Não foram poucas as iniciativas lançadas em solo catarinense em nome da comemoração do centenário da Independência brasileira. Foi em torno dessa voga comemorativa que se alavancaram esforços para delimitação das fronteiras interestaduais1 (SANTA CATARINA,1920, p. 10), se levantaram dados estatísticos junto às Superintendências Municipais (EXPEDIENTES DO SR. SECRETÁRIO GERAL DOS NEGÓCIOS DO ESTADO, 1916, p. 2), se planejou um recenseamento populacional pela Diretoria de Estatística (MENSAGEM APRESENTADA PELO EXMO. SR. WENCESLAU BRAZ AO CONGRESSO NACIONAL EM 3 DE MAIO DE 1917, 1917, p. 2) e se compôs uma comissão dedicada a pensar as suas possíveis formas de celebração (CENTENÁRIO DO BRASIL, 1917, p. 3). Ademais, esse aniversário engendrou propostas de intervenções no espaço urbano pela via da inauguração de pontes e monumentos (O CENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL, 1918, p. 1; O MONUMENTO AOS HERÓIS DO PARAGUAI, 1920, p. 2; ECHOS E FATOS, 1920, p. 2), mobilizou membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (A COMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO DO BRASIL, 1920, p. 1) e Catarinense em torno de publicações comemorativas (PARTE OFFICIAL, 1917, p. 2) e convocou nomes como o de Henrique Boiteux para a composição da Comissão Comemorativa do Centenário da Independência sediada e organizada no Rio de Janeiro, então capital nacional (O CENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL, 1920, p. 1).
Isso porque a voga comemorativa envolveu não somente o aniversário de um marco político, mas a organização de dispositivos de rememoração que acabaram por legitimar a ação de alguns sujeitos específicos2. Interessava, nesse sentido, a afirmação de uma nação coesa (COSTA; SOARES, 2020), instruída e apta a se colar nos ritmos da modernidade e da urbanização (BAHIENSE, 2022, s/p). Por outro lado, o aniversário da Independência nacional ocorria em meio a equações políticas delicadas. Ele, por um lado, celebrava um movimento de emancipação proposto por uma Monarquia da qual a ainda jovem República tentava se distanciar e, por outro, se dava em um momento de tensionamento dos arranjos republicanos, liberais e oligárquicos (KAFER, 2016, p. 21 - 22). Nesse cenário, as comemorações escolares do primeiro Centenário da Independência foram um meio de disputar os significados que circunscreveram esse aniversário, fazendo-se ver em festividades e publicações voltadas especificamente ao público escolar3 (cf. SALGADO, 2021, s/p; COSTA; SOARES, 2020).
Em meio a esse panorama, o programa de festejos escolares oficiais das escolas catarinenses foi organizado por uma comissão específica designada via decreto governamental4 e incluiu orientações para que os Hinos da Independência e Nacional fossem cantados em todas as escolas do estado, sem prejuízo dos programas locais. Além disso, seria organizada uma parada escolar que se desdobraria por dois dias (SANTA CATARINA, 1922, p. 20), devendo especificamente as escolas públicas executarem o programa festivo estipulado e enviado pelo então diretor da instrução, Henrique da Silva Fontes5. Nele, foram listados os procedimentos para hasteamento da bandeira, alocução de professores e estudantes, execução dos hinos e juramento6 à bandeira (Idem, p. 21 - 22). Ao final dos dois dias previstos para a efeméride, os discentes ganhariam como lembrança pequenos envoltórios coloridos contendo o mapa do Brasil e, ou reprodução do quadro “O grito do Ipiranga”, ou o retrato dos chefes de estado brasileiros. Tal lembrança foi oferecida ao estado pela Comissão Executiva da Comemoração, que lhe concedeu 24.000 unidades (Idem, p. 23).
Para além da realização das paradas escolares, também a Diretoria Geral da Instrução catarinense e seu dirigente ocuparam-se da publicação e veiculação da Revista de Ensino Primário, pensada especificamente como parte das efemérides comemorativas do Centenário da Independência7. Nela esmiuçaram-se aspectos atualizados da legislação escolar local, forneceram-se “subsídios para as aulas” (REVISTA DE ENSINO PRIMÁRIO, 1922, s/p), listaram-se as instruções para comemoração do centenário nas escolas e se apresentaram dados sobre a instrução primária em Santa Catarina. Sua publicação e veiculação foi anunciadamente parte da ode comemorativa ao centenário, destinando-se então à difusão dos aspectos organizacionais das paradas escolares e à divulgação da organização burocrática e pedagógica da escola catarinense do período. Compôs, portanto, os festejos de aniversário da Independência nacional convocando uma materialidade impressa que ordenou dispositivos narrativos, políticos e de modelização das práticas docentes (CARVALHO, 2018).
Talvez por compor de forma quase simbiótica os festejos de comemoração do Centenário da Independência, o único número da Revista de Ensino Primário catarinense foi veiculado na ocasião desses festejos, em setembro de 1922. Todavia, ainda que solitário, o volume único dessa Revista dá pistas sobre as estratégias narrativas que envolveram a promoção dos festejos escolares do período e das ações encampadas por Henrique Fontes quando na gestão da instrução pública catarinense (VIDAL, 2007), aqui entendidas como parte de um rol maior de operações (CERTEAU, 2009; 1985).
Dessa forma, este artigo tematiza o volume da Revista de Ensino Primário como parte constituinte de uma série de dispositivos comemorativos cujas práticas respingaram na materialidade da escola catarinense. Tomou, portanto, esse impresso educacional8 como objeto de análise para seu entendimento, matizando as disputas presentes nessa narrativa (ROMANO, 2018), operacionalizando-o para a análise das práticas de gerenciamento e organização do ensino catarinense (CERTEAU, Op. Cit.) e de trajetórias de diferentes sujeitos cujas ações e agências se entrecruzaram no campo educacional. Para tanto, interessou inquirir a publicação mobilizando as categorias “citações”, “temáticas abordadas” e “materiais listados” como meio de rastrear as narrativas presentes em torno dessa voga comemorativa, bem como os recursos discursivos, políticos e pedagógicos ali engendrados.
Ainda nesse esteio, este artigo se organizará em três partes. Na primeira - “o engendramento do mando” - é circunstanciada a atuação e os recursos mobilizados pela Diretoria da Instrução e pelo seu diretor como parte de um rol de estratégias para delimitação de sua esfera de gestão na instrução pública. Na segunda, nomeada como “o aparelhamento da prática”, inventariaram-se os recursos e citações mobilizadas com o fim declarado de subsidiar a prática docente. Por fim, a título de considerações finais, são estabelecidas relações entre a onda comemorativa do centenário da independência e paulatina construção do lugar e da representação social da escola como veículo promotor da nacionalidade.
O engendramento do mando
Quando Henrique Fontes assumiu o posto de chefe da Diretoria Geral da Instrução Pública catarinense em maio de 1919 (O ESTADO, 22 de maio de 1919, p. 1), ele o fez engendrando dispositivos que corroborassem com a paulatina construção de sua legitimidade. Foi assim, por exemplo, que ele capitaneou a publicação da Série de Leitura Graduada Fontes9, encampou demandas a favor dos membros da inspetoria estadual (DIRETORIA GERAL DA INSTRUÇÃO PÚBLICA. Ofício expedido por Henrique Fontes ao Secretário do Interior de Justiça em 13 de setembro de 1920. Of. 2841. Fl. 65; DIRETORIA GERAL DA INSTRUÇÃO PÚBLICA. Ofício expedido por Henrique Fontes ao Secretário do Interior de Justiça em 22 de setembro de 1920. Of. 2952, Fl. 70; DIRETORIA GERAL DA INSTRUÇÃO PÚBLICA. Ofício expedido por Henrique Fontes ao Diretor do Grupo Escolar Vidal Ramos em 17 de janeiro de 1926, s/p) e encaminhou pedidos de provimento orçamentário e pedagógico das escolas do estado10. A esses esforços somaram-se o repertório de uma já longeva trajetória na instrução catarinense, já sendo ele um nome frequente nos periódicos e semanários locais como literato e professor, bem como em eventos de bancas de provas e concursos da instrução pública. Ademais, foi também marcante sua proximidade com as mais altas esferas do Partido Republicano Catarinense, então na figura de Hercílio Luz (O ESTADO, 1918, p.1), bem como sua inserção intelectual junto a Alexandre e José Boiteux (O ESTADO, 1918, p. 2).
Nesse sentido, ainda que fosse um veterano na política e na educação catarinense, Henrique Fontes mobilizou frentes diversas na tentativa de exercer a gestão efetiva da instrução e substituir Horácio Nunes11, seu antecessor (A REPÚBLICA, 1896, p. 1). Do rol de ações encampadas em seu exercício de gestão, o manejo com os impressos educacionais chamou atenção sobretudo pela já mencionada publicação da Série Fontes12, que corroborou com a irradiação do modelo paulista de escola primária graduada (SOUZA, 1998, p. 55), com a consequente veiculação de uma representação social da instrução e com a defesa da especificidade do ambiente e do tempo escolar de aprendizado. Por outro lado, a publicação e veiculação da Revista de Ensino Primário fez perceber a reiterada tentativa de atingir e modelar a prática docente pela via da divulgação de materiais atualizados e da veiculação de modelos de atas, boletins e atestados.
Ademais, foram recorrentes o entendimento e a defesa, nos textos da Revista, de sua publicação como parte de um mais amplo esforço de comemoração e celebração de uma nacionalidade exitosa. Foi nesse sentido, por exemplo, que Henrique Fontes se referiu à edição como uma “modesta árvore comemorativa que plantamos na terra feroz de Santa Catarina [...] que, se bem cuidada, com o andar dos anos e em mãos mais hábeis, se irá robustecendo e irá dando sombra, flores, frutos, mestres e alunos” (Fontes, 1922, pág. 1). Também por essa via, anunciou ser a Independência Nacional uma obra ainda incompleta, já que “ignorância e semianalfabetismo são incompatíveis com a democracia” (Ibidem). Dessa forma, ao abordar a temática da comemoração mobilizada em torno da emancipação política nacional, estruturou a narrativa de modo a evidenciar o papel do estado nesse projeto (ainda que na qualidade de uma “pequena árvore”) e a respaldar as ações encampadas na Diretoria da Instrução como via de defesa da democracia porque contrária ao analfabetismo13.
Não por acaso, temas como a adesão de Santa Catarina ao regime republicano (HISTÓRIA DO BRASIL, 1922, p. 43), os expedientes de comemoração do centenário nas escolas estaduais (FONTES, 1922, p. 46 - 47), a educação cívica (EDUCAÇÃO CÍVICA, 1922, p. 40 - 41) e as estatísticas da instrução pública catarinense (A INSTRUÇÃO PRIMÁRIA EM SANTA CATARINA, 1922, p. 49 - 50) foram destaque na publicação. Ao primeiro coube uma narrativa linear a respeito da adesão catarinense ao regime republicano estruturada em torno de notas fornecidas pelo ex-presidente do Clube Republicano Catarinense, Raulino Horn14. Segundo ele, a passagem do governo pelo presidente e deputados provinciais, monarquistas, foi pacífica a ponto de haver uma troca de abraços entre seus representantes, sendo prontamente endossada por todos os municípios do estado (FONTES, 1922, p. 43). Obliteraram-se da narrativa, certamente, os desdobramentos posteriores que culminaram na oposição ferrenha entre republicanos e federalistas e suas consequências para a capital catarinense que, a partir de 1894, teve o nome alterado de Nossa Senhora do Desterro para Florianópolis15.
Também para a apresentação das estatísticas da instrução pública local foi evocada a transcrição da fala de Raulino Horn ao Congresso Representativo em agosto de 1922. Nela, evocou-se o aumento do número de matrículas das escolas públicas estaduais - então representadas pela Escola Normal, escolas complementares, grupos escolares, escolas reunidas e escolas isoladas - entre 1918 e 1921, dando destaque ao provimento das escolas isoladas “[...] porque estas [...] em sua maioria, funcionam nas zonas rurais onde, por falta de iniciativa particular, mais necessária é a ação do governo em matéria de ensino” (A INSTRUÇÃO PRIMÁRIA EM SANTA CATARINA, 1922, p. 47). Também foi destacada a ação no provimento das 16816 cadeiras mantidas pelo estado em nome da subvenção em cidades de origem colonial para a nacionalização do ensino. Nessa investida registrou-se a matrícula de 8453 alunos e a atuação de Orestes Guimarães - “funcionário trabalhador e zeloso” (Ibidem) - na fiscalização de seu funcionamento.
Ainda no ano de 1922 foram criadas mais trinta escolas em localidades diversas, levando em conta o critério de fundar uma instituição para “1.000 almas” (Idem, p. 48), uma escola complementar anexa ao Grupo Escolar Hercílio Luz e uma cadeira na escola noturna da cidade de Joinville (Ibidem). Não obstante, os números totais de matrícula e frequência mostram que era ainda parcial a cobertura escolar do estado. Isso porque das 23.671 matrículas17 nas 456 escolas isoladas estaduais, eram frequentes 19.794 estudantes (Idem, p. 48), o que é um número bastante abaixo daquele anunciado como baliza para criação de novas instituições educacionais. Não obstante, Raulino Horn noticiou que o estado de Santa Catarina apresentava o espantoso número de 57% de suas crianças nas escolas, ficando atrás somente do Distrito Federal, e sendo o estado da federação que mais investia no ensino primário, dispendendo 20% dos cofres estatais para tanto (A INSTRUÇÃO PÚBLICA EM SANTA CATARINA, 1922, p. 48).
Para além dos dispositivos narrativos mobilizados na forma de uma adesão pacificada à República e na apresentação otimista de números da instrução pública, a Revista de Ensino Primário teve mais da metade de suas páginas ocupada pela transcrição do Regulamento Geral da Instrução Pública (1914) vigente e atualizado. Nessa transcrição, ganharam destaque os dispositivos18 que reordenaram a hierarquia de gestão da instrução catarinense a partir de 1918, passando ao diretor do ensino as incumbências anteriormente destinadas ao Inspetor Geral do da Instrução, Orestes Guimarães. Também foram várias as citações de decretos e leis que recrudesceram mecanismos de fiscalização escolar, divulgaram seus programas, forneceram instruções quanto à escrituração escolar, à contratação de docentes, ao funcionamento das instituições de acordo com suas categorias, bem como regulamentaram a obrigatoriedade do ensino no estado19. Ainda no esforço de evidenciar a expansão do projeto educacional estadual, nela divulgaram-se as iniciativas movidas em torno da instalação do Fundo Escolar destinado a auxiliar as despesas da instrução primária nas áreas rurais (A INSTRUÇÃO PRIMÁRIA EM SANTA CATARINA, 1922, p. 48), bem como o trabalho efetuado nas escolas subvencionadas (Idem, p. 47).
Também na Revista se tematizou a delimitação das fronteiras e a listagem da população nacional e estadual. Sobre a primeira, demorou-se em apresentar e listar a anexação mais recente, o estado do Acre, e a reforma administrativa que o dividiu nos municípios de Rio Branco, Purús, Xapury, Taranacá e Juruá (TERRITÓRIO NACIONAL DO ACRE, 1922, p. 38). Já a listagem populacional se deu pela transcrição das estatísticas do Censo de 1920, que esmiuçou os contingentes populacionais estaduais, de suas respectivas capitais e dos municípios catarinenses (A POPULAÇÃO DO BRASIL; A POPULAÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 1922, p. 39). Por fim, deu os dados e contornos da cobertura nacional da viação férrea por estado, destacando inclusive a estrada de ferro Tocantins (Pará) que, por não ter sido finalizada, não foi incluída no levantamento (A VIAÇÃO FÉRREA NO BRASIL, 1922, p. 40).
Tais informações coadunam, pois, ao esforço de esquadrinhamento informacional e mapeamento estatístico alavancado pela efeméride já listado no início deste artigo. Aqui, especificamente, interessa apontar que seus dados não somente foram levantados nacionalmente como, em solo catarinense, foram compilados, transcritos e divulgados em revista cujo público visado era o docente do ensino primário, então etapa obrigatória20 da instrução.
Por fim, do rol de materiais e impressos citados na publicação, deu-se especial destaque à revista “Educação - revista mensal dedicada à defesa da instrução no Brasil”, cuja publicação se deu em agosto de 1922, um mês antes da Revista de Ensino Primário catarinense. Dirigida pelo deputado José Augusto Bezerra de Medeiros - que “com calor e tenacidade de apóstolo, tem pregado a necessidade inadiável de atarmos de frente o analfabetismo que nos enfraquece, dissolve e envergonha” (BIBLIOGRAFIA, 1922, p. 40) -, anunciou como objetivo a coordenação e união dos esforços nacionais em torno desse propósito. A isso, a revista catarinense logrou e augurou “inteiro êxito, pois, em matéria de instrução, parece-nos que entramos numa fase que bem lembra os tempos gloriosos em que se evangelizava a Abolição e a República (Ibidem).
Dessa forma, os mecanismos e dispositivos narrativos mobilizados para engendramento da legitimidade das ações da Diretoria de Ensino permearam estruturalmente a publicação. Seja pela constante e exaustiva citação de leis, decretos e regulamentos, pela referência a obras didáticas que aparelhassem a prática docente e a revistas com cujos propósitos conversava, pela apresentação dos dados a respeito do território e do perfil populacional catarinense ou, por fim, pela reiterada propaganda dos dados da expansão do ensino no estado. Por essa via, pretendeu-se divulgar a iniciativa de comemoração do centenário em Santa Catarina como parte de um mais amplo rol de efemérides nacionais e propagandear as ações da Diretoria ao combater o analfabetismo e, dessa forma, contribuir com o esforço democratizador da República. A relação entre expansão da instrução primária e exercício democrático não veio em vão. Assim dada, ela conversa com a delimitação das finalidades da escola, a crescente preocupação em promover e veicular um ideal de nacionalidade una (CARVALHO, 2003a, p. 225 - 251.; 2003b, p. 143 - 164) e o entendimento de que as ações do poder público promoviam a efetiva expansão das taxas de matrícula e frequência21. Ainda nesse esteio, os textos da Revista se esforçaram em evidenciar, pela apresentação de dados, referências e materiais de uso escolar, a participação catarinense nesse amplo projeto comemorativo e formativo.
O APARELHAMENTO DA PRÁTICA
Foi na gestão de Henrique Fontes que as demandas para aparelhamento escolar paulatinamente deslizaram dos pedidos de materiais e mobiliário para os itens de escrituração. Foram, portanto, perenes e crescentes as demandas expedidas pelo diretor do ensino a respeito do correto preenchimento e envio desses materiais à Diretoria, portando inclusive os selos e estampilhas próprios para tanto (PHILIPPI, 2020, p. 105). Esse padrão se manteve também na composição, impressão e veiculação da Revista de Ensino Primário. Ao se propor a instrumentalizar a prática docente, sobretudo aquela catapultada pelas comemorações dos cem anos da emancipação política brasileira, a publicação reproduziu uma série de materiais específicos para escrituração das instituições escolares. Veiculou, assim, o modelo de boletim individual de aluno, de boletim mensal das escolas isoladas, com observações e instruções, o modelo atestado de exercício de professor, também com observações, o mapa do movimento de escolas estaduais de município, a ser preenchido pelo chefe escolar e enviado ao diretor da instrução, o modelo de ata de exames e, por fim, a transcrição de circular orientando os dois dias de comemoração do centenário nas escolas estaduais22.
Nessa última, deixou claro se tratar de um programa mínimo ao qual a escola deveria aderir, devendo para tanto convidar as autoridades e personalidades locais, bem como os pais dos estudantes. Também foram claras as instruções quanto à organização do espaço, devendo ele conter um mastro com altura conveniente - no caso, de no mínimo quatro metros - para hasteamento da bandeira e execução do Hino Nacional e do Hino da Bandeira. As lembranças do centenário, oferecidas pelo Governo da República, deveriam ser alocadas no interior da escola ou ao ar livre, em uma mesa devidamente adornada, podendo ser entregue por alguma autoridade local. A essas festividades, ademais, os alunos deveriam “[...] aparecer convenientemente alimentados [e], para poderem assistir a toda a festa, [levando] consigo uma pequena merenda” (A COMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO NAS ESCOLAS, 1922, p. 46).
A essa transcrição somaram-se outras. Nelas, organizaram-se excertos de títulos diversos, então apresentados como “subsídios para as aulas” (1922, p. 38 - 43) e como “bibliografia” (1922, p. 44 - 46), bem como a já referenciada compilação do Regulamento Geral da Instrução Pública devidamente atualizado, contendo inclusive as tabelas de vencimentos dos diferentes cargos da instrução e de valores máximos para aluguel de prédio escolar. No primeiro, citaram-se dados sobre a divisão geográfica nacional, a incorporação e organização administrativa do território do Acre, os dados estatísticos da população brasileira e catarinense, os números da viação férrea nacional, noções de higiene, rudimentos de educação cívica, a transcrição do Hino à Bandeira, dados sobre a organização legislativa e executiva nas esferas estadual e municipal, sobre a Constituição do Estado e, por fim, sobre a adesão catarinense ao regime republicano.
Já na segunda sessão citaram-se os livros “Geografia geral, compêndio destinado às Escolas Normais, Liceus, Ginásios, Ateneus, Colégios Militares, Cursos de Adultos e de Preparatórios”, de autoria de Olavo Freire (1921), “Breviário de higiene, obra didática e de vulgarização de preceitos práticos” (1922), por José Rangel (anunciado na publicação como membro da Academia Mineira e do Conselho de Instrução do Estado de Minas Gerais), “História Natural ou o Brasil e suas riquezas e algumas noções de higiene, para uso das escolas23” (1922), de Waldemiro Potsch (do Colégio Pedro II) e a já referenciada publicação da “Revista Educação” (1922), dirigida pelo deputado José Augusto. Em comum, tais publicações tem a data de lançamento recente e a destinação ao uso na instrução primária ou secundária. Essa escolha, por sua vez, foi anunciadamente deliberada, tal qual em comentário a respeito do livro “Geografia Geral”:
A geografia, pois, agora mais do que em outras épocas, precisa de ser estudada por livros de data recente, porque essa guerra, além das grandes modificações que já acarretou, deixou o mundo em tal situação de instabilidade que os que se dedicam ao ensino da geografia são forçados a acompanhar cotidianamente o desenrolar dos acontecimentos da política internacional, para não se arriscarem a ensinar coisas obsoletas (BIBLIOGRAFIA, 1922, p. 44).
Pesava, portanto, a novidade da publicação para que ela desse conta dos reordenamentos territoriais decorrentes da, então recente, Primeira Guerra Mundial. Para além do critério de novidade da obra, contou também o fato de ela ter sido escrita não somente por quem sabe geografia, mas por quem tem “grande conhecimento de como se ensina geografia” (Ibidem). Dessa forma, somaram-se como critérios centrais a proficiência em matéria de ensino, bem como a sua atualidade.
A listagem dos subsídios para a docência e das referências bibliográficas atualizadas conversa, ademais, com uma série de iniciativas capitaneadas na gestão de Henrique da Silva Fontes quando na Diretoria da Instrução Catarinense. Elas, por sua vez, agenciaram disputas que respingaram na materialidade destinada à instituição escolar, sobretudo primária. A esse respeito, o diretor do ensino alegou ser “[...] a nossa literatura didática [...] ainda pobre, e os livros nacionais [...], em geral, caros, de modo que o professor só dificilmente pode organizar modestíssima biblioteca e andar em dia com o que de novo vai surgindo em matéria de instrução” (FONTES, 1922, pág. 1). Dessa forma, escolheu operar na publicação da Revista pela compilação e listagem de obras recentes e de uso didático, no anunciado objetivo de aparelhamento da prática docente.
Vale, todavia, lembrar que a escolha e seleção das obras citadas, bem como dos excertos selecionados, conversa com dos dispositivos de construção de legitimidade de seu lugar de mando e do lugar de Santa Catarina no rol nacional de comemorações nacionais do Centenário da Independência. O aparelhamento docente proposto na Revista e respaldado pelo perfil de gerenciamento do ensino de Henrique Fontes não foi, portanto, neutro. Nesse sentido, é ilustrativa a versão escolhida para alinhavar a narrativa da adesão catarinense à República, bem como o uso das estatísticas de modo a evidenciarem a expansão do ensino primário, sobretudo nas áreas rurais. Para além disso, foi também em meio ao exercício de Henrique Fontes que se publicou e adotou, em substituição à Série de Leitura Viana anteriormente indicada por Orestes Guimarães e já adotada nas escolas primárias paulistas, a Série Graduada de Leitura Fontes, cuja adoção nas mais diferentes categorias de escolas no estado foi bastante longeva24 e delimitou um espaço de projeção ao então diretor de ensino.
Essas disputas na materialidade se fizeram ver também na compilação de modelos de boletins, mapas de frequência, atestado de exercício e demais itens para preenchimento docente. Isso porque, no modelo de Boletim Mensal e de Atestado de Exercício, são firmemente esmiuçadas orientações bastante precisas para seu correto preenchimento, envio e postagem. No primeiro, requisitam-se informações referentes à escola - denominação da unidade, se masculina, feminina ou mista, localização e aluguel - ao professor - nome, estatuto, data do primeiro exercício no magistério público, data de início do exercício atual e licenças concedidas - e aos alunos - número de dias letivos no mês, número de alunos presentes no último dia do mês, de comparecimentos, faltas, frequência média mensal, estatísticas de matriculados e eliminados durante o mês e contagem final de matrículas. Em todos os dados, solicitava-se a demarcação do sexo e naturalidade (se brasileiro ou estrangeiro) dos estudantes. Por fim, no item “informações relativas à inspeção” pede-se a data e o responsável pela sua efetiva realização, sendo ele inspetor ou chefe escolar. Ao final, como observações, esmiúçam-se as seguintes recomendações:
1. A frequência média mensal é tirada dividindo-se o número de comparecimentos pelo número de dias letivos do mês.
2. A porcentagem frequência é obtida multiplicando-se a frequência média por 100 e dividindo-se o produto pelo número de alunos matriculados.
3. Toda a escola para poder ser mantida deverá ter no mínimo a frequência de 20 alunos nas cidades e de 15 nas vilas, etc. (art. 101 do Regulamento.)
4. O professor deve encher e enviar este boletim ao chefe escolar no dia por ele determinado, mesmo que não tenha de promover o recebimento de seus ordenados (art. 32 n. 10).
5. A falta determinada por serviços eleitorais é abonada.
6. O professor não pôde deixar o exercício do cargo sem prévia licença da autoridade competente.
7. Sendo substituto, o professor em exercício, deve declarar em seguida, ao seu nome o do proprietário da cadeira e o motivo porque o mesmo se acha ausente.
8. Os alunos do sexo masculino matriculados em escolas mistas, devem ser eliminados logo que atingirem a idade de 12 anos.
9. O material escolar deve ser entregue ao chefe escolar sempre que o professor deixar a escola, nos termos do artigo 94 n. 8 do Regulamento.
10. Estes boletins devem ser requisitados em ofícios, pelo chefe escolar, e entregues, com toda a parcimônia aos professores (ANEXO 3, ARTIGO 94, NÚMERO 13 DO REGIMENTO, 1922, p. 32).
A tais observações somaram-se, após compilação de modelo de atestado de exercício, a de que “[...] quando o professor ou professora tiver assumido ou reassumido exercício no mês a que se referiu o atestado, faça-se constar isso nas observações (Anexo 4, 1922, p. 34) ”, de serem justificadas os motivos das faltas, quando essas existirem e, por fim, um breve lembrete de que aquelas por motivo de moléstia só podem ser justificadas três vezes ao mês (Ibidem).
Em tais observações pesam as prescrições para preenchimento e os lembretes sobre alguns parâmetros para o exercício. Vale aqui destacar a delimitação dos protocolos para seu envio - seja pela mobilização de inspetor ou chefe escolar, devendo ser sua tramitação devidamente oficiada junto à diretoria - e o reiterado cuidado com a compilação dos números relativos à instrução pública. Sobretudo nesse último item, chamam atenção as delimitações sobre cálculo de frequência média mensal, percentagem de presenças e delimitação do perfil do alunado. Da forma como aqui se entende, também essas observações para preenchimento dizem respeito não somente ao estabelecimento da hierarquia organizacional da instrução pública, aqui marcadamente pela mobilização e delimitação da relação entre membros da docência e da inspetoria, mas à crescente importância dada ao estabelecimento das estatísticas como fator organizacional e divulgador das iniciativas encampadas pela diretoria de ensino.
Conclusão
Os ecos das festividades organizadas em torno do Centenário da Independência em Santa Catarina ressoaram. As festividades escolares, divulgadas nos jornais e na circular transcrita na Revista de Ensino Primário, tiveram sua execução acompanhada de perto por Henrique Fontes, sobretudo nos grupos escolares da capital (AS FESTAS DO CENTENÁRIO NESTA CAPITAL, 1922, p. 2). Elas foram fortemente elogiadas pela comissão organizadora dos festejos (A PARADA ESCOLAR, 1922, p. 1) e em relatórios de governo que as destacaram por “[...] bem demonstrarem que as [...] casas de ensino [cumprem] a sua [...] missão de propagadoras de sentimento cívico” (SANTA CATARINA, 1923, p. 4). A Revista de Ensino Primário, porém, teve sua breve existência pontuada pela realização dessas efemérides, não sendo posteriormente localizado nenhum novo número editado.
Novas publicações voltadas ao público docente catarinense e exaradas pela Diretoria Geral da Instrução Pública ganhariam forma somente na década seguinte, com a publicação dos Boletins da Diretoria Geral da Instrução Pública (1934) e, posteriormente, da Revista de Educação - órgão do professorado catarinense25 (1936 - 1937). Neste ínterim, a chefia da pasta passou para nomes como Antônio Mâncio da Costa, Adriano Mosimann e Francisco Barreiros Filho. Henrique da Silva Fontes, por sua vez, formou-se em Direito na Universidade Federal do Paraná (1927) e seguiu operando na hierarquia da instrução pública catarinense com proeminência tendo, inclusive, manejado as tratativas para a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, atual Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina (ALMEIDA, 2016. S/p).
Nesse sentido, sua trajetória nas esferas de gerenciamento da educação e política catarinense ultrapassou em muito a breve vida da Revista. Nela, porém, interessou perceber as nuances de construção da narrativa que o consolidou na posição de Diretor do Ensino em um momento que a pasta assumia a coordenação do corpo de inspetores estadual e que a substituição da Série de Leitura Viana pela Série Fontes era recente. Ademais, a reiterada afirmação do estado de Santa Catarina como parte dos expedientes nacionais de comemoração do centenário mobilizou também esforços na afirmação de seu pertencimento a um projeto de República que, indiretamente, se celebrava.
A Revista de Ensino Primário, dessa forma, operou em um único volume uma série de dispositivos textuais e narrativos que ordenou dados e referências e que, por essa via, prescreveu uma série de práticas de escrituração escolar e controle estatístico do alunado para a docência estadual. Também a ideia de fornecer um subsídio voltado especificamente à instrução primária fortaleceu não somente o lugar estabelecido pela Diretoria Geral da Instrução Pública, mas também dos autores e divulgadores das obras que tiveram citações e trechos compilados no corpo da publicação. Não por acaso, os colaboradores citados tiveram seus trânsitos políticos tangenciados pelo Partido Republicano Catarinense e pela ocupação de cargos de gestão na instrução pública nos níveis federal e estadual.
Por fim, vale destacar a centralidade da veiculação de obras didáticas e materiais de escrituração escolar como um dos veios de controle do trabalho docente no estado e, consequentemente, de fortalecimento das ações da Diretoria. Tratava-se, portanto, de uma iniciativa editorial que, ainda que transitória, informou a respeito do engendramento de uma estrutura de mando na instrução pública e da tentativa de normatização das práticas dos professores primários locais, inserindo-se assim em um momento de disputas no agenciamento político do aniversário da Independência.