Introdução
Este estudo reflete e analisa as mudanças e permanências no âmbito dos aspectos pedagógicos e jurídicos contidos nos currículos e nas legislações para o Ensino Religioso (ER) dentro do território nacional. De modo a examinar como se entende a configuração dos processos de aprendizagem religiosa e a definição dos saberes docentes necessários para a profissionalização, já que na atividade fim da escolarização, a aprendizagem, o professor é o agente de sua prática pedagógica na escola. Nesse sentido, para dar forma a uma aprendizagem significativa ao aluno é preciso oferecer uma formação profissional aos professores para atuarem no intuito de construir uma formação teórica e prática. Evitar repetições de palavras em uma mesma frase.
Parte da resposta para a problematização colocada para este estudo se encontra na fragilidade da colaboração do pacto federativo. Quando o Estado brasileiro (União) se depara com pautas polêmicas, como é o caso da questão da laicidade na educação, grosso modo, este tende a deixar alguma orientação genérica e deixar para os entes federados (estados e municípios) a definição das atribuições para a ‘pauta bomba’. Vejamos a seguir um exemplo disso com o ER.
A partir de 1996, quando a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) foi promulgada, foram estabelecidos grupos de trabalho para a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para todas as disciplinas escolares, exceto para o Ensino Religioso; o que motivou o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper) elaborar um PCNs para o ER.
Segundo relato de um membro da coordenação do Fonaper, o grupo de então era constituído de professores, estudiosos de religião, religiosos e lideranças religiosas que voluntariamente contribuíram para a elaboração de parâmetros curriculares que orientassem o ER. Na ocasião, o Ministério da Educação (MEC) não designou nenhuma comissão para discussão de parâmetros específicos para o ER, por isso, o grupo reuniu‑se sem a chancela do governo e compôs o texto (Rodrigues, 2015, p. 24).
Todavia, este parâmetro curricular para o ER elaborado pelo Fonaper e publicado pela editora Ave-Maria no ano de 1997 não teve o aval do MEC, que seguiu o parecer de Roseli Fischmann, designada pelo ministério para examinar um processo que havia sido aberto no gabinete do Ministro da Educação. Fischmann (2006) expôs publicamente sua memória sobre o assunto:
Ali me era solicitado um parecer sobre um texto que procurava mimetizar os documentos dos PCNs, [...] como se fossem documentos oficiais. Na época tive a sensação de ter em mãos um documento que poderia ser o de alguém que decide lançar sua ‘versão’ da Constituição, e ainda se pergunta ‘por que não?’. Ou seja, ficava claro que o conceito de democracia e respeito à ordem jurídica era bem relativizado, tanto pelas pessoas que elaboraram aquele texto, quanto por aquelas que o fizeram chegar diretamente às mãos do Ministro, com explícita pressão presente no requerimento que abria o processo, cortando o caminho do respeito ao interesse público.
Senti aquilo como uma violência e, no papel de especialista que vinha assessorando o MEC no assunto, por intermédio da temática da Pluralidade Cultural, fiz o que considerei que deveria fazer. Minha resposta foi direta, vindo logo depois a ser referendada pela equipe dos PCNs e pela coordenação, de forma unânime, assim como no mesmo espírito foi encaminhada ao ministro pela então secretária de educação fundamental. [...] Invoquei ainda, anexando-o, o parecer da Doutora Anna Cândida da Cunha Ferraz (1997), da Faculdade de Direito da USP, sobre a matéria, que fora preparado a meu pedido quando integrei a Comissão do Estado de São Paulo [...] Com isso, não apenas se manteve a concepção original dos PCNs, que havia ficado em discussão em suas duas versões que foram a pareceristas e encontros regionais pelo Brasil ao longo de 1995 e 1996, mas reuniu-se, também, subsídio para o artigo especificamente voltado ao tema na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que veio a ser aprovada em dezembro de 1996 (Fischmann, 2006, p. 226-227, grifos do autor).
Assim, o Ensino Religioso, por não ter um tratamento disciplinar, ficou delimitado como um ‘tema transversal’ da pluralidade cultural brasileira (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1997). E não como um componente curricular para a formação básica. Cabe destacar, de acordo com o relato supracitado, que desde a concepção original dos PCNs o ER já estava de fora, mesmo sendo sua oferta obrigatória pelos sistemas de ensino. Numa evidente lacuna deixada pelas políticas educacionais, e como em espaços de poder os vazios sempre são ocupados, estas brechas nas políticas educativas para o ER foram preenchidas pelos interesses das igrejas cristãs. Embora o Fonaper não seja uma entidade confessional, sua composição abriga denominações cristãs de diversas origens, e a liderança (dissimulada ou não) da Igreja Católica nesta instituição é observada desde a sua fundação.
Esta lacuna na questão curricular para o ER permitiu a ação coordenada pelo Fonaper no sentido da construção dos saberes para compor os currículos escolares. Por meio dessa articulação, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso (PCNER) foram disseminados pelo território Nacional, já que o segundo parágrafo da Lei nº 9.475 (1997) estabelecia que os sistemas de ensino deveriam ouvir entidades civis constituídas por diferentes denominações religiosas. Ora, a primeira entidade civil constituída por diferentes denominações religiosas era o Fonaper, o mesmo que disseminou os PCNER entre suas redes, cobrindo a ausência do poder regulador da União na consolidação de um currículo de ER que: “[...] na qualidade de tema transversal, portanto, não se reconhece um conjunto de saberes ou conhecimentos legítimos que requeiram um lugar nos currículos escolares, possivelmente, também porque não se reconhece a religião como ‘objeto’ de estudo e pesquisa, isto é, não apenas como crença privada” (Rodrigues, 2015, p. 29, grifo do autor).
Esta perspectiva legal de ER enquanto tema transversal terá uma nova modulação a partir de 1998, com a instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental pela Resolução Câmara de Educação Básica (CEB) nº 2, de 7 de abril de 1998. Nesta regulamentação, a “[...] Educação Religiosa, na forma do art. 33 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 [...]” é estabelecida como uma das áreas de conhecimento da educação fundamental na alínea b do inciso IV do art. 3º (Resolução nº 2, 1998).
Logo, em 1998, as DCNs determinavam a ‘Educação Religiosa’ como área de conhecimento integrante do Ensino Fundamental. Somente em 2010, quando são fixadas novas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (Resolução nº 04, 2010), o Ministério da Educação (MEC) eleva o status do ER a componente curricular obrigatório no Ensino Fundamental dentro da Base Nacional Comum. Neste documento é estabelecido o ‘Ensino Religioso’ tanto como componente curricular quanto como área de conhecimento. O que levaria a essa mudança terminológica entre as duas DCNs no tocante à área de conhecimento ‘Educação Religiosa’ em 1998, para ‘Ensino Religioso’ em 2010?
Com efeito, se faz premente refinar estes três termos: ‘área de conhecimento’, ‘Educação Religiosa’ e ‘Ensino Religioso’. Em 2005, o Grupo de Pesquisa Educação e Religião (GPER) publica um boletim de notícias em seu site, organizado pelo pesquisador Sérgio Junqueira, intitulado ‘Ensino Religioso em Questão’, no qual define o que são as áreas de conhecimento na educação básica:
As áreas do conhecimento são marcos estruturados de leitura e interpretação da realidade, essenciais para garantir a possibilidade de participação do cidadão na sociedade de forma autônoma. Cada uma das dez áreas contribui para que os estudantes compreendam a sociedade em que vivem e possam interferir no espaço e na história que ocupam; pois uma das preocupações da Educação Básica é a formação do cidadão e que os estudos que as crianças e adolescentes realizam contribuam para os estudos e o trabalho que exerceram posteriormente. Ou seja, é uma relação do presente, uma re-leitura do passado e uma construção do futuro (Junqueira, 2005, p. 7-8).
Esta citação compreende o ER como área de conhecimento da Educação Básica e isto significa tematizar o fenômeno religioso desde as séries iniciais, como uma forma de leitura e compreensão da realidade a fim de contribuir para a própria manutenção do sentido de Estado laico no Brasil, admitindo-se a relevância do fato religioso não só como elemento político, mas também como um elemento constituinte de nossa formação cultural.
Desta feita, o entendimento do termo ‘Educação Religiosa’ está ligado unilateralmente ao componente político, ao marco legal, sem se preocupar em problematizar culturalmente os seus desdobramentos pedagógicos, uma vez que os conteúdos são de competência das igrejas. A ‘educação religiosa’ remete, portanto, ao reconhecimento de sua natureza enquanto área de conhecimento, mas que não se configurava enquanto caráter disciplinar, como elemento integrante de um currículo. Conforme mencionado [...] havia até fins da década de 1990 um entendimento de que a educação religiosa não ultrapassaria os contornos de um ‘tema transversal’, e outra chave interpretativa de viés político pode explicar esse entendimento:
As leis vigentes tinham colocado novas bases para instituir o ER escolar (Lei 9.475/97 e Resolução 2/98, da Câmara de Educação Básica), no momento de sua operacionalização prevalece esse velho princípio do direito do cidadão crente receber educação religiosa no âmbito escolar. O princípio decorre de um acordo entre Igrejas e Estado. O Estado oferece a garantia formal dessa execução, sem entrar no mérito do próprio ensino (Passos, 2011, p. 113).
Nesta interpretação, mais do que um ‘tema transversal’, a Educação Religiosa é um encaminhamento político em que ao Estado cabe garantir a oferta do ER, e às igrejas executar suas doutrinas de forma velada sob a forma de programas escolares. Assim, ganham os dois: o Estado garante a legitimidade de sua ação reguladora como sendo de ‘neutralidade’ no âmbito íntimo (privado), isto é, de não intervir nas questões eclesiais, enquanto as igrejas de composição hegemônica reiteram a sua herança confessional não só na esfera privada, mas também na esfera pública. Deste modo, “[...] a discussão sobre a epistemologia do ER constitui, de fato, um assunto que não interessa, em princípio, nem ao Estado nem às Igrejas, sendo para ambos uma questão politicamente inconveniente” (Passos, 2011, p. 113).
Sem embargo, a despeito dessa inconveniência política para o desenvolvimento epistemológico do ER entre os dois atores principais (igreja e Estado), a construção de conhecimentos teóricos e metodológicos em uma perspectiva epistemológica para o ER será discutida pela comunidade científica e acadêmica, assumindo inicialmente uma forma contra hegemônica na cultura científica.
Assim, no início dos anos 2000 é dada a partida para a construção de um esboço de uma nova faceta para o ER que culmina na consolidação de uma área específica para este, que passa, desde 2010, a ser experimentado como aporte de uma disciplina (Resolução nº 04, 2010). Desta forma, o ER está atrelado não só ao político, mas a um contingente escolar e pedagógico mais amplo, o cultural. Ao ser qualificado como disciplina, o ‘Ensino Religioso’ pressupõe uma área específica de atuação profissional do docente que tem como destinatário o sujeito, religioso ou não, que indaga sobre as razões de ser religioso dentro ou fora da religião, a partir de dentro ou de fora do grupo religioso, ou de não se ter religião alguma.
Sendo assim a questão colocada, as escolas - da rede pública e da rede privada - são convocadas a munir de conhecimentos seus educandos e providenciar-lhes condições para o desenvolvimento da reflexão crítica, a fim de que tenham condições de compreender:
a) Que as diferentes tradições religiosas presentes no Brasil têm papel importante na constituição sócio histórica desse país, hoje, democrático e laico;
b) Que a despeito de diferentes entre si, todas as religiões merecem ser reconhecidas como legítimas, uma vez que refletem formas de se pensar e agir no mundo, que representam diversamente os próprios cidadãos brasileiros (Rodrigues, 2013, p. 2).
Neste contexto despontam produtos intelectuais como a obra coletiva organizada por Sena (2006), que ventila o ideal de se exigir competência dos educadores deste componente curricular, e que por isso aventam a formação docente específica para esse componente curricular por meio de Licenciatura em Ciência da Religião. Nesta obra encontra-se uma coletânea de textos fruto de discussão coletiva dos conferencistas no IX Seminário de Capacitação Docente para o Ensino Religioso promovido pelo Fonaper em outubro de 2005, na cidade de São Paulo. Já em 2017, foi publicado um livro que apresenta o percurso de composição de licenciaturas em Ciências da Religião (CRE) na Universidade Estadual do Amazonas (UEA), Universidade Estadual do Pará (Uepa), Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (Uern), Universidade Federal do Sergipe (UFS), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Universidade Regional de Blumenau (Furb), Centro Universitário Municipal de São José (USJ), Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), além de ter um capítulo dedicado à Rede Nacional das Licenciaturas em Ensino Religioso (RELER) (Riske-Koch, Oliveira & Pozzer, 2017). Mas como pensar esse processo de implementação dos cursos de licenciatura para o ER no território brasileiro a partir da LBD 9.394/96? Essa é a questão que se buscou responder no próximo item.
Mapeamento dos cursos de Licenciatura em Ciência(s) da(s) religião(ões) no Brasil após a LDB 1996
Desde 1997 o curso de Licenciatura em Ciências(s) da(s) Religião(ões) passou a ser ofertado de forma contínua, para suprir as demandas por formação de professores para a disciplina. As Instituições de Ensino Superior (IES), com a criação destes cursos, cobriram uma lacuna existente na política educacional para a formação destes profissionais, por terem as normas para sua implementação descentralizadas nos sistemas de ensino estaduais. Os sistemas estaduais, por sua vez, na falta de suporte do Conselho Nacional de Educação (CNE) - que em um primeiro momento (1997-2010) omitiu-se da orientação para esse processo de adesão no tocante à seleção dos conteúdos e à formação e habilitação docente, ao reiterar que estes dois aspectos da política educacional eram responsabilidade dos sistemas estaduais - contaram, grosso modo, com a ingerência das denominações religiosas. Estas, na falta de maior explicitação de seu papel, que seria o de serem ouvidas pelos sistemas estaduais, e por falta de fiscalização, passam a ditar não só os conteúdos, mas também as normas de credenciamento docente.
A atual configuração da situação da formação docente para o ER vem passando por um processo de reconstruções motivadas por marcos legais, discussões de questões e fenômenos atuais.
Nesse sentido, novas investigações se tornam de extrema relevância acerca da criação destes cursos no âmbito das universidades federais, uma vez que o Estado não emitiu novas diretrizes sobre a criação desses cursos, apontando para duas situações problematizadoras: uma ausência do CNE para tomada de decisão ou uma omissão interessada do Estado brasileiro quando se escusa da tomada de decisões porque pode ter interesses não muito claros sobre os desdobramentos dessas ações (Amaral & Souza, 2015, p. 6).
As autoras supracitadas não distinguem Licenciatura em Ensino Religioso de Licenciatura em Ciências da Religião (CRE). Isso parece ser um dado importante, tendo em vista que as licenciaturas em CRE tanto quanto os bacharelados emergem de um campo de estudos cuja gênese remonta à virada do século XIX-XX. Além disso, a partir de 2018, o CNE assume uma nova postura quanto ao ER, por meio da homologação da Resolução que cria as DCNs para o CRE e permite que a formação do professor para ER tenha um tratamento laico, ao retirar das denominações religiosas a ingerência sobre a formação destes profissionais, atitude que as IES já vinham tomando ao criar estes cursos.
No levantamento de dados realizado entre outubro de 2019 e janeiro 2020 no Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Ensino Superior, mantido pelo MEC por meio do sistema e-MEC, foi adotado como critério de refinamento da busca os cursos oferecidos no grau de Licenciatura e foram utilizados (4) descritores: (a) ‘Ciência da Religião’, (b) ‘Ciências da Religião’, (c) ‘Ciências das Religiões’, e (d) ‘Ensino Religioso’. Com estes critérios de busca os resultados puderam abranger os cursos de licenciatura em todas as unidades federativas do território nacional, levando-se em conta também a oferta na modalidade de Educação a distância (EAD). Embora todos os cursos listados no sistema do e-MEC constem como em plena atividade, alguns cursos ainda não iniciaram as suas atividades, e outros estão em processo de extinção. A Figura 1 apresenta o resultado da cobertura de vagas desses cursos no território brasileiro.
Ao usar como descritor o termo ‘Ciência da Religião’, o resultado retornou sete (7) cursos em seis (6) IES, todos eles em atividade, sendo que três cursos já iniciaram, e quatro ainda não iniciaram. Dentre estes sete cursos, quatro (4) são cursos presenciais, dois (2) cursos em IES públicas, e dois (2) em IES privadas, além de três (3) cursos na modalidade EAD - todos em IES privadas. A Tabela 1 menciona outros dados dos resultados encontrados na busca.
UF | IES | Gratuito | Vagas | C.H | Início | Situação de funcionamento | Modalidade |
AM | UEA | Sim | 90 | 2.800h | 06/01/2015 | Em atividade | Presencial |
MG | UFJF | Sim | 20 | 3.050h | 05/03/2012 | Em atividade | Presencial |
PR | UNINGA | Não | 300 | 3.000 | 19/03/2020 | Em atividade | EAD |
SC | UNC | Não | 40 | 2.835h | Não iniciado | Em atividade | Presencial |
SC | UNC | Não | 40 | 2.835h | Não iniciado | Em atividade | Presencial |
SP | UNIASSELVI | Não | 600 | 2.800h | Não iniciado | Em atividade | EAD |
SP | UNIMES | Não | 1000 | 3.480h | Não iniciado | Em atividade | EAD |
Fonte: Elaboração própria a partir do e-MEC.
De um total de quatro (4) cursos presenciais de Ciência da Religião, dois (2) cursos não iniciados são oferecidos pela Universidade do Contestado (UnC) e situam-se em dois municípios de SC: Canoinhas e Curitibanos. No primeiro município o curso teve a criação aprovada em 20 de maio de 2010 no Conselho Universitário da IES, com “[...] um único ingresso, em caráter especial, para a Universidade do Contestado (UnC), para ingressantes do PARFOR” - Plano de Nacional de Formação de Professores da Educação Básica - (Resolução UnC-Consun 022, 2010). No município de Curitibanos, consta no Diário Oficial de Santa Catarina (SC) de 4 de abril de 2014 o reconhecimento do curso de Licenciatura em CRE da UnC pelo prazo de três anos após a publicação. Em busca no site da IES, não há menção à oferta do curso, isto é, embora o sistema indique que este curso não foi iniciado, a universidade já o ofertou, todavia não há turmas em andamento (Riske-Koch et al., 2017). Logo, atualmente, o curso presencial de Ciência da Religião é ofertado em duas IES, na UFJF e na UEA, ainda que na última conste no Cadastro do e-MEC o nome do curso como Ciência da Religião e no site da IES conste o nome de Ciências da Religião.
Os outros três (3) cursos não iniciados, ofertados na modalidade EAD, chamam atenção pela quantidade de vagas que oferecem, e pela capilaridade que atingem no território brasileiro por meio dos polos de apoio. Porém, após uma busca no site das 3 IES - Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi), Centro Universitário Ingá (Uningá) e Universidade Metropolitana de Santos (Unimes) -, não foi encontrada menção à oferta desses cursos. O curso da Uningá, também não disponibilizou informações sobre o edital de seleção. Além disso, não são oferecidas todas as 300 vagas, pois, segundo o próprio sistema do e-MEC, a distribuição das vagas se concentra em uma nova sede em Maringá com 100 vagas.
Ao usar como descritor da busca no sistema o nome do curso ‘Ciências da Religião’ o resultado encontrado no sistema e-MEC abarcou um total de vinte e seis (26) cursos cadastrados em grau de licenciatura distribuídos em vinte (20) IES. Destes 26 cursos, 22 encontram-se em atividade, sendo que destes oito ainda não iniciaram e quatro estão em processo de extinção. Dentre os 26 cursos quinze (15) são presenciais, nove (9) em IES privadas e seis (6) em IES públicas, onze (11) são na modalidade EAD, três (3) em IES públicas e oito (8) em IES privadas, conforme pode ser visualizado na Tabela 2 1.
UF | IES | Gratuito | Vagas | C.H | Início | Situação de funcionamento | Modalidade |
AM | FBNCTSB | Não | 200 | 3.200h | 15/05/2019 | Em atividade | Presencial |
MA | UEMA | Sim | 0 | 3.015h | 03/10/2006 | Em atividade | EAD |
MG | UNIMONTES | Sim | 35 | 3.360h | 01/02/2007 | Em atividade | Presencial |
MG | UNIMONTES | Sim | 100 | 3.266h | Não iniciado | Em extinção | EAD |
MG | PUC/MG | Não | 370 | 3.200h | 03/02/2020 | Em atividade | EAD |
PA | UEPA | Sim | 100 | 3.200h | 04/10/2001 | Em atividade | Presencial |
PB | UEPB | Sim | 50 | 2.880h | 13/04/2009 | Em atividade | Presencial |
PE | UNICAP | Não | 120 | 3.365h | 17/02/2020 | Em atividade | EAD |
PR | UNIFAESP | Não | 50 | 3.200h | 20/11/2019 | Em atividade | EAD |
RN | UERN | Sim | 46 | 3.080h | 22/02/2002 | Em atividade | Presencial |
RS | EST | Não | 100 | 3.200h | Não iniciado | Em atividade | EAD |
RS | UFSM | Sim | 150 | 3.215h | 06/03/2019 | Em atividade | EAD |
RS | UNINTER | Não | 1.000 | 3.232h | 09/04/2018 | Em atividade | EAD |
SC | FURB | Não | 100 | 3.474h | 06/01/1997 | Em atividade | Presencial |
SC | FURB | Não | 40 | 3.474h | Não iniciado | Em atividade | Presencial |
SC | FURB | Não | 40 | 3.474h | Não iniciado | Em atividade | Presencial |
SC | UNOCHAPECÓ | Não | 40 | 2.800h | 01/08/2008 | Em extinção | Presencial |
SC | UNOCHAPECÓ | Não | 200 | 3.200h | 26/02/2018 | Em atividade | EAD |
SC | UNOESC | Não | 40 | 2.805h | Não iniciado | Em extinção | Presencial |
SC | UNOESC | Não | 40 | 2.805h | 01/11/2009 | Em extinção | Presencial |
SC | USJ | Sim | 80 | 3.196h | 01/02/2008 | Em atividade | Presencial |
SE | UFS | Sim | 50 | 2.805h | 26/09/2011 | Em atividade | Presencial |
SP | UNIÍTALO | Não | 100 | 3.200h | Não iniciado | Em atividade | EAD |
SP | UNIÍTALO | Não | 100 | 3.200h | Não iniciado | Em atividade | Presencial |
SP | CEUCLAR | Não | 300 | 3.250h | 27/01/2020 | Em atividade | EAD |
TO | FECIPAR | Não | 120* | 2.910h* | Não iniciado | Em atividade | Presencial |
Fonte: Elaboração própria a partir do e-MEC.
Com o descritor ‘Ciências da Religião’, a busca retornou cinco (5) IES com mais de um curso no sistema: a Furb, com três cursos presenciais, sendo um em atividade e outros dois cursos presenciais (Ciências da religião - Ensino Religioso) em unidades educacionais fora da sede que não iniciaram; a UniÍtalo, que não iniciou nenhum dos dois cursos; a Unoesc, que mantém dois (2) processos de extinção dos cursos de Ciências da Religião, sendo que um curso foi em 2009 em parceria com a Secretaria Estadual de Educação (SEE) de SC para oferta do curso de CRE pelo Parfor; a Unimontes, que mantém um curso presencial e cujo curso na modalidade EAD está em processo de extinção, não tendo sido iniciado; a Unochapecó, que faz o inverso, mantendo um curso EAD recentemente criado (2018), com sua modalidade presencial, em atividade desde 2008, passando por um processo de extinção.
A Fecipar consta no sistema do e-MEC como um curso presencial não iniciado, mas os dados do site não têm informações sobre o número de vagas, carga horária do curso, nem mesmo no site da mantenedora da Faculdade de Educação Ciências e Letras de Paraíso (Fecipar) há menção ao curso. Assim, os dados elencados na Tabela 2 foram obtidos em uma pesquisa no Diário Oficial do estado do Tocantins.
A pesquisa encontrou dois documentos sobre a IES sobre o curso de CRE: o primeiro a Resolução nº 168 de 27 de dezembro de 2009, cujo art. 1º resolve “Aprovar a Estrutura Curricular do curso de Licenciatura em Ciência das Religiões, com 2.910 h/a, 60 vagas semestrais, período de integralização mínimo de 8 semestres e no máximo de 16, no turno noturno” (Resolução CEE-TO, nº168, 2009, p. 20), o segundo se refere à abertura de edital de processo seletivo para o vestibular 2011/1 (Parecer CES/CEE-TO, nº 360, 2010, p. 22). Embora no sistema conste como um curso não iniciado, há registros de dois vestibulares de ingressos no curso: um no ano de 2010 e outro em 2011. Outro dado que destoa do que está no sistema refere-se à nomenclatura do curso: no CEE-TO o termo usado é Ciências das Religiões.
O curso de Ciências da Religião na modalidade EAD da Faculdade EST consta, no sistema do e-MEC, como sem previsão para início do curso. Contudo, o site da IES divulgou uma nota com referência à oferta futura do curso, mas ainda sem detalhes sobre o edital para o ingresso. Em relação aos outros três (3) cursos EAD, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e do Centro Universitário Claretiano (Ceuclar), todos têm informações nos seus sites sobre o ingresso no curso.
Dentre os dezoito (18) cursos informados pelo e-MEC como iniciados e em funcionamento, dez (10) são licenciaturas presenciais, sendo sete (7) em IES públicas. Dentre as oito (8) licenciaturas na modalidade a distância, duas (2) estão sediadas em IES públicas: O curso da Uema teve início em 03/10/2006, mas atualmente está inativo (Riske-Koch et al., 2017), por isso é o único curso com as vagas zeradas no sistema. A UFSM oferece o curso EAD pela UAB, sendo a única IES a ofertar esse curso por este programa e, atualmente, a única IES pública a ofertar o curso nesta modalidade. Dentre os seis cursos EAD sediados em IES privadas, dois destes estão em IES confessionais católicas: A Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); um curso está em uma IES comunitária (Unochapecó); e as três IES privadas restantes que oferecem licenciaturas são: Uninter, UniFaesp e Ceuclar.
Ao usar o descritor ‘Ciências das religiões’, o sistema do e-MEC apresentou dois resultados: um curso presencial em IES pública e um curso EAD em IES privada, conforme exposto na Tabela 3 2.
UF | IES | Gratuito | Vagas | C.H | Início | Situação de funcionamento | Modalidade |
PB | UFPB | Sim | 50 | 2.880 | 13/04/2009 | Em atividade | Presencial |
ES | FUV | Não | 1000** | 3.200 | 04/02/2020 | Em atividade | EAD |
Fonte: Elaboração própria a partir do e-MEC.
O curso da UFPB tem uma memória interessante que remonta a uma iniciativa da pós-graduação no Programa de Sociologia datada de 1994, que ofertou a Disciplina Optativa ‘Religião e Sociedade’, a qual em seguida desenvolveu o Religare, Grupo de Pesquisa em Religião e Religiosidade no CNPq em 1996. A partir das experiências de extensão, o grupo recebeu uma demanda em 2005 da Comissão Permanente do Ensino Religioso da SEE-PE por um curso de capacitação de professores de ER, que deu origem a um curso de especialização, impulsionando a criação de um Programa Strictu Sensu em Ciências das Religiões em 2006 (Miele & Possebon, 2012). No tocante ao curso de Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, também há uma menção à influência do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper) na configuração destes cursos:
Para além da fé, o estudo do fenômeno religioso na escola pública deve recuperar a história das diversas religiões, dos mais diferentes povos, desde a antiguidade até hoje, dando aos discentes a oportunidade de compreender as relações que o ser humano estabelece com o transcendente, com o divino, com o sagrado, e de como ele aplica suas crenças nas relações que estabelece com a sociedade em que vive, e consigo próprio. Esta nova concepção de ensino religioso contou com a atuação marcante do Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso (Miele & Possebon, 2012, p. 428).
Esta citação deixa evidente um esforço em justificar a relevância da disciplina, ao se argumentar que estes saberes ‘para além da fé’ propiciam uma formação religiosa para a cidadania. Outro ponto de vista, crítico deste argumento, problematiza o curso de Ciências das Religiões da UFPB:
Em primeiro lugar [...] seria viável para o professor de ensino religioso, que em média tem um tempo de aula semanal, abordar conteúdo tão extenso. Sabemos que a história das religiões é um tema muito vasto, sendo as grandes religiões abraâmicas marcadas por eventos de dimensões difíceis de serem abordadas, sem simplificações, em curto período de tempo. O problema se complexifica mais se incluirmos os credos não monoteístas e as doutrinas religiosas sincréticas [...]. Em segundo lugar [...] está a questão de liberdade de crença [...]. Embora este seja um preceito constitucional, em que medida o professor de ensino religioso poderá efetivamente respeitá-lo? [...]. Em vista disso, não seriam também as disciplinas de história, filosofia e sociologia, obrigatórias na educação básica, suficientes para promover essas discussões sem os embaraços causados pela fé religiosa? (Amaral, Oliveira, & Souza, 2017, p. 284).
Estas duas citações antagônicas sobre o mesmo curso trazem em seu seio as mudanças e as permanências que não só configuram o ER atualmente, mas trazem à baila questões que envolvem outras esferas públicas, como a interpenetração das disputas do campo religioso no campo político, e que remetem ao debate da laicidade.
A última consulta do levantamento no sistema do e-MEC empregou o termo ‘Ensino Religioso’ e exibiu como resultado dois (2) cursos em atividade de licenciatura EAD em IES privadas, a Universidade Estácio de Sá (Unesa) e o Centro Universitário Estácio de Ribeirão Preto (Estácio). Conforme Tabela 4.
UF | IES | Gratuito | Vagas | C.H | Início | Situação de funcionamento | Modalidade |
RJ | UNESA | Não | 660 | 3.486 | 14/06/2019 | Em atividade | EAD |
SP | ESTÁCIO | Não | 1930 | 3.486 | 29/06/2019 | Em atividade | EAD |
Fonte: Elaboração própria a partir do e-MEC.
Estes dois cursos são ofertados por duas IES do mesmo grupo educacional, Estácio. Tanto as matrizes curriculares são idênticas, quanto os números de telefone para contato das duas IES são os mesmos. No site dessas instituições, quando se clica para fazer a inscrição no curso, a página é a mesma também. Este dado indica que além do interesse das denominações religiosas, outros interesses mercadológicos se interessam por essa fatia de mercado, que é a formação de professores de ER. Assim, as DCNs para Ciências da Religião abriram caminho para a oferta dos cursos na modalidade a distância, conforme o quantitativo de vagas ofertadas e a data de criação dos cursos nestas duas IES permitem inferir.
Mudanças e permanências nas políticas educacionais vigentes para a formação docente
Este levantamento realizado no e-MEC indica que, a despeito da falta de regulação em nível federal para a formação docente para o Ensino Religioso, as IES têm buscado estratégias para dar conta da lacuna relacionada à falta de formação específica na docência deste componente curricular, geralmente acionadas pelas demandas dos Sistemas de Ensino, que precisam resolver esta questão através da positivação dada pela LDB. Os dados levantados mostram que, embora incipientes, no total existem 37 cursos de formação para docentes em ER, havendo um movimento de profissionalização destes docentes. Se no início a vanguarda na criação destes cursos foi levada a efeito em IES públicas, hoje esse cenário está invertido, pois dezenove (19) cursos de CRE estão situados nas IES privadas, sendo que 14 destes cursos são ofertados na modalidade EAD. Este dado expõe outro desafio referente ao patrimônio formativo dos discentes que ingressam nos cursos de IES privadas, uma vez que:
O método da EaD está assentado no isolamento do aluno e em sua autonomia, em seu autodidatismo. O aluno que não consegue operar com esse diapasão é o que evade e, portanto, não constitui patrimônio formativo algum durante o tempo em que mantém vínculos formais com o curso. O dramático de tudo isso é de ordem estrutural e, por ora, só o podemos enunciar por meio dos seguintes questionamentos: ‘Estaríamos constituindo, no Brasil, uma engrenagem na qual o aluno desistente é peça funcional no esquema que financia a EaD? Será esse aluno tão (ou mais) interessante, em termos financeiros, do que o aluno perseverante? (Giolo, 2018, p. 89).
Todavia, a evasão não ocorre somente nos cursos EAD, embora nesta modalidade seja maior, segundo dados do Parecer CNE/CP nº 22 (2019, p. 7-8): “[...] analisando todos os cursos de graduação, [...] no fluxo de 2010 a 2016, por modalidade de ensino, as taxas de desistência são altas e muito similares, ou seja, dos cursos presenciais a taxa é de 55,6%, enquanto nos de Educação a Distância (EAD), ligeiramente maior que 62%”.
A grande ampliação na oferta de cursos EAD para a formação inicial contraria o que está previsto no parágrafo terceiro do art. 62 da LDB, que determina “[...] a formação inicial de profissionais de magistério dará preferência ao ensino presencial, subsidiariamente fazendo uso de recursos e tecnologias de educação a distância” (Lei n° 9.394, 1996). Porém, atualmente isso virou letra morta em 2018 quando o número de matrículas na EAD superou o número de matrículas na formação presencial. Desde a década de 1990 o mercado do ensino privado tem se valido dessa brecha na terminologia ‘dará preferência’ para abocanhar essa ‘fatia de mercado’ que é a formação docente. Segundo dados do Censo da Educação de 2018:
Pela primeira vez na série histórica dos cursos de licenciatura, o número de alunos que frequentam os cursos a distância, em 2018, foi maior do que o número de alunos dos cursos presenciais, ou seja, 50,2% dos alunos nas licenciaturas estão matriculados nos cursos a distância. Dados do Censo também revelam que o aluno típico dos cursos de licenciatura é do sexo feminino e estuda em uma universidade. Mais de 80% dos estudantes de licenciatura de instituições públicas frequentam cursos presenciais. Na rede privada, prevalecem os cursos a distância, com quase 70% dos alunos (Parecer CNE/CP nº 22, 2019, p. 8).
Vale observar que o grande crescimento da EAD no campo da formação de professores mostra como os interesses mercadológicos passam por cima da legislação, uma vez que as IES públicas cumprem a LDB, e as IES privadas não. Desta forma, o parecer reconhece que o MEC deve não só zelar pelo que está disposto na LDB, mas também monitorar e supervisionar a qualidade dos cursos nas duas modalidades, por meio de um sistema de avaliação dos egressos.
O parecer, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial dos Professores da Educação Básica e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), foi homologado em 20 de dezembro de 2019, e apregoa que para alcançar as metas do PNE de números 17 e 18, que tratam da equiparação salarial destes profissionais com os profissionais de mesma titulação de outras carreiras, já existem dois instrumentos: para a meta 17, a Lei do Piso e o Fundeb. Em relação à meta 18, que trata do plano de carreira, todos os estados e o Distrito Federal têm uma política para o plano de carreira e remuneração dos profissionais do magistério, segundo levantamento do Inep ocorrido em 2017 (Parecer CNE/CP nº 22, 2019).
Todavia, a carreira docente ainda não é atrativa para os jovens e isso se deve a fatores materiais, como as más condições de trabalho, e culturais, como a desvalorização social da profissão. Conforme revelam os estudos divulgados em 2018 pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), “[...] no Brasil, 5% dos jovens de 15 anos querem ser professores da Educação Básica, em comparação com 21% que pensam em se tornar engenheiros no futuro. Um dos elementos que contribuem para a pouca atratividade da carreira docente para as gerações atuais é a baixa remuneração” (Elacqua et al., 2018, p. 18-19).
No caso do Parecer CNE/CP nº 22 (2019), há uma busca por atrelamento entre as políticas para formação docente e as dez competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Conforme o art. 4º da Resolução CNE/CP nº 2 (2017), que institui e orienta a implantação da BNCC em atendimento à LDB e ao Plano Nacional de Educação (PNE), que determina para a Educação Básica objetivos de aprendizagem a serem desenvolvidos pelos estudantes nas seguintes competências gerais:
1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva;
2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas;
3. Desenvolver o senso estético para reconhecer, valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também para participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural;
4. Utilizar diferentes linguagens - verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital -, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos, em diferentes contextos, e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo;
5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação, de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva;
6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade;
7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns, que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável, em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado consigo mesmo, com os outros e com o planeta;
8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas;
9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos, de forma harmônica, e a cooperação, fazendo-se respeitar, bem como promover o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza;
10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões, com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários (Resolução CNE/CP nº 2, 2017, p. 4-5).
Estas aprendizagens essenciais estão em conformidade com as proposições de Tedesco (2012), todavia, com a BNCC que deveria ser construída na forma de diálogo com a sociedade, definindo os conteúdos socializadores básicos e indispensáveis para universalizar uma aprendizagem significativa, não foi bem o que ocorreu. Pelo menos não em seu desfecho, como podemos observar a seguir:
Em 2015, foram iniciados novos estudos pelo MEC para a preparação de um documento sobre a BNCC. Cerca de 120 (cento e vinte) profissionais da educação, entre eles professores da Educação Básica e da Educação Superior de diferentes áreas do conhecimento, foram convidados pelo MEC para elaborar um documento que resultou na ‘primeira versão’ da BNCC. Essa versão foi colocada em consulta pública, por meio de internet, entre outubro de 2015 e março de 2016. Segundo dados do MEC, houve mais de 12 milhões de contribuições ao texto, com a participação de cerca de 300 mil pessoas e instituições. Contou, também, com pareceres de especialistas brasileiros e estrangeiros, associações científicas e membros da comunidade acadêmica. As contribuições foram sistematizadas por profissionais da Universidade de Brasília (UnB) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), e subsidiaram o MEC na elaboração da ‘segunda versão’. Em maio de 2016, a ‘segunda versão’ do documento da BNCC foi disponibilizada e submetida à discussão por cerca de 9 mil educadores em seminários realizados pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), em todo o país, entre junho e agosto do mesmo ano. A metodologia de análise do documento foi efetivada por meio de discussões em salas específicas, por áreas de estudo/componentes curriculares, e coordenada por moderadores que, em sua maioria, apresentavam slides com objetivos e conteúdos e os participantes optavam por uma das seguintes alternativas: concordo, discordo totalmente ou discordo parcialmente e indicavam propostas de alteração, se fosse o caso (Aguiar, 2018, p. 11, grifo do autor).
Ainda que na primeira e segunda versão da BNCC houvesse uma ampla participação de educadores e especialistas, na terceira versão, encaminhada pelo MEC ao CNE em abril de 2017, houve uma guinada conservadora na composição das forças políticas que, entre outras ações, implicou na mudança da composição do CNE “[...] mediante a revogação da portaria de recondução e nomeação dos novos conselheiros” (Aguiar, 2018, p. 8) na qual a influência e controle de grupos populistas, autoritários e neoconservadores praticamente retiraram ou excluíram os grupos vinculados à academia. A terceira versão foi “[...] elaborada de forma autônoma pelo Comitê Gestor” (Aguiar, 2018, p, 16) e a sua matéria passou por uma tramitação célere na comissão bicameral, culminando com a aprovação pelo CNE, tendo três votos contrários, da Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017, e homologada por Mendonça Filho, Ministro da Educação à época.
A BNCC foi homologada com uma concepção rasa de educação e currículo. Essa base ficou centrada mais nas habilidades do que nos direitos e objetivos de aprendizagem, em acordo com a perspectiva gerencial ancorada em padronizações de aprendizagem medidas em avaliações nacionais vinculadas a políticas globais de uma rede patrocinada por corporações e filantropia privada, que se autodenominam ‘empreendedores sociais’, que propugnam programas de precarização do trabalho docente e da formação docente, como o movimento Teach For All. Esses programas de formação docente são uma ação mais articulada do que foi o Teach For America (EUA), e do Teach First (Inglaterra) que buscam impor sua múltipla agenda para atender os interesses do mercado com inspiração conservadora.
No Brasil, o seu correspondente é o Ensina Brasil que se baseia em recrutar graduados com graduação concluída há no máximo dez anos, ou serem prováveis formandos em cursos de licenciatura ou bacharelado reconhecidos pelo MEC, fazer uma formação presencial, ou distância, seguida de uma complementação pedagógica para dar aulas em escolas vulneráveis com remuneração por dois anos. Como os conteúdos ou objetivos da BNCC passam a ser uniformes para todo o território nacional esse tipo de programa pode se materializar.
O Ensina Brasil está em consonância com os apoiadores de políticas neoliberais gerencialistas. O programa é apoiado ou tem como parceiros, por exemplo, Itaú Social, Insper, Fundação Lemann, Elos Educacional, Kroton, dentre outros. Sua finalidade é retirar das universidades a formação docente e mostrar que é possível jovens recém graduados treinados poderem tornar-se docentes, por um período curto de dois ou três anos. Não há contradição com a BNCC, pois basta aplicar materiais e pacotes já orientados para a consecução do currículo previsto na base. Atualmente, com a possibilidade legal de terceirização das atividades fim e do trabalho voluntário, ficou mais flexível e possível que esses jovens recrutados sejam remunerados por prefeituras, como trabalho temporário, e com bolsas articuladas pelas entidades parceiras (Hypolito, 2019, p. 198).
No âmbito da formação docente este modelo pode ameaçar o modelo de formação docente baseado no ensino e na pesquisa. Por isso, é importante destacar a validade dos marcos legais anteriores a esses movimentos reacionários de um agendamento global que se estruturam em moldes ultraliberais e medíocres que não passam de arremedo de políticas públicas uma vez que não são baseados em evidências. Assim, para dar forma a uma aprendizagem significativa ao aluno é preciso oferecer uma formação profissional aos professores para atuarem no sentido de construir uma formação teórica e prática não só:
[...] na perspectiva de valorização e da sua formação inicial e continuada, as normas, os currículos dos cursos e programas a eles destinados devem adequar-se à BNCC, nos termos do § 8○ do art. 61 da LDB, devendo ser implementados no prazo de dois anos, contados da publicação da BNCC, de acordo com o art. 11 da Lei nº 13.415/2017 (Resolução CNE/CP nº 2, 2017, p. 11).
Mas, também, com a escola dotada de infraestrutura, recursos técnicos e didáticos para essa formação. Nesse contexto, as dez competências supracitadas remetem à formulação de Delacôte (1997), que relaciona o trabalho docente àquele de um acompanhante cognitivo, que ensina o ofício de aprender e de viver juntos que só a atividade educativa organizada pode proporcionar.
De toda forma, o que fica desde já delimitado pelo CNE é que o ER ficou normatizado na BNCC como um componente curricular do Ensino Fundamental, sendo preciso acompanhar como os sistemas estaduais que ampliam a oferta do ER para o Ensino Médio irão normatizar estes currículos, uma vez que a Resolução nº 4, de 17 de dezembro de 2018, que dispõe sobre a BNCC do Ensino Médio, não menciona o ER.
Nas disposições finais da Resolução CNE/CP nº 2 (2017, p. 12), o art. 23 determina que “[...] o CNE, mediante proposta de comissão específica, deliberará se o ensino religioso terá tratamento como área do conhecimento ou como componente curricular da área de Ciências Humanas, no Ensino Fundamental”. Com essa futura determinação o CNE dará mais um passo para a consolidação de políticas educacionais para o ER, ao determinar se este é área de conhecimento ou componente curricular da área das Ciências Humanas. Todavia, no art. 14, que delimita as competências para as áreas de conhecimento, o ER está situado como área no inciso V. Com efeito, na década de 2010-2020 percebe-se uma nova postura do CNE para com o ER, motivada tanto pela ação política do Fonaper quanto de outras Organizações da Sociedade Civil (OSC) para dar mais clareza às políticas educacionais, que da forma como estavam configuradas nos sistemas estaduais formavam uma verdadeira folia pedagógica motivada pela anomia jurídica (Cunha, 2013).
Conclusão
Este estudo permite trazer para a atualidade a reflexão de Gramsci (1999), sobre o ER como visão de mundo, quando o autor sardo coloca a questão do ER como uma forma de atender aos interesses do clericalismo católico, que em nossos tempos se transveste de ecumenismo. Paradoxalmente, é curioso notar que há nessas articulações uma busca de construção de consenso, ou seja, a busca de uma aproximação entre os segmentos intelectuais e a massa, que à época de Gramsci era costurada entre escola e a Igreja Católica; hoje, na era secular (Taylor, 2010), encontra no pluralismo uma ação integrada entre as igrejas e a escola.
A questão a ser enfrentada a partir desta constatação é: como não deixar prevalecer o aspecto proselitista de um grupo religioso sobre os outros? Uma resposta imediata vem à mente: formar os professores. Neste ponto, outra questão problemática se refere ao atual cenário político da regulação para a formação de professores em que um grupo de interesse mercadológico prepara um nicho de mercado para formação docente, aligeirada, sem a tônica na relação pesquisa e ensino, baseada na modalidade não presencial. Isso sem contar que segundo a BNCC, o ER deve contemplar o Ensino Fundamental e neste nível de formação há uma primeira etapa os primeiros anos (educação infantil) em que não é exigida a formação docente em uma disciplina específica, mas sim nos cursos de Pedagogia e em cursos normais de nível médio.
Ao que tudo indica, são raros nestes cursos conteúdos ou experiências de formação que contemplem uma preparação metodológica para atuar com os conteúdos para o ER. De toda forma, futuras pesquisas voltadas para a análise da prática docente em ER podem se debruçar sobre os efeitos do modelo de formação baseado nos conteúdos da BNCC e nas diretrizes das DCN-ER atentando para a questão da transposição didática dos conteúdos da CRE na condução da disciplina. Afinal, ainda que atualmente possamos experimentar uma aparente vitória nas regulações pelo controle dos conteúdos e a formação docente aos moldes propostos pelo modelo mercadológico, há que se convir que existe uma distância entre o que os currículos oficiais propõem e o que é efetivamente apropriado nas diversas situações de aprendizagem na realidade escolar.