Já há vários estudos sobre o período que passou a ser conhecido, no âmbito da história da educação matemática, como Movimento da Matemática Moderna - MMM. Desde o trabalho de Beatriz D’Ambrosio, em 1987, fruto de sua tese de doutorado nos EUA, seguiram-se artigos, teses, dissertações e livros sobre o tema. Dentre as teses, as dissertações e os artigos que discutem esse período do ensino de matemática no Brasil podemos citar os estudos de Búrigo (1989), Soares (2001), Baraldi (2003), Garnica e Baraldi (2003), Silva (2006), Duarte (2007), França (2007, 2012), Garnica (2008), Villela (2009), Borges (2011), Silva (2013), Soares (2014), Nakamura (2017), Nakamura e Garnica (2018), dentre outros. Caberia ainda citar uma das obras que elabora uma síntese desse tempo do ensino de matemática, escrita com a participação de alguns dos autores citados anteriormente, constituindo o livro organizado por Oliveira; Leme da Silva e Valente (2011).
Este texto também se atém ao MMM. Realiza uma pesquisa que trata de tema que, até o presente momento, teve pouco destaque nos estudos realizados sobre o assunto: a análise das mudanças vindas desse movimento internacional, considerando os modos como foram sendo incorporados elementos da chamada Matemática Moderna nas obras de caráter didático. Nesse sentido, diferentemente de muitos trabalhos já realizados anteriormente, não centraremos a análise tendo em vista a própria vigência do MMM, mas focaremos a atenção em um período que consideramos de transição de um tempo anterior às novas ideias para o ensino e formação de professores, e a sua incorporação nas obras didáticas. Em particular, para este artigo, analisamos a obra Manual Pedagógico para a Escola Moderna, publicado em 1967. Tal manual é tomado como fonte privilegiada de pesquisa para este artigo, pois constitui uma das principais referências bibliográficas contidas em documentação oficial orientadora da formação de professores para o ensino nos primeiros anos escolares.
A interrogação norteadora do estudo é dada por: Que elementos da matemática moderna estão presentes para serem ensinados nos primeiros anos do ensino primário contidos no Manual, orientando a formação de professores que ensinam matemática?
A abordagem do presente estudo, em termos de tratamento da fonte escolhida - o Manual - recupera reflexões anteriores de autores que se dedicam a analisar livros e manuais didáticos, tendo em vista a construção do que denominam direta ou indiretamente de “biografia dos livros didáticos” (CHOPPIN, 2004, VALENTE, 2008; PAIS, 2010).
Desse modo, será por meio da construção da biografia do Manual Pedagógico para a Escola Moderna que acreditamos tornar-se-á possível a análise das apropriações, nos termos de Chartier (1990), do MMM pela produção didática dita “moderna”. O estudo, assim, irá ater-se à incorporação dos ditames desse movimento internacional, pelo Manual, obra que referenciou o ensino e a formação de professores.
Sobre a biografia de um livro didático, manual didático, pedagógico: aspectos metodológicos
O estudo histórico de materiais presentes no meio escolar reveste-se de grande complexidade dado que tais materiais - livros, manuais, dispositivos etc. - necessitam ser entendidos tendo em conta o significado que eles têm para a cultura escolar em um dado tempo (JULIA, 2001).
Choppin (2004) em texto de referência para análise de livros didáticos avalia que a complexidade de trato com esse tipo de material para a pesquisa envolve
colocar em evidência as principais características de um livro ou de uma coleção de livros, ou, segundo uma perspectiva diacrônica, de delimitar sua evolução por meio da análise de várias gerações de manuais ou de edições sucessivas (CHOPPIN, 2004, p. 556)
A essa análise de Choppin, ajuntam-se os estudos de Valente (2008), no âmbito de obras para o ensino de matemática, em que o autor, de modo explícito, menciona o que entende tratar-se da construção de uma biografia de um livro, na análise que realiza para o trato da obra de Clairaut1:
A investigação realizada pode ser caracterizada como o esforço de construir uma espécie de biografia do livro. Essa biografia levou em conta múltiplos aspectos: a análise do conteúdo interno da obra, o seu prefácio, as referências colocadas pelo tradutor; a investigação sobre a origem da obra, do seu autor, das finalidades originais a que era destinada a obra no século XVIII; o contexto político-social em que foi feita a tradução para o português, as referências sobre o tradutor; a legislação educacional em tempos de Reforma Benjamin Constant, a política de adoção de livros didáticos, dentre outros elementos (VALENTE, 2008b, p. 146).
A essas ponderações sobre o processo de análise da obra de Clairaut, o autor sintetiza o processo de elaboração da biografia de um livro didático de matemática nos seguintes termos:
O livro didático de matemática de outros tempos revela-se como importante meio para a pesquisa da história da educação matemática. Rompendo com a análise estritamente interna dos conteúdos matemáticos desses livros, o historiador da educação matemática buscará enredá-lo numa teia de significados, de modo a que ele possa ser visto e analisado em toda a complexidade que apresenta qualquer objeto cultural. Nessa teia estão presentes múltiplos elementos. Da concepção da obra pelos autores, passando pelo processo de como foi produzido e sofreu a ação das casas editoriais, chegando às mãos de alunos e professores e sendo utilizado por eles, o livro didático de matemática poderá revelar, inclusive, heranças de práticas pedagógicas do ensino de matemática, presentes em nosso cotidiano escolar hoje (VALENTE, 2008b, p. 159-160).
Um outro estudo que também analisa uma obra didática sob a perspectiva de construção de uma biografia do livro é o texto de Pais (2010). O autor, na análise da obra Primeira Arithmetica para Meninos, de Souza Lobo, um texto elaborado no século XIX, enfrenta o
(...) desafio de elaborar uma espécie de biografia dos livros didáticos, adotando aqui o sentido tratado por Valente (2008) e por Choppin (2004). De acordo com esses autores, a trajetória de um livro didático pode ser escrita pelo destaque de etapas que passam pela sua concepção, produção, difusão e ainda pela sua efetiva apropriação por parte de professores e alunos (PAIS, 2010, p. 131).
Em síntese, a ideia de biografia problematiza o uso de materiais ligados ao trabalho escolar, constituídos como fontes para a análise histórica. Tal empreendimento envolve a compreensão do contexto em que tais materiais estiveram presentes no meio escolar, seus usos, as motivações que levaram o material a ser elaborado, os dados sobre sua autoria, suas diferentes edições, adaptações e um sem-número de outros quesitos que os pesquisadores deverão estar atentos para a melhor compreensão do papel exercido por um livro ou manual didático no ensino e na formação de professores.
Tendo em conta o desafio de elaboração de uma biografia do Manual Pedagógico para a Escola Moderna, buscamos analisar o impacto trazido pelo MMM à elaboração de obras didáticas para o ensino e formação de professores de matemática do ensino primário.
Ainda caberia enfatizar, mesmo que de modo reiterativo, que a construção da biografia de um livro, nos termos tratados anteriormente, afasta-se da mera descrição de como a obra se apresenta. Ao invés disso, trata-a como objeto cultural, o que instiga a análise histórica a explicitar o significado que determinado livro teve para a cultura escolar de uma dada época. Isso posto, analisaremos o Manual Pedagógico para a Escola Moderna tendo em vista a construção de sua biografia.
O MANUAL PEDAGÓGICO PARA A ESCOLA MODERNA E SEU TEMPO
O que ficou conhecido como período preparatório, em finais da década de 1960, para as escolas municipais da cidade de São Paulo, representou uma etapa em “(...) que o professor [deveria] se preocupar com o desenvolvimento de funções especificas - que [visassem] ao preparo da criança à aprendizagem da leitura, da escrita e da matemática” (SÃO PAULO, 1969, p. 25). A análise histórica mostra que tal época remonta aos anos 1930, onde se instalou a preocupação com a necessidade de o aluno estar pronto para a aprendizagem da leitura e da escrita, a sua “prontidão” (LOUREIRO, 2010). Nesse tempo, Lourenço Filho simbolizou o principal personagem a defender, no interior do chamado movimento da Escola Nova, a corrente da pedagogia científica, modo de considerar o ensino e a formação de professores a partir dos resultados da psicologia experimental de base estatística. A defesa de tal vertente explicitou-se com o uso de testes psicológicos e pedagógicos para orientar o processo educativo (VALENTE, 2014). Assim, consolidaram-se os chamados Testes ABC para verificar a maturidade necessária à aprendizagem da leitura e da escrita2.
Alguns estudos no âmbito da História da educação matemática já foram feitos e retratam as mudanças sofridas pela matemática que deveria estar presente no ensino primário, sobretudo entre a década de 1930 a finais dos anos 19503. A nova matemática veio contrapor-se à matemática existente em período anterior, na vigência do método intuitivo4.
A aplicação de testes à entrada dos alunos no curso primário, sobretudo a popularização dos Testes ABC, permitiram, assim, classificar os alunos e organizar classes em acordo com os resultados obtidos nessa avaliação. Dessa maneira, havia necessidade de, previamente ao ingresso efetivo dos alunos nas salas de aula, ter-se o contado com a clientela escolar, classificando-a no sentido da montagem de turmas homogêneas, solução considerada a mais adequada para o trabalho do professor. Tal processo inseria-se, como se mencionou, numa proposta de que a pedagogia se fizesse científica, utilizando processos estatísticos de aferição dos resultados dos testes.
A preocupação em medir o estágio inicial em que os alunos se encontravam no ingresso do curso primário teve vida relativamente longa, o que não significa que a forma de avaliar essa prontidão não tivesse críticos5. De todo modo, tais práticas foram atualizadas nos anos 1960, com a iniciativa de oficializar-se um período preparatório na rede pública de escolas municipais paulistas.
O documento orientador das atividades a serem realizadas, que caracterizava o período preparatório na rede de escolas da Prefeitura do Munícipio de São Paulo - PMSP, indicando ações do Departamento Municipal de Ensino, em sua Divisão de Orientação Técnica, explicitava os objetivos desse período:
conhecer as crianças para reagrupa-las; proporcionar atividades que criem condições de ajustamento ao trabalho escolar e levem as crianças a uma superação gradativa das dificuldades que por ventura apresentem e possam interferir na aprendizagem (SÃO PAULO, 1969, p. 2).
Reafirmava-se, assim, como em tempos anteriores, o objetivo de classificar as crianças para a montagem das classes escolares. Tal período supunha a realização de atividades com os alunos. O documento explicitava um rol dessas atividades, baseadas numa bibliografia de referência para o trabalho do professor.
De outra parte, na época de elaboração das orientações para a realização de um período preparatório pela PMSP, avizinha-se um novo período de transição, de mudanças da matemática a estar presente no ensino e aquela relativa à formação de professores.
Na década de 1950 tem início, internacionalmente, o que fica conhecido como Movimento da Matemática Moderna. No Brasil, esse movimento tem marca importante com a divulgação de obras, para o então curso ginasial, do professor Osvaldo Sangiorgi, desde os primeiros anos da década de 19606.
Por meio da bibliografia contida no documento da PMSP, que orientava as diretrizes de trabalho dos docentes, torna-se possível a análise dos saberes envolvidos no ensino e na formação de professores para o início da escolaridade primária. Desse modo, a análise desses livros mostra-se importante para conhecimento das referências sobre esses saberes.
Este texto analisa uma dessas obras indicadas aos professores, nas orientações referentes ao período preparatório de 1969 (São Paulo, 1969), precisamente o Manual Pedagógico para a Escola Moderna7.
Desde o título da obra, e particularmente na parte que envolve a matemática, intitulada “Matemática Moderna”, motivamo-nos a elaborar um primeiro questionamento: Que elementos da matemática moderna estão presentes para serem ensinados nos primeiros anos do ensino primário contidos na obra, orientando a formação de professores do ensino primário? O processo analítico a ser desenvolvido ampara-se, como se viu anteriormente, no desafio de construção da biografia do Manual. Seus primeiros elementos situam-se no contexto em que a obra é elaborada, mostrados anteriormente. Em seguida, tratamos de outros itens importantes para a biografia.
O MANUAL PEDAGÓGICO PARA A ESCOLA MODERNA: EDITOR, EDITORA, AUTORES...
Arnaldo Soveral é personagem que construiu sua atividade profissional com a venda de livros por coleções: as enciclopédias. Por longo tempo, a Barsa, a Delta Universal e a Mirador constituem a materialização da cultura e revelam a cultura letrada presentes nas casas, nas estantes das salas, como lugar de consulta ao que hoje rapidamente fazemos por internet, pelo google (CAMPELLO et al., 1993). Ao que tudo indica, o sucesso no trabalho com essas vendas de enciclopédias levou Soveral a organizar as suas próprias enciclopédias e obras, fundando a Editora Pedagógica Brasileira- EPB, no início da década de 1960.
Um dos momentos mais significativos da história da EPB refere-se ao lançamento de uma enciclopédia da própria editora: a Enciclopédia Universal. Abaixo dois excertos desse tempo:
ENCICLOPÉDIA - A Editora Pedagógica Brasileira lançará em São Paulo no próximo dia 28 a Enciclopédia E. P. B. Universal, que afirma ser “uma enciclopédia eminentemente nacional e, sobre todos os aspectos, capaz de honrar a indústria editorial do País”. O diretor-presidente da empresa, sr. Arnaldo Soveral, diz que o lançamento da Enciclopédia será “um ato de fé na cultura nacional” (JORNAL DO COMMERCIO, 20/02/1969).
Badaladíssimo o coquetel que o Arnaldo Soveral ofereceu sexta-feira, no Clube Nacional, em São Paulo, para apresentar sua Enciclopédia Universal. Fretou um avião especial para levar jornalistas e gente ligada à cultura na Guanabara (...) alguns coronéis do Ministério da Educação e Cultura (...) (O JORNAL, 4/3/1969).
Assim, como as matérias acima citadas, revistas e jornais de época mostravam as ações do editor Soveral no sentido de divulgar a sua editora e os livros por ela publicados. Desde logo, seu proprietário percebe que realizar atividades de marketing constituía-se em fator essencial para a venda de seus livros. Em boa medida, as matérias publicadas em jornais e revistas da época, subentendem terem sido reportagens pagas pelo editor. Tratavam-se a todo tempo de textos elogiosos à EPB e a seu editor. Além disso, eram artigos publicados indicando o lançamento de novas obras, divulgando esses livros. Também os contatos com políticos e pessoas influentes no meio educacional mostravam-se sempre presentes nas reportagens sobre a editora e seus livros.
Todas essas ações de Soveral também estavam presentes no lançamento do Manual Pedagógico para a Escola Moderna. O Manual teve seus primeiros volumes publicados nos meses finais de 1967 (Revista “O CRUZEIRO”, 15/7/1967).
O lançamento do Manual foi precedido de longa reportagem na revista “O Cruzeiro”, considerado o principal periódico ilustrado brasileiro da primeira metade do século XX (BARBOSA, 2002). A reportagem de página inteira8, com fotos de Soveral tem por título “O professor não está só”. O texto descreve as várias publicações da EPB e à certa altura menciona:
o Atlas Pedagógico, tornando-se fonte de consulta permanente dos professores, acabou por revelar a necessidade de algo ainda mais amplo e mais completo: o Manual Pedagógico Para a Escola Moderna, destinado ao nível elementar. É uma verdadeira biblioteca para os mestres, em 4 volumes. Nela, a professora encontrará toda a matéria do primário, desde o primeiro até o último ano, já dividida em planos de aulas por educadores especializados (Revista “O CRUZEIRO”, 15/7/1967).
Desde logo, já se tem uma característica própria da obra: ela seguia a proposta da editora, tendo em vista o trabalho com enciclopédias, elemento fundante da EPB. Assim, o Manual não constituía um livro didático isolado, mostrava-se como uma enciclopédia de consulta pelo professor, com aulas e planos de trabalho. Tal tipo de impresso veio na esteira do sucesso de vendas de enciclopédias para famílias de modo a revelar num dado tempo, sem internet, como obter informações sobre qualquer tema. O Manual especializou-se como instrumento de formação continuada de professores, no linguajar que usaríamos em tempos atuais: “O professor não está só” ...
Constituindo-se como enciclopédia, o Manual Pedagógico para a Escola Moderna - técnicas de ensino, 1.º grau9 (Figura 1) - este o seu nome completo - teve autoria de uma equipe de professores especializados nas matérias do currículo escolar primário. Foi uma obra editada em quatro volumes, relacionados da primeira à quarta séries do primário.
As autoras que assinam a obra destacaram que “numa orientação pedagógica simples, válida em qualquer escola brasileira, foram buscadas soluções adequadas para a atividade do professor e dos alunos” (Prefácio, s.d., p. 9). Segue que, a partir da Lei de Diretrizes e Bases 4.024/1961, novas formas de comportamentos de governantes e governados foram sendo assumidas, e que a obra contribuía com experiência e conhecimentos que auxiliariam no processo de comunicação escolar. Ademais, de algum modo, essa obra seria “útil à renovação pedagógica em nossas escolas... de alguma sorte para o aperfeiçoamento e desenvolvimento de uma escola renovada...” (Prefácio, s.d, p. 10).
A autoria da “Matemática Moderna”10, como se intitulava a parte de matemática destinada aos professores normalistas, é da professora Idalina Ladeira Ferreira. Diplomada pela Escola Normal de Santo André, de São José do Rio Preto - SP, licenciou-se em pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do OMEC de Moji das Cruzes - SP, atuou como professora de metodologia para professores primários do Colégio Visconde de Porto Seguro e Colégio Campos Salles de São Paulo - SP, também foi professora de metodologia da matemática do Setor de Orientação Pedagógica de São Paulo. Foi, ainda, coordenadora do setor de Orientação Pedagógica da chefia do ensino primário do Departamento de Educação de São Paulo (CASTRO et. al., s.d). Essas linhas do currículo da professora encarregada de escrever a parte de Matemática logo nos remetem à estratégia utilizada pelo editor Soveral de convidar professores ligados à produção curricular, posicionados no âmbito das instâncias oficiais orientadoras do ensino. Algo valioso tanto para o livro em si mesmo, como para a sua divulgação.
O Manual Pedagógico para a Escola Moderna - técnicas de ensino, 1.º grau, contém 509 páginas, sendo 124 páginas relativas à “matemática moderna”. Destinado aos professores do curso primário e normalistas, abordava os conteúdos de modo a contemplar o trabalho docente oferecendo “o que existe de mais atual no campo da didática” (CASTRO et al., s.d., p. 8). O Manual integrava a coleção de materiais da EPB, tendo como autores uma equipe de “professores especializados nas matérias do currículo escolar primário” (p. 8). É uma obra editada em quatro volumes, relacionados da primeira a quarta série primária. Não consta no Manual a data de publicação, tampouco o número da edição, no entanto, no Prefácio da obra é dito que este material acompanha o sentido do Plano Nacional de Educação (1968-1971), que já possuía um esboço, dado pelo Conselho Federal de Educação. De outra parte, como mostramos acima, os primeiros volumes da obra foram publicados em finais de 1967.
O MANUAL PEDAGÓGICO PARA A ESCOLA MODERNA: MATERIALIDADE, ORGANIZAÇÃO DO TEXTO, REFERÊNCIAS...
Como já mencionado, o Manual era destinado aos professores e às normalistas. Apesar de termos encontrado outros dois volumes dele, decidimos analisar apenas o volume relativo à primeira série primária, em específico, considerando a seção de “Matemática Moderna”. No Prefácio da obra, ao leitor é trazida a ideia da expansão que o livro didático nacional vinha ganhando, no setor público e privado; além disso, buscava-se convencer o usuário do Manual, da necessidade de um programa de desenvolvimento e atualização da escola brasileira.
O livro foi impresso com três estilos de fontes (normal, negrito e itálico), de acordo com o ponto que se queria dar destaque. A denominação dos capítulos, títulos e subtítulos foram grafados em caixa alta e negrito. Após o Prefácio, apresentava-se um minicurrículo dos autores. Na sequência era proposta uma discussão sobre o currículo da escola brasileira, para isso buscava-se elucidar em seis páginas os seguintes pontos: conceituação; significação; a escola e o currículo; as necessidades sociais e a educação; currículo e o método; o currículo e a aprendizagem; os objetivos da escola; o pessoal do ensino; e orientação pedagógica das escolas e dos professores e diretores.
O Manual não apresenta um índice detalhando o que é abordado, mas sim um índice geral que contempla as disciplinas incluídas na obra - língua pátria, matemática, estudos sociais, ciências, saúde, educação artística, educação física e educação musical.
Entre as obras postas na bibliografia, há referências a livros utilizados para a composição da parte de matemática. Assim, encontrava-se o livro Metodologia da Matemática, de Irene de Albuquerque; o livro Matemática na Escola Primária Moderna, de autoria de Rizza de Araújo Porto e Norma Cunha Osório; um segundo livro de Rizza Araújo Porto, intitulado Frações na Escola Elementar - PABAEE; além do livro de Osvaldo Sangiorgi, Matemática - curso moderno. Esse conjunto de obras revela livros elaborados em período anterior ao MMM e uma obra que se constituiu em ícone da matemática moderna - o livro de Sangiorgi - para o então ginásio, anos posteriores aos quatro anos do curso primário, escrito no âmbito do GEEM - Grupo de Estudos do Ensino de Matemática, grupo que protagonizou o Movimento no Brasil (VALENTE, 2008). Assim, é possível conjecturar que o Manual, relativamente à parte de matemática, chamada “Matemática Moderna”, orientou-se por organizar uma proposta considerando a matemática do período anterior ao MMM e, também, referências vindas de obras mais recentes, como o livro de Sangiorgi. No entanto, a bibliografia não inclui obras que já tinham sido publicadas para os primeiros anos do ensino primário, no âmbito do GEEM. Uma explicação para esse fato é a de que tais obras, para o curso primário, tiveram publicação posterior, não tendo sido do contato da autora da “Matemática Moderna” do Manual, ao tempo de sua elaboração11. A publicação, em 1967, dos primeiros volumes do Manual, coincidiu ainda com o lançamento do “Curso Moderno de Matemática para Escola Elementar” de Anna Franchi, Manhucia Liberman e Lucília Bechara, autoras ligadas ao GEEM.
Elaborado e divulgado em tempos que precederam a oficialização do período preparatório, o Manual revelava ter se adiantado às preocupações com a formação de professores, oferecendo-se como uma solução para o ensino nos primeiros anos do ensino primário. As ações de Soveral levaram o Manual a constituir-se em referência para os professores, posta na documentação da Prefeitura do Município de São Paulo, em 1969. Assim, reveste-se de importância analisar a parte dita “Matemática Moderna” do Manual, tendo em vista a interrogação norteadora desde estudo: Que elementos da matemática moderna estão presentes para serem ensinados nos primeiros anos do ensino primário contidos na obra, orientando a formação de professores que ensinam matemática?
O MANUAL PEDAGÓGICO PARA A ESCOLA MODERNA: A “MATEMÁTICA MODERNA”
Como diálogo inicial, a autora de matemática do Manual destacou algumas características para o ensino da 1.ª série primária, o qual visava: i) aprendizagem do significado de números; ii) domínio das operações; iii) desenvolvimento das habilidades de cálculo e raciocínio (CASTRO et al., s.d., p. 127).
O interesse e a adaptação da criança estariam garantidos no período preparatório, durante o qual o professor compreenderia melhor seus alunos, inculcando-lhes bons hábitos e necessárias habilidades.
Além disso, o período preparatório seria um tempo para ajustar o “[...] desenvolvimento das habilidades necessárias para a iniciação à leitura, à escrita e à matemática” (CASTRO et al., s.d, p. 127). Assim sendo, o professor se identificaria com os alunos, e estes se identificariam entre si.
Do ponto de vista de uma visão geral dos conteúdos abordados no Manual Pedagógico para a Escola Moderna, tem-se uma relação de tópicos a serem ensinados (ver Quadro 1). Constata-se que a obra foi dividida em período preparatório, que compreendia a introdução do vocabulário matemático, o estudo de contagem, conjunto (com situações de agrupamento, correspondência e combinação); seguido pelo estudo do sistema de numeração, números ordinais, operações elementares (adição, subtração, multiplicação e divisão); a partir daí seguem ideias iniciais do que poderia conduzir ao estudo de frações (no volume 2 desta obra), acompanhado do estudo de unidades de medidas e concluindo com geometria.
Período Preparatório |
Sistema de Numeração |
A Linha Numérica |
Números Ordinais |
Conhecimento do Calendário |
Operação: Adição |
Operação: Subtração |
Operação: Multiplicação |
Operação: Divisão |
O significado das Operações |
Noção de Metade |
Noção de Dúzia e Meia Dúzia |
Sistema Monetário Brasileiro |
Medidas de Tempo |
Numerais Romanos |
Resolução de Problemas |
Geometria |
Fonte: Elaborado pelos autores
O estudo de conjuntos aparece de imediato no período preparatório, no Manual Pedagógico para a Escola Moderna, com tarefas que solicitam aos alunos que montem conjuntos com o uso do flanelógrafo (Figura 2). As noções de quantidade eram também objeto durante o estudo de conjunto, pois, ao construírem os conjuntos, o professor solicitava aos alunos que contassem quantos elementos havia em determinado conjunto, chegando a observar o conjunto vazio (Figura 3).
Na sequência são realizadas experiências em agrupar, utilizando os cartões relâmpagos e o contador (ábaco). No momento seguinte, ensinava-se correspondência, que aparecia em exercícios do tipo: “venham aqui os alunos desta fila. Quantos elementos tem este conjunto de alunos? [...] - O conjunto das lâmpadas da nossa classe quantos elementos tem?” (CASTRO et al., s.d., p. 155). Após este processo são estudados combinação, complementação de conjuntos e agrupamento.
Até a última parte que englobava os conjuntos, ampliava-se o conceito estudado com situações envolvendo noções de tamanho, de posição e de quantidade. A análise da parte que apresenta as ideias de conjuntos mostra que o professor deveria ir construindo de modo gradual as etapas, erigindo compreensões sobre quantidade, passando para uma observação e uma representação escrita do valor numérico.
Os conjuntos, as suas operações e a terminologia associada são depois usados em novas definições de alguns elementos aritméticos. Por exemplo, a Figura 4 mostra que a leitura e a escrita dos números passam a ser definidas, recorrendo a conjuntos.
Em outro caso, temos a solicitação do uso de conjunto para o estudo das operações elementares e também para o caso de noções de metade, conforme pode ser observado nas Figuras 5 e 6.
A autora problematizava o estudo do sistema de numeração, a partir do momento em que o aluno conseguia identificar, reproduzir e agrupar quantidades de 1 a 9. Essa abordagem é recomendada durante o período preparatório, quando é sugerida uma discussão sobre conjuntos.
Durante todo o texto, a autora utiliza o vocabulário matemático de conjuntos, realizando agrupamentos para poder ensinar as ideias de unidade, dezena e centena. São propostas questões do tipo: “Porque só tem um elemento. Quem sabe o nome de um só elemento do conjunto?”; “- vamos desenhar um conjunto de 10 elementos.”; “- cada conjunto de 10 elementos tem um nome especial. Alguém sabe?” (CASTRO et al., s.d, p. 166-167). Após este processo eram estudados a dúzia, a condução para a escrita de valores maiores que dez, números pares e ímpares, linha numérica, e números ordinais.
A todo momento, a autora sugere que o professor faça uso do flanelógrafo, lousa, caixa com três divisões. Também aconselha que o professor conte histórias (Figura 7), dramatizações e poesias.
Em todos os estágios, a autora ia sugerindo situações planejadas em sequência crescente de dificuldade, por exemplo, partindo de uma situação mais simples: “complete: ... 2 ... 4 ... 6 ... 8 ... 10 ... 12 ... 14 ... 16 ... 18 ... 20.”; chegando a situações que envolve problema “- você vai tomar o elevador para ir ao 5.º andar. Vai apertar o botão do lado par ou ímpar?”.
Os numerais romanos são também estudados, solicitando que sejam escritos os primeiros 10 algarismos romanos e que os seguintes são consequência, no qual se repetem as letras equivalentes e que cada letra só pode ser utilizada três vezes.
As operações elementares (adição, subtração, multiplicação e divisão) são dadas obedecendo à seguinte sequência: preparo (ilustrações/desenhos ou uso de materiais manipuláveis); apresentação simbólica; uso de situações abstratas. Exercícios teóricos em forma de problemas são comuns durante o estudo das operações, por exemplo: “Coloquei 3 flores num vaso onde já havia 5. Arme e resolva a operação que eu fiz.”; “4 patinhos estavam nadando. 2 saíram da água. Quantas ainda nadam?”; “Uma borracha custa 23 cruzeiros. Quanto custam 3 borrachas iguais?”; “Clara tem 9 flores para colocar em 3 vasos. Quantas flores colocará em cada vaso?”. Sempre há uma progressão na dificuldade com a qual deve ser trabalhado o conteúdo.
Percebemos uma ampliação de ordem de grandeza com exercícios de números representados por dois algarismos. O conteúdo de numerais romanos também é trabalhado com situações que envolvem operações.
A descrição do tratamento dado à matemática, a partir do extrato considerado nas linhas acima reafirma o que se disse antes, tendo em conta a bibliografia dessa parte do Manual. Trata-se de abordar temas aritméticos buscando conservar formas didáticas já existentes em livros anteriores ao MMM, ajuntando conteúdos propagados por esse movimento. Em particular, o tópico “conjuntos” acaba por tornar-se ícone do MMM, em termos de mudanças na matemática a ser ensinada. No entanto, a inclusão de conjuntos no Manual representa uma apropriação cujo resultado é muito diverso do que era propugnado pelo MMM. No Movimento, conjuntos devem ser a linguagem estruturante de toda a matemática, devem mesmo constituir tópico inicial, levando os alunos a aprenderem relações (álgebra) para, posteriormente, iniciarem estudos da aritmética.
Diferentemente do que iria ocorrer em época de consolidação do MMM, os livros didáticos indicados para o ensino de matemática do 1º. Grau - por exemplo, os da coleção GRUEMA - iniciavam pela álgebra, pelo estudo das relações entre conjuntos para, posteriormente, ser tratado o sistema de numeração etc. Nessas obras, seriação, ordenação e comparação entre conjuntos constituem-se em atividades algébricas prévias para que o aluno compreenda que número expressa a mesma cardinalidade entre dois conjuntos. Não é sob essa perspectiva das estruturas que se apresenta a “matemática moderna” do Manual.
Dessa maneira, é possível dizer que a obra reunia o modo já tradicional de tratar a organização do ensino de aritmética, incorporando elementos vindos da vaga intuitiva, no trato com materiais e uma didática de lição de coisas, com uso de materiais e ilustrações pelo professor, ajuntando a ideia de conjuntos na exposição das operações aritméticas. Essa estratégia representaria um amálgama de estruturação tradicional dos conteúdos e uso de materiais apregoados pelo método intuitivo, junto com o que se transformou em emblema do MMM: os conjuntos. Não o faz, de outra parte, como elemento estruturante e organizador de uma nova aritmética. Acrescentou a ideia de conjunto utilizando-a sem referência matemática, tratando-a como forma didática de ensino de um rol de conteúdos já estabelecidos há tempos. Exemplo disso, é o tratamento de número, em que os professores são orientados a levarem os alunos a realizarem uma “contagem mecânica” e, posteriormente, a uma “contagem concreta”.
Assim, não é a partir dos conjuntos que a aritmética da “Matemática Moderna” do Manual apresenta-se como moderna. Não é a partir da teoria dos conjuntos, vinda antes da aritmética, com o trato das relações, com a introdução da álgebra antes da aritmética, que o Manual explicita uma matemática moderna que tenha incorporado o ideário desse movimento internacional. O amálgama realizado constituiu uma apropriação do MMM, de modo a que não haja maiores transformações no modo como a aritmética apresenta-se tradicionalmente em sua sequência de tópicos a ensinar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise de épocas de transição é algo complexo. Em um dado tempo convivem diferentes concepções de ensino, de saberes que devem ser ensinados e também presentes na formação de professores. Nesse caso, em sentido amplo, todas as épocas são de transição, pois reúnem sempre diferentes propostas. No entanto, cada tempo pedagógico é caracterizado por uma dada perspectiva que ganha mais divulgação e aceitação. Em termos de obras didáticas, isso pode ser avaliado pelo número de edições de uma dada obra, pela sua longevidade, pelo número de exemplares editados.
Relativamente às propostas do ensino de matemática que se mostraram alinhadas ao MMM, figura a coleção do GRUEMA. Estudos, como os de Villela (2009), revelam que tal coleção teve milhões de exemplares, constituindo-se em proposta que, de certo modo, consolida a escrita didática da matemática moderna para os primeiros anos do ensino primário.
A biografia que foi possível escrever do Manual Pedagógico para a Escola Moderna, em termos da rubrica “matemática moderna”, que deveria orientar o trabalho pedagógico dos professores e normalistas no trato com a matemática, revela que a obra se situa num período de transição, entendido em sentido estrito, situado entre o abandono do discurso vigente e aquele dos novos ventos do MMM, consolidados por obras como as do GRUEMA. O Manual está presente em um período onde as obras didáticas vão se ajustando ao novo, à nova proposta de cunho internacional. O mundo editorial, em especial aquele voltado para difundir a matemática moderna em nível escolar ganha enorme impulso e obriga autores a remodelarem as suas obras. Alguns, com experiência internacional, decalcam propostas vindas dos EUA, da Europa. Outros, buscam adaptar textos anteriores ao Movimento, incorporando alguns elementos de modernidade nas propostas de ensino. Este é o caso do Manual e seu modo próprio de incluir o tema conjuntos nos conteúdos a ensinar.
A trajetória da obra, como se viu em sua biografia, revela influências políticas e ações bem engendradas de seu editor. Em análise macro, a documentação oficial da PMSP, no estabelecimento do período preparatório, mostra a extrema proximidade da proposta oficial vigente àquela posta no Manual.
Em termos dos tempos de circulação de obras por meio de coleções, de enciclopédias, conjectura-se que o Manual terá tido circulação entre professores e normalistas, além de ter sido adquirido por famílias como material de consulta. Isso ocorre, sobretudo, no período em que o GEEM e outros grupos brasileiros ainda estavam no início de suas ações, propostas e publicações de obras de matemática moderna para os primeiros anos do ensino primário. O Manual, assim, revela-se como proposta de um período de transição.
Na resposta à questão: Que elementos da matemática moderna estão presentes para serem ensinados nos primeiros anos do ensino primário contidos no Manual, orientando a formação de professores que ensinam matemática?, caberia dizer que a inscrição “Matemática Moderna” no Manual deveria ser entendida como uma apropriação que a professora normalista e pedagoga Idalina Ladeira Ferreira faz do MMM. Trata-se de ajuntar aos volumes reunidos sob o título Manual Pedagógico para a Escola Moderna, a matemática. E a matemática para a escola moderna foi denominada “Matemática Moderna” com a inclusão do tema conjuntos, sem que isso alterasse a organização da aritmética como propunha o ideário do MMM. Refere-se, pois, a uma proposta transitória, rumo ao ensino e à formação de professores em termos da matemática das estruturas.