I
O tempo presente vive intensa crise da formação, a qual também é obviamente fruto da crise social, econômica e política mais ampla. Somos assolados pela avalanche do ultraconservadorismo autoritário que pretende varrer do mapa experiências sociais solidárias e cooperativas, impondo versão revestida de darwinismo social que faz valer o interesse do mais forte, dos grandes grupos corporativos, econômicos, políticos e religiosos. De outra parte, a crise da formação significa hoje, assim como já o fora no passado, uma luz “resistente” contra forças políticas fascistas e autoritárias. Isso indica que, do ponto de vista democrático, uma saída racional plausível repousa na educação e, neste contexto, a Bildung2 rejuvenescida continua sendo hoje, como também o fora ontem, o antídoto resistente contra a barbárie.
Neste contexto, torna-se importante refletir sobre produções intelectuais que investigam o problema da crise da formação, vinculando-a com seus contextos sócio-históricos originários. Uma publicação recente tem chamado a atenção pelo modo como enfrenta o problema da crise da formação e, ao mesmo tempo, pela maneira original que interpreta a leitura que Theodor W. Adorno (1903-1969) faz dos escritos menores de Immanuel Kant (1724-1804). Referimo-nos ao livro de Adriano Januário, intitulado Educação e resistência em Theodor W. Adorno, publicado recentemente pelas Edições Loyola (JANUÁRIO, 2020). O leitor tem diante de si um trabalho bem articulado, com problema de investigação e fio condutor claros, com soberania na escolha das fontes originais e na reconstrução do texto adorniano. Deste modo, as pesquisas sobre formação humana, teorias educacionais e a problematização do significado de processos pedagógicos para o fortalecimento da esfera pública democrática precisam dialogar, de agora em diante, com este esforço empreendido por Januário de atualização das ideias educacionais do pensador frankfurtiano. Pois, como procuramos argumentar na sequência, Adorno ainda continua sendo um autor importante para pensar a educação atual, principalmente, por tudo aquilo que tem ocorrido no campo político-governamental brasileiro. Deste modo, o recurso à investigação de Januário torna-se, para nossos próprios objetivos, um leitmotiv para voltar aos próprios textos de Adorno, visando encontrar neles possibilidades de crítica à deformação da educação contemporânea e, ao mesmo tempo, reatualizar aspectos normativos da Bildung clássica.
Considerando o arrazoado acima, faremos, na primeira parte do ensaio, um recurso aos textos de Adorno deixando-nos orientar, em parte, pela interpretação de Januário. O exercício reconstrutivo empreendido aqui possui a finalidade de reter alguns aspectos da noção adorniana de Bildung que ainda possam nos servir de referência à crítica político-educacional atual. Na parte final do ensaio procuramos esboçar uma crítica ao nexo pensado por Adorno entre maioridade (Mündigkeit) e democracia, recorrendo brevemente à noção de democracia como forma de vida de John Dewey. Adotamos tal postura mais com o propósito de assinalar possíveis afinidades eletivas entre esses dois autores no que se refere à noção de democracia do que insistir nas possíveis e inúmeras divergências que há entre suas ideias. Por isso, sustentamos que a reivindicação adorniana de que a democracia não se reduz somente a um procedimento político formalizado e nem tem aí seu significado mais importante, mas precisa ser idêntica com o povo mesmo (identisch mit dem Volk selber), sendo expressão crítica de suas manifestações culturais, éticas e políticas, possui forte parentesco com a concepção da democracia como forma de vida defendida por John Dewey. Ou seja, trata-se de uma perspectiva teórica, em certo sentido presente nos dois autores, que enfatizam a dimensão participativa da democracia enquanto forma de assegurar a própria legitimidade de sua dimensão representativa.
II
Começamos com o diagnóstico do tempo presente tratado por Januário no primeiro capítulo de seu referido livro e que lhe serve como fio condutor para a investigação dos capítulos seguintes. A expressão diagnóstico do tempo presente é singular à tradição da teoria crítica já em seu esforço pioneiro empreendido por Karl Marx (1818-1883) de investigar a lógica interna que constitui a organização socioeconômica de determinada época, analisando-a em sua formação histórico-dialética. Enquanto teórico crítico, Adorno insere-se obviamente nesta ampla tradição intelectual e, ao oferecer o diagnóstico de seu próprio tempo, mantém, contudo, a tese marxiana do discernimento crítico da organização socioeconômica como condição de possibilidade da práxis política. Dito em outros termos, o que está em jogo aí é a importância de se compreender o mundo em que se vive para melhor poder nele atuar. Esta pergunta é crucial para as ciências humanas e sociais, especialmente, para a educação, uma vez que o problema formativo de educar e se deixar educar ganha maior fôlego e adequação quando orientado pela pergunta sobre o tipo de sociedade em que se vive e quais são os conflitos de fundo que a constituem. Em síntese, sob esta perspectiva, teorias educacionais críticas dependem de seu vínculo estreito com o diagnóstico aprofundado da atualidade.
Como Januário enfrenta este problema do diagnóstico do tempo presente e que significado isso assume para sua interpretação de Adorno? Como a educação é seu tema de investigação e como Adorno tratou deste tema de maneira mais detalhada nas décadas de 1950 e 1960, então o autor toma para si a tarefa de investigar o diagnóstico de época, formulando a importante tese da “mudança de perspectiva” de Adorno em relação ao diagnóstico das décadas anteriores, sintetizado na obra Dialética do Esclarecimento, escrita em parceira com Horkheimer e publicada em 1947. Cabe lembrar que nesta obra os autores assumem, como linha dorsal, a ideia da sociedade administrada, fazendo quase desaparecer possibilidades de resistência às estruturas opressoras do capitalismo tardio. Em sua Teoria da Ação Comunicativa Jürgen Habermas estandardiza esta apreciação ao afirmar que Adorno e Horkheimer ancoram a tese da sociedade “totalmente” administrada a um modelo de crítica total à razão e o fazem, segundo o próprio Habermas, porque ainda se encontram prisioneiros das aporias internas da filosofia do sujeito. Januário ergue-se contra esta influente leitura habermasiana - inclusive, também muito influente entre nós, no Brasil -, mostrando que o diagnóstico das décadas de 1950 e 1960 não pode mais ser simplesmente subsumido ao eclipse da razão, fruto da sociedade administrada. E, o motivo principal disso é que Adorno encontra na educação como formação humana, e em muitos fenômenos sociais marginais, potenciais de resistência (Widerstand) contra a dominação social e política. Sendo assim, e podemos corroborar com esta leitura de Januário, sem renunciar de maneira definitiva da emancipação (Emanzipation), Adorno se agarra, contudo, à resistência, tomando-a como conceito chave da atualização da educação para a maioridade. Bem nos trilhos da vertente crítica do esclarecimento moderno, Adorno coloca a noção de resistência como condição de possibilidade da maioridade. Ele indica, inclusive, como veremos na parte final do ensaio, o trabalho intelectual crítico do professor junto aos seus alunos, em sala de aula, como exercício formativo concreto de resistência à indústria cultural resultante da sociedade administrada.
Ora, é precisamente esta singularidade interpretativa - que põe a resistência como condição de possibilidade da maioridade - que os pequenos escritos de Adorno passam a ganhar atualidade como fio condutor da crítica à educação contemporânea. Também é nesta perspectiva que o trabalho de Januário se torna relevante às pesquisas educacionais críticas, pois coloca novamente em primeiro plano a questão de saber como a educação pode fazer frente às estruturas sociais autoritárias e injustas. Por isso, é importante resgatar o Adorno teórico da educação como resistência e, para que isso se concretize, faz-se necessário distanciá-lo da leitura estandardizada que o reduz ao modelo de crítica total da razão, prisioneiro do “paradigma da subjetividade”. Neste contexto, precisamos referir, contra Habermas, que já na Dialética do Esclarecimento não ocorre o abandono por inteiro da busca por maioridade (Mündigkeit) como forma de resistência às forças sociais dominantes, pois Adorno e Horkheimer apostam aí, ainda que timidamente, na “força do conceito” e no poder libertador da arte. Ora, é precisamente este poder esclarecedor do conceito que servirá de norte à educação como resistência nos pequenos escritos educacionais das décadas de 1950 e 1960, ancorados na Mündigkeit kantiana.
Em síntese, dois aspectos ficam assinalados nesta nossa primeira observação: a) teorias educacionais críticas dependem de adequado diagnóstico de época, sendo que no caso específico de Adorno, a ideia de educação como resistência repousa também no trabalho intelectual esclarecido, orientado pela força crítica do conceito (reflexão); b) por mais forte e autoritária que possa ser a dominação social e política, ela pode retardar, mas não impedir por completo o surgimento de forças de resistência e, neste contexto, a educação como Bildung recriada significa a fagulha que pode acender a todo o momento a chama do esclarecimento crítico. Esta dupla perspectiva certamente ganharia maior força argumentativa em seu livro se Januário tivesse ousado confrontar-se criticamente, de maneira mais sistemática, com a interpretação reducionista de Jürgen Habermas. Tal confronto é imprescindível, entre outras razões, porque a leitura habermasiana do pensamento de Adorno sombreia inaceitavelmente um aspecto nuclear de seus escritos tardios menores, a saber, a educação como resistência à dominação social e política.
III
Uma segunda observação refere-se ao modo como Januário traduz e interpreta a Mündigkeit adorniana e que papel educacional lhe reserva. Este problema tem a ver com a escolha da tradução, a qual é certamente resultado de posicionamento teórico e político do autor. O termo Mündigkeit se consolidou na recepção educacional adorniana brasileira por ser traduzido como emancipação e, por isso, é importante reconstruir as razões que o conduzem a optar pela expressão maioridade em vez de emancipação.
Mündigkeit ganhou notoriedade filosófico-formativa mais precisa, como sabemos, com a reflexão de Kant sobre o significado do esclarecimento, feita no pequeno opúsculo Resposta à pergunta: O que é esclarecimento? (Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?) e diluída em suas obras sistemáticas. O esclarecimento não possui no referido ensaio, como argumentam acertadamente Dietrich Benner e Friedhelm Brügger, só significação jurídica e nem se refere exclusivamente ao indivíduo, no sentido de que ele pudesse tornar-se autônomo isoladamente. A maioridade possui, então, significação formativo-social, pois Kant afirma que a busca por autonomia individual depende da sapere aude como exercício reflexivo entre indivíduos, na esfera pública (Öffentlichkeit). Existem obstáculos individuais que precisam ser enfrentados pelo próprio educando, como a preguiça e a covardia, contudo, tal enfrentamento só pode ocorrer por meio dos cuidados do educador adulto bem formado. Assim afirmam os referidos autores:
O esclarecimento é compreendido como tarefa que se prolonga inacabadamente, não simplesmente no sentido de que adultos maiores estão em oposição a crianças menores, mas sim que os próprios adultos procuram esclarecer a si mesmos. Sendo assim, Kant compreende o esclarecimento como um processo sem fim natural ou teleológico (BENNER; BRÜGGER, p. 691).3
É importante notar, para tratar posteriormente do modo como Adorno compreende a relação entre maioridade e crise da formação, que Benner e Brüggen concebem a presença da perspectiva intersubjetiva já no próprio pensamento de Kant, na medida em que acentuam o vínculo do processo do esclarecimento kantiano com o surgimento da comunicação pública, a qual pressupõe e ao mesmo tempo possibilita o autoesclarecimento individual. Está ênfase política da maioridade recebe significação formativo-pedagógica clara nas Preleções sobre Pedagogia, onde Kant atribui ao educador (adulto) o papel de ensinar o educando (criança) a pensar por conta própria. O cumprimento dessa tarefa pressupõe a “educação do educador” (Erziehung des Erziehers) e isso significa que a pedagogia do esclarecimento crítico acentua, já em sua origem kantiana, o trabalho intelectual do professor como condição indispensável da ampla formação cultural, sua e de seus alunos. Deste modo, o trabalho intelectual crítico do professor com base em sua formação cultural consistente é, segundo Adorno, como veremos adiante, premissa decisiva da pedagogia do esclarecimento crítico para evitar que Auschwitz se repita.
Este contexto kantiano originário auxilia a compreender melhor as duas razões que conduzem Januário a traduzir, em seu referido livro, Mündigkeit por maioridade. A primeira razão relevante é que na tradição da teoria crítica, emancipação significou, do ponto de vista sociopolítico, o anseio de transformação profunda da sociedade, vinculando-se geralmente à ideia de revolução guiada por uma classe social ou por certos grupos sociais. Como Adorno vê interrompidas, de acordo com o diagnóstico que faz nas décadas de 1950 e 1960 da sociedade administrada, as possibilidades de emancipação neste sentido revolucionário clássico, então, torna-se mais coerente traduzir Mündigkeit por maioridade e não mais por emancipação.
A segunda razão, que é decorrente da primeira, repousa na escolha de Immanuel Kant como maior fonte intelectual para pensar o problema da maioridade. Considerando que as atuais circunstâncias econômicas, culturais e políticas bloqueiam as possibilidades da mudança de chofre (de salto), a saída ocorre pela educação, ou seja, pelo trabalho processual formativo das novas gerações, preparando-as culturalmente para novas formas de vida, diferentes daquelas impostas pela indústria cultural própria à sociedade administrada. Assim afirma o autor:
Por isso que a ideia de Mündigkeit no contexto da educação na obra de Adorno consiste num ‘conceito pedagógico, não jurídico’, que, no limite, indica uma educação que se volte para o estímulo do uso do ‘próprio entendimento’ (JANUÁRIO, 2020, p. 44).4
Como no capitalismo tardio não há mais possibilidade de transformação no sentido emancipatório acima indicado, então a aposta recai na educação como resistência, entendida como expressão crítica da própria maioridade, capaz de formar a postura ético-política do “não se deixar levar” (Nicht-Mitmachen), que é a força intelectual e política de resistência indispensável contra às mentalidades fascistas. Em síntese, a educação para a maioridade catalisa a formação para resistência contra o autoritarismo do crescente mundo administrado que fortalece a mentalidade fascista. Decisivo, neste contexto, para pensar o papel da educação escolar, é o trabalho intelectual crítico do professor em sala de aula, concebido por Adorno nas conferências radiofônicas da década de 1960.
IV
Nossa terceira observação refere-se à reconstrução apropriativa da teoria adorniana da Halbbildung desenvolvida por Januário no segundo capítulo de Educação e resistência em Theodor W. Adorno. Aqui, os problemas são muitos e complexos, envolvendo desde opções difíceis de tradução até a densidade e obscuridade do próprio texto adorniano. Januário opta pela tradução de Halbbildung como quasiformação, e não como semicultura ou semiformação, oferendo as razões da opção por essa tradução na nota 17 do capítulo II de seu referido livro. O problema, como esclarece o autor, não repousa tanto na expressão Bildung porque sua tradução como formação é mais consensual, mas sim na expressão halb, que pode adquirir vários significados, ao ser vertida para o português, como “metade” ou “semi”. Mas, podemos nos perguntar, porque adotar “quase” e não “metade” ou “semi”? Isso não teria a ver somente com uma questão de estilo e elegância de tradução ou se refere mais propriamente à questão de conteúdo que interfere diretamente no modo como se compreende o pensamento educacional adorniano? Verter Halbbildung como quasiformação diz respeito, como deixa a entender o autor, à questão de conteúdo: “Além da ideia de ‘metade’ ou ‘semi’, halb é também empregado com alguma frequência como ‘algo que não é, o que deveria ser’ (etwas ist nichts so, wie es sein soll)” (JANUÁRIO, 2020, p. 50).
Deste modo, o “quase” preserva, com maior clareza, o diagnóstico crítico do tempo presente, uma vez que mostra seus limites e contradições inaceitáveis. De outra parte, o “quase” contém também um ideal de “dever ser” indispensável ao pensamento crítico, pois é seu papel descortinar o horizonte de outros mundos possíveis, servindo como esclarecimento e alavanca da práxis humana e social.5 Portanto, sem incorrer no modelo de crítica total à razão, o “quase” denuncia o existente, preservando potenciais de resistência nele contidos e que estão vinculados com alguns aspectos da história passada, da qual tais potenciais são eles próprios herdeiros. Isso é o que parece indicar o autor na continuidade da mesma passagem da nota 17:
De modo geral [...] o termo Halbbildung em Adorno indica que a ‘cultura’ (burguesa), a partir da qual se constituía a ‘formação’, foi reorganizada de outra forma, de tal maneira a fixar e anestesiar, por assim dizer, os potenciais emancipatórios que a ideia de formação carregava consigo no momento de ascensão da classe burguesa (JANUÁRIO, 2020, p. 50).
Neste sentido, com a teoria da Halbbildung Adorno critica a inversão ilusória que o capitalismo tardio faz da educação, na medida em que ele (o capitalismo) faz crer que os ideais de liberdade e maioridade da Bildung clássica encontram plena realização no tempo presente. É assim que a terminologia “quase” também aponta para o cinismo dos grupos dominantes que, ao destruírem os ideais da Bildung, querem fazer acreditar que aquilo que colocam em seu lugar realiza integralmente a liberdade humana e social. Contudo, como o “fixar” e “anestesiar” não assumem no pensamento de Adorno a forma definitiva e absoluta da dominação social e política, permanecem em aberto diversas possibilidades de resistência, que precisam ser reavivadas, entre outros aspectos, pelo diálogo com os ideais da Bildung clássica. Precisamente aí é que se insere, então, o diálogo crítico de Adorno com a Mündigkeit kantiana, buscando reatualizar seu núcleo central para vertê-lo contra a decaída da Bildung em Halbbildung.
Neste contexto, o aspecto notadamente importante da teoria da quasiformação é que ela ultrapassa o âmbito educacional específico e torna-se crítica à cultura em sentido mais amplo, pois busca abarcar todo o processo de socialização do sujeito.6 Com os novos incrementos tecnológicos as relações sociais capitalistas assumem novas formas, dando origem também a novos modos de dominação. Neste sentido, a quasiformação sintetiza bem esta profunda mudança de cenário: “A quasiformação é a ‘suma’ [Inbegriff] da autodeterminação de uma consciência exteriorizada, uma consciência que não se reconhece mais a si mesma. Essa consciência é produto do ‘espírito alienado de si’, as relações sociais” (JANUÁRIO, 2020, p. 55). Como se pode observar, o modelo de crítica adotado aqui segue ainda, em linhas gerais, princípios do materialismo marxiano, mas é agora direcionado, com especificidade maior, para o amplo campo da cultura humana no âmbito do capitalismo tardio, revelando maior insistência no papel esclarecedor da educação como fonte de transformação dos sujeitos e da própria sociedade.
V
Precisamos concentrar-nos agora, na quarta observação, sobre o problema da “crise da formação”, que atravessa todos os capítulos do livro de Januário, como seu farol, ganhando, contudo, problematização mais específica no interior dos capítulos II e III. O que significa propriamente “crise da formação” e por que tal problema torna-se central não só à investigação do livro de Januário, mas também aos nossos próprios objetivos de rastrear na tradição da Bildung alemã clássica referências intelectuais para um conceito crítico de educação?7 Sua centralidade deixa-se esclarecer, primeiramente, pelo fato de Adorno, ao ser tributário da tradição cultural alemã, pensar suas ideias educacionais em diálogo estreito com a Bildung clássica. Assim, ele se filia, do mesmo modo como os intelectuais críticos de sua época, à tradição do pensamento moderno esclarecido, contrapondo-se, por um lado, às diferentes formas de servidão humana e defendendo, por outro, a liberdade autônoma, tanto individual como social. Em segundo lugar, a “crise da formação” torna-se nuclear porque Adorno, também como muitos intelectuais de sua época, é literalmente nocauteado pela ascensão da barbárie precisamente no coração da cultura. Ou seja, como esclarecer, então, que a poucos quilômetros da Casa Goethe, em Weimar, levantou-se Buchenwald, símbolo da crueldade humana, social e política? Esta questão desconcertante conduz Adorno a criticar a deturpação dos ideais clássicos da Bildung, ao mesmo tempo em que o conduz a se aprofundar na investigação dos traços autoritários presentes na cultura alemã de sua época (ADORNO, 2019). É no contexto de profunda violação dos ideais de maioridade que ele define como tarefa principal da educação impedir que Auschwitz se repita: “A exigência de que Auschwitz não ocorra novamente é a maior de todas no âmbito da educação. Tal exigência coloca-se tão à frente de todas as outras que acredito não ser possível e nem necessário fundamentá-la” (ADORNO, 1971, p. 88). Isso significa, em outros termos, impedir que a barbárie e crueldade humanas ganhem novamente forma organizada social e politicamente. Adorno acentua, então, a tese de que a pedagogia do esclarecimento com suas raízes na Bildung clássica é referência indispensável para impedir que Auschwitz se repita, sobretudo, porque tal tradição acentua a capacidade reflexiva como possibilidade de enfrentamentos dos problemas humanos e sociais.
Portanto, a reatualização de alguns ideais da Bildung serve como referência crítica à quasiformação e à concepção autoritária de personalidade, família e sociedade que ela sustenta. A Bildung, caracterizada, sobretudo em sua versão kantiana, como coragem e busca inquietante do pensar por si mesmo, impede a autodestruição da educação, ou seja, impede que ela se destrua a si mesma quando acontece como fenômeno individual e social. Assim afirma Januário: “Ao contrário da quasiformação, que necessita estar adaptada ao mundo tal como este se apresenta, a formação precisava de proteção de possíveis atrações do mundo exterior, de certas considerações dos sujeitos individuais e talvez até de lacunas de socialização” (JANUÁRIO, 2020, p. 74). Com isso, fica estabelecido que o conceito clássico da Bildung exige, como condição da autonomia individual, aquilo que precisamente a sociedade administrada nega, a saber, o momento de espontaneidade solitária que torna possível o pensar por si mesmo e, com ele, o autoexame crítico permanente. Não é por acaso que Wilhelm von Humboldt (1767-1835) concebe a solidão intelectual, juntamente com a liberdade, como duas âncoras da universidade moderna, compreendida como centro de pesquisa e ensino, isto é, como centro de formação do pensamento esclarecido e maior fonte de resistência contra qualquer tipo de barbárie.8
Outro aspecto importante da “crise da formação” e que mostra a importância atual do diálogo crítico com a noção clássica de Bildung refere-se à negação explícita, ocasionada pela sociedade administrada fruto do capitalismo tardio, da possibilidade da formação geral (Allgemeine Bildung). O projeto educacional moderno, que lança suas raízes na antiguidade, é amplo e plural, alimentando-se de muitas experiências, das quais algumas inclusive são contraditórias entre si. Contudo, tal projeto em sua vertente crítica parte da compreensão aberta de condição humana e, com base nisso, justifica a formação ampla das capacidades humanas. Este ideal de formação das capacidades encontra-se formulado em germe no pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1788), sendo desenvolvido posteriormente, de maneira sistemática, por Johann Friedrich Herbart (1776-1841), o qual justifica a dimensão formativa do ensino com base na pluralidade de interesse tanto do professor como do aluno. Tomando para si esta tradição pedagógica clássica, John Dewey talvez formule, no século XX, o maior e mais bem sucedido programa educacional de formação democrática das capacidades humanas, alicerçando-o na plasticidade individual e social da condição humana.
O problema é que, como alerta acertadamente Adorno, a sociedade cada vez mais controlada tecnologicamente nega a educação como formação da multiplicidade do interesse, focando somente nas competências que são úteis ao ajustamento dos sujeitos às demandas mercadológicas imediatas. Sob esta perspectiva, encontramos na teoria da quasiformação não só a crítica da educação atual, como também uma forma de reatualização daquela ampla tradição pedagógica, ao denunciar por meio da “crise da formação”, o caráter ideológico da educação mercantilizada, sustentada pela indústria cultural do capitalismo tardio. Contudo, a tendência diagnosticada por Adorno nas décadas de 1950 e 1960 só se fez aumentar com o neoliberalismo econômico atual e o reducionismo que ele provoca da Bildung ao paradigma da aprendizagem dominado pela linguagem das competências e habilidades. Por isso, talvez seja mais apropriado falar hoje não só de Halbbildung (quasiformação), mas também de deformação (Unbildung), uma vez que tal expressão caracteriza melhor a predominância da formação profissional voltada exclusivamente para o mercado neoliberal e suas novas formas de assujeitamento humano e social (LIESSMANN, 2014).
VI
Voltamo-nos agora para a quinta observação: Embora Adorno empregue a expressão “crise da formação” em sentido plural, que dificulta inclusive sua própria investigação, não há dúvida que com tal conceito ele quer também retomar aquela potencialidade crítica inerente ao ideal clássico da Bildung que fora progressivamente abandonado pelo desenvolvimento da burguesia, até culminar na quasiformação, em sua fase derradeira do capitalismo tardio. Em que consiste esta potencialidade crítica? Januário reserva o tratamento mais pontual desta questão para os dois últimos capítulos de sua obra, mostrando a herança nitidamente kantiana do aspecto normativo inerente à concepção de educação como resistência. Ou seja, é no diálogo com os escritos kantianos menores, especialmente com o ensaio Was ist Aufklärung? publicado por Kant no Berlinischer Monatsschrift, que Adorno procura reavivar a noção de educação como autorreflexão crítica.9
Neste contexto, Januário problematiza, no quarto capítulo de seu referido livro, a concepção de filosofia que justifica o papel intelectual do profissional e, com isso, também do próprio professor. Mostra que Adorno não se satisfaz com a noção de filosofia como análise lógica de conceitos, delegando-a o papel mais ampliado de formação viva do espírito humano, com a qual a formação profissional específica precisa dialogar. Ora, é como formação espiritual viva que a filosofia oferece a base reflexiva indispensável para que os futuros profissionais possam pensar sobre o que fazem, como fazem, onde fazem, para que fazem e, ao tomar a sério reflexivamente este questionamento, põem-se a caminho de pensar sobre si mesmos enquanto sujeitos que precisam ocupar responsavelmente seu lugar no mundo. Podemos ilustrar isso, recorrendo ao próprio Adorno: ao discutir a orientação da disciplina Filosofia na prova do estado de Hessen, ele destaca que não se trata de ensinar mecanicamente aos estudantes os conceitos mortos da história da filosofia, mas sim provocá-los a pensar por conta própria e a fazer uso adequado, vivamente, de tais conceitos de acordo com as exigências de seu tempo. Então, é este conceito cósmico de filosofia, como forma de vida e orientação de mundo, que possibilita reavivar o papel positivo do intelectual, retirando-o daquela escuridão imposta pelo nazifascismo. Sob este aspecto, Januário faz um comentário pertinente:
O esclarecimento público, a tematização pública dos problemas sociais, é, para Adorno, um dos papéis do intelectual. E o primeiro passo para ocupar essa função é ser capaz de refletir criticamente sobre sua posição e a posição de sua disciplina específica com o ‘todo social’, seja qual for a disciplina (JANUÁRIO, 2020, p. 115).
A autorreflexão crítica ocorre quando o intelectual é capaz de compreender a si mesmo no contexto de sua sociabilidade mais ampla, em referência tensional com os outros e com o mundo. Precisamente neste sentido que Adorno emprega a metáfora campo de força (Kraftfeld) para definir a formação humana em contraposição ao congelamento dos conceitos provocado pela semiformação. Ele expressa isso com nitidez na seguinte passagem de sua Theorie der Halbbildung:
Congele-se o campo de força (Kraftfeld) que se chama formação (Bildung) em categorias fixas, seja do espírito ou da natureza, da soberania ou adaptação, assim cada uma delas, isolada, cai em contradição com seu próprio sentido, fortalecendo a ideologia e promovendo o retrocesso da formação (ADORNO, 2003, p. 96; grifos nossos).
O avanço da formação implica, entre outras coisas, empregar adequadamente os conceitos, compreendendo-os em seu processo concreto e vivo de constituição histórico-social. Pois, saber empregar de maneira dinâmica os conceitos é condição indispensável para a crítica cultural e, no âmbito especificamente da educação formal, para o trabalho intelectual formativo do professor em sala de aula.
A reivindicação adorniana de filosofia antecipa, de certo modo, a concepção habermasiana que busca recuperar a filosofia de sua especialização fragmentada e prisioneira de pretensões metafísicas e cientificistas inadequadas. Deste modo, reavivando seu olhar clássico dirigido ao todo, a filosofia deixa de ser apenas uma disciplina especializada com pretensões de “indicadora de lugar” para assumir o papel mais modesto de intérprete-mediadora no seio da cultura como um todo (Habermas, 1999). O fato é que este debate acerca da concepção e papel da filosofia torna-se importante para compreender a crise da formação e, por conseguinte, também para definir o papel intelectual crítico que o professor desempenha junto à formação das novas gerações. Seguindo esta trajetória crítica de Adorno e Habermas o professor pode formular ferramentas reflexivas que o possibilitem colocar-se muito além de mero facilitador didático, segundo o qual ele é incumbido de dispor aos alunos a parafernália tecnológica produzida pela sociedade digital. Com o auxílio do pensamento reflexivo, o professor pode ainda reivindicar como legítimo o papel clássico atribuído à escola de provocar (ensinar) intelectualmente o exercício da leitura e da escrita. Em síntese, o compromisso maior do professor como intelectual crítico é com o ócio estudioso, dedicado a fomentar a tarefa do pensamento entre seus alunos com o auxílio poderoso do exercício diário da leitura e escrita. Neste sentido, o exercício reflexivo em sala de aula ganha a forma de práxis social, expandindo-se para toda a sociedade.
No último e quinto capítulo de seu livro, Januário além de oferecer o resumo dos resultados da investigação, aprofunda a herança kantiana da noção de educação como resistência assumida por Adorno. No contexto de relações sociais dominadas pelo capitalismo tardio industrial, o projeto da maioridade kantiana torna-se “atual” porque traz no seu bojo a exigência capital, tomada como lema do próprio esclarecimento, de ter a coragem de pensar por conta própria. Portanto, a exigência de que todos e não somente alguns tenham a coragem de fazer uso de seu próprio entendimento continua sendo uma exigência universal, para toda a humanidade, uma vez que tal exigência não só não se realizou como foi frontalmente negada pelos governos totalitários do século XX. Como ninguém nasce pensando por si mesmo - e isso parece uma trivialidade bizarra-, é tarefa da formação, principalmente das gerações mais velhas em relação às gerações mais novas, criar as condições culturais e pedagógicas adequadas para que todos possam encetar o caminho do esclarecimento. Este vínculo estreito entre educação e maioridade permite Adorno formular sua pedagogia do esclarecimento crítico, vinculando-a, por um lado, estreitamente com a democracia e vertendo-a, por outro, contra o fascismo. Pois, é da formação para a autonomia individual que brotam formas de resistência ao comportamento irascível e manipulador que está na base de governos totalitários.
VII
Em que sentido a educação para a maioridade vincula-se com a questão da democracia? Esta pergunta nos conduz à sexta observação, cuja referência encontramos em uma passagem do próprio livro de Januário: “Na conexão entre democracia e maioridade, Adorno encontra o solo mediante o qual sua proposta por uma educação para a resistência pode se fixar” (JANUÁRIO, 2020, p. 148). A maioridade é, lembremo-nos mais uma vez, de proveniência kantiana, colocando-se como a mais alta exigência que o esclarecimento moderno põe ao sujeito para fazer uso de seu próprio entendimento, visando livrá-lo das amarras tanto internas como externas. Sem a capacidade de pensar por conta própria não há autonomia individual e sem esta não há qualquer uso público possível da razão.10 Ou seja, sem a capacidade de exame crítico de si mesmo (autoexame), dos outros (sociedade) e das demais coisas do mundo (natureza e cosmo), o sujeito mantem-se tutelado e nesta condição não vê nenhum problema em ter que se curvar irrestritamente à autoridade externa. A coragem de pensar por si mesmo é o lema do esclarecimento kantiano que Adorno continua fazendo seu próprio lema. Por isso, ambos tomam tal lema como o coração da democracia. No caso especificamente de Adorno, ele tem plena consciência que a democracia não é parte da tradição cultural alemã, pois foi introduzida na Alemanha no pós-guerra tão somente como forma de governo, ou melhor, como forma eleitoral de escolha dos representantes, sem ter sido resultado de formas de vida enraizadas nas organizações sociais e políticas. Assumindo forma representativa de governo, a democracia, no dizer do próprio Adorno (1971, p. 15):
não se naturalizou de tal maneira que as pessoas a experienciem realmente como coisa própria, sabendo-se a si mesmos como sujeitos dos processos políticos. Ela é recomendada como um sistema entre outros, assim como se fosse uma amostra de escolhas entre comunismo, democracia, fascismo ou monarquia; não porém como idêntica ao povo mesmo (nicht aber als identisch mit dem Volk selber), como expressão de sua maioridade.
Portanto, quando se trata de democracia como forma de vida, o grande desafio consiste, como mostra a passagem acima, em que os sujeitos se tornem autores dos processos políticos, que o experienciem de maneira própria, deliberando com base na capacidade autônoma. Ora, a democracia pode converter-se na capacidade de pensar por conta própria somente quando for expressão da maioridade, isto é, quando se amalgamar com a capacidade humana de pensar por si mesmo. É nesta condição, então, que a democracia se identifica com o povo mesmo, pois é a tradução mais viva de suas expressões culturais, éticas e políticas. Alcançamos aqui, então, um ponto crucial de nossa investigação: somente no campo democrático a pedagogia do esclarecimento crítico é capaz de opor resistências de maneira consequente às diferentes formas de fascismo e, para fazê-lo, tal pedagogia precisa estar embevecida da democracia como forma de vida. Em síntese, Adorno postula o nexo estreito entre pedagogia do esclarecimento crítico ancorado na maioridade e democracia como forma de vida, atribuindo a tal nexo o papel de resistência à mentalidade fascista e a qualquer forma de pensamento autoritário.
VIII
Podemos resumir agora o núcleo de nossa reconstrução do pensamento educacional adorniano, a qual ancorou em algumas observações da interpretação de Januário e, principalmente, no recurso ao próprio texto de Adorno. Tornou-se claro com isso que uma sociedade esclarecida capaz de fazer frente à mentalidade e práticas fascistas depende da formação de indivíduos capazes de pensar por si mesmos. Por isso, o conceito atualizado de formação implica reter aquele nexo imprescindível entre esclarecimento e formação reivindicado por Kant para a ideia da educação como maioridade. Este resultado, embora importante para pensar uma pedagogia do esclarecimento crítico, permanece incompleto porque Adorno, ao retomar a noção kantiana de educação para a maioridade, não justifica satisfatoriamente o que efetivamente significa o nexo entre maioridade e democracia, não esclarecendo também, neste mesmo contexto, o próprio sentido da democracia como forma de vida.
Deste modo, a falta de base empírica, ou seja, a inexistência da democracia como forma de vida na sociedade alemã de sua época não poderia ter sido empecilho suficiente para Adorno pensar de maneira mais aprofundada tal significado, pois poderia ter se inspirado em outras tradições filosófico-educacionais. Neste âmbito, o recurso à tradição democrática norte-americana, especialmente ao pensamento de John Dewey, poderia ter-lhe auxiliado em uma dupla perspectiva: para aprofundar o nexo entre educação, maioridade e democracia, ao mesmo tempo que também auxiliaria para esclarecer o sentido da democracia como forma de vida.
Democracia como forma de vida é um tema, como sabemos, com o qual John Dewey se ocupou ao longo de sua vida intelectual, especialmente em seu livro Democracy and Education, publicado originalmente ainda em 1916. Segundo ele, democracia e educação tornam-se uma e mesma coisa quando são guiadas pela capacidade humana coletiva e cooperativa de formar bons hábitos reflexivos (DEWEY, 2008a).11 A ideia de formação da inteligência reflexiva como processo de cooperação social baseada nos diferentes exercícios de investigação, exame e deliberação pública ajuda a fundamentar e esclarecer melhor aquela exigência capital posta por Adorno à democracia, quando afirma que ela (a democracia) precisa ser “idêntica com o próprio povo” (identisch mit dem Volk selber), ou seja, quando consegue expressar criticamente suas formas culturais e éticas de vida.
Cabe ressaltar, contudo, como assinala Jürgen Oelkers (2010), que foi histórica a resistência de círculos intelectuais alemãs, tanto no âmbito da filosofia como da pedagogia, em relação à recepção da obra de John Dewey, espacialmente de sua Democracia e Educação.12 Isso também tem a ver, certamente, com o problema já referido por Adorno acima, quando afirma que a própria tradição cultural e política alemã se recente da democracia como forma de vida. Contudo, iniciativas posteriores, como as de Jürgen Habermas e Axel Honneth, têm se esforçado para interpretar de maneira atualizada a teoria da democracia de Dewey, reconhecendo o papel que suas ideias desempenharam para a retomada do espaço público. Habermas realça a importância do pensamento democrático da tradição pragmatista clássica para o período pós-guerra em um ensaio no qual analisa o neoconservadorismo norte-americano e alemão. Assim afirma ele: “A República Federal [Alemã] se abriu pela primeira vez ao Ocidente sem reservas. Nós adotamos a teoria política do Esclarecimento, captamos o pluralismo que, em primeiro lugar, realizaram as seitas religiosas e que moldou a mentalidade política e o conhecimento do espírito democrático radical do pragmatismo americano de Peirce, Mead e Dewey” (HABERMAS, 1991, p. 151-152). Axel Honneth, de sua parte, tem insistido na contribuição de Dewey para pensar a democracia como processo de cooperação social reflexiva. Destaca, neste contexto, duas noções de comunidade que sustentam a concepção de democracia do pensador norte-americano, uma pertencente ao jovem Dewey, profundamente influenciada pelo pensamento de Hegel e, outra, elaborada pelo Dewey maduro, sustenta-se na lógica da pesquisa científica. Enquanto o ensaio de Dewey, “The ethics of democracy”, serve a Honneth para definir a primeira noção, o livro The Public and Its Problems torna-se seu principal apoio textual para problematizar a segunda noção de comunidade. Nesta última obra encontra-se elaborado o núcleo da lógica da pesquisa científica que é tomada como referência por Dewey para justificar sua nova teoria da democracia, justificando aí que o vínculo entre práxis científica e capacidades intelectuais seja ancorado no potencial livremente cooperativo do pesquisador participante (HONNETH, 2000).
Considerando isso, a democracia como forma de vida vai muito além da forma de governo - o que de fato ela também o é quando se expressa constitucionalmente, na divisão dos poderes e na escolha pública por meio do voto dos representantes políticos -, pois significa um ideal ético que permite a igualdade de oportunidades a todas as pessoas, criando as condições materiais e culturais para a formação cooperativa ampla das capacidades humanas. Dewey retoma constantemente este sentido ético da democracia ao longo de sua obra, referindo-se, em seu núcleo, à inteligência aberta e pública, que exige sempre processo inteligente, reconstrutivo e inacabado. A dimensão aberta e pública da inteligência humana exige exercício permanente do respeito à diferença, que nos capacita para aprender no conflito que emerge de perspectivas e olhares diferentes, caracterizando-nos enquanto individualidades formadoras do espaço humano em comum, isto é, como pessoas capazes de criar formas mais inteligentes e éticas de convivência. No discurso de celebração de seus 80 anos Dewey acentua precisamente este aspecto: “Cooperar para que as diferenças tenham oportunidade de se manifestar, pois acreditamos que a expressão das diferenças não só é um direito das outras pessoas senão um meio através do qual enriquecemos nossa própria experiência de vida, uma vez que é algo inerente à democracia concebida como modo de vida pessoal” (DEWEY, 2008b, p. 228).
No caso de Adorno, ele intui o dinamismo crítico que a democracia como forma de vida pode exercer em sala de aula, embora não tenha empregado esta terminologia em suas conferências radiofônicas dos anos de 1960. Ao final de um de seus diálogos com Becker, intitulado precisamente de “Educação e maioridade”, destaca o papel intelectual importante do professor no sentido de exercitar cotidianamente junto aos seus alunos a crítica cultural. Bem preparado criticamente e ancorado na noção de educação como contradição ou resistência, o professor pode mostrar, segundo Adorno, o caráter ideológico, falso e distorcido dos filmes e músicas comerciais e de outros produtos da indústria cultural de sua época (ADORNO, 1971, p. 146). Fazer chegar à sala de aula temas atuais e debatê-los com os alunos numa perspectiva crítica, isso era considerado por Adorno como trabalho intelectual importante do professor. Com tal iniciativa, o professor abre a possibilidade de exercitar junto aos alunos práticas democráticas, como o diálogo participativo. Educação como resistência assume aqui, no âmbito educacional escolar, a forma concreta de fazer brotar o contraditório e o caráter ideológico inerente à realidade, descortinando participativamente outros horizontes possíveis aos envolvidos no processo educacional-formativo. Em síntese, ao mobilizar os alunos para a participação dialógica sobre temas atuais, o professor convidava-os ao exercício reflexivo, tornando-os resistentes contra a invasão externa autoritária.
Podemos nos questionar, evidentemente, se diante do poder avassalador da sociedade administrada de sua época, esta proposição de Adorno não se mostraria ineficiente. De outra parte, se considerarmos o poder de assujeitamento ainda maior do neoliberalismo atual, que intensifica cada vez mais a mentalidade individualista do sujeito empreendedor de si mesmo, nós talvez teríamos razões ainda mais céticas para desacreditar na pedagogia do esclarecimento crítico e sua ideia da sala de aula e do trabalho intelectual crítico do professor como núcleo formativo de posturas culturais resistentes às novas formas de barbárie. Contudo, certamente hoje, talvez ainda mais do que nas décadas de 1950 e 1960, torna-se decisivo, devido ao crescimento da extrema-direita e a intensa retomada da mentalidade fascista, o esforço de democratização da comunidade escolar, intensificando a formação cultural crítica por meio do diálogo participativo. Ou seja, a reatualização da pedagogia do esclarecimento crítico e, com ela, do papel intelectual crítico do professor continua sendo ainda mais indispensável para que Auschwitz não se repita.
Por fim, ao trazer Dewey para a reflexão, na parte final desse ensaio, sinalizamos para a importância de pensar com Adorno além de Adorno, confrontando-o com a teoria educacional deweyana e sua noção de democracia como forma de vida. Tal confronto pode provocar, como acreditamos, um autoesclarecimento recíproco: enquanto o nexo entre maioridade e democracia pretendido por Adorno deixa-se esclarecer melhor à luz da inteligência reflexiva pública sustentada por formas democráticas de vida, a relação umbilical pensada por Dewey entre democracia e educação ganha certamente maior consequência político-formativa ao ser confrontada com o nexo entre esclarecimento e formação de matriz kantiana e reatualizada por Adorno, em suas conferências radiofônicas. Isso mostra, então, que o nexo entre esclarecimento (Aufklärung) e formação (Bildung), considerado por Kant como indispensável para pensar a esfera pública, uma vez devidamente reinterpretado, ainda continua sendo uma referência normativa importante para pensar a relação tensional entre democracia e educação e coloca-la na base da educação formal, escolar e universitária.