INTRODUÇÃO1
A cidade de São Paulo que se despede da Monarquia e adentra à República, experimentando um acelerado crescimento econômico e urbano, viu surgir inúmeros espaços e instituições dedicados ao livro e à leitura (DEAECTO, 2011). Entre sociedades e gabinetes literários, livrarias, instituições de ensino, tipografias e jornais que se multiplicavam, estavam as bibliotecas de iniciativas privadas ou dos poderes públicos, acessíveis a grupos restritos ou a qualquer pessoa letrada. A província, que despontava como a economia mais dinâmica do país, firmando-se internacionalmente como o principal exportador brasileiro de café, experimentava um acelerado crescimento populacional, que se fazia acompanhar da ampliação da escolarização (BONTEMPI Jr., 2004). Nesse movimento, emergiam possibilidades de maior circulação e consumo de impressos, decorrentes do desenvolvimento da produção local e acompanhadas do significativo aumento de livros estrangeiros circulantes, vindos da Europa - destacadamente, da França, maior exportadora de livros para a América (DEAECTO, 2011; 2008) - e dos Estados Unidos.
Na Europa, ocorria uma profunda reorganização jurídica do comércio de livros, paralelamente a um movimento pelo reconhecimento internacional da propriedade de obras literárias e artísticas, que vinha resultando na multiplicação dos acordos bilaterais entre editores e livrarias para o comércio internacional de publicações. Examinando o comércio francês de livros, Barbier (1981) indica que o envio de catálogos de coleções às livrarias estrangeiras possibilitou o aumento do volume de trocas, uma vez que os títulos passaram a ser incluídos nas listas de livreiros correspondentes, em diversos países e regiões. Ademais, com o aprimoramento dos meios de comunicação e transporte, antigos obstáculos à comercialização, divulgação, pedidos, entregas e pagamentos puderam ser contornados, o que levou à consolidação do mercado internacional de livros e periódicos.
Esse comércio se estendia para além da Europa. Entretanto, segundo Deaecto (2008, p. 88), “nos países periféricos, temos uma situação de concorrência desigual com o produto europeu, que se expressa no aumento da importação de livros estrangeiros”, principalmente franceses. Havia, em países como o Brasil, um interesse pelo consumo de obras francesas, já que, desde os Setecentos, a França era considerada “uma espécie de metrópole cultural”, que espargia as Luzes e o modelo europeu de civilização para as elites letradas ocidentais (MOREL, 2005, p. 29).
Com os impressos cada vez mais presentes no cotidiano paulista, diversas instituições somaram acervos bibliográficos à sua infraestrutura, como ocorreu com a Escola Normal de São Paulo. Este artigo investiga a constituição de sua biblioteca, identificando e analisando processos de composição do acervo, instalação, funcionamento, bem como os significados que esse espaço e suas práticas vão assumindo para a escola e para a própria educação paulista. Analisa-se um conjunto variado de fontes de diferentes naturezas, dentre documentos oficiais, como regulamentos, ofícios e relatórios, e não oficiais, como cartas, notícias de jornais, recibos de compra de livros, textos de memorialistas etc. Do ponto de vista metodológico, busca-se desenvolver uma narrativa historiográfica alicerçada na perspectiva transnacional, privilegiando fenômenos de trocas, circulação, transferências de sujeitos, objetos, materiais, saberes e práticas; observando enredamentos, conexões, apropriações. Essa perspectiva é particularmente profícua para investigar a história da educação e da escola, que envolve processos de alto grau de internacionalização, indicando nuances e matizes que poderiam ficar subsumidos ou incompreendidos em análises com recortes espaciais tradicionais ou delimitados, como Estados, nações, impérios ou regiões (SOBE, 2013; STRUCK et al., 2011).
As bibliotecas oitocentistas, em alguma medida, encarnavam o sonho de reunirem-se os saberes acumulados, a valorização do conhecimento erudito (ou da cultura erudita) que atravessa a história da civilização ocidental (CHARTIER, 1999). Proclamadas como instituições que concorreriam para o progresso das artes e das ciências, essas instituições, por sua relação com o livro e a leitura, tomaram parte na missão civilizadora ocidental, sustentadas na premissa de que era preciso esclarecer a população para fazer avançar a sociedade (DEAECTO, 2011).
Embora muitas vezes reivindicassem a herança de um passado longínquo, de Alexandria ou Pergamum, os projetos das bibliotecas oitocentistas indicam particularidades e reverberam sentidos que na Europa, desde os séculos XVII e XVIII, vinham sendo atribuídos à palavra biblioteca. Além de denotar um espaço que reunia livros, o termo biblioteca poderia se referir ao livro inventário dos títulos reunidos em lugar específico, um catálogo, segundo Chartier (1999) observa na definição de Furetière, publicada em 1690 - uma espécie de biblioteca das bibliotecas, uma biblioteca sem paredes, cujo critério seria o recenseamento de autores e obras, conectados a um quadro nacional. No mesmo período, vê-se surgir uma terceira acepção da palavra, que passou a se referir a um gênero impresso, às coleções, às compilações de obras de mesma natureza ou de mesmos autores, que reuniam tudo o que se podia dizer sobre determinado tema.
Encarnando a tensão entre o exaustivo e o essencial, os sentidos atribuídos à biblioteca, como espaço, catálogo ou gênero impresso atrelavam-se ao reconhecimento da impossibilidade de acumular todos os livros já escritos, ou todos os que fossem relativos a um domínio particular. Afinal, com a multiplicação dos impressos, “uma biblioteca universal (ao menos na ordem do saber) só poderia ser imaterial” (CHARTIER, 1999, p. 87). Assim, além de classificar, o ato de selecionar entre títulos imprescindíveis e negligenciáveis, obras acessíveis e desejadas passou a ser uma operação inerente à organização de acervos bibliográficos que, ao longo do século XIX, em meio a projetos de ampliação do público leitor, estiveram sob a mira de autoridades públicas preocupadas com os rumos das transformações sociais, na Europa e nas Américas (BARBIER, 2018).
POR MAIS LEITURA, LIVROS E BIBLIOTECAS
Em 1870, o ministro do Negócios do Império do Brasil, Paulino de Souza, destacava a importância de se instalarem bibliotecas, “complementares do ensino público, em todas as partes do território, abertas “todas as horas do dia e ainda algumas horas da noite, oferecendo alimento ao espírito e despertando o amor pela leitura em todas as classes da sociedade”. Reconhecia, com os olhos postos nas sociedades que considerava mais avançadas e civilizadas, que a realidade brasileira se encontrava distante desse ideal, pois as bibliotecas existentes, além de “raras e mesquinhas”, eram compostas, em sua maior parte, por títulos “de extrema aridez”, que não incitavam à curiosidade do público, ainda que pudessem ser de interesse científico. Segundo Paulino, era preciso espalhar acervos que, “convidando à leitura pela amenidade da forma, estivessem ao alcance da inteligência comum das classes não letradas” (DIÁRIO DE S. PAULO, 2 de julho de 1870, p. 2). Uma boa biblioteca, para o ministro, deveria ser uma instituição educadora, capaz de instigar o “gosto pela leitura” e o “desejo de saber”.
Vinte anos mais tarde, um artigo publicado pelo Correio Paulistano retomava a ideia de que a boa leitura, vista como uma ocupação útil e prazerosa, deveria estar ao alcance das classes populares. Lamentava-se, na ocasião, a falta de uma biblioteca popular na província, “com livros úteis, modernos, adaptados ao uso e às necessidades do público, enciclopédias, revistas de ciência, letras e artes, coleções de ilustrações e dos principais jornais do país e do estrangeiro”, que pudessem ser “retirados e lidos em casa, mediante assinatura e módica contribuição mensal, à semelhança das bibliotecas populares da Europa” (CORREIO PAULISTANO, 13 de fevereiro de 1890, p.1). As demandas por bibliotecas em São Paulo eram frequentemente associadas à sua inexistência e, portanto, a uma percepção de pobreza cultural que afastava a província das nações consideradas civilizadas.
Ao lado da difusão de bibliotecas-espaço, havia também movimentos de especialização. Nas páginas do jornal Imprensa Academica, publicado pelos estudantes do Curso de Direito de São Paulo, retomava-se o historiador grego Diodoro Sículo, exaltando a biblioteca como “tesouro dos remédios da alma”, o caminho para extirpar a mais perigosa doença que poderia atacar um povo livre: a ignorância. Como no discurso de Paulino de Souza, a função maior das bibliotecas assemelhava-se à que vinha sendo atribuída às instituições escolares, nesse final de século, em diferentes países ocidentais2. Na ocasião, o jornal fazia críticas à coleção de obras jurídicas da biblioteca da Faculdade de Direito, que considerava “deficiente, estacionária e retrógrada”, e destacava duas condições fundamentais para que uma biblioteca realizasse sua função: reunir o que houvesse de mais variado e recente sobre a universalidade dos conhecimentos humanos ou sobre um ramo específico da ciência, e manter um horário de funcionamento extenso e adequado a seu público (IMPRENSA ACADEMICA, 29 de agosto de 1871, p. 1).
Variado e recente, assim como geral, útil e universal eram adjetivos atribuídos às bibliotecas, que nos discursos se firmavam como símbolo da cultura letrada e, segundo Denipoti (2007, p. 603), da “naturalização de matrizes civilizatórias arbitrárias” que contribuíam para construir e legitimar papéis sociais, intrinsecamente ligados, no Brasil, à suposta superioridade de uma elite branca e letrada e sua prerrogativa para a definição dos destinos sociais (SCHWARCZ, 1993). As bibliotecas, assim como os museus, os teatros e, sobretudo, as escolas, passaram a compor projetos instrutivos e civilizadores, encabeçados por elites nacionais e regionais, destinados a diferentes públicos, como juristas, médicos, engenheiros, normalistas e, progressivamente, a novos leitores, como mulheres, crianças e trabalhadores assalariados - embora o analfabetismo ainda superasse a taxa de 80% da população brasileira (CARVALHO, 2008). A biblioteca-espaço deveria se configurar, portanto, em consonância com o público a que seria destinada.
Juntamente com esses ideais grandiosos e supostamente universais, ligados à difusão da educação e de projetos civilizadores, a criação das bibliotecas apoiava-se em questões de ordem prática, tais como Disponibilizar a estudantes obras que atendessem à sua formação ou a fomentar o que se considerava ser um emprego sadio e decente do tempo livre. As noções de decência, comportamento decente e de decoro, conforme Denipoti (2007, p. 606), estiveram no cerne do comportamento esperado no interior dessas instituições, que, por meio de regulamentos, estabeleciam “delimitações claras a respeito de quem teria acesso aos livros e como deveria ser o comportamento das pessoas”. Nesse aspecto, entre as classificações e seleções, figuravam também operações de censura e interdição. Do ponto de vista dos frequentadores, as interdições poderiam vir da impossibilidade de pagarem as taxas de subscrição ou de estarem convenientemente vestidos. Do ponto de vista do acervo, pairava, conforme Deaecto (2011, p. 230), o receio da “dispersão de um repertório de leitura que não zelasse pela ordem social”. A preocupação com o teor das leituras e seus supostos efeitos sociais dividia-se entre a missão civilizadora e progressista das bibliotecas e demais espaços de leitura e o temor do que seria oferecido aos diversos grupos sociais como leitura adequada.
Não obstante, as bibliotecas-espaço se multiplicaram pela província: da Faculdade de Direito ao Congresso Legislativo Estadual, da Sociedade Propagadora da Instrução Pública a associações comerciais; na capital paulista, em Santos, Itu, Queluz, Rio Novo (Avaré) e outras localidades. A imprensa cotidiana noticiava inaugurações, ampliações, importações de livros, fazendo ressoar a importância que se atribuía a essas instituições e sua intrínseca relação, como aponta Barbier (2018), com o saber e o poder.
AS BIBLIOTECAS ESCOLARES E A PEDAGOGIA MODERNA
Nessas décadas finais do século XIX, como parte das ações de ampliação da oferta e melhoria do ensino em São Paulo, foram se constituindo um lugar e um significado para as bibliotecas nas instituições escolares, até que, no começo do século XX, a presença de um acervo bibliográfico se tornasse pré-requisito, condição ou atestado de boa qualidade para qualquer estabelecimento de ensino. Esse movimento, que se pode notar por notícias e anúncios em jornais, entre 1870 e 1900, acompanha a circulação do modelo escolar moderno nos países de tradição ocidental.
Anúncios publicitários do Instituto D. Brasilia Buarque expressam essa questão. No começo dos anos de 1890, o Instituto reunia uma secção feminina, o Colégio Andrade, e uma masculina, a Escola Neutralidade, dirigidos respectivamente por Brasilia Marcondes Buarque e seu esposo, Cyridião Buarque, que no mesmo ano passou a lecionar na Escola Normal de São Paulo (MONARCHA, 1999). Destacava-se que o Instituto oferecia “educação integral”, “física, estética, intelectual e moral” e ensino graduado, organizado em círculos concêntricos, partindo da educação dos sentidos e passando pelas lições de coisas para, no secundário, tratar da instituição de teorias. Também se destacava sua “organização escolar moderna”: com “gabinete de física e química, museus, aparelhos, instrumentos e mapas instrutivos” (CORREIO PAULISTANO, 17 de janeiro de 1892). Em um anúncio de mais de meia página, em O Estado de S. Paulo, entre os materiais escolares listados afirmava-se que o Instituto possuía uma “biblioteca escolar contendo 400 volumes de leitura instrutiva e recreativa para crianças, constantemente enriquecida”, e uma
biblioteca pedagógica contendo 1200 volumes, uma seção de manuscritos que possui traduções e compilações de utilidade para professores, e com a assinatura das seguintes revistas: Revue Pedagogique; Revue Internationale; Bulletin universitaire de l’enseignement; L’ami de l’enfance; l’instruction primaire; the school journal; Revista Pedagógica (do museu pedagógico da capital federal) (O ESTADO DE S. PAULO, 1 de julho de 1893, p. 3).
Tais elementos remetem às concepções pedagógicas que então se consideravam modernas e racionais e que eram difundidas entre educadores e políticos de São Paulo naquele final de século (SOUZA, 1998). Na medida em que essa forma escolar (VINCENT, LAHIRE, THIN, 1994) se consolidava, os livros e as bibliotecas, como espaços de organização, Disponibilização e acesso aos impressos e a práticas de leitura, tornavam-se parte da cultura escolar e do repertório discursivo e de ação dos homens e mulheres encarregados da organização do ensino, em suas múltiplas instâncias.
Esse movimento é amplo, diverso e envolve vários espaços territoriais, no contexto de internacionalização dos sistemas escolares modernos. Fontaine e Matasci (2015, p.2), ao investigarem o desenvolvimento dos museus pedagógicos na Europa, identificam “um vasto sistema de intercâmbios, transferências culturais e circulações transnacionais” entre países e regiões durante a segunda metade do século XIX. Era evidente a necessidade e a vontade de aprender e se apropriar das experiências estrangeiras, como indica o comentário do inspetor de instrução pública francês, Guillaume Jost, no final dos anos de 1860, após voltar de uma viagem à Alemanha:
por mais diferente que seja a situação onde se encontram localizadas as escolas deste e do outro lado do Reno, nós desejamos conhecer a fundo a organização pedagógica na Alemanha, a fim de por à prova todas as coisas e, se possível, reter aquilo que é bom (apud, Matasci, 2016, p. 144. Tradução livre).
Conforme Hébrard (2004, p. 17), questões relacionadas à organização dos acervos bibliográficos em escolas francesas emergem entre as autoridades públicas em meados do século XIX, quando o ministro da Instrução Pública, Gustave Rouland, determinou a instalação, em cada escola primária, “de uma biblioteca-armário, destinada à conservação dos livros, dos cadernos e dos quadros impressos”. Cerca de dois anos depois, em 1862, a biblioteca-armário seria transformada em “biblioteca escolar”, experimentando um desenvolvimento contínuo que conjugava a “dupla finalidade de serem bibliotecas de sala de aula e bibliotecas de empréstimos destinadas aos familiares dos alunos” (HÉBRARD, 2004, p. 32). Essa dupla função se manteve até que, com a escolarização primária amplamente difundida, as bibliotecas escolares se consagrassem à cultura escrita dos alunos e seus acervos se tornassem objeto de um debate pedagógico acerca das leituras mais convenientes à juventude.
No início da Terceira República (1870-1940), em meio às políticas de reorganização da instrução pública francesa, foram empreendidas ações concernentes às bibliotecas em diversos tipos de instituições de ensino. Conforme Jules Ferry, ministro da Instrução Pública, “pode-se fazer tudo pela escola, pelo liceu ou pela universidade; se depois faltar a biblioteca, nada se terá feito” (apudCHARTIER; HÉBRARD, 1995, p. 111). Estava oficialmente prescrita a interseção entre os livros, as bibliotecas e as escolas, compondo um esforço de difusão da leitura, sob a tutela crescente do Estado.
Conectando experiências estrangeiras às particularidades francesas e à meta de ampliar a “educação popular”, laica, pública e gratuita, Ferry encabeçou um movimento significativo de identificação, reunião e Disponibilização de materiais escolares, franceses e estrangeiros. Em ocasião da Exposição Universal de Paris, em 1878, reuniu um conjunto diverso de objetos e livros estrangeiros, que pretendia Disponibilizar aos “amigos da educação popular”, por meio de um museu pedagógico. Pouco depois, foram criados o Museu Pedagógico e a Biblioteca Central de Ensino Primário da França, com o objetivo de reunir “publicações oficiais, planos de casas escolares, materiais de sala de aula, livros didáticos, coleções educacionais que têm atraído grande atenção na França e no exterior” (FERRY, 1879, p. 65. Tradução livre.). Segundo o ministro, Inglaterra, Canadá, Estados Unidos, Rússia, Suíça, Áustria, Hungria e Itália já haviam se beneficiado com instituições congêneres.
Em 1889, Artidor Beurier, diretor do Museu Pedagógico de Paris, observava a criação, na Europa, de vários estabelecimentos, denominados exposições escolares, bibliotecas escolares, museus pedagógicos, “de desigual importância”, mas respondendo todos à necessidade de oferecer aos professores
coleções de livros, instrumentos científicos, móveis e material escolar adequados para promover estudos de pedagogia comparada, para dar a conhecer e aplicar os melhores métodos, e para melhorar a instalação de escolas e classes (apudMatasci, 2015, s.p. Tradução livre.).
A preocupação em difundir a escolarização impulsionou também a organização de conferências e bibliotecas pedagógicas. Segundo a edição de 1911 do Dictionnaire de pédagogie et d'instruction primaire, organizado por Ferdinand Buisson, as bibliotecas pedagógicas surgiram na França como anexas às conferências, na década de 1830. “Fundadas e mantidas por professores e professoras que desejavam suprir a insuficiência das bibliotecas escolares”, eram quase sempre instaladas nas principais localidades do cantão, onde as conferências se reuniam3. No final dos anos de 1870, uma comissão foi encarregada de propor uma lista das obras que mereciam compor as bibliotecas pedagógicas, a fim de “esclarecer mestres pouco versados na ciência pedagógica sobre as obras que preferencialmente deveriam ler” (MUSÉE PÉDAGOGIQUE, 1888, p. 5. Tradução livre).
Em seguida, foi publicado um catálogo dividido em três seções. Na primeira, estariam os “livros de doutrina, em que a ciência pedagógica é considerada em princípios essenciais”, dentre os quais estariam as obras de Fénelon, Rollin, Rousseau, P. Girard etc. Na segunda, “os livros de direcionamentos práticos, nos quais a educação é considerada mais em seus detalhes do que em suas generalidades”, onde os mestres poderiam encontrar “conselhos de aplicação imediata” para o ensino, a condução da classe ou direcionamento dos alunos, por exemplo, as obras de Mme. Pape-Carpantier e do casal Charles e Fanny Delon. No terceiro grupo, os “livros de informações, de documentos históricos ou legislativos”, dentre os quais estavam as obras de Célestin Hippeau (MUSÉE PÉDAGOGIQUE, 1888, p. 10). Em 1888, um novo catálogo foi publicado, com o acréscimo de uma seção destinada às publicações do Museu Pedagógico, dentre as quais a Revue Pédagogique4. O discurso de que os professores teriam liberdade para escolher suas leituras, de que nada os obrigaria a se restringir às sugestões do catálogo, revelava também a suspeita com relação à sua capacidade de discernir a boa e a má leitura, ou de identificar a mais adequada e pertinente para si e para seus alunos e alunas. Antecedem essas publicações “notas preliminares”, indicando que não se pretendia censurar autores e obras, tampouco limitar as escolhas, mas oferecer um serviço a “todos os interessados na educação popular, chamando sua atenção para as obras mais adequadas ao desenvolvimento de suas atitudes pedagógicas e senso crítico” (MUSÉE PÉDAGOGIQUE, 1888, p. 7. Tradução livre)5.
Para além dessa iniciativa, o intuito de Disponibilizar materiais de estudo alcançava as escolas normais, incluídas e ampliadas no movimento de reorganização e difusão da educação primária. Considerando que não haveria educação pública sem escolas normais, buscou-se garantir por lei que em todos os departamentos da França fossem criadas uma escola normal primária para garotos e uma para garotas6. Nesse contexto, os programas, as disciplinas e os métodos passaram por reformulações. Quanto aos materiais, segundo Jules Ferry, sua administração cuidaria da distribuição de “instrumentos, aparelhos e coleções necessários ao ensino das ciências físicas e naturais” e ao ensino de desenho, além de promover a renovação do material geográfico. Os acervos bibliográficos dessas escolas foram examinados e reorganizados, com a publicação, em 1882, de uma circular “relativa às bibliotecas das escolas normais”. Para se certificar de que todas as escolas teriam as obras consideradas de “primeira necessidade”, suprindo em “breve tempo” as lacunas existentes, o Ministério da Instrução Pública demandou a cada diretor de escola normal o envio de “um catálogo completo e detalhado das obras da biblioteca do estabelecimento”, conforme a seguinte divisão:
Obras gerais, livros de referência, dicionários, revistas, etc.;
Pedagogia
Filosofia e moral;
Literatura, história e crítica literária;
História e biografia;
Geografia e viagens;
Economia política, legislação e instrução cívica;
Ciências matemáticas;
Ciências físicas;
Ciências naturais e higiene;
Agricultura;
Belas artes e artes industriais (FERRY, 1882, p. 187. Tradução livre).
A mesma circular esclarecia que os livros das escolas normais dividiam-se em três categorias: os “livros de fundo, dicionários, periódicos, obras gerais e tratados especiais de valor reconhecido”, que constituiriam a “biblioteca da escola normal, propriamente dita”; “os manuais e livros didáticos, livros de uso cotidiano, dos quais cada aluno-mestre deve possuir um exemplar”; e os livros escolares, “livros de uso na escola primária elementar, métodos de escrita, de leitura, pequenos livros de gramática, de aritmética, de geografia, de história etc.”, que comporiam a “biblioteca da escola anexa”, onde os alunos-mestres poderiam observar os defeitos, as qualidades e comparar seus “futuros instrumentos de trabalho” (FERRY, 1882, p. 185. Tradução livre.).
Em 1887, o inspetor geral de instrução pública, P. Hilaire, afirmava que as bibliotecas das escolas normais eram muito diversas, havendo entre si uma grande disparidade na escolha e classificação das obras, deficiência que pretendiam contornar com a publicação do Catalogue des Bibliothèques des Écoles Normales, indicando as obras destinadas a “formar o fundo comum das bibliotecas das escolas normais”. Nesse catálogo, informa o inspetor que seria possível encontrar obras de estudo e de distração, “que apresentassem a ciência sob um aspecto menos árido e menos técnico do que os manuais clássicos”, dicionários de línguas estrangeiras, além de publicações periódicas que colocariam os professores e estudantes informados tanto do movimento literário, quanto do progresso da ciência (MINISTÈRE, 1887, p. 2-3. Tradução livre.). Além das doze seções indicadas na circular de 1882, no catálogo de 1887 foram acrescentadas uma para canto e música e outra para o ensino de ginástica e exercícios militares.
Naquele contexto, em que se engendrava uma pedagogia científica firmada na sistematização de procedimentos, métodos, conhecimentos e valores, o interesse por iniciativas educacionais estrangeiras impulsionou a organização de missões pedagógicas, exposições, conferências e aquisição de obras e impressos pedagógicos, o que marcou tanto a constituição dos sistemas de ensino na Europa e América do Norte, quanto as distintas iniciativas educacionais espalhadas por territórios considerados periféricos, como a América Latina. Contemporaneamente às transformações na produção e comercialização dos impressos, a difusão da escolarização em massa, alicerçada nas concepções pedagógicas modernas e científicas, estimulava a produção de materiais para a escola, como os livros para alunos e professores, e sua organização em acervos bibliográficos.
A BIBLIOTECA DA ESCOLA NORMAL DE SÃO PAULO
No ano de 1874, iniciava-se a segunda experiência de instalação de uma escola normal em São Paulo7. Ecoava, nas terras de Piratininga, a ideia de uma formação normalizadora, produtora das regras de conduta, dos comportamentos e dos saberes adequados aos professores. “Postulava-se a formação profissional através do ensino enquadrado e institucionalizado: leitura de livros, estudos metódicos e exercícios práticos” (MONARCHA, 1999, p. 93). Os livros estavam no cerne dessa formação, como instâncias de produção e circulação de saberes, modelos e práticas pedagógicas. Na ocasião, o Regulamento da Escola Normal (1874) determinava a instalação de uma biblioteca para professores e alunos-mestres, composta “pelos melhores e mais recentes escritores das diversas matérias de ensino” (REGULAMENTO, 1874, p.1). Previa-se um espaço com mesas e assentos, funcionando por três horas diárias, sob a responsabilidade de um porteiro. Caberia aos professores a indicação das obras que deveriam ser incorporadas ao acervo da biblioteca8.
Logo no começo do ano letivo, o professor Paulo Antônio do Valle, que ocupava interinamente a primeira cadeira, cuidou da aquisição de obras para a Escola. Valle indicou a compra de 27 títulos, a maior parte constituída por obras para o estudo das línguas portuguesa e francesa, dentre as quais gramáticas, dicionários e seletas literárias (VALLE, 1975; PEREIRA, 2013). Há na lista apenas um livro de aritmética; os demais tratam da educação e da pedagogia. Nesse conjunto, destacam-se os manuais dos franceses Jean-Baptiste Daligault (1811-1894), Michel-Charbonneau (1817-1870) e do português José Maria Graça Affreixo (1842-1919), além de três títulos de Louis-Aimé Martin (1786-1847), entre os quais Educação para mães de família.
Silva (2018) e Carvalho (2007) indicam que a produção de manuais pedagógicos possui relação intrínseca com a difusão da escola de massa e com a constituição da cultura profissional docente, que nas escolas normais foram institucionalizadas e divulgadas. Os manuais de pedagogia materializam discursos pedagógicos que “organizam e constituem o campo dos saberes pedagógicos representados como necessários à prática docente” (CARVALHO, 2006, p. 1). A aquisição desse gênero de livros acompanhava as primeiras discussões sobre métodos e processos de ensino no âmbito da Escola Normal de São Paulo e indiciam a circulação dos saberes pedagógicos que colocavam São Paulo na rota da moderna pedagogia do século XIX. O manual de Daligault, Curso de Pedagogia, publicado originalmente em Paris, no ano de 1851, por exemplo, foi utilizado pelo professor Paulo do Valle em suas aulas, conforme indicam as referências ao autor e os trechos mencionados nos exames dos normalistas, em 1875 e 1876 (PEREZ, 2012)9. Embora não aparecesse nos catálogos franceses de bibliotecas pedagógicas (1880; 1888) e nos de bibliotecas das escolas normais (1887), o livro de Daligault era reiteradamente recomendado para a formação de professores no Brasil (BASTOS, 2011; TREVISAN, 2011; ARAÚJO, 2018).
Em fevereiro de 1875, Paulo do Valle solicitava o pagamento de 312$000, referentes aos livros comprados para a Escola Normal, conforme a publicação de “Actos Officiais” (A PROVÍNCIA DE S. PAULO, 5 de março de 1875, p. 1). Considerando que o preço de uma Gramática, conforme o catálogo de 1872 da Livraria Garraux, variava entre 2$000 a 3$000, é possível estimar que o professor tenha comprado algumas dezenas livros para o acervo e que alguns exemplares poderiam ser destinados ao uso cotidiano de estudantes, em total de 33 matriculados.
Ainda que tenha havido outras iniciativas de compras de livros, uma biblioteca-espaço, tal como estabelecia o Regulamento de 1874, não chegou a ser criada na Escola Normal, que fora “provisoriamente” instalada nas dependências da Faculdade de Direito e, posteriormente, no pavimento térreo do Tesouro Municipal - e a seção feminina, criada em 1876, instalada no prédio do Seminário da Glória. Funcionando de forma precária, sem receber dotação explícita na lei orçamentária provincial, a instituição destinada a formar professores não contava com prédio próprio, sofria com instalações improvisadas e, certamente, não teve condições de constituir um acervo bibliográfico e um espaço apropriado para sua organização e consulta. Conforme Monarcha (1999, p. 101), “embora a época aspirasse civilização, embelezamento e salubridade”, a existência da Escola esteve “mergulhada na sujeira e na indiferença”.
Foi na terceira instalação da Escola Normal de São Paulo, em 1880, que começou a ser concretizada a aspiração de uma biblioteca-espaço, com um acervo bibliográfico para professores, portanto, mais próxima da classificação que Jules Ferry demandara aos diretores das escolas normais francesas. Como na experiência anterior, o regulamento previa a instalação de uma biblioteca “composta de livros dos melhores escritores sobre as diversas matérias de ensino normal e dos livros de Ciências, História, Viagens, literatura, Artes e Ofícios”, indicando, pelos temas que comporiam o acervo, a ampliação dos conteúdos e cadeiras da Escola Normal nessa nova fase. O documento menciona, ainda, a contratação de um porteiro, que manteria a biblioteca aberta durante ao menos cinco horas por dia e organizaria a classificação dos livros. Determinava-se, ainda, que a biblioteca seria franqueada, não só aos professores e alunos, mas “a todas as pessoas em geral” (SÃO PAULO, 1880, p. 31-32).
As primeiras iniciativas de composição do acervo bibliográfico só aconteceriam, no entanto, no final do ano de 1882, quando Paulo Bourroul (1855-1842), professor da cadeira de Física, Química e Francês e diretor interino da Escola Normal, tendo solicitado ao presidente da província, Francisco Brandão, licença para realizar uma viagem à Europa, foi encarregado da “compra em Paris dos aparelhos necessários para o ensino dessa cadeira” e da “compra das melhores e mais modernas obras de pedagogia que convenha possuir a mesma Escola, começando-se assim a construir a sua biblioteca”. Francisco Brandão (1882, p.1) afirmava que, além de não possuir “uma biblioteca apropriada”, a Escola Normal não dispunha de livro algum de pedagogia.
A viagem de Paulo Bourroul, de acordo com Marta Carvalho (2007), teria sido uma das poucas e tímidas iniciativas destinadas a dotar São Paulo de uma instituição de formação de professores compatível com as transformações culturais advindas do progresso econômico da província. Nessa ocasião, o professor adquiriu pouco mais de cem títulos, que contemplavam as matérias de álgebra, geografia, história, física, química, botânica, zoologia, pedagogia e instrução pública, expressando uma variedade que ultrapassa o conteúdo das matérias de cada uma das cadeiras previstas para o curso - com exceção da cadeira de Gramática e Língua Nacional (PESTANA, 2011)10. A variedade expressa a expectativa de uma formação ampla, que abarcasse os mais diversos campos do conhecimento - como se observa no Catalogue des bibliothèques des écoles normales (1887). No entanto, a biblioteca da escola normal deveria ser eminentemente pedagógica, como indica o fato de mais de 50% dos títulos serem destinados à cadeira de Pedagogia e Metodologia - o que também estava expresso na demanda do Presidente de começar a construir a biblioteca com as “melhores e mais modernas obras de pedagogia” (BRANDÃO, 1882). Dos 47 autores desse conjunto, 27 aparecem no catálogo das bibliotecas das escolas normais francesas (1887) e 36, no catálogo de bibliotecas pedagógicas (1888). Certamente, Bourroul conhecia o debate pedagógico contemporâneo, impulsionado pela circulação dos manuais franceses no exterior, que se estruturava na compreensão da educação como ciência e que se voltava à profissionalização docente (BASTOS, 2011). Michel Bréal, Jules-Gabriel Compayré, Hippeau, Marie Pape-Carpantier, Paul Rousselot, Félix Narjoux foram alguns dos autores dos livros comprados por Bourroul, também prescritos nos catálogos franceses.
O acervo bibliográfico da Escola Normal foi ampliado, como revela o relatório de 1884, assinado por José Maria Corrêa de Sá e Benevides, que sucedeu a Paulo Bourroul na direção da instituição. Segundo o documento, a biblioteca possuía 413 obras, em 728 volumes, entre os quais 99 títulos destinados à quarta cadeira, de Pedagogia e Metodologia, Doutrina Cristã11. Nesse conjunto, havia somente dez títulos em português, entre os quais os títulos Pedagogia, de José Maria da Graça Affreixo, e Compêndio de Pedagogia, de Silva Pontes - este último, aprovado na Congregação da Escola Normal para o ensino de pedagogia (TREVISAN, 2011)12. Sá e Benevides também menciona o fato de ter solicitado que os livros comprados durante a segunda criação da Escola (1874-1878) fossem incorporados à biblioteca. Novas aquisições aconteceram ao longo das décadas de 1880 e 1900. Em 1885, Sá e Benevides solicitou autorização para uma nova compra, e mais de 140 livros foram adquiridos na Casa Garraux. O relatório do Presidente da Província, no ano seguinte, já aponta a existência de 505 obras no acervo, em 1.015 volumes. No início da década de 1890, o acervo se aproximava de mil títulos, e o número de obras em francês e português era quase equivalente (DEAECTO, 2011).
Enquanto o acervo bibliográfico crescia com relativo sucesso, tendo em vista a aquisição de obras consideradas de referência para a pedagogia e o ensino, uma biblioteca-espaço começava a ser organizada, contornando obstáculos administrativos e financeiros. A Escola Normal funcionava, desde 1881, em um antigo sobrado, cujos cômodos haviam sido adaptados ao ensino. Nesse edifício, considerado “velho”, “carecedor de obras de limpeza e até de segurança”, um lugar foi destinado à guarda e Disponibilização de livros. O relatório do Presidente da Província, de 1886, menciona que a biblioteca da Escola Normal funcionava “somente durante o tempo das aulas, segundo determina o regulamento”, e, por isso, a frequência dos alunos-mestres era “diminuta” - opinião compartilhada pelo diretor da Escola (OLIVEIRA, 1886). Segundo notícias do Correio Paulistano, Pedro II, em visita à Escola, naquele mesmo ano, teria se manifestado “pouco satisfeito com o gabinete de física e a biblioteca”.
O espaço chegou a ser fechado por mais de uma ocasião, por falta de funcionário que por ele se responsabilizasse. Em 1884, ao noticiar o fechamento provisório da biblioteca, o Correio Paulistano considerou “lamentável que a diretoria da escola fosse obrigada a recorrer à essa medida por falta de autorização para contratar um empregado bibliotecário”. Destacando os inconvenientes causados, questionou se “não haveria meio de conciliar-se a vantagem das consultas à biblioteca com a legalidade da despesa feita com o emprego” (CORREIO PAULISTANO, 19 de outubro de 1894, p. 1). A respeito, o diretor Sá e Benevides (1884, p. 11) indicava haver a “urgente necessidade” de reformar o Regulamento da instituição “na parte em que determina servir o porteiro como bibliotecário não só porque há incompatibilidade material nas funções de tais cargos como principalmente porque não tem o porteiro as habilitações precisas”.
O novo regulamento da Escola Normal, aprovado em 1887, adicionou prescrições para o funcionamento da biblioteca. Com relação ao acervo bibliográfico, o documento demarca que deveria ser ampliado anualmente e composto por “obras relativas à instrução pública, em geral, e especialmente, de obras relativas às matérias do ensino normal”. Prescreve-se a biblioteca da Escola Normal como uma fusão de biblioteca pedagógica e biblioteca dos conteúdos que os professores precisariam conhecer e dispor, conforme as cadeiras. Além disso, um dos professores passaria a atuar também como bibliotecário, encarregado de
Organizar o catálogo da biblioteca; Ter sob sua guarda os livros e tratar de sua conservação; Propor a aquisição de novas obras; Cumprir e fazer cumprir, na parte relativa à biblioteca, o regimento interno; Guiar os alunos na consulta das obras (REGULAMENTO, 1887, p.1).
A esse professor-bibliotecário caberia, ainda, “organizar uma estatística do número dos consultantes e das obras consultadas e fazê-la publicar mensalmente”. A vigilância a seu cargo estendia-se às condutas que o regimento estabelecia para o uso do espaço, revelando que posturas e comportamentos eram esperados de seus frequentadores:
Art. 6º É proibido nas salas da biblioteca e arquivo: 1º Conservar-se de chapéu na cabeça e fumar; 2º Tocar nas estantes e deles retirar por próprias mãos qualquer livro para consulta. As obras a consultar serão pedidas ao bibliotecário; 3º Levar para seu domicílio qualquer obra a título de empréstimo (REGIMENTO, 1887, p.1).
O acúmulo das funções de docente e bibliotecário veio, a propósito, a se tornar um dos fatores que alimentou a crise político-administrativa e ideológica que contrapôs professores positivistas aos defensores da religião do Estado, no ano de 1888. Naquela ocasião, Carlos Lessa, docente da cadeira de Gramática e Língua Francesa, foi acusado por Manoel Vicente da Silva, diretor da Escola, de ter retirado livros do acervo sem o devido registro, enquanto atuou como bibliotecário, no ano anterior. A situação teria sido descoberta pelo professor Carlos Joaquim Reis, da cadeira de Língua e Literatura Nacional, quando tentou comprar livros para a Escola, na livraria Teixeira & Irmão. Nessa livraria, o sr. Teixeira teria examinado a lista levada por Carlos Reis e indicado 34 obras que já haviam sido adquiridas por Lessa, mas que, todavia, não “existiam” no acervo. Ao serem consultados outros dois livreiros que haviam fornecido títulos para a Escola Normal durante o período que Lessa fora bibliotecário, constatou-se que havia mais 18 livros em seu poder. Pelo que se depreende de artigos na imprensa, Manoel Vicente não nutria grande admiração por Lessa, que, junto com os professores Godofredo Furtado e Cypriano de Carvalho, opusera-se a um ato seu, autorizando o pai de uma aluna a acompanhá-la na escola (MONARCHA, 1999). Os dois últimos professores se demitiram, e Lessa foi demitido pouco tempo depois de revelado o seu delito, tendo, além disso, sido acusado de indicar para a cadeira de Francês um compêndio de sua autoria, cujo preço estaria acima dos demais, e de sugerir a assinatura de “Postillas de francês” produzidas por seu filho.
Na década de 1890, a Escola Normal passou por mudanças curriculares e administrativas, com a expectativa de “fornecer uma educação intelectual, moral e prática para os candidatos ao magistério público” (MONARCHA, 1999, p. 176). Apregoava-se uma formação mais prática, concebida especialmente em termos da adoção dos processos de ensino orientados pelo método intuitivo, com a criação da Escola Modelo. Uma ampla reforma na instrução pública decorria da instalação do governo republicano, que pretendia registrar seus avanços em relação à situação anterior (SOUZA, 1998). Em 1894, a Escola Normal ganhou um edifício suntuoso, construído com a finalidade de abrigá-la. A biblioteca dividia-se em três sessões, obras científicas, literárias e assuntos diversos, e reunia 984 livros. Entre as obras científicas, havia 304 títulos em francês e 131 em português. A biblioteca, conforme o relato de Alfredo Moreira Pinto (1900, p. 15), ocupava, porém, “duas acanhadas salas com 14 estantes, tendo em cima galerias com mesmo número de estantes”, em que se distribuíam cerca de 7.000 volumes.
Assim como o acervo, o movimento parece ter aumentado. Em 1893, a Escola Normal registrou 121 matriculados e sua biblioteca teve 222 consulentes no mês de maio, e 155, em julho, registrando maior presença de mulheres do que de homens13. Foram consultadas obras em português e em francês, que percorriam o variado espectro do currículo da Escola Normal: Corografia do Brasil; Ginástica; Química; Astronomia; História; Psicologia; Pedagogia; Botânica, Zoologia e História Natural14.
Entre a especialização das obras pedagógicas e a ampliação dos conteúdos abarcados pela formação docente, evidencia-se um movimento contínuo de ampliação do acervo, nos anos finais do século XIX. Consta, inclusive, uma rubrica para aquisição de livros na previsão de despesas da Escola Normal. A distribuição de recursos entre as instituições de ensino do estado era, entretanto, grandemente desigual. No ano de 1900, a verba aprovada de aquisição de livros para a Escola Normal foi de 2:000$000, valor cinco vezes menor do que o destinado à Escola Politécnica (CORREIO PAULISTANO, 5 de agosto de 1900, p. 1).
Conclusão
Nas últimas décadas do século XIX, as bibliotecas se multiplicaram em São Paulo e passaram a ocupar um importante lugar nas instituições escolares, como parte do movimento de difusão da pedagogia moderna e da escolarização em massa. Entre os elementos que encarnavam a boa qualidade do ensino, certamente passaram a figurar o acervo bibliográfico e a biblioteca-espaço, o que fomentou a publicação de inúmeras bibliotecas-coleções. Esse movimento repercutiu claramente na formação docente e nas escolas normais, que a institucionalizaram e a normalizaram. Em São Paulo, nos anos de 1870, a Escola Normal ainda contava com um acervo bibliográfico que expressava uma série de limitações financeiras, estruturais e pedagógicas da própria instituição. Dos anos de 1880 em diante, a situação foi se alterando. Sob influência marcadamente francesa, a biblioteca da Escola Normal cresceu e se diversificou, tal como o fizeram diversas de suas congêneres espalhadas pela Europa e Estados Unidos, e que lhe serviram de exemplo e inspiração.
Entre a especialização e a ampliação, a biblioteca para a formação de professores fundia saberes pedagógicos a conteúdos específicos, relacionados às matérias do ensino e à cultura geral. A biblioteca tornava-se parte do repertório da pedagogia moderna e científica que, por meio de sujeitos, ideias e artefatos, circulava globalmente, cruzando fronteiras nacionais. Por isso, uma boa escola normal não poderia, em tese, prescindir de um acervo bibliográfico. Inicialmente, no entanto, o investimento efetivo, prático e financeiro na biblioteca da Escola Normal não condizia com a importância que lhe era atribuída nas manifestações de políticos, publicistas e educadores sobre a formação de professores. A Escola Normal não conseguia sequer contratar um funcionário para se dedicar exclusivamente a ela. Ainda assim, sua biblioteca foi, nas décadas finais do século XIX, paulatinamente se institucionalizando com uma biblioteca “especializada” para a formação docente e se constituindo como um dispsitivo essencialmente ligado à formação de culturas pedagógicas, uma vez que, em seu espaço e por meio de seu acervo, pode abarcar distintas configurações de saberes e modelos pedagógicos, como aponta Marta Carvalho (2007).
Ao comparar o movimento de aquisição subsequente à primeira lista de compras, feita em 1875, por Paulo do Valle, é evidente a ascensão do caráter científico, tal como no próprio campo da pedagogia. A biblioteca da Escola Normal enredava-se na trama da pedagogia moderna, e juntamente às suas funções de possibilitar a guarda, o acesso às obras e às práticas de leitura assumia a função simbólica de representar, como elemento da arquitetura do edifício escolar, a qualidade dos trabalhos desenvolvidos na instituição. Assim, enquanto o acervo possuía uma dimensão móvel e inacabada, a biblioteca-espaço fixaria essa função simbólica essencial. No alvorecer do século XX, a biblioteca se amplia, com os livros em língua inglesa passando a ocupar um volume significativo no acervo, ao mesmo tempo em que proliferam as coleções pedagógicas nacionais, indicando, assim, novos trânsitos e caminhos pelos quais circulavam e circulariam os saberes pedagógicos.