupõe a participação e o planejamento coletivo, o programa assume contornos de regulação educativa, conformando e padronizando determinado tipo de planejamento educacional de caráter instrumental, indutor, por sua vez, de uma normalização dos parâmetros internos da escola.
É urgente repensar as políticas públicas educacionais voltadas à gestão escolar. É necessário fortalecer as unidades escolares e o papel da educação pública e gratuita no Brasil. Um bom começo talvez seja justamente o desvelamento das contradições entre as prescrições externas e as necessidades locais. Da mesma forma, a efetivação de uma gestão administrativa e financeira participativa e democrática poderá contribuir com a progressiva autonomia das unidades escolares, situação em que, diferentemente das metas projetadas a partir de fora, o planejamento educacional será efetivamente responsivo às demandas locais de gestão.