Em 22 de julho de 2021 os principais veículos de comunicação de Sergipe noticiavam o incêndio que atingiu o prédio onde funcionou o Grupo Escolar Sílvio Romero, localizado na cidade de Lagarto, na região sul de Sergipe1. Trata-se do segundo incêndio que atinge a instituição edificada nas primeiras décadas do século XX no Governo de Maurício Graccho Cardosos (1922-1926), tendo sido tombada como Patrimônio Histórico e Cultural do Estado de Sergipe em 1995. O pioneiro prédio escolar da localidade está desativado há décadas e sofre com o abandono pelo poder público.
A notícia chama atenção entre outros aspectos para nos perguntarmos acerca do lugar que a memória da educação tem ocupado na sociedade brasileira. Não se trata de um caso isolado de abandono do prédio histórico, mas de um exemplo de uma série de tratativas malogradas quando pensamos acerca do patrimônio educativo no país, seja ele edificado ou, ainda mais complexo, quando enveredamos pelos documentos e artefatos que constituem a dinâmica da escola no dia a dia do seu funcionamento, ou mesmo no tocante ao patrimônio imaterial. Recordemos que:
O patrimônio material é, pois, o registro empírico e factual das práticas culturais de uma época, de cada época, de todas as épocas. O esquecimento, ou a destruição, desses referentes do passado poderia implicar em perda de energia na marca da evolução e, inclusive, em uma ameaça que conduziria a regressão na trajetória da humanidade. (ESCOLANO BENITO, 2017, p. 272).
Neste sentido, o presente texto procurou perfazer um caminho inverso ao exposto tendo como objetivo refletir sobre a constituição de espaços de memória em instituições educacionais luso-brasileiras. Tendo em vista as vinculações que os dois países possuem, inclusive na área da História da Educação, com as constantes citações e diálogos acadêmicos, construção de eventos em parceria, como o Luso-Brasileiro, a formação de redes de pesquisadores, estudos de pós-graduação, entre outros laços que se consolidaram ao longo das últimas décadas.
Diante da imensidão do território brasileiro e a necessidade de um levantamento exaustivo, uma vez que carecemos de trabalhos nesta perspectiva, optou-se por um recorte espacial na região Nordeste do país, tendo em vista a possibilidade de localizar uma diversidade de iniciativas, sendo a região que possui o maior número de estados, alguns deles com uma produção consolidada na área da História da Educação. Além disso, tem-se a relação de pertencimento do primeiro autor tendo atuado na constituição e gestão do Centro de Educação e Memória do Atheneu Sergipense localizado em Aracaju/SE.
Cientes de que, no Brasil e em Portugal, as práticas de preservação, de organização e de disponibilização dos acervos escolares são recentes e pode-se datar do final do século passado, a edificação de espaços para a guarda e para a disponibilização desses “vestígios” do passado educacional também possui relação com as mudanças teórico-metodológicas pelas quais a História da Educação tem passado nas últimas décadas em diferentes partes do mundo ocidental.
Assim, investigamos de maneira virtual entre os meses de março de 2021 e 20222, contando com algumas visitas presenciais, escolas que tiveram seu patrimônio educativo preservado, organizado e disponibilizado para a comunidade, escolar e acadêmica, seja na forma de arquivos, de museus e de centros de memória, ou mesmo instituições educacionais que foram transformadas em espaços de memória escolar. Além de trabalhos de grupos de pesquisa voltados para os acervos de escolas luso-brasileiras, concentradas, sobretudo, na zona urbana, sendo que no caso do Brasil os museus escolares são majoritariamente localizados em instituições particulares e os centros de memória, que focam no ensino e na pesquisa, em escolas públicas.
O procedimento metodológico da pesquisa deslocou-se pelas seguintes etapas: em um primeiro momento, analisamos os anais de congressos da área, a saber: Congresso Brasileiro de História da Educação, Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, Encontro Nacional de Arquivos e Museus Escolares, como também em periódicos específicos da área3 e diretórios de grupos de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na busca por identificação dos espaços de memória ali veiculados, seja com resultados de ações ou mesmo projetos em desenvolvimento. De posse de tais dados, realizamos pesquisas na rede mundial de computadores, secretarias estaduais e municipais de educação, juntamente com um “corpo a corpo” com pesquisadores dos nove estados da região Nordeste do Brasil, bem como de Portugal, tanto para conseguir localizar os espaços veiculados, como também conhecer outros ainda não divulgados na área. Na sequência, entramos em contato com a gestão da instituição ou diretamente com o espaço de memória escolar para que pudessem responder um questionário e/ou encaminhar um inventário do acervo salvaguardado.
A partir do diálogo com Pierre Nora (1993, p. 13) com a compreensão de que “Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea”, compreendemos os espaços de memória escolar constituídos com a finalidade de preservação de fragmentos de uma instituição social fundamental na construção da sociedade na modernidade: a escola. Os espaços de memória escolar são entendidos como locais físicos, ou mesmo virtuais, criados para guarda e disponibilização de elementos da memória educacional, seja para consulta e/ou visitação, abarcando documentos e objetos que tratam da memória da escola, seus sujeitos e fazeres, ou mesmo para divulgação e propaganda de dada memória educativa. Incluem-se nesta acepção os projetos de salvaguarda e disponibilização de acervos escolares, centros de memória, museus e arquivos escolares, esses últimos, quando extrapolam a função burocrática de arquivo permanente da escola, e passam a cumprir um papel social de preservação, valorização e divulgação da memória da instituição educacional.
As escolas que possuem tais espaços de memória denominamos de “escolas patrimonializadas” por compreender que de algum modo elementos do seu patrimônio material e/ou imaterial foram preservados e disponibilizados pela e/ou para a comunidade escolar, sujeitos que possuem um elo de pertencimento com aquilo que foi salvaguardado pela instituição educativa, uma identidade construída na relação entre passado e presente. A ideia de patrimonialização dialoga com as compreensões de Hartog (2006, p. 271) que a situa como um imperativo do dever da memória, “um traço distintivo do momento que nós vivemos ou acabamos de viver: uma certa relação ao presente e uma manifestação do presenteísmo”. No bojo dessa discussão e em consonância com Pierre Nora, Albuquerque Júnior (2019) afirma que:
A noção de lugar de memória remete ainda à ideia de perda, à ideia de morte como sendo aquela que preside e explica a constituição de uma tendência, de lugares para lembrar. O processo de patrimonialização crescente de tudo em relação à tradição, que rejeita e contesta toda e qualquer herança, que investe no futuro, que valoriza o novo, o jovem, o moderno, o progresso, que quer ter nas mãos a construção de novos ou outros tempos. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 154, grifo nosso)4.
A constituição desses “lugares para lembrar”, com o recorte específico da escola em suas mais diversas faces, também desencadeia um “processo de patrimonialização” da instituição educativa, sendo necessária a nossa reflexão acerca desses bens que são considerados como imprescindíveis de serem lembrados e o complexo jogo de interesses na sua construção. Concordamos com Cunha (2015, p. 295) sobre a necessidade de políticas públicas que fortaleçam a relação da sociedade com seus bens culturais, a atenção crucial para as justificativas e formas de produção dos acervos escolares, além da sua inscrição “no mundo público por meio de sua patrimonialização”. Tais acervos escolares patrimonializados integram o chamado patrimônio educativo5 de dada sociedade.
Escolano Benito (2017, p. 26) pontua como a história cultural da educação tem centrado sua atenção nos objetos, imagens, textos e vozes da vida cotidiana das instituições, para o autor: “Esses testemunhos das coisas e das pessoas compõem, precisamente, o patrimônio material e imaterial que o passado da escola nos legou”, e complementa: “A conservação e organização desse patrimônio conduziram à socialização dos conteúdos que o integram na memória educativa individual e coletiva”. Para o pesquisador espanhol, “Os restos da escola são, pois, materialidades com memória” (ESCOLANO BENITO, 2017, p. 227). Desta maneira, é igualmente relevante ater-se aos “rastros”, isto é, à dimensão indiciadora e informativa das materialidades da escola, que permite apreender sujeitos, objetos e ações e a escola como cultura. Conforme assinala o autor: “Assim, como todo material, imagem ou texto de uso escolar, desenterrado de um sítio [...] pode ser considerado como um condensador ou sintetizador semântico e como um objeto narrativo ou informador...” (ESCOLANO BENITO, 2017, p. 226).6
Segundo Mogarro et al. (2010), o patrimônio escolar engloba a arquitetura escolar, desde o próprio edifício das escolas, o espaço em seu entorno e sua funcionalidade, os equipamentos, os materiais de uso quotidiano, os materiais didáticos, os instrumentos científicos para o ensino das várias ciências, quadros, caixas métricas, ábacos, os meios audiovisuais, os trabalhos de alunos, os cadernos escolares, dentre outros. Integra ainda materiais em suporte de papel, relacionados com objetos, como catálogos de editoras, manuais de ensino, que incorporam os materiais didáticos nos processos de ensino e aprendizagem, como também documentos de arquivo diante do dia a dia da instituição educacional, como requerimentos de professores, notas de compra, recibos, inventários antigos e a própria literatura articulada com o tema. Insere-se também, nesse contexto, a imprensa educativa, que divulga esses objetos, além de orientar como utilizá-los nas escolas. Já para Silva (2020, p. 206), “Patrimônio educativo descreve um conjunto complexo de bens/artefatos, materiais e/ou imateriais resultantes e/ou produzidos em contextos educacionais formais e/ou não formais situados temporal e espacialmente”.
Diante das conceituações apresentadas aliadas à presente pesquisa tratamos dos espaços de memória e as práticas de patrimonialização escolar, em um primeiro momento abordamos os “lugares para lembrar” da educação escolarizada em Portugal, depois na região Nordeste do Brasil, seguido de algumas reflexões e problematizações para juntos pensarmos sobre os desafios que o patrimônio educativo nos impõe.
Espaços de memória escolar em Portugal: diferentes perspectivas7
Concordamos com Mogarro e Namora (2016) ao evidenciarem que nos últimos anos o patrimônio cultural tem ganhado espaço no campo da educação e da história com um crescente número de publicações coletivas que mostram a consolidação de linhas de pesquisas sobre a cultura escolar e o patrimônio educativo, como também de instituições museológicas dedicadas ao tema. Situa-se tal panorama com um movimento transnacional que:
[...] exprime modalidades simultaneamente convergentes e específicas de perspetivar o património educativo e a cultura escolar, encontrando-se segmentos homólogos entre os diferentes países, a par do estudo em profundidade das realidades nacionais que foram configurando os sistemas educativos ao longo do tempo [...] A emergência deste campo, que ainda podemos considerar em construção apesar da maturidade alcançada, alargou e diversificou as orientações, perspectivas, discursos, temas, metodologias e fontes de informação, estabelecendo a convergência com outros campos do conhecimento além da história e da educação (MOGARRO; NAMORA, 2016, p. 27).
No tocante a Portugal, Felgueiras (2017, p. 159) mostra como, no final do século XX, a “preocupação em recolher, estudar e disponibilizar as diversas tipologias de fontes” frutificou no “Projeto para um Museu Vivo da Escola Primária” e no “Projeto para o Instituto Histórico da Educação”8. Embora ambos não tenham sido concretizados, como na formulação primitiva, as iniciativas fizeram com que seus idealizadores investissem esforços em outras ações, incluindo o trabalho com os espólios das escolas primárias de Gondomar e a constituição do Núcleo de Memória Escolar de Murça.
Felgueiras (2005) explica também como a década de 80 do século XX viu florescer um significativo número de museus escolares em países da Europa como Alemanha, Holanda, Reino Unido, Áustria e França. Já nos países ibéricos o cenário foi diferente. Portugal só participou desse movimento na década de 1990, assistindo à criação da Rede de Investigadores em História e Museologia da Infância e da Escola (RlHMIE) no ano 2000. Desde então o país conta com vários espaços de memória escolar, entre eles o Museu Escolar, em Marrazes9, e o Museu Escolar Oliveira Lopes, em Válega10.
Mogarro (2005), por sua vez, destaca a Rede de Museus Escolares em Portalegre (Remep), composta por núcleos na Escola Secundária Mouzinho da Silveira (antigo Liceu) e na Escola Secundária de S. Lourenço (antiga escola técnica). Entre 2010 e 2013, Maria João Mogarro coordenou o projeto “Educação e Patrimônio Cultural: escolas, objetos e práticas”, financiado pela Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT), desenvolvendo uma série de ações como exposições, encontros científicos e mais de 100 publicações, incluindo livros e capítulos de livros nacionais e internacionais, além da construção do Museu Virtual da Educação (Muve)11. Alguns desses trabalhos contaram com a participação direta de pesquisadores brasileiros, como Rosa Fátima de Souza Chaloba e Diana Vidal (MOGARRO; NAMORA, 2016).
O citado Projeto também esteve articulado à realização do IX Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, que ocorreu em julho de 2012, na Universidade de Lisboa, com o tema “Rituais, Espaços e Patrimônio Escolar”. O evento, consoante Mogarro e Namora (2016, p. 13), “constituiu um importante momento de consolidação dos laços entre as duas comunidades científicas, em torno do tema do patrimônio cultural, educativo e científico”.
As pesquisadoras localizaram 21 projetos e núcleos museológicos que se dedicam ao mundo da educação e da infância espalhados por diferentes partes de Portugal, sobretudo em Lisboa e na região litoral/centro. A partir destes resultados, somados à presente pesquisa, foi possível construir o Quadro 1.
Categorização do espaço de memória educativo | Exemplos |
---|---|
Centro de Memória escolar com acervo proveniente de diferentes instituições educativas da região. | Centro Interdisciplinar, Inter-Regional e Transfronteiriço de Memória da Educação - Citrime - Murça. |
Museus formados, sobretudo, a partir de espólios que permaneceram nas escolas primárias. | Museu Escolar Oliveira Lopes, Válega, Ovar. |
Museus constituídos pela ação de docentes, contando, muitas vezes, com auxílio de outros interessados na preservação do patrimônio da escola. | Museu Escolar de Marrazes, Leiria. |
Núcleos Museológicos em instituições escolares, constituindo-se como um patrimônio que integra a escola. | Escolas de ensino secundário de Jácome Ratton - Tomar e Seomara Costa Pinto. |
Museus sobre temas específicos, mas relacionados com a infância e a educação. | Museu do Brinquedo, Sintra; Museu Bibliográfico, Pedagógico e Artístico João de Deus; Museu Agrícola dos Riachos. |
Projetos relativos ao patrimônio escolar e a infância com o objetivo de constituição de futuros museus. | Museu Vivo da Escola Primária, Porto. |
Projetos acerca das memórias da escola e dos atores educativos com foco nos objetos e materiais educativos. | Projeto Museológico sobre Educação e Infância, Escola Superior de Educação de Santarém. |
Fonte: Quadro construído com base nas informações de Mogarro e Namora (2016) somadas aos resultados da pesquisa.
As referidas autoras informam que o Projeto alcançou ainda as seguintes escolas secundárias: Passos Manuel; Camões, Gil Vicente, Marquês de Pombal, Rainha D. Leonor, Maria Amália Vaz de Carvalho e Pedro Nunes (região de Lisboa); Bocage (Setúbal); Avelar Brotero (Coimbra); Campos de Melo (Covilhã); José Estêvão (Aveiro); Gabriel Pereira (Évora); Mouzinho da Silveira (Portalegre); Diogo Gouveia (Beja).
As pesquisadoras sublinham a diversidade das iniciativas relacionadas à museologia educativa, seus objetivos e projetos vinculados às pessoas e instituições que os dirigem. De todo modo, efetuam uma classificação referente a dois movimentos amplos no âmbito do patrimônio em Portugal: de um lado, um movimento de investigadores da História da Educação com foco, principalmente na materialidade da escola e seu patrimônio, colocando tais acervos em diálogo com perspectivas epistemológicas e em redes de pesquisadores internacionais; por outro, a guarda e conservação do espólio escolar realizada por diferentes sujeitos da própria comunidade que preservaram diferentes acervos por várias décadas com um caráter particular. Acrescentam ainda uma terceira dimensão: os políticos e a necessidade de garantia de políticas públicas nesta área. Em forma de síntese pode-se descrever a situação do patrimônio educativo em Portugal da seguinte forma:
Há, pois, movimentos convergentes, embora de natureza e objetivos diversos. A realidade atual evidencia a dimensão mais vasta deste interesse, enraizando-o numa procura social de identidade e de fixação da memória em torno da escola. Adquire assim um novo sentido e urgência a tarefa de recuperar, preservar, estudar e divulgar o patrimônio escolar e educativo, o que passa pela necessidade de definir orientações e dar consistência a este movimento social e científico sobre a escola, a sua história e memória. (MOGARRO; NAMORA, 2016, p. 38).
A partir de outra perspectiva, a do patrimônio cultural de ciência e tecnologia (PCC&T), Marcus Granato, Emanuela Ribeiro, Victor Abalada e Bruno Araújo (2018) refletem sobre o patrimônio cultural em escolas de ensino médio com o propósito de identificar e analisar as iniciativas de valoração dos objetos de ensino enquanto PCC&T no Brasil e em Portugal12. Para atingir seus objetivos os autores realizam uma revisão bibliográfica como também o contato com as diferentes instituições educacionais.
O trabalho é fruto do projeto de pesquisa “Patrimônio cultural luso-brasileiro de ciência e tecnologia: pesquisa, análise e acessibilidade” (2014-2018), ficando explícito que não trata-se de um trabalho na área da História da Educação, mas sim da Museologia sobre o PCC&T que procura “por meio dos objetos, compreender e construir narrativas sobre a construção da ciência, o lugar e uso desses objetos em seus contextos, inclusive da própria ciência na sociedade” (GRANATO; RIBEIRO; ABALADA; ARAÚJO, 2018, p. 4). Para os autores:
A escola é um lugar repleto de elementos que remetem à produção de conhecimento e à aprendizagem. Alguns deles podem se transformar e mesmo incorporar outros sentidos, passando a ser considerados como patrimônio cultural. Trata-se, em geral, de objetos acumulados ao longo da trajetória dos colégios, das mais diversas procedências e áreas do conhecimento, englobando desde troféus, medalhas e uniformes até instrumentos de demonstração e estudo, amostras minerais, animais taxidermizados, vidrarias, modelos anatômicos, enfim, toda multiplicidade de itens que compuseram, ao longo do tempo, o dia a dia dessas instituições. (GRANATO; RIBEIRO; ABALADA; ARAÚJO, 2018, p. 8).
Assim, nota-se como as concepções acerca do que é a escola e objetos que integram o patrimônio cultural dialogam também com a História da Educação e o entendimento sobre acervos escolares. A partir dos levantamentos dos referidos autores foi possível observar, no tocante a Portugal, alguns aspectos válidos para o presente estudo.
Um primeiro deles concerne ao levantamento dos dados. Trata-se de uma revisão bibliográfica centrada nos arrolamentos e inventários que foram publicados em plataformas acadêmicas ou governamentais. Assim, dialoga-se tanto com autores reconhecidos na área como António Nóvoa, Maria João Mogarro, Margarida Felgueiras, entre outros, como também com dissertações e outros trabalhos da museologia e do próprio patrimônio cultural.
Um segundo elemento é que os resultados apontam acervos em escolas secundárias como Passos Manuel, em Lisboa, e de Sá de Miranda, em Braga, Escola Secundária Maria Amália Vaz de Carvalho; coleções biológicas e geológicas do antigo liceu de Portalegre (atual Escola Secundária Mouzinho da Silveira), além dos acervos acadêmicos, só para citar alguns. Os dados alçados indicam 46 entradas na categoria das Instituições de Ensino Médio, caracterizando-a como a segunda tipologia com maior número de registros em Portugal. Conclusão que corrobora com os estudos da História da Educação, pois como afirmam Mogarro et al. (2010, p. 161): “Este património museológico das instituições tem sido preservado por iniciativa de particulares (professores, técnicos, funcionários) e das próprias escolas”.
As informações expostas demonstram como o trato com o patrimônio educativo em Portugal é diverso e está intimamente relacionado aos sujeitos que atuam no processo de patrimonialização, com um destaque para o papel da própria escola e seus agentes. A diversidade de iniciativas também mostra que o movimento é recente e tem colocado em diálogo diferentes áreas do conhecimento, com destaque para a Museologia e a História da Educação.
Em alguns casos, os “lugares para lembrar” foram constituídos a partir de resquícios acumulados com o tempo e acabaram tornando-se um signo identitário para a escola e para a comunidade no seu entorno, como é o caso do Museu Escolar de Marrazes e o Museu Escolar Oliveira Lopes, que atualmente ocupa todo o espaço físico da escola que seu nome carrega. Em outros, mesmo com o auxílio de especialistas das universidades, iniciativas malograram ou enfrentaram dificuldades na concretização de projetos de arrolamento de acervos. Tem-se também os vários acervos das escolas e os diferentes usos atribuídos a esses bens patrimonializados, desde a sua guarda como objeto memorialístico até seus diferentes usos por docentes e discentes.
Interligados pela memória, nota-se um predomínio da patrimonialização de objetos. Mesmo com as diferenças de nomenclaturas e finalidades, os espaços de memória escolar têm privilegiado a exposição e análise dos espólios escolares com realce para o papel que os próprios sujeitos da escola desempenham nesse processo. São ex-professores e alunos que integram o dia a dia das práticas educativas com o acervo histórico da instituição. Elemento que, se por um lado, revela da própria identidade da escola, também carece de problematização para refletirmos acerca da “vontade de memória” (VIDAL; PAULILO, 2020) na constituição desses acervos. Assunto para outros escritos, pois agora atravessamos o Atlântico para tratarmos do Brasil.
ESPAÇOS DE MEMÓRIA ESCOLAR NA REGIÃO NORDESTE DO BRASIL: UMA SÍNTESE EM CONSTRUÇÃO
Se no caso português é possível realizar uma síntese do patrimônio educativo salvaguardado em espaços de memória escolar ou mesmo presentes em salas dessas escolas ou museus com perspectivas mais amplas, como é o caso dos museus dos brinquedos, em se tratando do Brasil a situação é diferente, uma vez que coincide com a diversidade de iniciativas, mas ainda com carência de falta de mapeamentos.
No país, há um conjunto de pesquisadores que têm tratado do patrimônio educativo e que são consensuais em apontar a falta de políticas públicas para a área, como também a necessidade de uma maior articulação dos profissionais envolvidos na formação de redes com o compartilhamento de discussões epistemológicas, dos desafios e possibilidades, a partir das experiências já acumuladas, mas ainda pouco sistematizadas de maneira coletiva.
Ciente desses desafios, a pesquisa realizada localizou as seguintes denominações para os “lugares para lembrar” das escolas nos estados da região Nordeste do Brasil: arquivos, centro de memória, memorial e museu. Além de outras nomenclaturas relacionadas aos Núcleos responsáveis pela salvaguarda do material e as ações de grupos de pesquisa das universidades no trato com o espólio documental de instituições escolares.
A própria opção pela tipologia e conceituação do espaço “edificado” para “guardar” e “projetar” o passado de dada instituição escolar já merece ser problematizada. Dos museus escolares existentes, sobretudo nas instituições privadas, até os memoriais e centros de memória construídos principalmente no início do século XXI, localizamos ainda processos de organização dos arquivos escolares, sejam eles de maneira física ou virtual, contando com o trabalho direto de grupos de pesquisa vinculados à História da Educação.
Dentro desta linha de pensamento, construímos o Quadro 2, que apresenta exemplos dos espaços de memória localizados e classificados na investigação.
Categorização do espaço de memória educativo | Exemplos | Cidade/Estado |
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Arquivos escolares | Instituto de Educação Rui Barbosa | Aracaju/SE |
Colégio Estadual de Olinda | Olinda/PE | |
Escola Parque | Salvador/BA | |
Colégio Estadual da Bahia - Central | Salvador/BA | |
Centros de memória | Centro de Educação e Memória do Atheneu Sergipense (Cemas) | Aracaju/SE |
Núcleo de Documentação e Pesquisa da Educação Profissional (NDPEP) | João Pessoa/PB | |
Sala de Memória Amália Xavier de Oliveira | Juazeiro do Norte/CE | |
Centro de Memória Dom Bosco | Petrolina/PE | |
Centro de História, Memória e Documentação (CHMD) - IFPE | Recife/PE | |
Centro de Memória do Colégio de Aplicação (Cemdap) | São Cristóvão/SE | |
Memoriais físicos | Memorial Colégio Arquidiocesano “S. Coração de Jesus” | Aracaju/SE |
Memorial do Colégio de Ciências Puras e Aplicadas (CCPA) | Aracaju/SE | |
Memorial do Colégio Estadual da Bahia - Central - Centro de Memória Escolar | Salvador/BA | |
Memorial do Instituto Federal da Bahia | Salvador/BA | |
Memorial do Instituto Federal do Maranhão | São Luís/MA | |
Memorial do Instituto Federal do Piauí - Campus Teresina Central | Teresina/PI | |
Memoriais físicos e virtuais | Memorial do Instituto Federal de Sergipe | Aracaju/SE |
Memorial do Instituto Federal do Rio Grande do Norte - Portal da Memória do IFRN | Natal/RN | |
Museus escolares | Museu do Instituto Nossa Senhora da Piedade | Ilhéus/BA |
Museu de História Natural da Escola Vila Alegria | Lauro de Freitas/BA | |
Memorial do Colégio Antônio Vieira | Salvador/BA | |
Museu do Colégio Militar de Salvador | Salvador/BA | |
Museu Pedagógico - Casa Padre Palmeira | Vitória da Conquista/BA | |
Museu Histórico e Cultural Dr. Salomão Alves de Moura Brasil de Aracoiaba | Aracoiaba/CE | |
Museu da Escola Normal Justiniano de Serpa | Fortaleza/CE | |
Museu Histórico Escolar Gustavo Barroso | Fortaleza/CE | |
Museu Cultural Escolar 2 de Maio | Fortaleza/ CE | |
Museu Padre Júlio Maria | Russas/CE | |
Museu do Colégio Executivo | Natal/RN | |
Museu do Colégio Lourdinas | João Pessoa/PB | |
Núcleo Municipal de Estudos das Ciências de Petrolina (Numec) | Petrolina/PE | |
Museu de História Natural Louis Jacques Brunet | Recife/PE | |
Museu Madre Agathe Verhelle | Recife/PE | |
Trabalhos de organização de acervos físicos e/ou virtuais de instituições escolares realizados por Grupos de Pesquisa | Acervo digital de “História da Educação do município de Bananeiras HEB” - Universidade Federal da Paraíba - Campus III (Virtual) - Vinculado ao Projeto “Impressos pedagógicos, jornais e documentos escolares como fontes para a história da educação de Bananeiras durante as décadas de 1920-1950” | Bananeiras/PE |
Site do Grupo de Estudos e Pesquisas em História e Educação no Sertão do São Francisco - GEPHESF (UPE - Campus Petrolina) (Virtual) http://gephesf.upe.br/acervo-digital/ | Diferentes municípios dos estados da Bahia e Pernambuco | |
Centro de Memória da Educação em Pernambuco (Cemepe) (Físico), vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas História da Educação de Pernambuco - NEPHEPE - UFPE | Recife/PE | |
Centro de Referência e Memória da Educação (Físico), vinculado ao Grupo Memória da Educação na Bahia, nas dependências da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) | Salvador/BA | |
Acervo de objetos do PCC&T | Colégio das Damas da Instrução Cristã | Recife/PE |
Liceu Nóbrega de Artes e Ofício | Recife/PE | |
Colégio Salesiano Sagrado Coração | Recife/PE |
Fonte: Quadro elaborado pelos autores diante da pesquisa realizada somada às referências do presente texto. As informações sobre os museus escolares foram extraídas de Alves (2016b), já sobre acervos e objetos de PCC&T de Granato; Ribeiro; Abalada; Araújo (2018).
Os exemplos listados não têm a pretensão de dar conta da imensidade de iniciativas que pululam em diferentes estados do Nordeste do país, mas apontam formas de patrimonialização escolar realizadas nas últimas décadas nessa região do Brasil. Foram localizados quatro arquivos; seis centros de memória; oito memoriais, sendo que dois desses são físicos e virtuais; 15 museus; quatro trabalhos de organização de acervos vinculados às universidades, além da identificação de três acervos PCC&T. São arquivos, centros de memória e museus escolares, além de memoriais que se sobressaem nos Institutos Federais, iniciativas encabeçadas pelas universidades e o trato com o PCC&T.
Nota-se uma predominância dos espaços localizados nas capitais dos estados da região Nordeste, sendo os museus o grupo que atinge uma maior dispersão pelas cidades do interior. Fica nítida a não representatividade dos espaços dedicados exclusivamente ao ensino normal e a falta de trabalhos na área da educação rural. Por outro lado, há um predomínio dos espaços vinculados à rede particular, sendo que a rede federal consegue um realce tanto pelo trabalho dos Institutos Federais, como também com projetos de pesquisa e centros de memória realizados pelas Universidades.
A salvaguarda do patrimônio educativo advém de diferentes finalidades perpassadas pelo devir de preservar, de legar para o futuro um passado considerado crucial na constituição da história da instituição educacional e seus sujeitos. Do arquivamento do documento às práticas de musealização, um conjunto multifacetado de fazeres e saberes tem consubstanciado o patrimônio educativo nessas instituições. São espaços construídos a partir de diferentes perspectivas e finalidades, com acervos que apontam para a eleição daquilo que é considerado como um patrimônio a ser preservado. Existem elos, silenciamentos e propostas que definem as perspectivas do passado a ser salvaguardado e/ou exposto, inclusive no tocante às denominações dos espaços de memória das instituições escolares patrimonializadas.
Não é nossa pretensão realizar uma exaustiva discussão teórica acerca das opções de nomenclaturas dos espaços de memória na região Nordeste do Brasil, mas refletirmos sobre tais escolhas e mesmo situar os caminhos que a patrimonialização escolar tem seguido, em diálogo, ou não, com as perspectivas teóricas da História da Educação. Nota-se que, se por um lado a criação de centro de memória e mesmo a organização de acervos escolares relacionados aos grupos de pesquisa encontram diálogo com as universidades, por outro, diferentes sujeitos e grupos das próprias escolas e institutos têm realizado trabalhos com a memória escolar com interesses diversificados, para além da pesquisa na área, “edificando” museus e memoriais.
Neste sentido, identificamos quase meia centena de espaços de memória vinculados às escolas do Nordeste, com um destaque para os estados de Bahia, Pernambuco e Sergipe e o silêncio em Alagoas14. Pernambuco apresenta uma singularidade com a história particular do Museu Louis Jacques Brunet e sua trajetória centenária no Recife15, já a Bahia conta com o Museu Pedagógico - Casa Padre Palmeira, em Vitória da Conquista. Tal Museu apresenta os seguintes objetivos: preservar e divulgar fontes documentais que testemunhem a História da Educação e das ciências na região Centro-Sul da Bahia; propiciar à comunidade acadêmica o acesso a fontes historiográficas, seu manuseio, catalogação, visualização do acervo bibliográfico correspondente aos diversos saberes que dão sustentação e sentido à educação, nas várias áreas do conhecimento em seu processo inter/transdisciplinar; identificar espaços de guarda de documentos que retratem a educação no Centro-sul da Bahia nos seus diversos aspectos, de forma a estabelecer permanente olhar e interpretação sobre a trajetória e história dos saberes e viabilizar a ideia de Museu como espaço vivo de defesa e proteção do patrimônio cultural, respeito à liberdade de expressão, da crítica e das várias formas de linguagem que expressam as teorias do conhecimento sobre a educação e a história16.
Sergipe destaca-se com os Centros de Memória que relacionam ensino, pesquisa e extensão, a saber: o Centro de Educação e Memória do Atheneu Sergipense (Cemas), criado em 2005 em uma escola pública inaugurada em 1870, com um diálogo estreito entre universidade e escola (ALVES, 2016a ; OLIVEIRA, 2023); como também o Centro de Memória do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe, fundado em 2016 (CONCEIÇÃO, 2022).
Tais centros de memória enveredam por outras searas do patrimônio educativo, explorando tanto o viés da pesquisa acadêmica, como também abrindo as portas para estudantes da educação básica, promovendo exposições, articulando trabalhos com os docentes, promovendo atividades com a comunidade escolar, atual e de ex-alunos, além de divulgar ações na grande imprensa. Os centros de memória atuam com “práticas de patrimonialização que não empalhem, mas que espalhem pelo social aqueles bens ou expressões patrimonializadas” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 163).
Os grupos de pesquisa têm atuado em diferentes frentes de trabalho na constituição de espaços de memória escolar. Uma primeira consiste na organização de acervos escolares no espaço físico da universidade, como é o caso do Centro de Memória da Educação em Pernambuco (Cemepe), vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas História da Educação de Pernambuco (NEPHEPE), da Universidade Federal de Pernambuco; e do Centro de Referência e Memória da Educação, vinculado ao Grupo Memória da Educação na Bahia, nas dependências da Universidade do Estado da Bahia. Nesses trabalhos há um investimento no levantamento e organização de acervos escolares com distintas finalidades, sobrepondo a realização da pesquisa com o espólio documental das instituições educativas.
Por outro lado, em uma perspectiva de constituição de acervos virtuais, constam iniciativas de grupos de pesquisa da Universidade Federal da Paraíba, que organizou um repositório virtual da cidade de Bananeiras/PB (ANDRADE, 2017), e da Universidade de Pernambuco, com um trabalho de organização de acervos dentro das próprias escolas, inclusive fomentando atividades com a documentação e sua disponibilização na rede mundial de computadores.17
Outra iniciativa localizada, que pode ser considerada um diferencial para a área, consiste nos trabalhos dos mestrados profissionais em educação que possuem como produto a organização de acervos e construção de inventários. São exemplos dessas investidas as dissertações de Cruz (2021) e Medeiros (2022). A primeira aborda o processo de interiorização do ensino secundário em Pernambuco a partir da fundação do Ginásio de Bom Jardim entre as décadas de 1950 e 1960, o trabalho apresentou como produto final o Centro de Documentação e Memória do Ginásio de Bom Jardim com um plano de ação para sua execução. A segunda investiga o Ginásio Sagrado Coração de Senhor do Bonfim na Bahia, contando com uma pesquisa sobre a história e memória da instituição educacional e um catálogo digital do acervo.
Esses trabalhos têm conseguido tanto articular o ensino superior com a educação básica, pesquisa e extensão, como também conferir uma devolutiva social para os cidadãos que integraram/integram uma instituição social, sujeitos que têm direito à preservação e acesso aos fragmentos de um passado que constitui a sua identidade, também perpassada pela escola. Corroboramos com Souza (2013, p. 216) ao compreender que:
Nos atos de reunir, organizar, higienizar, inventariar e pesquisar o patrimônio no campo da educação, deve haver mais que resistência ao esquecimento e reverência pela escola do passado, mas, fundamentalmente, a perspectiva da construção do futuro presente das escolas em nossa sociedade.
O investimento da rede de institutos federais nos “lugares para lembrar” constitui-se como um movimento que encontra ressonância nessa perspectiva, uma vez que faz uso dos espaços de memória interligando o passado e o futuro da instituição, entendendo que “A aposta na memória não visa apenas dar conta de uma ausência, mas visa constituir uma presença” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 159). “Constituir uma presença” por meio da patrimonialização de documentos e objetos da escola para a comunidade escolar e para além dela.
Tornar-se visível para diferentes grupos fazendo uso dos “restos” das escolas para propagar diferentes versões do passado ou mesmo construir um presente que valoriza sujeitos do ontem e do hoje, expor objetos, narrar histórias e construir memórias de um grupo social que passou pela escola. Eis alguns dos caminhos percorridos na constituição dos espaços de memória escolar na região Nordeste do Brasil.
REFLEXÕES SOBRE O PATRIMÔNIO EDUCATIVO LUSO-BRASILEIRO
Com o pensamento de que “[...] o mundo da vida é um arquipélago de ritos, entre cujas ilhotas e mares circulam os indivíduos que se educam e ao mesmo tempo se socializam” (ESCOLANO BENITO, 2017, p. 82). Compreendemos que existem práticas de patrimonialização escolar que perpassam diferentes instituições educacionais no Brasil e em Portugal, “Com o mar por meio”. Arquipélagos que se unem banhados pelo mesmo mar de referenciais teóricos e perspectivas de memória que se contrapõem a ilhas com feições próprias da sua comunidade escolar, suas histórias e memórias que devem ser projetadas ou silenciadas. Histórias circunscritas às vidas dos seus sujeitos e suas práticas educativas e de socialização.
Das mais de duas dezenas de exemplos de espaços de memória escolar em Portugal, nota-se um realce para os artefatos escolares e os museus. Projetos vinculados às questões arquivísticas, com salvaguarda de documentos, mesmo com inventários e construção de espaços de memória que mesclem essas diferentes materialidades, não são tão consistentes como no Nordeste do Brasil. Destaque para o trabalho singular do Citrime e a busca por extrapolar as fronteiras disciplinares, e mesmo geográficas, no trato com o patrimônio educativo.
Cabe salientar ainda o significado do museu na sociedade portuguesa e como esse elemento cultural desemboca também na perspectiva dos museus escolares, diferentemente do Brasil, com um conjunto de museus mais relacionado com a promoção de instituições particulares, com algumas exceções como é o caso do Museu de História Natural Louis Jacques Brunet e o Museu Pedagógico - Casa Padre Palmeira. Outro aspecto relevante concerne aos projetos vinculados às universidades para a constituição e manutenção desses espaços de memória, como também o levantamento desses acervos. Nota-se que em ambos os países, assim como em outros, há um investimento dos pesquisadores no trabalho com os “restos” da escola, como também percalços e desafios próprios de uma área em meio a tantas demandas do universo escolar.
A investigação realizada aponta ainda para a diversidade de iniciativas, com destaque para o crescimento do número de memoriais na rede de Institutos Federais de ensino no Nordeste do Brasil. Como explicar essa “obsessão pela memória” educativa, em diálogo com Huyssen (2000, p. 20)? Instituições criadas no início do século XXI que também incorporaram escolas centenárias nas suas novas configurações. Quais memórias esses espaços projetam sobre seu passado?
Ou mesmo pensarmos sobre as instituições privadas e seus espaços de memória. Como os museus escolares, sobretudo os das escolas confessionais, têm tratado os objetos da escola? Quais usos tem fornecido a museologia educacional? Como tem utilizado o patrimônio educativo no dia a dia das suas práticas?
Os resultados também nos provocam a pensar sobre quais escolas foram patrimonializadas. São instituições urbanas, sobretudo concentradas nas capitais ou cidades com maior poder econômico. Tem-se uma ênfase em escolas do atual ensino médio ou que ofertam/ofertaram diferentes níveis de ensino. Onde estão, por exemplo, as histórias das escolas rurais? Das escolas isoladas? Das escolas primárias? Das instituições consideradas mais periféricas? Ou mesmo os artefatos, documentos, imagens e vozes da formação docente das escolas normais? A Sala de Memória Amália Xavier de Oliveira, da Escola Normal Rural de Juazeiro do Norte no Ceará, estudada por Ribeiro (2015), como também a organização do arquivo do Instituto de Educação Rui Barbosa em Sergipe ((COSTA; OLIVEIRA e BONIFÁCIO, 2022), são os únicos exemplos que pudemos localizar. Mesmo assim os trabalhos evidenciam a dispersão dos acervos e as dificuldades para sua manutenção. Não esqueçamos que “Tudo o que é classificado como patrimônio tem um nascimento, é produto de um ato de gestação, de criação, de invenção, ato sempre acompanhado de interesses [...]” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 159).
Longe de defendermos a patrimonialização de todas as escolas, é preciso refletirmos acerca de quais histórias temos preservadas e quais histórias podemos narrar a partir desses acervos. Quais os silenciamentos e potencialidades na escrita da História da Educação a partir de um conjunto previamente selecionado de escolas que deixaram seu legado para as gerações vindouras em espaços de memória? Quais versões do passado podemos acessar a partir desses acervos e como compreender os sujeitos da educação que não passaram por essas escolas “centrais”, “centenárias” ou de “relevo”?
Os espaços de memória escolar criados no Brasil e em Portugal estão unidos pela preservação de uma memória, eivada de interesses do presente. Seja em uma perspectiva de pesquisa e produção do conhecimento histórico, seja pelo diálogo com a comunidade na qual a instituição está inserida ou mesmo para projetar vultos de um passado não tão distante, mas considerados cruciais na construção da história daquela instituição educacional e quiçá da sua localidade.
A preocupação com a preservação nem sempre é acompanhada de atividades de veiculação desse patrimônio e mesmo sua relação com as práticas educativas da instituição. Segundo Souza (2013, p. 213), a conversão do patrimônio escolar deveria servir “[...] às próprias escolas e à comunidade escolar para reconhecer o significado sociocultural da instituição, como memória afetiva da experiência escolar”, mas, sobretudo, “como ferramenta de reflexão sobre o significado da escola como instituição ao longo do tempo e os sentidos de sua atuação no presente.”
Observa-se um esforço hercúleo, de alguns centros de memória e memoriais, em promover exposições, receber estudantes de diferentes níveis de ensino, além de manter em funcionamento os trabalhos básicos de inventário, higienização e acondicionamento desses acervos. Tudo isso somado à falta de equipes e recursos para o trato com a memória educativa.
Em meio aos “incêndios” de diferentes tipos que atingem o cenário educacional no Brasil, entre eles o descrito no início do texto, que o trato com o patrimônio educativo possa nos aproximar de histórias transnacionais nas quais os ritos escolares são compartilhados ou reinventados no dia a dia das práticas educativas. Como as cartas trocadas entre José Saramago e Jorge Amado, que possamos trocar experiências, aprendizagens, erros e acertos ao lidar com o passado da escola, seja em redes internacionais, nacionais ou locais, que de alguma forma potencializem o debate sobre o lugar da escola do passado e do presente na constituição de uma sociedade mais democrática e cidadã. Que tais discussões potencializem o avanço nas questões teórico-metodológicas e reflexões mais consubstanciadas para a complexificação das pesquisas na área.
A reflexão abre margem para outras questões que pesquisas em rede podem nos ajudar a investigar: o que a instituição educacional guardou nesses “lugares para lembrar”? Qual memória buscou-se construir a partir desses acervos? Por que construir um “lugar para lembrar” das suas histórias e memórias? O que esses espaços entenderam como patrimônio educativo? Como os grupos de pesquisa da área da História da Educação têm auxiliado na “edificação” desses espaços? Quais diálogos são estabelecidos entre universidade, escola e comunidade no processo de patrimonialização escolar? Como já asseverou Souza (2013), tão importante quanto mapear as experiências com o patrimônio educativo no Brasil é a organização e o fortalecimento de redes de pesquisadores, como também o próprio diálogo com a sociedade civil acerca da compreensão da memória educacional como direito de cidadania. Lembremos que:
[...] a ideia de patrimônio se associa à de identidade e reforça ao mesmo tempo, o valor da tradição. Até pouco tempo, os bens da escola foram excluídos dos arquivos da memória oficial, uma memória marcadamente seletiva, interessada, principalmente, em fatos e obras notáveis. Agora esses bens são buscados, conservados e difundidos, porque nos pertencem e nos definem como sujeitos histórico-culturais. Eles fazem parte de nosso relato, sobretudo desde que a experiência escolar passou a fazer parte das formas universais de sociabilidade. Justamente por isso, estamos cada vez mais decididos a salvaguardá-los, uma vez que eles são essenciais no processo de constituição de uma identidade coletiva (ESCOLANO BENITO, 2017, p. 273-274).
Patrimônio. Identidade. Tradição. Memória oficial. Memória seletiva. Arquivos. Sujeitos. Salvaguarda. Identidade coletiva. O trato com o patrimônio em instituições educativas luso-brasileiras confere espaço para um debate fundamental acerca não só de temáticas cruciais para a História da Educação, mas de elementos próprios da formação de sociedades democráticas que têm no estudo e problematização do seu passado e da memória seletiva um dos caminhos para o direito da cidadania.
A construção da identidade individual e coletiva também passa pela escola, seus interesses, finalidades e os “restos” com os quais podemos acessar esse cotidiano escolar que ainda estão presentes em escolas patrimonializadas com acervos repletos de subjetividade no complexo jogo da memória e a edificação dos “lugares para lembrar” do seu passado. Enfrentar esses, entre tantos outros desafios, é fulcral no momento em que no Brasil alguns chegam a colocar em dúvida o papel da escola, dos seus docentes e mesmo do poder transformador da educação.