Introdução
A epígrafe acima trata-se de um trecho do premiado livro de Itamar Vieira Junior, Torto Arado (2021). Neste trecho, o autor narra a relação da personagem Belonísia com a escola, tão esperada pela comunidade e por seu pai, a escola não atraia seu interesse, vítima de um acidente doméstico com uma faca que mutilou sua língua e parte da língua de sua irmã de Bibiana. A professora da escola, D. Lourdes, mulher branca e requintada, mesmo sabendo da deficiência de Belonísia ensinava-lhe a letra do hino nacional para cantar, juntamente com as crianças menores que se esforçavam na leitura de palavras e frases que se misturavam com o sotaque local, ao qual, a professora Lourdes interrompia a cada duas palavras insistindo no padrão de pronúncia correta da norma culta.
Essa imagem de uma escola nos rincões do Brasil pouco atrativa, nada inclusiva, distante da realidade sociocultural de seus estudantes não é algo isolado, mas parece ser a tônica de um problema estrutural que permeia a realidade educacional no Brasil. Não diferente, tal situação ocorria na disciplina de sociologia, Alberto Guerreiro Ramos2, nos anos 1950, teceu duras críticas aos chamados compêndios de sociologia que eram eivados de estrangeirismo e sem conexão com a realidade vivenciada pelos estudantes. Esse descolamento da realidade concreta levava a situações inusitadas, como as de um professor que fez uma experiência com uma rã para demonstrar as leis dos reflexos elementares de Pflüger, seguindo os passos do livro didático, o professor realizou a experiência uma, duas vezes e a reação do animal não foi como a descrita no livro, o professor desconsiderou tal experiência como quem dissesse: o animal estava errado (Ramos, 1995). Logo depois, descobrira-se que a reação da rã era a mesma que acontecerá na experiência do professor quando tirada de seu habitat natural, havia inúmeros exemplos de professores de química comparando determinada reações químicas a uma cereja ou uma determinada forma geográfica a pêra, o que convenhamos algo muito distante de uma criança no interior baiano naquele período. Esse exemplo é substancial de um dos grandes ápices dos debates em torno da introdução da sociologia no currículo do ensino secundário realizada por dois celebres da sociologia; Alberto Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes, no interior do 1º Congresso Brasileiro de Sociologia em 1954.
A introdução da disciplina de sociologia como obrigatória no ensino médio, em 2008, teve uma característica importante que foi o intenso trabalho por parte de pesquisadores e professores de sociologia em desenvolver materiais e sequências didáticas para um melhor aproveitamento da disciplina em sala de aula. Apesar desse esforço e do enorme volume acumulado em pouco mais de uma década, a disciplina ainda carece de acúmulo de experiência no que tange ao fazer escolar, da questão metodológica, dos recursos didáticos e o modo de e como ministrar a sociologia3 e dos estudos em torno da questão cultural sobre os estudantes, das suas opções, desejos, muito pouco entendemos ou procuramos dar voz a esses estudantes, tratá-los como sujeitos, partícipes do processo educativo.
Assim, a pesquisa que realizamos em uma escola da periferia da cidade de Marília procurou fazer esse movimento, conhecer e entender o horizontal cultural desses estudantes, a realidade ao qual estão inseridos e como a escola se configura nesse processo. A falta de motivação com a escola, negação da autoridade escolar e o desinteresse nos estudos, a prevalência e a vontade de entrar no mercado de trabalho foram as indagações que nortearam a realização da pesquisa. Mediante essas questões levantadas com os estudantes, optamos pela leitura do clássico trabalho de Paul Willis, Aprendendo a ser trabalhador, dada as possíveis semelhanças entre os resultados da etnografia realizada no final dos anos 1970 e a cultura periférica dos estudantes trabalhadores da escola mariliense. Acompanhamos a sala de aula durante o período de um ano, onde foi possível observar a cultura, os estilos de vida e as motivações desses estudantes, como também, pudemos trabalhar com atividades que levassem uma melhor apreensão dos conteúdos do ensino de sociologia.
A partir desses elementos foi possível observar que muito da falta de interesse para com a escola e seus conteúdos parte de dois aspectos fundamentais: distanciamento da própria escola e de seus conteúdos da realidade sociocultural dos estudantes e ao negar esses conteúdos, os estudantes fazem de forma consciente, optam por outras alternativas. Isso equivale a dizer que há no interior da própria escola a criação de uma espécie de contracultura, uma negação, mas por opção e pela perda de concreticidade prática dos conteúdos escolares.
Ademais, a partir desse entendimento, procuramos criar formas, modelos e principalmente técnicas de ensino que procurassem adequar os conteúdos da disciplina de sociologia a realidade sociocultural dos estudantes. Como se sabe, a sociologia é uma disciplina teórica e de difícil entendimento, que trabalha conceitos variados e complexos, que buscam o entendimento do homem, dos seus processos de socialização e de suas relações sociais.
Formação da sociologia e dos estudos sociológicos em educação
A constituição da sociologia e das ciências sociais no Brasil teve características distintas da construção dessa disciplina em países com capitalismo desenvolvido. Enquanto nos países desenvolvidos as ciências sociais desenvolvem-se fora da Universidade, encontrando sua vocação na sociedade civil, nos movimentos sociais, no Brasil “[...] surgem do projeto intelectual de uma elite conservadora, como a de São Paulo, com a existência universitária antes de encontrarem expressão na vida social” (Werneck Vianna, 1997, p. 173).
Antes desse período relatado por Werneck Vianna, as Ciências Sociais no Brasil tinham característica de tipo ensaística, baseada em conceitos genéricos, abstratos, sem uma clareza na definição do objeto: “[...] havia, sim, uma rica ensaística de tipo erudita, fortemente influenciada pela literatura sociológica europeia” (Werneck Vianna, 1997, p. 181). Para Fernandes (1958) é possível identificar três versões de estudos ‘extra-científicos’, a primeira são os mais generalizados e simples, que fazem de qualquer reflexão sistemática sobre problemas sociais no país uma reflexão sociológica, a segunda converte a sociologia em uma polarização ideológica e a terceira seria a maturidade dos estudos sociológicos com autonomia e padrão científico.
No campo educacional, as características eram idênticas, trabalhava-se a questão educacional de modo genérico, sem densidade conceitual. Neste caso é importante salientar que os autores não tratavam a educação de modo familiarizado, pois em sua maioria eram juristas, jornalistas e apontavam a educação dentro do campo mais amplo do pensamento social.
Florestan Fernandes ao analisar esse período do pensamento sociológico destaca como sendo estritamente ligado “[...] a nossa proverbial educação intelectualista e aristocrática, que deu origem a uma tendência bem definida à super-avaliação do trabalho teórico, representado como pura manipulação de ideias abstratas” (Fernandes, 1958, p. 221). O ensino tradicionalista de formação exclusivamente intelectualista e verbalista, sendo seu cerne a formação do engenheiro e do bacharel em direito corroborou para perpetuar o padrão ‘extra-científico’.
Esta divisão apesar de clássica, não é consenso entre os estudiosos da história das Ciências Sociais brasileiras. Wanderley Guilherme dos Santos (2002) analisa o desenvolvimento das Ciências Sociais sob o desenrolar dos acontecimentos históricos e sociais da vida política brasileira e dos avanços metodológicos da disciplina dentro desse contexto histórico e social. Ao entrelaçar desenvolvimento das Ciências Sociais com a história político/social do país, o autor destaca a inserção do Brasil na história mundial como condição colonial (1500-1822) e após a Independência em 1822 iniciava-se uma nova etapa da história da vida política do país com desdobramentos para o pensamento político e social, que ficará “[...] na dependência da evolução organizacional da atividade científica, a qual exibia um juízo implícito sobre as ciências sociais e sobre sua relevância para a estrutura do novo país” (Santos, 2002, p. 23).
Wanderley Guilherme observa o desenvolvimento das Ciências Sociais de forma mais ampla, enquanto pensamento político social, para o autor as reflexões políticas e sociais no interior da literatura e do direito e as análises sobre a organização social fazem parte do que denomina de pensamento político-social brasileiro. O autor faz uma crítica ao que denomina de matriz institucional, que concebe o desenvolvimento do pensamento social brasileiro a partir de marcos organizacionais e institucionais.
Se por um lado, observamos divergências nas análises do desenvolvimento das Ciências Sociais, por outro lado, o movimento educacional renovador4 buscava em suas bases um padrão científico incorporado no pragmatismo americano e na escola sociológica francesa:
O grande ensaísmo havia incorporado a Sociologia como fundamento racional para a ação de um Estado que iria edificar a nação, conduzindo-a a ideais civilizatórios. Em um momento inverso, entre os intelectuais da educação, a sociologia se faz interpretar como recurso analítico que legitima a promoção social dos indivíduos pela ação da escola. Não coincidência, as referências dessa Sociologia dos educadores passar a ser preferencialmente americanas - o caso de Anísio Teixeira é exemplar - o seu tema de fundo consiste nas relações entre o Estado e a nação, e sim, centralmente nas desigualdades sociais e o papel da educação para uma cidadania igualitária em termo de oportunidades de vida (Werneck Vianna, 1997, p. 183).
O marco histórico do movimento dos intelectuais da educação a que se refere Werneck Vianna foi o Manifesto dos Pioneiros da Educação em Nova de 1932. O Manifesto de 1932, como ficou convencionalmente conhecido, traça um quadro analítico da educação brasileira que foge das especulações genérico-abstratas ao tratar dos problemas educacionais de modo conceitual e propor políticas educacionais para reconstrução da nação. Podemos identificar que a relação entre uma sociologia que pensa cientificamente os problemas educacionais ocorre, em um primeiro momento, no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (Cunha & Totti, 2004).
A criação da Escola de Sociologia e Política em 1933 e da Universidade de São Paulo em 1934, corrobora com esse processo, possibilitando os primeiros passos para um projeto de institucionalização, que teve na figura de Fernando de Azevedo um de seus principais expoentes, trabalhos como Princípios de Sociologia e Sociologia Educacional fazem parte da constituição de um corpus teórico de uma disciplina ainda em formação e o livro a Cultura Brasileira avança na análise da estrutura brasileira, entrelaçando as relações entre cultura, educação e sociedade e vislumbrando a educação como fator de transmissão cultural. Esse era um momento de afirmação da Universidade e da Sociologia no meio acadêmico, a Universidade era considerada pelos seus idealizadores como uma nova modalidade cultural, de reflexão e preocupação sobre os fatos da vida social: “[...] a transmissão de conteúdos gera o esforço de sistematização dos sistemas de pensamento, expresso em grandes sínteses, frequentemente apoiadas em longos discursos sobre o método” (Arruda, 1995, p. 116). Segundo Arruda, a ideia era criar um ambiente simbólico em que se referendava pela qualidade de suas análises e produções: “[...] a atividade acadêmica implicou, por tudo isso, num processo de racionalização da produção do conhecimento, ao definir e reordenar as diversas áreas e ao instaurar o seu próprio domínio” (Arruda, 1995, p. 119).
A sociologia, nessa concepção tinha como meta emancipar-se enquanto ciência, o que engendraria uma remodelação de técnicas e teorias, a preocupação com o campo teórico ao buscar uma identidade para as Ciências Sociais, como um campo específico de uma ciência com: “[...] a discussão de técnicas, métodos, interpretações condizentes com o nível de rigor praticado em centros mais avançados” (Lahuerta, 1999, p. 35).
As preocupações de ordem metodológica foram a tônica do desenvolvimento da sociologia, “[...] as Ciências Sociais no Brasil surgiram e se têm desenvolvido sob a influência de dois processos: o da forma de absorção e difusão interna dos avanços metodológicos e substantivos gerados em centros culturais no exterior” (Santos, 2002, p. 19). Santos aponta dois fatores importantes do desenvolvimento das Ciências Sociais, a incorporação das tendências teóricas do exterior e o rigor da produção metodológica.
A ênfase no trabalho metodológico atrela-se ao fator institucional, a Universidade cria um espaço de produção de ideias e de conhecimento e esse conhecimento produzido deve ser guiado pelas exigências acadêmicas de cientificidade. As fronteiras da cientificidade de um trabalho acadêmico são medidas pelo grau de rigor e regras de análise e estudo de determinado pelo objeto de pesquisa.
O surgimento da universidade, desse modo, seria incompreensível sem a presença de condições sociais propicias, instituindo, ao mesmo tempo, novos modelos de produção intelectual, isto é, a constituição dos quadros acadêmicos transformava os critérios de produção do saber, a partir dos quais as identidades grupais emergem, agora lastreadas numa formação e num princípio profissional dotados de certa unidade (Arruda, 1995). O princípio da legitimidade acadêmica é localizado na institucionalidade, os paradigmas, os problemas sociais, devem ser absorvidos pelo cientista que além de dar um tratamento racional a eles, produz um discurso específico para esse auditório e as Ciências Sociais desenvolvidas nos quadros universitários redireciona-se para critérios de confecção e normas de elaboração do fazer científico. No interior do sistema intelectual, as oposições estarão pontuadas pelas diferenças entre reflexões consideradas rigorosas e científicas e aquelas vistas como impressionistas e arbitrárias (Arruda, 1995).
Dentro desse paradigma, observa-se importante iniciativa de Emilio Willem e de Romano Roberto que criam em 1939 o periódico Sociologia: Revista Didática e Científica, que teve como intuito inicial disseminar técnicas de ensino e aprimorar a didática da jovem disciplina de Sociologia no Brasil. Willems dá enorme contribuição no interior da revista atrelando as questões teóricas da disciplina, seus autores e métodos com trabalhos de pesquisa de campo, buscando na prática social concreta elementos que coadunassem com os referenciais descritos pelas teorias sociológicas. Não foram poucas as possibilidades de pesquisas colocadas por Willems nos primeiros números da revista, pesquisas sobre a prática cotidiana da cidade de São Paulo como: a proibição da imigração amarela nos Estados Unidos da América e como isso reverberaria no Brasil, confrontando com as teorias da aculturação, tal pesquisa envolveria trabalho de campo no bairro da liberdade. Outras questões como controle social e a prática cotidiana do fura fila nas filas para adentrar ao ônibus em suas paradas, entrevistas com criminosos para avaliar as possíveis causas de sua prisão também faziam parte do rol de propostas pedagógicas para as práticas da disciplina de Sociologia. Contudo, essa dinâmica na revista foi perdendo força por algumas razões, uma delas é que a ideia inicial de utilizar contribuições e experiências didáticas de professores de sociologia de inúmeras localidades não logrou êxito e o próprio desenvolvimento e amadurecimento da disciplina no ambiente acadêmico e institucional fez mudar o nome e as diretrizes da própria revista, conforme explica Limongi (2015, p. 161): “[...] o subtítulo da revista Sociologia é alterado e passa de Revista Didática e Científica para Revista dedicada à teoria e à pesquisa em Ciências Sociais. De fato, abandona-se o didático em prol da pesquisa, pois que, segundo os novos diretores, a situação da Ciência Social brasileira já era outra”. Essa nova fase da pesquisa inicia-se em 1949 e marca uma nova etapa de pesquisa e estudos sobre a realidade brasileira.
Nessa nova etapa das Ciências Sociais e da Sociologia brasileira, a figura de Florestan Fernandes e Roger Bastide foram fundamentais na mudança de estilo das Ciências Sociais imprimindo um novo modelo de ciência social pautado por critérios metodológicos rigorosos, estabelecendo como primordial a profissionalização do cientista social, que incluía um trabalho árduo de disciplina baseada em extensas leituras e fichamentos, debates e análises, buscando com rigor a definição conceitual.
Esse trabalho buscava distanciar-se do senso comum, criando uma cisão entre o pensamento leigo e científico, a linguagem adquire uma dimensão onde é permeada de conceitos ordenados, guiando-se por valores e ideais do saber científico, “[...] a escrita do sociólogo transporta ao leitor a impressão de que se encontra num torturante diálogo consigo mesmo” (Arruda, 1995, p. 142). A linguagem estava relacionada a busca de identidade para o conceito, tornando o pensamento mais rigoroso. Além da linguagem, a escolha do objeto, da teoria e o recorte que se faziam da realidade, privilegiam o método disciplinar de levantamento de dados.
Dessa forma, a modificação ocorre no modo como são expostas as ideias, o texto deve ser a expressão consciente do autor que o escreve, ele deve ter o total domínio da teoria em exposição, que são condições necessárias mínimas de uma análise segura de verificação. A crítica passa a incidir sobre o ensaio, visto como uma forma estranha à regra do jogo da ciência e da teoria organizada. O estilo ensaístico rejeita a noção de método e ordenamento sistemático da exposição. Por isso, o ensaio retira o seu impulso do afastamento em relação aos cânones científicos, ou porque pretende-se elaborar uma crítica radical dos princípios da ciência (Arruda, 1995).
Os temas tomam outro impulso em direção ao discurso científico, projetos sobre a formação nacional e o Estado como arauto do desenvolvimento não fazem parte do horizonte intelectual dos sociólogos uspianos. Neste caso, ao criar um padrão científico no campo das Ciências Sociais, Florestan torna-se marco divisório e consolida uma interpretação acerca do desenvolvimento da sociologia.
Atrelado a esse desenvolvimento das Ciências Sociais temos a criação do Centro Brasileiro Pesquisas Educacionais e do Centro Regional em São Paulo, nos anos 1950, impulsionando a pesquisa e o diálogo entre Ciências Sociais e Educação com o lançamento de uma revista de mesmo nome. A criação da Sociedade Brasileira de Sociologia, em 1954, e os debates transcritos nos anais de seu 1º Congresso entre Florestan Fernandes e Alberto Guerreiro Ramos acerca do ensino de sociologia, dão mostras do quão importante significava para aquela geração o debate educacional.
A partir disso, tivemos uma geração de intelectuais com inúmeros estudos sobre as diversas problemáticas envolvendo a educação como O estudante e a transformação da sociedade brasileira de Marialice Foracchi, autora de uma organização em conjunto com Luiz Pereira Educação e Sociedade, de Florestan Fernandes Educação e sociedade no Brasil e mais adiante o trabalho clássico de Luiz Pereira A escola numa área metropolitana.
Como se vê, neste rápido itinerário de uma história das Ciências Sociais e de seus estudos atrelado à educação, percebemos que a sociologia nasce institucionalmente com estreita relação com os temas educacionais e mantêm esse intercâmbio até o final dos anos 1960, período que ocorre um distanciamento devido à reforma universitária de 1968, o desmantelamento do CBPE e o fim dos recursos econômicos para a pesquisa, a retirada da sociologia do ensino secundário e até mesmo a perpetuação do paradigma reprodutivista contribui para o desinteresse dos cientistas sociais pela educação.
Com a reintrodução da sociologia na grade curricular do ensino médio houve a retomada de pesquisa nessa área, a criação do Grupo de trabalho ‘ensino de sociologia’ na Sociedade Brasileira de Sociologia e mesmo que timidamente os Programas de Pós-Graduação em Sociologia e em Ciências Sociais procuraram integrar um rol linhas de pesquisas ligadas à educação como: sociologia da educação e ensino de sociologia. As agências de fomento começam a direcionar recursos e incentivar programas com essas características, caso do PIBID/Capes possibilitando uma maior gama de pesquisa nessa área de conhecimento.
Sequência didática pedagógica
Com a introdução da sociologia no ensino médio via resolução do Conselho Nacional de Educação 04/2006 e a lei federal 11.684/2008 (Mendonça, 2017), o governo do Estado de São Paulo decide produzir um material de apoio aos professores e estudantes denominado de São Paulo Faz Escola, segundo as autoras do material (Pimenta & Schrijnemaekers, 2011) a ideia não era trazer os conhecimentos do bacharelado em Ciências Sociais para o ensino médio ou muito menos formar sociólogos, tratava-se de fomentar no estudante do ensino médio um olhar para o local onde vive e para a sociedade brasileira pela lente da sociologia, tendo como foco a interdisciplinaridade entre as três áreas das Ciências Sociais: Antropologia, Política e Sociologia conjuntamente com outras áreas das humanidades propiciando ao estudantes,
[...] formação e o desenvolvimento do aluno ‘como ser humano’. É, portanto, ‘sensibilidade’ e não ‘raciocínio’, pois o ‘raciocínio’ sociológico deve ser desenvolvido na faculdade, por aqueles que se tornarão sociólogos e estudarão a sociedade de forma científica. A ‘sensibilidade’ sociológica, entretanto, constitui parte da educação básica e vem sendo defendida desde os anos de 1980 por educadores e cientistas sociais. Resta, portanto, colocá-la em prática (Pimenta & Schrijnemaekers, 2011, p. 409, grifo do autor).
Tais conceitos estariam em acordo com as Orientações Curriculares Nacionais para o ensino médio no que tange ao ensino de Sociologia, “[...] por meio de dois princípios: o da desnaturalização e do estranhamento” (Pimenta & Schrijnemaekers, 2011, p. 410). Por intermédio desses princípios, o São Paulo faz Escola propiciaria aos estudantes um olhar de afastamento e crítica ao objeto da realidade, não lhe aparentando que tais fenômenos sociais soassem como algo natural, inerente ao senso comum. “Trata-se, portanto, de construir com o aluno uma atitude ou sensibilidade que lhe permita buscar sempre uma explicação de como e porque os fenômenos sociais ocorrem, recusando sempre as explicações de sempre foram assim ou devem ser assim” (Pimenta & Schrijnemaekers, 2011, p. 410). Seguindo a explicação das autoras, tal sensibilidade sociológica é amparada nos princípios metodológicos de Émile Durkheim de que os fatos sociais devem ser tratados como coisas e que ao analisar tais fatos, o pesquisador deve afastar as pré-noções. Esse elemento estaria no início e constituição da sociologia como ciência e forneceria aos jovens estudantes a possibilidade de construir uma sensibilidade sociológica, capaz de uma interpretação independente da realidade social em que vive.
Em que pese possíveis divergências teórico-metodológicas com os autores, aos quais as autoras do material se amparam, como também, as críticas oriundas de inúmeros pesquisadores5 que se debruçaram sobre material pelo Estado de São Paulo (Souza, 2019; Vellei, 2020) fizemos uma análise preliminar para aplica-lo em sala de aula e observamos que em algumas situações de aprendizagem o material se mostrava distante da realidade dos estudantes. As exemplificações não refletiam a realidade da juventude moradora das periferias das cidades paulistas, o que distancia o material da realidade sociocultural dos estudantes, criando obstáculos aos objetivos do próprio material que seria possibilitar a sensibilidade sociológica nos estudantes do ensino médio. A título de exemplificação, colocamos a Figura 1 com a situação de aprendizagem de número 6, do caderno de Sociologia do 1º ano do ensino médio.
Ao analisar a situação de aprendizagem acima, observamos que a abordagem do conceito de identidade é trabalhada de forma processual, o que coaduna com uma abordagem clássica e multidimensional de que “[...] a identidade resulta de uma construção social, ela faz parte da complexidade social” (Cuche, 2002, p. 192) e que nenhum indivíduo ou grupo é unidimensional, relacionando o conceito de identidade à cultura e a diversidade cultural. Tal abordagem conceitual nos parece bastante adequada ao ensino médio, dadas as características de diversidade da sociedade brasileira e da amplitude de possiblidades que a cultura juvenil possibilita. Contudo, ao propor que os estudantes utilizem cartolinas, canetas coloridas e outros materiais estranhos à escola, denota-se um certo desconhecimento da realidade estrutural de grande parte das escolas paulista, muitas delas carentes em pontos estruturais básicos. No que tange ao caráter didático, tal desconhecimento é patente ao relacionar a atividade a super-heróis da Marvel, sem conexão com a realidade cotidiana dos estudantes e alheio a própria realidade da sociedade brasileira.
Ainda referente a situação de aprendizagem, a ausência do chamado protagonismo juvenil e de uma reflexão mais aprofundada não se torna viável em seu desenvolvimento, visto que não se vislumbra uma participação ativa e efetiva dos estudantes durante a atividade. Assim, a “[...] análise crítica da atividade também não é estimulada, pois, os alunos poderiam desenvolver suas próprias questões para o painel a fim de diversificar o debate” (Souza, 2019, p. 116). Dessa forma, realizamos uma análise minuciosa do material do São Paulo faz Escola e observamos que a exemplificação da situação de aprendizagem descrita era a tônica de todo o material didático, com conteúdos distantes da realidade sociocultural dos estudantes. Dada a constatação, procuramos preparar uma sequência didática que levasse em conta uma aprendizagem efetiva e possibilitasse trazer o conteúdo sociológico do ensino médio mais próximo da realidade dos estudantes, realizando uma transposição didática.
Levar ao entendimento dos alunos o conteúdo sociológico não é das tarefas mais fáceis, dada a complexidade e subjetividade de alguns temas da disciplina. Mediante tais dificuldades, realizamos uma sequência didática sobre a função social da escola procurando entender qual o sentido e significado que a escola tem para esses estudantes. A sequência didática contou com a participação do professor de sociologia e de estudantes do Pibid6 (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência) e do núcleo de ensino da Unesp, nela desenvolvemos algumas etapas para avaliar o conhecimento prévio dos estudantes acerca do tema, desenvolvimento, discussão e rodas de conversa, filmes, texto e atividade final para avaliar o nível seja de aprendizado e de sentido que a escola tem para aqueles estudantes. A sequência foi desenvolvida com estudantes do 2º ano do ensino médio de uma escola da zona oeste de Marília, para realizá-la modificamos o ambiente da sala de aula, criando espaços com grupos e subgrupos que ocuparam a sala de aula de maneira questionadora e crítica, procurando dar voz aos estudantes e entender a relação deles com o ambiente escolar. Abaixo segue as etapas da sequência didática:
- Aplicamos um questionário para a turma do 2º ano do Ensino Médio para identificarmos o conhecimento prévio dos estudantes referente ao espaço da escola. O questionário continha 3 perguntas, das quais são: “Você acha que a escola terá importância para a sua futura profissão?”, “Onde você acha que adquire mais conhecimento?” e “Qual o tipo de aprendizado mais importante para a vida?”7. Além do questionário fechado, os estudantes poderiam escrever sobre o seu entendimento referente a função social da escola. Essa etapa é importante para balizar as sequências posteriores.
- Após os resultados dos questionários, organizamos uma roda de debate entre os alunos, o professor e os bolsistas do PIBID para discutir a importância da escola na construção social da vida dos estudantes e realizamos algumas aulas teóricas sobre a função social da escola utilizando conceitos sociológicos.
- Na sequência da atividade utilizamos um recurso audiovisual, um trecho do filme ‘Pro Dia Nascer Feliz’, do qual retrata a situação de diferentes escolas, entre pública e privadas que atendem a classes sociais distintas e problematizamos o tema da função social da escola para as diferentes classes sociais.
Realizamos em outra aula, a leitura de um excerto do artigo “A crise de sentidos e significados na escola: a contribuição do olhar sociológico” e após a leitura do texto abaixo foi formado uma roda de debate com os alunos para discutir sobre a função social da escola.
A escola burguesa representou um avanço na sociedade ao colocar como fundamental a transmissão de conhecimentos para todos os cidadãos, mas também criou um processo educativo que girava em torno do princípio da alienação e da formação para mão de obra trabalhadora, um modelo de escola destinado às atividades mais básicas do conhecimento - ler, escrever e contar -, destinando apenas para as elites uma escola de caráter mais geral, clássica e científica (Mendonça, 2011, p. 344-345).
- Após todo esse processo, aplicamos um segundo questionário para comparar se houve alguma uma mudança na opinião e aprendizado dos alunos após a aplicação da sequência didática. As perguntas foram as seguintes: “Qual a função social da escola atual?” e “Como você se insere enquanto sujeito neste modelo escolar?”. Além das respostas fechadas, os estudantes poderiam escrever sobre a função social da escola e emitir suas avaliações após aplicação das atividades. Abaixo colocamos a sequência das respostas nas Figuras 2 e 3 antes e após aplicação das atividades com os excertos da redação dos estudantes.
Resultados dos questionários antes da aplicação da sequência didática
Excertos dos questionários dos alunos:
Depende da circunstância, acredito que o aprendizado da escola não deve ser descartado, pois através dele temos acesso a muitas coisas, mas muitas coisas que nos são transmitidas não utilizamos, e o que realmente precisaríamos ter aprendido nos é revelado fora dela (I.C.S- 2º C).
Concerteza (sic) tem muito importância. Hoje a escola é praticamente tudo na vida de uma pessoa. Pelo fato de hoje quem tem estudo vai longe, e quem não tem simplesmente fica por baixo. Eu acho isso errado pelo fato de ocorrer que nem todos que não tem estudo, é porque não quis estudar. Tem casos de pessoas que não estudou porque preferiu começar a trabalhar, cedo, para não deixar a família passar fome. E nisso interfere muito em arrumar um emprego bom. Quem tem estudo hoje tem uma profissão melhor de quem não tem.
Resultados dos questionários e excertos após a aplicação da sequência didática
A função social da escola, a princípio, era de formar cidadãos capazes e com conhecimento. Porém, o que tem acontecido é cada vez mais alunos leigos e sem conhecimento deixando a escola, pois é exatamente isso o que os governos querem, pessoas sem formação para serem mais um empregado no mercado de trabalho.
Percebo que tudo o que achamos natural, na verdade, nos é imposto, a sociedade capitalista nos quer apenas para trabalhar e não para pensar, por isso a educação não tem o investimento necessário. E que não devemos aceitar o que nos é imposto, devemos nossas críticas.
Ao avaliarmos o segundo questionário, percebemos uma grande mudança nas respostas dos estudantes. Nas respostas do primeiro questionário, apesar da grande maioria dos estudantes entenderem que a escola é um lugar para adquirir conhecimento, a grande parte das respostas concentra-se sobre o caráter prático do aprendizado (entenda-se prático como algo ligado ao cotidiano) e ou não souberam responder, a escola como local de aquisição de conhecimento teve um índice de respostas inferior a 1/3, as questões abertas também corroboraram com essa visão.
Após a aplicação e desenvolvimento da atividade observa-se uma mudança não apenas nas respostas, mas no próprio comportamento crítico dos estudantes, na melhora da escrita e da leitura que realizaram em sala de aula. As respostas da questão sobre a função social da escola identificando no mercado de trabalho o maior número de respostas denota a preocupação desses estudantes, oriundos de filhos da classe trabalhadora, com as necessidades reais e imediatas de suas condições sociais. O papel de não pertencimento e insatisfação dentro do ambiente escolar é resultado da realidade escolar vivenciadas por eles, da relação ensino/aprendizagem e como a escola encara a juventude. As modificações ambientais na sala de aula, a construção do diálogo com os estudantes e principalmente dar voz a esses estudantes foram fatores preponderantes para alcançar envolvimento nas atividades e na discussão dos temas relacionados. Ao trazer a problemática para perto de sua realidade e ao percebem que são parte integrante do processo escolar, tal protagonismo modificou as relações tradicionais e possibilitou abrir novas janelas e perspectiva não apenas da escola, como também, da própria vivência em sociedade possibilitando a desnaturalização das relações sociais.
A cultura contra-escolar
O projeto foi desenvolvido em uma escola periférica da zona oeste da cidade de Marília, grande parte dos estudantes eram trabalhadores que dividiam seu tempo entre estudos e o trabalho. Buscando aporte teórico para entender essa realidade nos debruçamos no estudo etnográfico de Paul Willis, em Birmingham, na Inglaterra. Nessa obra Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução, Paul Willis demonstra um conjunto de preocupações relacionado ao conceito de ‘força de trabalho’ e a forma como ela é preparada na nossa sociedade para ser aplicada ao trabalho manual. A argumentação do autor baseia-se no fato de que as relações na sociedade capitalista não são passivas e que a ideologia capitalista perpassada pela classe dominante não é assimilada de modo esquemático. Contrariando as teses estruturalista muito voga nos anos 1970, Willis questiona o caráter meramente assimilativo da ideologia nas estruturas sociais que concebem o sujeito da classe operária como receptor da ideologia dominante, para o autor de Aprendendo a ser trabalhador tal processo não ocorre sem disputas e essas disputas estão localizadas na produção e reprodução das relações sociais nas próprias estruturas sociais, conduzindo à dinâmica permanente de conflito e uma análise dialética das relações capitalistas nas democracias liberais.
Na segunda parte de seu livro denominada de análise, o autor realiza de maneira mais precisa e conceitual a interpretação da etnografia descrita na parte primeira do livro. Para Willis, o significado intrínseco à racionalidade e à dinâmica dos processos culturais vividos pelos jovens de classe operária, sobretudo, as formas pelas quais esses processos culturais vivenciados por eles contribuem para a classe operária em geral e, de outro modo, segundo ele, que de forma imprevista os preparam para a manutenção e a reprodução da ordem social. Quando o autor destaca a importância da construção de uma identidade de classe, ele discute que esta questão não é verdadeiramente reproduzida, até que seja recriada no contexto daquilo que parece ser uma escolha pessoal e coletiva.
A força de trabalho é um importante elemento desse processo, pois ela é o principal modo de conexão ativa com o mundo: a forma par excellence de articulação entre o eu e o eu, através do mundo concreto. Uma vez que esse vínculo básico com o futuro tenha sido feito, tudo o mais pode passar por senso comum (Willis, 1991, p. 13).
Paul Willis sustenta sua hipótese de que uma certa ideia subjetiva da força de trabalho manual e uma decisão objetiva para aplicá-la ao trabalho manual são produzidas num lugar específico, na ‘Cultura contra-escolar operária’, segundo Maia, Fresche, Santos, e Gomes (2000) é nesse ambiente que os temas operários são mediados, até os indivíduos e grupos em seu próprio contexto determinado que os jovens de classe operária desenvolvem, de maneira criativa, transformam e, por fim, acabam reproduzindo aspectos da cultura mais ampla em sua própria práxis. O sociólogo britânico interpreta à luz dos conceitos da obra O poder simbólico e das desigualdades educacionais, do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1983)8, que entre esses jovens desenrolam-se relações de poder ideológico determinado pela estrutura social que eles estão inseridos, às vezes inconscientes e subliminares, sob a forma do poder simbólico outras vezes claramente identificadas, como o poder formal e impessoal.
Em ambas as abordagens, aliás, a aula se expressa por meio da experiência escolar. Em Willis, a contracultura da juventude operária consiste em uma prática coletiva que produz experiências e significados penetrados por suas condições estruturais; em Bourdieu e Passeron, a experiência escolar dos universitários é marcada pelo habitus e pelo capital cultural que devem à condição de classe de seus lares de origem. Em outras palavras, a dimensão cultural da condição de classe é uma medida fundamental na reprodução das desigualdades educacionais, promovendo algumas e excluindo outras9. (Saraví, 2013, p. 86 - tradução nossa.).
Desse modo, Bourdieu irá destacar que as posições nos espaços sociais e a condição de classe estão diretamente entrelaçadas com as práticas e propriedades que constituem uma expressão sistemática das condições de existência e estilos de vida. Tais condições condicionam e exprimem comportamentos, gostos e escolhas que lhes conferem um habitus de estilos e gostos culturais que são legitimamente aceitos, criando a partir das estruturas sociais um estilo de vida que é socialmente aceito e demarca a distinção e a própria desigualdade entre as classes sociais que pode ser visualizadas no consumo, nas artes e no modus operandi.
Essa condição garante aos integrantes das classes abastadas determinadas condições de vivência e herança cultural capaz de distinguir aquilo que é socialmente legítimo em termos culturais, tal prerrogativa é negada as classes subalternas, pois as condições de produção, conhecimento e aptidão para identificar uma obra de arte, tocar um piano dependem de anos de estudos e condições socioeconômicas, que não está ao alcance das classes populares.
Segundo Magali de Castro (1998) Bourdieu aborda essa questão do poder a partir da noção de ‘campo’ considerando o campo do poder como um ‘campo de forças’ definido em sua estrutura, pelo estado de relação de forças entre formas de poder ou espécies de capital diferentes. É campo de lutas pelo poder, entre detentores de poderes diferentes; um espaço de jogo, onde agentes e instituições, tendo em comum o fato de possuírem uma quantidade de capital específico (econômico ou cultural especialmente) suficiente para ocupar posições dominantes no seio de seus respectivos campos, afrontam-se em estratégias destinadas a conservar ou a transformar essa relação de forças (Bourdieu, 1983, p. 375). Segundo ele, o poder exercido no Sistema de Ensino é o poder simbólico.
Para Bourdieu (1983), o campo é um universo complexo de relações objetivas de interdependência entre subcampos, ao mesmo tempo autônomos e unidos pela solidariedade orgânica de uma verdadeira divisão do trabalho de dominação, a um conjunto de agentes suscetíveis de serem submetidos a partições reais e unidos por interações ou ligações reais e diretamente observáveis. O campo é um universo que tem sua especificidade e sua dinâmica próprias. Na medida em que a sociedade avança, ela se diferencia em universos separados: os campos. Desse modo, para ele, este poder é quase mágico, na medida em que permite obter o equivalente ao que é obtido pela força, graças ao efeito específico de mobilização.
É no cerne dessa disputa de poder que a cultura contra-escolar de Paul Willis atua. A cultura contra-escolar enquanto poder simbólico é necessariamente um ato de enfrentamento e resistência à autoridade constituída, dissimula a correlação de força, pois carrega em si elementos próprios do “chão de fábrica” e só se exerce se for reconhecida no meio cultural vivenciados pelos jovens de classe operária, que ao contrário do que muitos educadores e os meios de comunicação em geral classificam como indisciplina, atitude de rebeldia e violência. A cultura contra-escolar é uma forma de identidade que se concentra na força de trabalho manual e nas relações materiais advindas do trabalho que se contrapõe a “[...] ideologia dominante convencional -particularmente tal como mediada pela escola -são trituradas, invertidas ou simplesmente derrotadas pela cultura contra-escolar” (Willis, 1991, p. 194).
Evidente que o pensamento de Willis não é ingênuo e não se trata de glorificar a cultura operária do trabalho manual como fonte de resistência à ideologia dominante no interior da escola, visto que entendemos como fundamental a apropriação da cultura letrada e dos saberes historicamente acumulados ao conjunto da classe operária. Porém, o autor também destaca as limitações como também as penetrações da ideologia dominante na cultura operária, o individualismo, a ausência de organização política capaz de organizar culturalmente a juventude e mediação das relações sociais são exemplos desse processo de limitação. Assim, o estudo realizado por Paul Willis nos permitiu concluir que o poder simbólico é vivenciado no dia-a-dia das escolas e a cultura contra-escolar praticada pelos estudantes, possui como característica principal a disputa pelo poder de autenticidade em oposição às autoridades escolares, que enquanto grupo também se opõe à disposição formal que a escola oferece. Por fim, a oposição presente na cultura operária está na direção do informal, expressando-se, de maneira peculiar, precisamente para além do alcance da norma e da regra.
Considerações finais
Fruto do trabalho que desenvolvemos com o grupo PIBID e o núcleo de ensino da Unesp, tendo como referencial teórico a obra Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução de Paul Willis, buscamos através da análise sociológica, da observação participante e do diálogo constante com os estudantes através das atividades realizadas para compreender o desinteresse e a negação que ocorre por parte dos estudantes da formação escolar, inscrita naquilo que Willis denomina de uma prática da cultura contra-escolar. Observamos que a cultura contra-escolar manifestada pelos estudantes tem como componente de negação a resistência, é manifestada de diversas maneiras como o descaso frente ao professor ignorando-o e demonstrando ter autonomia na busca de informação em seus aparelhos telefônicos, informações estas que muitas vezes não estavam relacionadas ao conteúdo ministrado, mas que lhes interessava momentaneamente, tal situação implicava em desatenção, descomprometimento intelectual, inviabilizando a reflexão, o diálogo e a participação nas atividades. Procuramos entender e ir a fundo na compreensão dessa resistência e conseguimos observar que muito dela refere-se em parte do distanciamento dos conteúdos ministrados da realidade sociocultural desses estudantes, da falta de envolvimento de muito deles nas atividades e da ausência do próprio protagonismo juvenil. Muitos desses estudantes são trabalhadores e vivem em um horizonte cultural distante dos conteúdos escolares, para eles, esses conteúdos soam como abstratos e subjetivos, sem conexão com sua vida cotidiana, de preocupação com a situação material e as possibilidades pragmáticas que a escola pode-lhes oferecer, algo constatada nos questionários aplicados, nas discussões em grupo e nas atividades propostas.
Como foi mencionado no decorrer desse artigo, para entendermos melhor a situação recorremos as teses de Pierre Bourdieu e Paul Willis, que possuem afinidades temáticas e contribuíram de modo decisivo para refletir sobre o espaço da sala de aula, o currículo e as práticas escolares. Paul Willis através da etnografia interpreta os dados colhidos à luz dos conceitos de Bourdieu, a propensão de estudantes da classe operária em reforçar sua condição de origem através da cultura contra-escolar, de modo a negarem a transmissão do ‘saber formal’ que a escola lhes oferece, resulta, em certa medida, na manutenção da ordem social dominante.
Na contramão de um currículo consistente capaz de formar o jovem estudante, levá-lo ao processo de desnaturalização da realidade social, o material didático do governo paulista São Paulo faz escola faz o caminho inverso e pode ser considerado um material explicitamente distante da realidade sociocultural dos estudantes. O material trata de conceitos de maneira pouco aprofundada, as situações de aprendizagem não conseguem realizar a transposição didática, com exemplos descolados da realidade dos estudantes, pouco elucidados e estereotipados, como é o caso da situação de aprendizagem para discutir o conceito de identidade a partir de super-heróis do universo Marvel. Essa crítica não se resume ao material didático do Estado de São Paulo, no que concerne aproximar conceitos da realidade sociocultural dos estudantes, o próprio livro didático não cumpriria tal papel, visto as diferenças regionais e locais do nosso país. Assim, toda uniformidade de situações de aprendizagem seria nociva a essa transposição didática, o que não implica negar a necessidade de um currículo nacional, mas sim, de reivindicar e lutar por condições adequadas de trabalho e formação para que cada professor pudesse produzir seu próprio material didático e inserir situações de aprendizagem próximas de suas realidades, o que nas condições de trabalho e precarização da profissão docente me parece um futuro um pouco distante.
Por fim, embora Paul Willis saliente que a cultura contra-escolar produzida pelos estudantes é uma resposta consciente e autônoma à imposição da escola, por outro lado, ela não tem um conteúdo transformador, pois não tem uma amplitude enquanto movimento político geral de transformação da escola e da sociedade. Contudo, apesar de utilizarmos e concordamos com as teses de Willis, observamos que a escola e o ensino de sociologia têm uma capacidade crítica e questionadora quando possibilita aos estudantes refletir o seu entorno e realizar as devidas conexões com a realidade macrossociológica. Não estamos advogando o caráter transformador de uma única disciplina frente a uma estrutura mais ampla da sociedade, mas pela experiência que tivemos é possível adaptar os conhecimentos sociológicos à realidade sociocultural dos estudantes produzindo um olhar crítico, à sua realidade e ao seu entorno, tal criticidade é observar os fenômenos sociais com determinado estranhamento e isso é possível com os saberes científicos e os instrumentos que a sociologia lhes fornece no interior de uma escola que deve ser mais aberta, democrática, ampla e inclusiva aos jovens brasileiros.