Introdução
Nas últimas duas décadas no Brasil, resoluções, leis, decretos, planos e programas para a educação foram aprovados, revogados e editados em um movimento constante de reformas educacionais e de estabelecimento de metas institucionais que impacta a educação básica e a formação de professores/as. Tiveram destaque as discussões em torno dos Planos Nacionais de Educação (PNE) (2001-2010 e 2014-2024), da Base Nacional Curricular Comum para a Educação Básica (BNCC) e das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para Formação de Professores. Na formulação desses documentos, a inclusão, manutenção ou retirada de questões relativas à discussão sobre gênero e sexualidade estiveram no centro das disputas não só no campo da educação como em todos os outros espaços sociais.
Destacamos que o clamor pela retirada dos termos gênero e orientação sexual das diretrizes curriculares, dos materiais didáticos, da base curricular para o ensino básico e, portanto, da própria formação de professores/as, reforça que os currículos já são produzidos por discursos generificados e heteronormativos, como vêm destacando os estudos de gênero. Entretanto, essa presença passa desapercebida por apostar na reprodução das formas padrão de ser homem e mulher e na assunção de um binarismo natural (Butler, 2018).
Ao adentrar na leitura de pesquisas em âmbito educacional que partem dos estudos de gênero, percebemos um destaque para a necessidade de propiciar ao docente mais subsídios para lidar com as diferenças na escola e assim combater formas de preconceito e forças normalizadoras que ‘anormalizam’ os que dela se afastam. Mesmo não sendo a escola a única responsável pela constituição dos sujeitos, ela é um campo privilegiado para as contradições que nos tornam quem podemos ser e por isso é alvo de investimentos, interesses e desejos expressos nas políticas públicas, inclusive nas de formação docente.
Diante dessas considerações, perguntamos: o que dizem as pesquisas sobre formação de professores/as na perspectiva de gênero e sexualidade? Como gênero e sexualidade se apresentam nos currículos de formação docente? Como essas questões estão sendo trabalhadas durante essa formação? Que necessidades, potencialidades e perspectivas se colocam para a pesquisa na área e para os cursos de formação? Para discutir essas questões, propusemo-nos a realizar um levantamento das pesquisas brasileiras que abordam a formação docente quanto às questões de gênero e sexualidade, a partir da busca na plataforma Scielo, sem delimitação de período inicial e final, já que os resultados foram pouco numerosos, e de teses e dissertações na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) defendidas na última década (2010-2020). Os levantamentos foram feitos em maio de 2020, inspirados no tipo de pesquisa de Estado da Arte.
Romanowski e Ens (2006) afirmam que para desenvolver a pesquisa tipo Estado da Arte ou estado do conhecimento é necessário compreendê-la como um estudo descritivo que objetiva a sistematização da produção numa determinada área do conhecimento para apreender a amplitude do que vem sendo produzido. Os estudos realizados a partir de uma sistematização de dados, denominada Estado da Arte, recebem esta denominação quando abrangem toda uma área do conhecimento, nos diferentes aspectos que geraram produções. Assim, não basta apenas estudar os resumos de dissertações e teses. São necessários estudos sobre as produções em congressos e sobre as publicações em periódicos da área.
Para apresentar a produção científica brasileira em gênero, sexualidade e formação docente, o artigo foi estruturado de modo a apresentar e discutir os resultados dos levantamentos em cada base de pesquisa, iniciando pelo que encontramos a partir de outros levantamentos, principalmente os da produção da Associação Nacional de Pós-Graduação (ANPEd), que reúne pesquisadores da área em eventos nacionais e regionais, em seguida pelos artigos em periódicos e, por fim, pelas teses e dissertações defendidas nos últimos dez anos. Ao longo do trabalho, detalhamos os critérios de seleção utilizados para cada pesquisa, os aspectos gerais em relação às perspectivas teórico-metodológicas, objetos específicos e descrevemos os principais resultados e considerações feitas pelos/as pesquisadores/as. Por fim, tecemos mais algumas considerações em relação às possibilidades de pesquisas frente aos aprofundamentos e silenciamentos identificados por meio deste levantamento.
Aspectos gerais do campo
Para caracterizar aspectos gerais do campo, procuramos por estudos que convergissem de algum modo com o nosso objetivo e ajudassem a compreender a produção na área. Selecionamos principalmente os que abordam a produção da ANPEd. Assim, trazemos um apanhado dessas pesquisas para traçar um panorama geral da produção na área divulgada em eventos da associação, principalmente após a criação do Grupo de Trabalho ‘Gênero, Sexualidade e Educação’ (GT-23) no final de 2003, e apontar relações com o levantamento que fizemos em periódicos, teses e dissertações nas seções seguintes.
Um desses levantamentos, feito por Ferreira, Klumb, e Monteiro (2013), aponta para um crescimento do campo de estudos de gênero dado o número de trabalhos recebidos e o surgimento de grupos de pesquisa com atuação mais evidente nessa área dentro da associação. As autoras destacaram a produção entre os anos 2004 e 2010, apontando entre seus resultados que: a) a produção é prioritariamente feminina, já que as 193 autoras alcançam a porcentagem de 76,3%, da produção apresentada; b) quase 50% dos estudos sobre gênero e sexualidade (124 trabalhos) contaram com financiamento; c) a centralidade da produção está nas regiões Sudeste e Sul do país, considerando que dos 253 trabalhos, 139 foram produzidos na região Sudeste, 76 no Sul, contra 18 do Nordeste, 15 da região Centro-oeste e apenas 03 no Norte (02 trabalhos são de autores de Portugal); d) a maioria dos trabalhos advém de instituições de ensino superior, sendo 184 trabalhos apresentados por pesquisadores associados a instituições públicas e 58 a instituições privadas, com 09 trabalhos produzidos por pessoas não vinculadas a essas instituições.
No trabalho de Ferreira e Coronel (2017), foi possível perceber que, entre os anos 1990 e 1999, o GT-2 (História da Educação) expressava fortemente a presença de estudos de gênero na ANPEd em torno de objetos como a constituição da docência como trabalho feminino, a produção escolar da feminilidade e da masculinidade e a história de educadoras. No mesmo trabalho, as autoras reafirmam aspectos como a ampliação de produção sobre gênero e sexualidade a partir de 2004. Destacam, ainda, como documentos do GT-23 descrevem um processo de inegável ganho de espaço e aceitação da relevância do tema, com hegemonia da perspectiva pós-estruturalista. Porém, nos demais campos da área de educação relacionados a outros grupos de trabalho essa expansão não ocorre, pois as discussões mantiveram a regularidade ou continuaram não existindo.
Especificamente sobre Gênero e Formação de Professores/as, Dal’Igna, Scherer, e Cruz (2017) analisaram os 25 trabalhos publicados na ANPEd que buscavam realizar uma articulação entre os temas no período de 2004 a 2014. As autoras descrevem como, inicialmente, os trabalhos focavam na feminização do magistério e na constituição da identidade docente. A ênfase desloca-se, então, para as diferenças de gênero e de sexualidade, surgindo trabalhos sobre a importância das discussões sobre o tema nos cursos de formação inicial e continuada de docentes, tensionando, assim, os processos de naturalização de gênero e sexualidade em ação nos currículos escolares e universitários e fomentando mudanças significativas na produção acadêmica sobre a formação de professores/as.
Outras pesquisas, como a de Vianna (2012), que avaliou um conjunto de 73 produções (teses, dissertações, artigos e ensaios) que relacionava gênero, sexualidade e educação formal voltadas para as políticas educacionais, e indicadas pela base de dados Win-isis, apresentam resultados convergentes com as já apresentadas, além de enfatizarem outros aspectos. Para essa autora, tais produções enfatizam o currículo acompanhando o desenvolvimento das políticas públicas de educação com a criação de muitos projetos e programas voltados para a diversidade. Assim, aponta para um contexto em que a formulação das políticas de educação e a produção acadêmica influenciam-se mutuamente na construção do que poderia vir a ser um campo específico da produção acadêmica educacional.
Cardoso, Guarany, Unger, e Pires (2019) chamam atenção para a fragilidade na inclusão da discussão sobre gênero e sexualidade nas políticas públicas. As autoras descrevem como houve, no Brasil, um primeiro esforço institucional desde o final do século XX para a construção de políticas que promovessem a inserção de grupos minoritários no campo educacional. Após 2003, ocorre um segundo movimento nas políticas públicas em educação, promovido por movimentos sociais e governo federal, para minimizar as desigualdades a partir de marcadores culturais, valorização das diversidades e tolerância. Porém, pouco se problematizaram as matrizes discursivas de produção das desigualdades, o que abriu possibilidades para tentativas de destituir as discussões de gênero e sexualidade de seu caráter científico e educacional, acusando-os de ideologia, produzindo um movimento de retrocessos e contestação nas mais recentes normativas que silenciam esse debate.
Santos (2020), em sua dissertação, fez um estado da arte das teses e dissertações sobre educação, gênero e sexualidade, no período de 1994 a 2018, encontrando um total de 403 trabalhos, sendo 301 dissertações e 102 teses. Desses, 168 foram produzidos na região Sudeste, seguida pelo Sul, com 99, Nordeste, com 98, Centro-oeste, com 29 e Norte, com 09. Nas regiões Norte e Nordeste, recorte de seu trabalho, 43 pesquisas tiveram como principal objeto o currículo, com enfoques principais em gênero e sexualidade em práticas curriculares na escola e nas políticas públicas, currículos estaduais e municipais; 24 pesquisas em formação docente, voltadas principalmente para a análise da concepção de gênero e sexualidade de docentes e para o currículo da formação inicial; 24 em práticas pedagógicas e 16 vivências de alunos/as e/ou professores/as, com uma incidência maior de trabalhos sobre as identidades, sexual e de gênero.
Dentre os trabalhos que foram mapeados pela pesquisadora, a categoria que envolve as 24 pesquisas em formação docente interessa especificamente aos objetivos deste artigo. A diversidade é um conceito que norteia a maioria dos trabalhos. Neles, há uma menor incidência das teorias pós-críticas e queer, que propõem questionamento, desnaturalização e incerteza para desconstruir a normalização, a lógica, o conhecimento e os binarismos de gênero. A maioria dessas pesquisas trata de programas, projetos pontuais e formações continuadas focados em temáticas de gênero e sexualidade baseados principalmente em estratégias de prevenção e de educação sexual com uma abordagem médica, biológica, essencialista, moralista, higienista e patologizante. Assim, são poucos os trabalhos que tratam dos currículos de formação inicial. Entre esses, a maioria inclui gênero e sexualidade como temáticas pontuais a serem identificadas em conteúdos curriculares e não como bases que fundamentam a produção dos currículos.
A produção em gênero e sexualidade segue no sentido de um caminho não necessariamente longo, mas que tornam mais complexas e numerosas as discussões sobre gênero e sexualidade, também articulada aos currículos da formação docente, na direção de questionar o lugar do gênero e da sexualidade nesses currículos, os processos de naturalização a partir de relações de poder e os discursos que pressionam a normatização e produção dos sujeitos. Nos tópicos a seguir, apresentamos o levantamento feito em periódicos a partir da base da Scielo e das teses e dissertações para relacionar com o que já vem sendo descrito sobre a área de pesquisa e traçar um panorama mais completo do objeto.
Gênero, sexualidade e formação docente nos periódicos
Para traçar um panorama maior das pesquisas que envolvam as categorias de gênero e sexualidade no currículo da formação de professores/as, foi feita a busca dos termos ‘gênero, currículo, formação’ na plataforma Scielo. O termo sexualidade estava quase sempre associado a gênero, por isso, utilizá-lo não trouxe contribuição para os resultados com os descritores. A busca foi feita em todos os periódicos disponíveis no Brasil, sem a utilização de filtros com início e final de intervalo temporal, sendo a mais antiga produção encontrada em 1998 e a mais recente em 2018. Consideramos todos os índices no campo de pesquisa (palavras do título, palavras-chave, assunto, resumo), pois na pesquisa feita apenas em resumos, trabalhos relevantes foram excluídos.
O descritor ‘formação’ foi utilizado junto a gênero e currículo, após testes com outros termos, como ‘licenciatura’, ‘formação inicial’ e ‘formação de professores’. Porém, os resultados foram mais relevantes e incluíram mais resultados com o termo ‘formação’. Encontramos 21 trabalhos no total, no entanto, 12 deles não foram publicados em revistas na área de educação ou ensino, estando vinculados a revistas da área médica, da psicologia, da história ou da linguística, quando gênero estava associado a gênero literário. Diante desses dados, empreendemos nova filtragem, selecionando revistas na área de Educação. Dentro dessa seleção, descartamos ainda dois artigos, um que se referia a gênero discursivo e outro que citava, mas não discutia gênero. Assim, 07 trabalhos, publicados entre 2006 e 2015, atenderam aos requisitos e tiveram seus resumos lidos. Ressaltamos que todos pertenciam a revistas com Qualis A1, segundo a Plataforma Sucupira da CAPES (Quadriênio 2013-2016), o que denota qualidade e reconhecimento de uma comissão científica qualificada e avaliada.
Quanto ao objeto dessas pesquisas, quatro delas analisavam políticas públicas brasileiras. O trabalho de Dinis e Asinelli-Luz (2007) investigou a sexualidade como tema transversal nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) a partir da análise dos documentos, programas e projetos locais que envolvem educação sexual na escola. Vianna e Unbehaum (2006) discutiram gênero na educação infantil e ensino fundamental nos documentos legais no período de 1998 a 2002. Stromquist (2007) trabalhou o conceito de qualidade de ensino, relacionando-o a gênero nas políticas globais e regionais, acordos internacionais e acordos internacionais para a América Latina. Dinis (2008) analisou diversidade sexual na educação básica e ensino superior com base nos trabalhos sobre o tema e em documentos da legislação educacional brasileira, como os PCN.
Três artigos se direcionavam para a educação superior. O de Dinis (2008), mencionado acima, discutiu as políticas públicas para a educação e envolvia todos os níveis da educação, inclusive o ensino superior. Os outros dois focavam especificamente cursos de graduação. Dinis e Cavalcanti (2008) discutiram as concepções de estudantes de Pedagogia sobre gênero e homossexualidade. Leite e Oliveira (2015) analisaram a generificação do currículo de medicina de uma Instituição de Ensino Superior. O artigo de Furlani (2007) destoou dos demais ao abordar a educação sexual na Educação Infantil a partir de uma coleção de paradidáticos.
Quanto às perspectivas teórico-metodológicas e aos instrumentos para produção dos dados, a maioria dos trabalhos se utiliza da análise documental, entrevistas e questionários. em geral usando a análise de conteúdo. Apenas um utiliza diário de campo. Três deles se destacam por trabalhar com uma perspectiva pós-estruturalista, tendência do campo de pesquisa. Leite e Oliveira (2015) fazem análise do discurso de inspiração foucaultiana. Furlani (2007) também faz análise do discurso em uma perspectiva pós-estruturalista a partir dos Estudos Culturais, e Dinis (2008) se baseia nos Estudos Culturais.
Os resultados dos trabalhos mostraram que as políticas públicas quanto ao gênero e à sexualidade se referem a papéis de gênero, identidades e algumas ao respeito a diversidades de gênero e sexual. Os trabalhos mostram como, ao longo das últimas duas décadas, tem aumentado a referência de documentos legais no âmbito educacional quanto às diversidades, porém mostrando as dificuldades para serem colocados em prática (Dinis & Asinelli-Luz, 2007; Stromquist, 2007; Dinis, 2008; Vianna & Unbehaum, 2006).
Quanto aos currículos dos cursos de graduação, os trabalhos concluem que os mesmos propagam o binarismo de gênero, a estranheza quanto ao que está fora do padrão de gênero e sexualidade, e abordam o sexo apoiado na moral e na medicalização dos corpos e padronização dos sujeitos, apresentando o corpo enquanto aparato biológico (Leite & Oliveira, 2015). Ainda que tenham sido incorporados termos e atitudes politicamente corretos, como o repúdio às discriminações e a prática da tolerância na convivência com homossexuais, como a pesquisa de Dinis e Cavalcanti (2008) feita com alunos/as de Pedagogia aponta, não há mudanças significativa das concepções binárias, excludentes e heteronormativas. O artigo que analisa a coleção de paradidáticos para a Educação Infantil corrobora a afirmação da prevalência dos padrões hegemônicos da cultura normativa, mas apresenta possibilidades de resistência a qualquer tipo de finalização ou engessamento identitário (Furlani, 2007).
Como o descritor ‘formação’ não resultou em diferença de objeto quanto à formação de professores/as, tomamos a decisão de retirar ‘formação’ dos descritores e utilizar apenas ‘gênero’ e ‘currículo’ dentro dos mesmos filtros utilizados anteriormente. Encontramos 27 artigos distribuídos em 11 revistas, dos quais 05 foram retirados, pois 04 tratavam de gênero literário e 01 mencionava gênero no resumo, mas não utilizava o conceito no desenvolvimento da pesquisa. Com essas exclusões, duas revistas foram eliminadas da seleção por só terem este tipo de artigo relacionado. Assim, para a seleção final, restaram 22 artigos distribuídos em 09 revistas, incluindo os 07 já descritos anteriormente na interseção com o descritor ‘formação’. Temporalmente, os artigos se distribuem de 1998 a 2018, delineando duas décadas de produção nas revistas brasileiras em educação. Na autoria, se destacam as autoras, já que apenas três dos artigos tiveram como autores (exclusivos) pesquisadores homens e dois com autoria compartilhada com mulheres.
Dentre esses quinze trabalhos identificados na busca apenas com os termos gênero e currículo, sem a articulação com formação, apresentamos os principais aspectos e resultados que podem contribuir para a compreensão do modo como as pesquisas sobre gênero e sexualidade abordam a formação docente. Quanto aos objetos de pesquisa, 06 se dirigem a currículos escolares (Delgado, 1998; Carvalho, 2004; Dinis, 2011; Reis & Paraíso, 2014; Caldeira & Paraíso 2016; Maciel & Garcia, 2018) e 03 a currículos ‘culturais’ para além dos escolares, como mídia, publicidade e filmes (Sabat, 2001; Vasconcelos, Cardoso, & Félix, 2018; Cardoso, L. R., 2016). 02 artigos articulam currículo e rede social (Sales & Paraíso, 2011, 2013), 02 tratam da educação superior em cursos de graduação que não eram licenciaturas (Ubach, 2008; Fiúza, Pinto, & Costa, 2016) e os outros 02, das políticas públicas educacionais (Vianna, 2012, 2015).
Os dois artigos que tratam de políticas públicas nos permitem pensar sobre a formação de professores/as, já que as diretrizes para formação docente estão entre as principais políticas públicas de educação, além do fato de que os programas para a educação básica incidem sobre as necessidades que se colocam na formação inicial. Vianna (2012) analisa a produção acadêmica sobre gênero e sexualidade nas políticas públicas de educação no Brasil entre 1990 e 2009. Segundo sua avaliação, a produção acadêmica sobre a temática ainda é tímida, começando a aparecer em 1995, mas com aumento gradual até 2009, o ano em que finda a análise. Nota, também, a passagem do sexo ao gênero na produção acadêmica examinada, mostrando a influência dos estudos feministas que se referem à construção social das diferenças. Identifica também dois movimentos analíticos principais, o uso do conceito de gênero, sob influência de Joan Scott, e, nas produções mais recentes, a crítica às normatividades a partir de Judith Butler.
No outro artigo encontrado, Vianna (2015) discute a relação entre Estado e movimentos sociais na produção de políticas públicas de educação voltadas para gênero e para diversidade sexual na interlocução do governo Lula com o movimento LGBT. A pesquisa aponta que um dos percalços é a própria fragilidade do uso do conceito de diversidade, outro é que a própria inclusão da temática da homossexualidade foi marcada por disputas e resistências quanto à definição de pautas e prioridades junto ao Ministério da Educação (MEC). Um dos principais obstáculos encontrados para a consolidação da inclusão das questões de gênero e sexualidade nos currículos é que as ações do Estado buscaram valorizar a diversidade sexual sem considerar as relações de poder que a heteronormatividade chancela. Apesar disso, reconhece que a visibilidade dada às temáticas nas políticas educacionais por meio da formação docente colocou em pauta questões antes ignoradas, principalmente por serem consideradas tabus na escola.
Quanto às perspectivas teóricas e metodológicas, a produção analisada trabalha com pressupostos predominantemente das pesquisas pós-críticas, pós-modernas e dos Estudos Culturais, assim como posicionamentos mais tradicionais e positivistas em relação ao objeto e à pesquisa. Os dados são produzidos por meio de revisões de literatura, análise de documentos, entrevistas e etnografias, por vezes articulando mais de uma técnica, a partir de análises de conteúdo, narrativas e análise de discurso de inspiração foucaultiana.
Há, ainda, uma tendência para uso de conceitos e autores/as ligados/as às pesquisas pós-críticas e pós-estruturalistas nas quais gênero e sexualidade são categorias analíticas capazes de produzir conhecimento sobre o processo social, historicamente determinado de controle dos corpos. Contudo, três das pesquisas se distanciam desse padrão, pois assumem o gênero como marcador dos papéis sociais desiguais entre homens e mulheres, a partir do binarismo sexual (Delgado, 1998; Carvalho, 2004; Fiúza et al., 2016) e o de Dinis (2011) que se baseia em identidades de gênero e sexual para promover a diversidade. A orientação desses trabalhos ficará evidente na descrição dos principais resultados a que chegaram, pois que implicados nos conceitos e discursos que assumem.
Dos quinze trabalhos, dois não trazem gênero e sexualidade como categorias de análise inicial da pesquisa, mas como emergentes durante o percurso da pesquisa. Um deles é o de Delgado (1998), que, ao analisar a construção de um projeto político pedagógico do pré-escolar, observa a tentativa de superação dos papéis determinados socialmente para os gêneros e os espaços de resistência que propostas pedagógicas diferenciadas propiciam. O segundo é o de Carvalho (2004), que, ao discutir as relações entre escola e família, conclui que o currículo escolar e a prática pedagógica se articulam segundo um modelo tradicional de família cujo papel parental idealizado e baseado nas divisões de sexo e gênero sobrecarrega as mães e subordina a escola à família.
Os trabalhos que discutem currículos escolares, em geral, concluem que as práticas educativas se baseiam em padrões generificados e heteronormativos. Nesse sentido, Reis e Paraíso (2014) mostram como normas de gênero atuam para produzir a dicotomia entre corpos-meninos-alunos e corpos-meninas-alunas, mas também para produzir corpos considerados meninos-alunos-bichinhas ou meninos-mulherzinhas, fundamentados em alguns discursos médicos e biológicos. Também Caldeira e Paraíso (2016) percebem a ação de técnicas de distinção que separam ‘coisas de meninos’ de ‘coisas de meninas’ ao analisar a produção de corpos generificados no currículo do primeiro ano do ensino fundamental.
Dinis (2011) aponta a violência contra estudantes LGBT e a omissão do tema da diversidade sexual como forma de ocultar a homofobia e a cumplicidade de educadores e educadoras com essa violência. Também focando currículos escolares, Maciel e Garcia (2018) analisam o modo como as experiências das professoras lésbicas nas escolas não só produzem uma pedagogia que questiona os padrões heteronormativos, mas constroem um conhecimento próprio a partir do qual reinventam suas identidades docentes.
Para além dos currículos escolares, Sales e Paraíso (2011) mostram, no cruzamento entre currículos escolares e uma rede social chamada Orkut, a constituição das subjetividades juvenis ciborgues e generificadas, que reafirmam posturas e condutas e, em outros momentos, questionam condutas e modos de ser e viver comumente aceitos na nossa sociedade. A sexualidade, articulada ao gênero, é acionada no processo de construção das subjetividades juvenis na interface com esses currículos, mas opera de modos distintos sobre a juventude, demandando a produção de sujeitos que as autoras denominam como o ‘jovem macho’ e a ‘jovem difícil’ (Sales & Paraíso, 2013).
No currículo cultural da publicidade, Sabat (2001) apresenta a forma como o discurso publicitário opera com o objetivo de re/afirmar valores e hábitos, ensinando modos de ser mulher e modos de ser homem, formas de feminilidade e de masculinidade. Cardoso, L. R. (2016) discute relações de gênero no currículo de filmes na produção de sujeitos generificados na ciência, já que alguns sujeitos são próprios do fazer científico, do racional, da inventividade tecnológica e outros possuem papel secundário, coadjuvante e de assistência. Analisando o currículo cultural do filme ‘Itão Kuêgü: as hiper mulheres’, Vasconcelos, Cardoso, e Félix (2018) problematizam alguns modos em que aprendizagens de gênero ocorrem e operam em favor da obscenidade da educação recompondo neles outros corpos em desaprendizagens para experimentarmos tantas outras subjetividades.
A respeito dos currículos do ensino superior, o trabalho de Ubach (2008) discute a importância que a crítica feminista na psicologia tem para desconstruir as naturalizações e incorporar uma análise de gênero que rompa dualismos. A pesquisa de Fiúza et al. (2016) analisa as desigualdades de gênero entre docentes da área de agrárias da Universidade Federal de Viçosa (UFV) para apontar a reprodução dos estereótipos sexuais vigentes e o sexismo na tipificação da profissão.
No geral, os trabalhos publicados nos periódicos revelam como são ainda incipientes as pesquisas que analisam os currículos dos cursos de formação de professores/as, já que entre os 22 trabalhos somente o de Dinis e Cavalcante (2008) discutiu esse tipo de currículo. Quando a formação docente é mencionada nesses artigos, está relacionada às políticas públicas educacionais, nas quais as de formação estão incluídas, porém não são foco principal ou não analisam o currículo da formação em si, mas suas diretrizes.
O que dizem as teses e dissertações
Para esse levantamento, a busca por trabalhos acadêmicos em teses e dissertações é pertinente, já que as instituições de ensino superior é o maior lócus da pesquisa no Brasil. Fizemos buscas na BDTD utilizando os termos ‘gênero’, ‘sexualidade’, ‘currículo’ e ‘formação de professores’ em todos os campos. O termo sexualidade foi aqui incluído pois, sem ele, muitas pesquisas relacionadas à linguística e gênero literário eram selecionadas. Os demais termos permitiram um foco maior para o objeto, pois, diferente do que ocorreu nos periódicos, os resultados das buscas foram numerosos, assim pudemos utilizar termos específicos.
A partir destes filtros, são encontrados 68 trabalhos, sendo 50 dissertações e 18 teses. Para a leitura dos resumos, selecionamos os trabalhos publicados na última década (2010-2020). Essa decisão foi subsidiada pelo trabalho de Vianna (2012), que traça um panorama até 2009, e pelo fato de poder identificar as perspectivas mais recentes do campo. Foram 55 resultados, sendo 41 dissertações e 14 teses. Após a leitura dos resumos, 7 dissertações foram descartadas por citarem gênero e/ou sexualidade, mas não os ter como base para suas pesquisas. Assim, totalizaram 48 trabalhos, sendo 34 dissertações e 14 teses, entre 24 instituições particulares e públicas.
Na maioria dos trabalhos, 32 deles, gênero e sexualidade apareceram simultaneamente ou associados. Em 05 dissertações, apenas gênero é utilizado enquanto categoria, geralmente associada a papéis de gênero e feminilização docente. Em outros 08 trabalhos, o foco é a sexualidade, relacionando-se principalmente com educação sexual ou com homofobia. Em 03 trabalhos, gênero e sexualidade estão nos resumos, mas não são categorias prioritárias, sendo apenas mencionados enquanto marcadores de diferenças ou identitários que aparecem ou influenciam na análise de outras questões. Apesar da utilização do descritor “formação de professores”, as teses e dissertações não estiveram sempre associadas a processos formativos docentes, mas os citavam porque apareceram como categorias em seus levantamentos ou, mais predominantemente, por citar a necessidade de inclusão de aspectos relacionados às temáticas/questões na formação docente.
Seguimos considerando a leitura dos 48 resumos por nós mapeados, ressaltando que encontramos resultados parecidos e no mesmo sentido dos já citados, tanto em relação aos referenciais, quanto às perspectivas e aos resultados obtidos. Dessa forma, preferimos nos concentrar em 15 trabalhos que tratam dos cursos de licenciatura. Eles podem nos dar um panorama das pesquisas em gênero e sexualidade aplicadas ao currículo do nível de ensino e da formação específica que focamos, o que não foi ainda possível nos demais levantamentos gerais já descritos por não termos obtido resultados numéricos expressivos quando da restrição direcionada para a formação inicial.
Dentre as bases teórico-metodológicas, muitas pesquisas se descrevem como qualitativas apenas. Míguez (2014) utilizou métodos da linguística aplicada e Alvaro (2018) utilizou prioritariamente de métodos quantitativos. Outros sete trabalhos se ancoraram na perspectiva pós-crítica ou pós-estruturalista e nos Estudos Culturais (Rios, 2019; Zanella, 2018; Santos, 2016; Cardoso, H. M., 2016; Santos, 2014; Hampel, 2013; Silva, 2011). As ferramentas para produção de dados mais utilizadas foram principalmente entrevistas, como estratégia principal ou auxiliar, e a análise documental de políticas públicas e currículos dos cursos de licenciatura. Os pesquisadores utilizaram ainda grupos focais, pesquisa de campo, observação participante, questionários, narrativas biográficas e autobiografias. Para a análise de dados, destacam-se a análise de conteúdos e a análise de discurso, além da cartografia e hermenêutica.
Assim como no levantamento feito por Santos (2020), observamos que a autoria feminina e as perspectivas pós-críticas ganham destaque, o que não era visto nos primeiros anos de produção sobre gênero e sexualidade, possivelmente porque as teorias pós-críticas, que vêm se consolidando nas pesquisas em educação, expandem a análise do poder para incluir os processos centrados não apenas nas relações econômicas capitalistas, como aprendemos com as teorias críticas, mas se deslocam para relações a partir de raça, etnia, gênero e sexualidade, como observado por Silva (2010). Assim, o gênero e a sexualidade passam a ser bases que fundamentam a produção de sujeitos e currículos em seus desejos e pretensões, em pesquisas que se utilizam de ferramentas diversas e já consolidadas em outras perspectivas.
Em relação às análises de projetos pedagógicos dos cursos e componentes curriculares sobre gênero e sexualidade, encontramos no trabalho de Zanella (2018) a indicação do caráter higienista presente em documentos pedagógicos da Licenciatura em Ciências Biológicas da UFSC, além de heteronormativo e com discursos que se aproximam de uma concepção essencialista de gênero e sexualidade, assim como observado nos documentos normativos nacionais, como os PCN e DCN para as Licenciaturas. Santos (2014) discute como estão presentes ao mesmo tempo discursos que produzem silenciamento acerca das múltiplas possibilidades de se vivenciar sexualidades e gênero no currículo, bem como discursos articulados às noções de respeito, que constituem as políticas públicas de inclusão e de diversidade.
A dissertação de Martins (2020), ao investigar questões de gênero e de sexualidade na licenciatura em Matemática da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP), percebe uma ausência predominante das relações de gênero e da diversidade sexual nos documentos curriculares. Quando há, são ações isoladas e sem base conceitual. Essa pontualidade nas discussões também é observada por Souza (2018) em cinco cursos em Licenciatura de uma universidade do Paraná. Neles, as temáticas estão presentes nos projetos pedagógicos dos cinco cursos - em três deles só incluídas após a DCN de 2015 -, porém as discussões em sala de aula ocorrem de modo pontual, por um determinado professor ou apenas em eventos.
H. M. Cardoso (2016) analisou como as temáticas de corpo, gênero e sexualidades estão sendo introduzidas nas práticas formativas das licenciaturas de Química e Matemática do Instituto Federal de Sergipe (IFS). Conclui a pesquisadora que, mesmo sem a temática constar no curso de licenciatura de forma oficial, esses currículos não estão isentos, pois estão atravessados, de uma maneira naturalizada e silenciosa, pelos discursos normatizantes de gênero e sexualidade, discursos binários, homofóbicos, que trazem em seu bojo uma lógica dicotômica dos gêneros.
Santos (2018) identificou no currículo de doze licenciaturas em Biologia da cidade do Rio de Janeiro algumas das formas de mobilizar sexualidade e gênero: como operadores teóricos, como operadores da vida social e como expressões de identidade. As disciplinas que tratam especificamente das questões de gênero estavam fortemente ligadas a algumas professoras como espaço-tempo de pensamento sobre aquilo que as constitui. Essa dependência é também apontada por Silva (2011) ao analisar projetos e/ou discursos sobre a formação de professores em cursos de Pedagogia de três instituições federais de Minas Gerais. A pesquisadora percebe que não há, nas disciplinas, ementas e conteúdos formalizados, discussões sobre gênero e sexualidade. Assim, a possibilidade de tratar esses temas nos currículos depende de pessoas específicas dispostas a atuarem nesse campo, limitando o debate a cursos ou eventos facultativos a alunos/as, de quem parte a demanda por essas discussões.
Destoando dos demais currículos trazidos nas pesquisas já citadas, a pesquisa de Santos (2016) afirma que gênero e sexualidade são categorias presentes em algumas disciplinas do currículo do curso de Pedagogia da UFPE, apesar de não transversalizarem o curso. Os programas mostram que as temáticas relativas a gênero e sexualidade dialogam com outras diferenças, a partir de temáticas e bibliografias que indicam referentes ligados às perspectivas crítica e pós-crítica. O currículo prevê gênero e sexualidade como conteúdos da formação, para além dos espaços específicos de seminários temáticos, contribuindo para a prática das professoras com as diferenças de gênero e de sexualidade na Educação Básica, uma vez que fornece referentes teóricos, conceituais e reflexivos para suas concepções e práticas. Mesmo assim, algumas práticas discentes sinalizam para resistências em relação à desnaturalização dos padrões de gênero e de sexualidade, recorrendo, muitas vezes, a argumentos religiosos e biológicos para sustentar seus posicionamentos.
Também em cursos de Pedagogia presentes na região de Campanha do Rio Grande do Sul, Hampel (2013) vê que há certa confusão e falta de informação entre professores/as em formação ao falar de sexualidade, sexo e educação para a sexualidade, pois os cursos não debatem e não orientam. Assim, a pesquisadora propõe uma educação que tematize, exponha e discuta a sexualidade em sua complexidade, como uma construção social, cultural e histórica, ultrapassando a dimensão apenas biológica, como geralmente é tratada nos cursos de formação docente e educação básica.
Muitos/as expõem a dificuldade dos licenciandos em discutir gênero e sexualidade. Alvaro (2018) faz um levantamento da aquisição de conhecimento e da percepção que alunos/as de graduação em Psicologia e Pedagogia da Unilago em São José do Rio Preto (SP) têm acerca da sexualidade e educação sexual. Dos 378 estudantes, 213 participantes concordaram que a educação sexual deve ser trabalhada nas escolas e ser uma responsabilidade partilhada com os pais e 161 responderam que deve iniciar no Ensino Fundamental II. Os tópicos que os estudantes acham que deveriam fazer parte do currículo em educação sexual foram Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), abuso sexual, contracepção, gênero e diversidade, configurações familiares e reprodução. Menos da metade dos/as alunos/as pretende desenvolver atividades de educação sexual e todos/as baseiam seu modelo de educação sexual na abordagem biológica e higienista, tal como outros trabalhos apontaram em relação a projetos pedagógicos.
Carvalho Filho (2018) analisa as imagens de futuros/as professores/as de Ciências de Natal/RN quanto a corpos, gêneros e sexualidades a partir de suas histórias de vida e conclui que, para além dos flagrantes de normatizações nas vozes de alguns desses sujeitos, há possibilidades de fuga. Em pesquisa com egressos de cursos de licenciatura, Rios (2019), por meio das narrativas autobiográficas, relata o discurso de professores gays do semiárido baiano sobre a produção de si enquanto corpo estranho e as estratégias de desconstruir/fazer/negociar gênero e sexualidade ao longo de suas trajetórias escolar/acadêmica. Discute como o enfrentamento às normas heterossexistas, comumente, tem se constituído na única maneira de se viver as diferentes subjetivações de sexualidades e gênero. Assim, a formação docente deve assegurar efetivamente a problematização de temas relacionados às questões de gênero e sexualidades.
Como propostas para inserir as discussões de gênero e sexualidade nos currículos, temos ainda o trabalho de Míguez (2014). A iniciativa é de queerizar o ensino de línguas estrangeiras no contexto da escola e na formação de docentes de línguas, que se daria a partir de uma discussão/proposta teórico-metodológica construída para novas abordagens no trabalho com gêneros e sexualidades, entre elas a incorporação do cinema queer, que o autor define como as produções que têm o olhar queer de desconfiança, estranhamento e desconstruções das categorias identitárias. Nesse processo, discursos e percepções revelaram deslocamentos e mudanças de perspectiva, pois os/as participantes perceberam a fragilidade, a instabilidade, a transitoriedade das categorias identitárias e a necessidade de problematizar/desconstruir os binarismos e essencialismos vigentes. Outra pesquisa que faz e analisa uma proposta pedagógica é a de Malta (2016), que aplica uma situação de jogo com licenciandos/as no curso de Pedagogia. O autor percebeu a contribuição do jogo para a sensibilização em relação à diversidade de gênero e aos futuros enfrentamentos teórico-práticos que esta discussão suscita em sua prática.
Como aspectos gerais dos resultados das produções levantadas, podemos perceber que gênero e sexualidade ainda se apresentam como temáticas ou conteúdos pouco ou não trabalhados na formação docente, estando associados às iniciativas pontuais ou à necessidade da presença de pessoas e/ou grupos específicos que desejem, tenham pesquisas na área e desenvolvam algum componente curricular, evento ou projeto que discuta essas questões. Apesar das dificuldades expressas por alunos/as em formação e por docentes já em exercício diante da necessidade de questionar, problematizar e lidar com situações que se apresentam nas escolas, inclusive já nos estágios, incluir no currículo dos cursos de formação esse debate não se configurou ainda como urgente nos discursos para produção dos currículos.
A produção focada nos currículos de formação docente nos aponta como discutir e enfrentar as formas de preconceito e normalização que afastam, excluem e invisibilizam é tarefa urgente para essa etapa de formação. Mesmo assim, os discursos de docentes formadores/as, alunos/as em formação e professores/as em exercício se encontram ainda baseados em concepções de gênero que assumem o binarismo e a heterocisnormatividade não consonante com as discussões do campo dos estudos de gênero. Apesar disso, alguns trabalhos apontam para possibilidades, sugestões e estratégias que já ocorrem ou podem ser adotadas para potencializar discussões e permitir que o currículo da formação se desfaça das aprendizagens generificadas e heteronormativas.
Considerações finais
Esta pesquisa pode contribuir com outros/as pesquisadores/as na área da formação docente, gênero e sexualidade, na busca por objetos de interesse ou novas possibilidades. Apresenta as lacunas, potencialidades e tendências da pesquisa, na busca por delinear um panorama que pode ajudar a dar visibilidade e força a um campo de estudo tão contestado atualmente. O levantamento das produções converge em muitos aspectos, principalmente no aumento da produção, nos movimentos de iniciação, ampliação e contestação nas políticas públicas, na hegemonia recente das pesquisas pós-críticas e no deslocamento para um conceito de gênero e sexualidade não mais ancorados nos papéis de gênero a partir do binarismo sexual.
Quase todas as pesquisas apontam o currículo como artefato implicado na produção de corpos e sujeitos generificados baseados na heterocisnormatização dos modos de existir. Apontam para a necessidade de discutir como as questões de gênero e sexualidade estão colocadas nos currículos, produzindo normalização, exclusão, preconceito e desigualdade, o que indica a necessidade de fomentar programas de formação docente que discutam e permitam práticas pedagógicas que considerem gênero e sexualidade de maneira mais inclusiva, abrangente ou menos normativa. Há, ainda, em algumas pesquisas, propostas e possibilidades para o trabalho com ferramentas e estratégias pedagógicas que podem fomentar ou potencializar a discussão dessas questões nos cursos de formação.
As políticas públicas e os currículos de formação de professores, apesar de serem relacionados na produção acadêmica, não são comumente abordados nessa interação, uma vez que as pesquisas em gênero e sexualidade na formação inicial de professores/as são pouco numerosas se comparadas aos trabalhos que se voltam para a educação básica, mesmo que esses quase sempre apontem a formação de professores/as como instância de formação necessária para promover e basear as discussões na escola. Nesse sentido, discutir a relação entre as políticas públicas específicas e os currículos dos cursos de licenciatura, para compreender a produção de um currículo no qual gênero e sexualidade se colocam em meio a redes de poder, pode delinear o sujeito docente que se pretende produzir e que é constantemente interpelado pelas situações que a diferença produz na educação básica, além de fomentar novas pesquisas que discutam essa instância de formação que se coloca como necessária.
Assim, a recente retirada da diferença e de aspectos da diversidade associados a gênero e sexualidade das diretrizes para a formação de professores/as, assim como da BNCC, configura-se como um retrocesso nas ainda frágeis políticas que vinham buscando inserir essas discussões nos currículos de formação de professores. Porém, como alguns trabalhos apontam, sempre há possibilidades para práticas de resistência nas escolas e no ensino superior que possam questionar o padrão que se impõe. Assim, podem surgir forças propulsoras de um contramovimento que busque marcar posição diante dessas tentativas conservadoras. Esse ponto, apenas as futuras pesquisas podem nos responder.