Introdução
“Por toda parte se observa essa tendencia investigadora [...] São missões militares, de economistas, de engenheiros, de professores, de medicos, de agricultores, etc., que por toda parte enveredam na ancia de ver, observar e imitar”
(A Federação, 1913a, p.1).
Por mais que se corram riscos ao se fazer generalizações, como indicou Chamon (2005), é possível assinalar que o ato de viajar faz parte da história dos povos. Empreendido em diferentes contextos históricos, dotado de motivações e sentidos singulares, com deslocamentos e horizontes variados, esse trânsito de sujeitos possibilitou descobertas, aprendizados e mudanças nos diferentes âmbitos das sociedades. Fosse “[...] breve ou demorada, instantânea ou de longa duração, delimitada ou interminável [...]”, presente, pretérita ou futura, “[...] peregrina, mercantil ou conquistadora [...]”, tanto quanto “[...] turística, missionária, aventurosa, filosófica, artística ou cientifica [...]”, as viagens permitiram, e ainda permitem, aos sujeitos, experimentar o movimento de “[...] invenção do outro [...]”, de “[...] recriação do eu [...]”, de “[...] ultrapassar fronteiras, dissolvê-las e recriá-las” (Ianni, 2003, p.13).
Dentre as distintas modalidades de viagens, interessa, neste artigo, aquelas denominadas nas pesquisas históricas da educação como viagem e/ou missão pedagógica, educacional ou de estudos, as quais tinham como intencionalidade investigar aspectos educativos de outros países para, assim, observar, comparar e produzir conhecimento sobre o outro, mas também sobre o eu (Gondra, 2010). Logo, as viagens pedagógicas em suas distintas dimensões - fosse de mediação, formativa ou avaliativa - se constituíram como uma estratégia importante nos séculos XIX e XX, as quais, não raras vezes, foram designadas e patrocinadas pelo poder público.
Desse modo, destaca-se que as travessias brasileiras foram intensas desde os Oitocentos até o século XX, uma vez que elas representavam a possibilidade de se conhecer o funcionamento e os padrões de ensino de nações mais adiantadas, tidas como referência (Nóvoa & Schriewer, 2000), tais como osEstados Unidos e a Europa. São elucidativas a esse respeito a viagem realizada por João Batista de Queiróz à França, em 1820, com o propósito de estudar o método lancasteriano para ser aplicado no Brasil (Bastos, 1997, p. 126)1, e a viagem de Alda Lodi e BenedictaValladares aos Estados Unidos em agosto de 1927, que, juntamente com mais duas professoras, foram selecionadas para estudar como bolsistas do governo mineiro no Teacher´s College, da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque (Fonseca, 2010; Araújo, 2010)2.
Da mesma forma, essas missões de estudos também atravessavam fronteiras nacionais, possuindo como destino os Estados considerados mais adiantados no próprio território brasileiro. Com efeito, vale destacar a liderança política, econômica e educacional de São Paulo, em nível nacional, nos primeiros anos do período republicano. A representação de um aparelho escolar modelar fez com que São Paulo passasse a ser uma referência para vários Estados brasileiros (Souza, 2011). A circulação e a disseminação das características do modelo escolar paulista em outros Estados deram-se tanto pelas visitas feitas a São Paulo como também pelas denominadas missões de professores paulistas, as quais, em linhas gerais, podem ser definidas como a atuação desses professores na disseminação da modernidade educacional em vários Estados brasileiros (Souza, 2011).
Tendo-se em vista a importância dessas missões pedagógicas para a organização dos sistemas educacionais brasileiros, apresentam-se, neste artigo,dados de uma pesquisa realizada sobre a missão de estudos gaúcha, enviada ao Uruguai na primeira década do século XX. Vale ressaltar que, embora existam outros trabalhos (Dill, 1984; Giolo,1997; Beiser, 1997; Corsetti, 1998; Peres, 1999; Trindade, 2001; Gonçalves, 2013; Arriada e Tambara, 2013)que explicitem que professores e professoras sul-rio-grandenses foram estudar o sistema de ensino uruguaio e que indiquem a relevância da adoção dessa estratégia para o cenário gaúcho, nenhum deles teve como foco específico de análise a missão de estudos ao Uruguai. Ou seja, mesmo sendo destacada pelos autores e autoras como uma temática relevante, ela não foi aprofundada tanto no que diz respeito à sua organização como no que tange às possíveis inspirações e/ou mudanças legitimadas no sistema educacional do Rio Grande do Sul.
Considerando-se, portanto, que a missão de estudos tinha como propósito principal reorganizar o sistema de ensino gaúcho, a pesquisa foi norteada pelas seguintes questões: Que inspirações e/ou mudanças a missão de estudos teria efetivado no sistema educacional do Rio Grande do Sul? Em quais aspectos do sistema de ensino gaúcho a missão pedagógica teria apresentado contribuições? Que possíveis concepções pedagógicas a missão poderia colocar em circulação no cenário educacional gaúcho?
Como balizadores do período da investigação estão os anos de 1913 a 1927. O marco inicial deve-se ao fato de ser este o ano em que foi organizada a missão de estudos; o final, por terem sido promulgadas naquele ano, as últimas orientações legais acerca do ensino primário por Borges de Medeiros, que organizou e autorizou a missão pedagógica3. Assim, compõem o corpus de análise da pesquisa fontes do referido recorte temporal como (i) documentos oficiais do Rio Grande do Sul e do Uruguai (Relatórios da Secretaria dos Negócios do Interior e Exterior do Rio Grande do Sul, Mensagens dos Presidentes de Estado enviadas à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Relatório de Viagem escrito pelos professores e professoras que estiveram no Uruguai em 1913, Mensagem de Abel J. Pérez4 e os Anales de Instrución Primaria5); (ii)leis, decretos e regulamentações escolares do Rio Grande do Sul promulgados entre os anos de 1906 a 1927; (iii) periódicos jornalísticos (sendo 02 jornais rio-grandenses - A Federação6 e o Correio do Povo7 - e 01 uruguaio, El Dia8); e (iv) documentos de arquivos privados (materiais e entrevistas concedidas pelos descendentes dos professores e das professoras que participaram da missão pedagógica).
Diante do exposto, salienta-se que este artigo está organizado em duas seções. Na primeira se explicitam o que foi a missão de estudos ao Uruguai, sua organização e objetivos. Na segunda, apresentam-se os resultados da missão pedagógica.
"A missão que nos foi commettida"9: organização, objetivos e financiamento
O anseio em organizar missões de estudo que viessem contribuir com o sistema de ensino público que estava em fase de expansão e consolidação no Rio Grande do Sul no início do século XX foi identificado nos documentos oficiais consultados desde o ano de 1909. Tal pretensão também foi identificada nos periódicos da época. Em pesquisas realizadas no jornal A Opinião Pública, de 1913, Arriada e Tambara (2013) localizaram a intenção de Borges de Medeiros em enviar para a Argentina e para a Europa os delegados das aulas públicas do Estado.
No entanto, embora os registros das autoridades e a reportagem veiculada na imprensa demonstrem o interesse por parte do governo em constituir uma missão pedagógica para qualificar o ensino gaúcho desde o ano de 1909, tal estratégia foi concretizada somente em setembro de 1913, ao Uruguai e não a Buenos Aires ou à Europa, como mencionado na referida notícia.
Assim, a missão de estudos ao Uruguai foi planejada e autorizada por Antonio Augusto Borges de Medeiros10, presidente do Rio Grande do Sul e líder do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), no ano de 1913. Essa estratégia tinha como intuito analisar os modelos escolares, os métodos pedagógicos e tudo que fosse relativo ao sistema de ensino uruguaio a fim de identificar possibilidades modernas que contribuíssem para a melhor estruturação do sistema educacional do Rio Grande do Sul. As autoridades gaúchas defendiam que a partir dessa viagem os professores e as professoras poderiam ter “[...] a oportunidade de colher dados preciosos de observação, que os habilitem a fazer uma útil apreciação dos nossos métodos, mediante o confronto deliberado do que lá existe com o que aqui se pratica” (A Federação, 1913b, p. 1). Percebe-se, desse modo, a viagem não só em sua dimensão de mediação - ao aproximar as duas realidades e possibilitar o intercâmbio de ideias -, mas também de avaliação - ao ser entendida como possibilidade de avaliar a própria realidade, neste caso, de acordo com o discurso das autoridades, o sistema educacional gaúcho e os métodos de ensino utilizados nas aulas públicas do Estado.
Vale frisar que não foram localizados, nos documentos oficiais do Estado, dados explícitos acerca da organização dessa missão, de como se efetivaram os contatos e as negociações, entre outros aspectos. Algumas dessas informações só foram identificadas em uma carta redigida pelo cônsul uruguaio V. M. Carrió11, que foi publicada nos jornais A Federação e Correio do Povo, após a deliberação do governo.
No início do corrente ano, na ocasião do baile oferecido pela Faculdade de Matemática ao Senhor Deputado Doutor João Simplício Carvalho, o ilustre presidente do Rio Grande, cujas altas condiciones de trabalho não lhe permitiram descansar, me comunicou que ele ficaria satisfeito em obter informações concretas sobre o estado da instrução pública em meu país, cujos avanços ele já tinha notícias eloqüentes (Correio do Povo, 1913, p. 1, tradução nossa)12.
Pode-se inferir, a partir da descrição do cônsul, que o primeiro contato para a organização da missão foi realizado pelo presidente Antonio Borges de Medeiros, que demonstrou interesse em ampliar o seu conhecimento sobre o setor educacional do Uruguai. A partir dessa solicitação, então, Carrió mencionou que se apressou
[...] em satisfazer os desejos do Doutor Borges de Medeiros, fazendo vir de Montevidéu todo o tipo de publicações sobre o assunto da instrução pública: textos, memórias, programas, revistas, etc. Em um total de cerca de cem mil páginas impressas. - Depois de estudar o assunto nesta ampla fonte informativa, foi que se decidiu, então, por um programa de trabalho, tendo essa determinação custado muitas horas de trabalho cansativo para o ilustre Secretário do Interior, Doutor Protasio Alves (Correio do Povo, 1913, p. 1, tradução nossa)13.
Após esses primeiros contatos e estudos, a decisão das autoridades em enviar um grupo de professores para conhecer o sistema e os processos educativos utilizados nas aulas da adiantada e florescente república uruguaia (Rio Grande do Sul, 1913) foi noticiada no mês de setembro de 1913 no jornal A Federação.
A mensagem do Rio Grande do Sul enviada à Assembleia Legislativa pelo presidente do Estado no ano de 1913 já anunciava a organização de um segundo momento da missão, a ser realizado no ano de 1914, como pode ser observado no excerto a seguir:
E a acção do governo do Rio Grande não para ahi; não se limitará a essa unicacommissão. Para o próximo anno deve seguir outra turma de professores do Estado, com egual destino. Após o regresso, o governo escolherá seis alumnos diplomados pela Escola Complementar para irem especialmente fazer o curso da Escola Normal de Montevidéo, onde se demorarão o tempo que for necessario. Desses seis alumnos, três serão aposentados pelo governo uruguayo, graças à gentileza que elle nos quis dispensar (A Federação, 1913c, p. 3).
Evidencia-se, pelo exposto, que o primeiro momento da missão de estudos seria realizado no ano de 1913 e o segundo, no ano de 1914. Nota-se, ainda, que, assim como a organização da primeira viagem, a segunda foi acertada diretamente entre as autoridades de ambos os países, não se tendo muitas informações a respeito do processo e das negociações estabelecidas. Além disso, salienta-se que o cônsul uruguaio, V. M. Carrió, teve papel fundamental nessa ação, mediando os contatos e acordos entre as autoridades gaúchas e uruguaias. Todavia, ressalta-seque, embora tenham ocorrido duas viagens, elas fazem parte de um mesmo projeto, de uma mesma ação, pois foram planejadas, anunciadas e autorizadas juntas, por isso, são entendidas como uma única missão educacional, desenvolvida em dois momentos.
Assim, o primeiro momento da missão, concretizado no mês de setembro do ano de 1913, foi efetivado por um grupo composto de dois professores e quatro professoras gaúchas: Alfredo Clemente Pinto, Affonso Guerreiro Lima, Ondina Godoy Gomes, Georgina Gomes Moritz, Marieta de Freitas Chaves e Florinda Tubino Sampaio. Com exceção de Georgina Gomes Moritz, todos os demais atuavam na Escola Complementar de Porto Alegre, única instituição estatal no período responsável pela formação de professores. O segundo momento da missão, realizado em março de 1914, teve a participação das professoras Carlina Carneiro Cunha, Marina Barreto Cunha, Olga Acauan, recém-formadas pela Escola Complementar de Porto Alegre, além de Branca Diva Pereira de Souza, Maria Idalina Mariante Pinto e Maria José de Souza Cunha, professoras em exercício no magistério público primário.
É interessante mencionar que a escolha dos profissionais que integraram os dois momentos da missão de estudos foi feita pelas autoridades gaúchas, especialmente por indicação do diretor da Escola Complementar de Porto Alegre, Alfredo Clemente Pinto. Os dados da pesquisa demonstram que tal seleção, embora não tenha tido um processo seletivo com etapas pré-estabelecidas, esteve pautada por um conjunto de critérios, tais como a qualificação, a reconhecida competência profissional, o prestígio, a idoneidade, a responsabilidade profissional e a dedicação aos estudos, para o caso das estudantes recém-formadas. O que evidencia que, com maior ou menor tempo de exercício no magistério, os integrantes da missão de estudos eram envolvidos com a educação da época, possuíam boas relações estabelecidas, fosse pelo sucesso escolar obtido no curso de formação, pelos cargos já ocupados na administração pública, pelo desempenho de suas tarefas no exercício do magistério, fosse pelos vínculos instituídos no próprio ambiente de trabalho, ou ainda, pelas redes de relações mantidas com as autoridades gaúchas (Michel, 2017).
A estadia dos professores e professoras sul-rio-grandenses em Montevidéu foi noticiada em alguns jornais uruguaios, como pode ser visualizado na Figura 1 a seguir. Mesmo que os registros fotográficos não proporcionem uma imagem nítida e de melhor qualidade, em virtude dos recursos de imagem e da imprensa da época, optou-se por apresentá-las por serem estas as únicas imagens localizadas sobre a missão de estudos.
Em linhas gerais, é possível destacar que no desempenho da missão a eles confiada, entre os meses de setembro a dezembro de 1913, o primeiro grupo de professores,
[...] observou todos os nossos estabelecimentos de ensino: nossos institutos, nossas escolas, nossos jardins de infância, nossos museus pedagógicos, esturaram os programas, os textos; e finalmente reuniram elementos suficientes para formar um julgamento criterioso sobre o nosso ensino (El Dia, 17 de mar. de 1914, p. 5, tradução nossa)14.
Por sua vez, o grupo que viajou a Montevidéu em 1914, além de visitar instituições de ensino, teve a oportunidade de aperfeiçoar seus estudos, uma vez que as três alunas recém-formadas receberam subsídio do governo uruguaio e foram matriculadas no Instituto Normal de Señoritas15 e as três professoras, financiadas pelo governo do Rio Grande do Sul, praticaram, nesse estabelecimento e na escola de aplicação anexa, os métodos de ensino lá utilizados. Todavia, vale mencionar que somente Branca Diva Pereira de Souza e Olga Acauan concluíram seus estudos em Montevidéu no ano de 1917, permanecendo no Uruguai, portanto, três anos. Carlina Carneiro Cunha, Marina Barreto Cunha, Maria Idalina Mariante Pinto e Maria José de Souza Cunha permaneceram em Montevidéu somente no ano de 1914.
Quanto ao financiamento da missão de estudos, salienta-se que ambas as viagens foram subsidiadas pelo Estado do Rio Grande do Sul, pois este custeou as passagens ao Uruguai, enviou mensalmente uma quantia a cada um dos professores e professoras, bem como ressarciu possíveis gastos extras despendidos pelo grupo que viajou em 1913. Pode-se destacar, ainda, que o segundo momento da missão foi financiado tanto pelo Rio Grande do Sul como pelo Uruguai, pois, além da quantia enviada pelo Estado gaúcho para as seis professoras de 30 pesos mensais (Carta do cônsul...1914), três delas também recebiam um subsídio mensal de 90 pesos do governo uruguaio (valores da época) (A Federação, 1914a, p. 4).
Tendo-se em vista que as autoridades republicanas entendiam que a missão pedagógica melhoraria a instrução pública gaúcha, bem como aperfeiçoaria a prática dos professores e professoras sul-rio-grandenses, cabe então questionar: Quais foram as impressões da comissão acerca do sistema educacional uruguaio? Que proposições foram apresentadas a partir dessa experiência de intercâmbio às autoridades gaúchas? São essas questões que norteiam a discussão apresentada na seção seguinte.
Impressões e proposições da missão de estudos
As distintas observações realizadas pelo grupo de professores que permaneceu no Uruguai no ano de 1913 foram registradas no Relatório de Viagem, o qual é composto por 12 relatórios independentes que foram produzidos com o intuito de manter o governo do Rio Grande do Sul informado sobre o trabalho que estava sendo desenvolvido em Montevidéu. Contudo, embora eles estejam assinados pelos profissionais que realizaram as referidas visitas, os 12 relatórios encontram-se agrupados, constituindo, assim, um único documento. Por isso, optou-se por denominá-lo de Relatório de Viagem.
Sobre esse documento, ressalta-se que as práticas de observar e de registrar são permeadas pelas diferentes experiências dos sujeitos, pelas crenças e valores culturais e religiosos, pelos sentimentos e, ainda, pelos desejos e anseios do que se espera transmitir por meio da escrita. Por isso, a escrita do sujeito deve ser sempre compreendida como uma versão, pois,
Viajar, além de comparar, também é refletir. É estar com os olhos aguçados e os ouvidos bem abertos para recolher impressões produzidas por estes sentidos, a visão e a audição, permitindo um constante pensar o 'eu' e o 'outro', o igual e o diferente, e buscar compreender o porquê das diferenças. O que cada um observa e registra é resultado da maneira, do lugar e do momento situacional que se escolhe ver (Cardoso, 2011, p. 28. grifo do autor).
Então, o que especificamente o grupo registrou em suas narrativas? Que proposições foram apresentadas às autoridades do Rio Grande do Sul? Para serem mais bem explorados, os aspectos contemplados no relatório de viagem foram agrupados em cinco categorias: (i) infraestrutura, (ii) disciplina, (iii) cultura material escolar, (iv) aspectos didáticos-pedagógicos e (v) formação de professores.
Assim, inicialmente se destacam as observações que dizem respeito à infraestrutura. Sobre essa temática, de forma geral, foram registradas informações acerca da composição dos prédios uruguaios, se a estrutura havia sido construída para o fim educacional ou se havia sido adaptada, o tamanho das salas de aulas, a luminosidade das mesmas e o espaço dos pátios. De acordo com as impressões da comissão, somente dois prédios visitados foram construídos com o fim educativo, os demais se caracterizavam como estabelecimentos adaptados. É importante destacar, nesse sentido, que a realidade observada pelos professores brasileiros de prédios adaptados se estendia a todo o país, uma vez que no ano de 1914, conforme registros das autoridades uruguaias, quase todos os prédios ocupados pelas escolas públicas eram alugados. Entretanto, segundo a comissão, a maior parte deles estava instalada seguindo as condições necessárias. O jardim de infância, por exemplo, assim como outras escolas, também havia recebido construções ad hoe apresentando “[...] salas alegres, hygienicas, bem illuminadas e ventiladas, satisfazendo cabalmente a todas as exigencias de um estabelecimento de tal natureza” (Rio Grande do Sul, 1914, p. 220).
Também foi ressaltado no documento supracitado que “[...] o cuidado pela saúde e desenvolvimento psíquico das crianças no plano de educação desta República manifesta-se não só nos exercícios de ginástica como também nos edifícios e mobiliários das escolas” (Rio Grande do Sul, 1914, p. 176). Logo, esses prédios monumentais produziam não só ideários de beleza, de princípios higiênicos e pedagógicos, mas também um conjunto de regras, de regulações, de comportamentos e de novos hábitos que ali precisavam ser difundidos em prol do anseio republicano de reorganização social e do progresso da nação. Como exemplo, há no relatório de viagem um destaque para os pátios das escolas e as atividades ali desenvolvidas. Além de ser destacada a boa infraestrutura que esses espaços apresentavam por meio das descrições -amplos, cobertos, com bebedouros, ocupando uma posição central na planta da escola para oportunizar maior segurança e maior controle das ações das crianças no recreio-, na percepção dos professores e professoras,o uso desse espaço para a realização de atividades físicas com um número significativo de crianças e para a realização de cultos cívicos, de festas e de espetáculos contribuía para implementar e reforçar o nacionalismo, o civismo e o patriotismo.
Desse modo, a comissão sul-rio-grandense enfatizou que as escolas uruguaias de ensino primário não só produziam como potencializavam, diária e intensamente, por meio de situações cotidianas e práticas pedagógicas, uma nova ordem escolar e social, tão almejada no período republicano. O que viram relativo à disciplina e à ordem os deixou “[...] agradavelmente impressionados” (Rio Grande do Sul, 1914, p. 175).
Embora não tenham sido cotejados na escrita os contextos uruguaio e gaúcho no que tange à arquitetura monumental dos prédios escolares, ao disciplinamento dos alunos e ao ensino da moral, da civilidade e do civismo, as expressões utilizadas pela comissão no documento explicitam certa idealização do sistema uruguaio nesses pontos em comparação à realidade gaúcha. Uma reportagem publicada no jornal A Federação, no ano de 1914, permite evidenciar, inclusive, que os professores tentaram colocar em prática, no cotidiano escolar do Rio Grande do Sul, alguns aspectos e estratégias utilizadas nas instituições uruguaias para a disciplina e o ordenamento dos alunos que receberam muitos elogios no relatório de viagem como, por exemplo, o breve sinal para conduzir os alunos ao recreio, o uso da voz ou do som de campainha para que retornassem à sala de aula, ou para chamar a atenção durante uma atividade ou exercício.
E comtudo a disciplina é completa. Nas aulas como nos exercícios as turmas obedecem ao mais breve signal, voz ou som de campainha com que a professora, sua amiga, as adverte. Bem se vê o que o rigor, a severidade e a asperesa não constituem meios de educação. Onde fracassem o conselho persuasivo, o exemplo edificante e a admoestação opportuna, os vexames que degradam e as violencias que aviltam nada conseguem (A Federação, 1914b, p. 1).
No que tange ao material escolar, a comissão de professores indicou que a escrituração escolar e os objetos escolares e pedagógicos utilizados na organização administrativa e pedagógica das instituições primárias uruguaias e gaúchas eram semelhantes, identificando, assim, a aproximação entre os materiais escolares de ambos os territórios. Para a escrituração escolar16, por exemplo, há o registro de queeram utilizados no Uruguai basicamente os mesmos suportes de escrita que no Rio Grande do Sul: livros para as matrículas dos estudantes; livro copiador, no qual “[...] se lança o conteúdo dos officios recebidos, e logo em seguida a respectiva resposta por extenso” (Rio Grande do Sul, 1914, p. 167); livro de arquivo para guardar, em ordem cronológica, os ofícios recebidos; álbum da escola, destinado às impressões dos visitantes; mapas mensais de frequência, de preenchimento obrigatório; e o livro de inventário. A exceção estava, nesse caso, nas cadernetas de passes, em forma de talão, para quando o aluno tivesse que trocar de escola, que no Rio Grande do Sul não eram utilizadas.
Dentre os móveis escolares, há no relatório de viagem o registro de que no Uruguai se usava, assim como no Rio Grande do Sul, as carteiras americanas que eram importadas dos Estados Unidos da América. As mesmas acomodavam um ou dois alunos, sendo que, dentre as instituições visitadas em Montevidéu, somente na escola de aplicação para moças eram usadas as carteiras individuais. É interessante, contudo, chamar a atenção para o fato de que, apesar de a comissão ter registrado em sua escrita que as carteiras das escolas públicas gaúchas eram importadas dos Estados Unidos, boa parte dos materiais usados nas escolas estaduais, no início do século XX, era produzida ou reformada na casa de correção do Estado, o que diminuía os gastos do poder público (Rio Grande do Sul, 1907).
Conforme os professores gaúchos, os materiais pedagógicos usados nas aulas públicas do Uruguai eram os mesmos utilizados no Rio Grande do Sul tais como, por exemplo, livros para o ensino da leitura; cadernos de Garnier Adler para as aulas de caligrafia; quadro negro; caderno e lápis; contadores para as aulas de matemática; coleções de minerais, aparelhos e laboratórios para o ensino da física e química, entre outros. Por certo, essa similaridade indicada no relatório de viagem acontecia em decorrência de ambos os sistemas de ensino seguirem o método intuitivo, no qual a orientação era de que o ensino partisse dos sentidos, das observações e do concreto. Princípio esse que, sem dúvida, estimulava e demandava o uso de diferentes objetos e recursos no cotidiano escolar. Nessa perspectiva, é importante destacar que “[...] os materiais só adquirem uma existência, enquanto tais, porque estão diretamente ligados à produção de determinado conhecimento escolar” (Felgueiras, 2005, p. 159). Não existem “[...] materiais soltos, sem gêneses e, consequentemente, sem valor social e político” (Felgueiras, 2005, p. 161).
Todavia, a comissão também salientou, com certa ênfase, a quantidade e diversidade de materiais fornecidos pelo governo uruguaio às escolas e o contínuo fornecimento dos mesmos mediante a simples solicitação das diretoras das escolas à direção geral. Segundo Peres (1999), essa ressalva poderia estar pautada tanto sob a lógica da situação vivida como da desejada, o que implica na compreensão de que no Rio Grande do Sul, provavelmente, a realidade era bem diferente. Certamente, mesmo sendo distribuídos os mesmos tipos de materiais, pela ênfase da comissão sul-rio-grandense a esse aspecto, é possível inferir que a carência de objetos nas escolas gaúchas era significativa.
Tendo em vista que nos dois sistemas de ensino os dispositivos legais orientavam que o ensino deveria ser desenvolvido pelo método intuitivo, a comissão sul-rio-grandense teceu inúmeros elogios ao sistema uruguaio no que diz respeito a esse aspecto didático-pedagógico, considerando, inclusive, o uso das lições de coisas no cotidiano escolar uruguaio como mais qualificado do que no Rio Grande do Sul. Na perspectiva da comissão, “Este ensino, tão pouco desenvolvido entre nós, é aqui feito com grande cuidado, pois a elle se liga grande importancia, para ministral-o serve-se o professor dos objetos da aula e de gravuras simples” (Rio Grande do Sul, 1914, p. 178).
Embora a redação da frase apresentada no relatório de viagem deixe transparecer a ideia do ensino intuitivo como uma disciplina a ser ministrada, em outros trechos do documento é perceptível que as professoras uruguaias demonstravam conhecimento mais ampliado acerca do método, o que fazia com que as atividades desenvolvidas em distintas matérias fossem ministradas de maneira prática e atraente, evidenciando, assim, a compreensão de que a lição de coisas não era uma disciplina a mais no programa, mas um processo geral que deveria conduzir o ensino de todas as matérias (Valdemarin, 2004).
Sobre esse aspecto, é interessante assinalar o esforço, por parte da Inspetoria Geral do Uruguai, em veicular, especialmente entre os anos de 1903 a 1909, orientações sobre as Lições de Coisas. No Anales de Instrución Primaria foram publicados diversos textos acerca de como deveriam ser ministradas essas lições nas aulas primárias. Sob o título 'Lecciones de cosas - apuntes para el maestro', os textos assinados por Eduardo Rogé intencionavam ampliar o conhecimento das professoras uruguaias sobre o que eram as lições de coisas, quais os objetos que poderiam ser contemplados na explanação, bem como orientar os momentos didáticos que deveriam ser respeitados em cada lição e a progressiva gradação que deveriam receber no programa de ensino, em cada ano escolar.
Logo, a unidade, o caráter prático e intuitivo, assim como a eficiência do ensino no Uruguai, era caracterizado pela comissão de professores no relatório de viagem como decorrência, entre outros aspectos, da preparação sólida a que os professores daquele país estavam submetidos e ao número limitado de alunos nas classes de ensino. Nas aulas preparatórias (destinadas aos analfabetos), a matrícula era restringida a 30 alunos. E nos demais anos o número de alunos não excedia a 50 (Relatório de viagem, 1914).
Nas legislações do Rio Grande do Sul, a quantia máxima de alunos permitida para as classes do ensino primário aparece pela primeira vez no decreto 1.479, de 1909, limitando a 50 o número de crianças nas aulas do Colégio Elementar anexo à Escola Complementar. Contudo, esse mesmo limite não é apresentado para os demais colégios elementares que estavam sendo criados, tampouco para as aulas isoladas. Vale questionar, desse modo, o seguinte: Se essa regulamentação, por ventura, fosse extensiva às demais instituições, a comissão teria sido tão enfática em seus registros mencionando que os bons resultados do ensino e do trabalho pedagógico nas escolas visitadas em Montevidéu estavam estritamente relacionados ao número de alunos que frequentavam as classes de ensino?
Nessa perspectiva, identificou-se, após a missão de estudos, que esse aspecto didático-pedagógico passou a compor a redação de um artigo do decreto nº 2.224, de 1916, instituído no Rio Grande do Sul (1916).
No sentido de tornar mais eficazes os esforços do professorado, mediante a adoção de métodos essencialmente práticos, por decrs. 2.220 e 2.224 de 13 de e 29 de novembro de 1916, foi modificado o regulamento da Instrução Publica. [...] O segundo decreto divide o curso desses colégios em 3 series, a primeira das quais se subdivide, por sua vez, em 3 secções. 'Para que os professores possam doravante lecionar com mais proveito, foi limitado a 30 o número de alunos na 1ª serie', e o de 50 na 2ª e 3ª, criando-se aulas paralelas sempre que esse limite seja ultrapassado (Rio Grande do Sul, 1917, p.23. grifo nosso).
É interessante salientar, todavia, que constava na redação desse decreto a orientação de que o Colégio Elementar anexo à Escola Complementar passaria a servir de modelo aos demais colégios elementares do Estado e que o número de alunos matriculados na primeira seção da primeira série não excedesse a 30 (art. 4º, decreto nº 2.224 de 1916). A mesma regulamentação foi mantida pelo decreto nº 3.898 de 1927, contudo, passando a valer para os colégios elementares e grupos escolares, indicando, assim, que as autoridades gaúchas procuraram, após a missão de estudos, acrescentar e manter na legislação do Estado a ressalva feita pelos professores e professoras que integraram a missão de estudos.
Outras observações em relação aos aspectos didático-pedagógicos foram registradas pelos seis professores gaúchos. No que diz respeito ao ensino da leitura, foi salientado que a leitura no primeiro, no segundo e no terceiro ano do ensino primário uruguaio era ensinada da mesma forma que no Rio Grande do Sul, pois primeiro as crianças liam e comentavam para depois fazerem a leitura mecânica. Todavia, a comissão sul-rio-grandense criticou veemente o método usado para o ensino da leitura nas classes preparatórias (para analfabetos), destacando no relatório de viagem que o método João de Deus, utilizado no Rio Grande do Sul, era superior ao adotado nas classes de alfabetização do Uruguai.
Ressalta-se, entretanto, que esse mesmo método descrito no relatório de viagem, de 1913, como inferior ao João de Deus, será considerado inovador e de acordo com os preceitos da pedagogia moderna pelas professoras que participaram do segundo momento da missão de estudos, em 1914, sendo, inclusive, adaptado por duas dessas professoras. Olga Acauan e Branca Diva Pereira de Souza adaptaram, assim, na segunda década do século XX, para uso nas escolas primárias do Rio Grande do Sul, o Primeiro livro de leitura ¿Quieres Leer?, do professor uruguaio José Henriques Figueira (Peres, 1999). A adaptação desta cartilha e o seu uso por várias décadas no ensino gaúcho representam um resultado proeminente do segundo momento da missão, mais pontualmente nos processos de ler e escrever, uma vez que Queres Ler? marcou um período de escolarização e do ensino, apresentando um novo método para o ensino da leitura e da escrita no cenário gaúcho (Peres, 1999; Trindade, 2001).
Ainda fazendo referência aos aspectos didático-pedagógicos observados em Montevidéu, foi indicado no relatório de viagem que uma contribuição do sistema uruguaio ao gaúcho para o ensino da aritmética seria usar, juntamente com as bolinhas de contador, o quinto dom de Froebel17 a fim de tornar mais prático o aprendizado da noção de quebrados (fração). Os integrantes da comissão também destacaram que no Uruguai a ideia de dezena era ensinada logo que a criança conhecia o número 10, diferentemente do que ocorria no Rio Grande do Sul, em que a mesma era ensinada posteriormente, o que acarretava dificuldade ao ensino desse conteúdo.É possível afirmar que a proposição dos professores para as autoridades gaúchas foi aceita, uma vez que se observou nas reportagens publicadas em A Federação a informação de que com grande proveito ao ensino gaúcho foram inclusos alguns pontos do sistema uruguaio no ensino da matemática, os quais
Consistiram em dar-se a idéa de dezenas logo que a creança conhecesse o numero 10 e na utilisação do 5º dom de Froebel, tornando facil a noção de quebrados e, por conseguinte, o seu estudo (A Federação, 1914c, p. 1).
Além dos aspectos mencionados (infraestrutura, disciplina, cultura material escolar e aspecto didático-pedagógicos), os integrantes da missão de estudos enfatizaram, como já mencionado, a sólida formação das professoras uruguaias. A partir da oportunidade que tiveram de acompanhar diversas aulas públicas e algumas lições práticas dos aspirantes ao magistério na escola de aplicação do Instituto Normal de Señoritas, a comissão sul-rio-grandense ressaltou os significativos resultados apresentados pela dinâmica na qual as alunas estavam inseridas: desde o terceiro ano do curso as mesmas praticavam constantemente para aperfeiçoar os erros cometidos, as deficiências, as divagações e os lapsos de método. Contribuíam, para isso, a exposição da matéria na frente das colegas e as críticas que eram feitas tanto pelas colegas como pela diretora (Rio Grande do Sul, 1914).
Provavelmente, por ter ficado impressionada com o que viu e por acreditar na importância da prática para a formação dos futuros docentes públicos, a comissão tenha solicitado às autoridades gaúchas atenção às Escolas de Aplicação no Rio Grande do Sul. Assim, salientou no supracitado relatório.
Não é mister encarecermos a utilidade e importância das 'Escolas de Applicação'. São verdadeiras aulas de experiencia e pedagogia pratica, que auxiliam poderosamente e completam de modo cabal o estudo theorico desta discipliana, feito na Escola Normal. Aqui apenas lembramos a conveniencia de destinar o curso elementar, anexo à nossa Escola, exclusivamente a esse fim, isto é, ao aprendizado, ao preparo pedagógico dos nossos alumnos-mestres. É sobretudo alli, nesse curso, que os futuros professores se hão de se formar (Rio Grande do Sul, 1914, p. 219. grifo do autor).
Essa recomendação da comissão, de certa forma, reafirmava a importância das práticas de ensino desenvolvidas na escola anexa durante o processo de formação docente. Nesse mesmo sentido, foi frisada a necessidade de haver pessoas preparadas pedagogicamente para assumir as aulas da Escola Complementar de Porto Alegre, o que incidiria em melhor qualificação daqueles que almejavam o magistério.
A solicitação da comissão foi atendida pelas autoridades gaúchas. No ano de 1916, a Escola Complementar de Porto Alegre ampliou em mais um ano o curso, passando assim de três para quatro anos a formação dos futuros docentes. Com a mudança, os alunos da Escola Complementar de Porto Alegre passaram a exercitar-se na escola anexa desde o terceiro ano do curso (Art. 4º, decreto nº 2.224 de 1916). A carga horária da disciplina de lições práticas de pedagogia, que anteriormente era cumprida somente no último ano do curso, passou a ser distribuída em 02h semanais no decorrer do terceiro e do quarto anos. Dinâmica essa semelhante à desenvolvida no Uruguai, como bem registraram os professores rio-grandenses no relatório.
Com effeito, tres dias da semana, á tarde, das 12 ás 4:30, vão alli [na escola de aplicação] os alumnos do 2º e do 3º anno das Escolas Normaes, fazer, sob a direcção do professor de pedagogia e ás vezes sob a direcção do director, os seus estudos práticos, ou por outra, os futuros mestres vão alli fazer o seu aprendizado. Umas vezes, assistem ás licções modelo, dadas pelo professor de pedagogia ou pelos professores das diversas aulas. Outras vezes são elles próprios encarregados de dar a licção sobre assumpto escolhido de véspera. (Rio Grande do Sul, 1914, p. 219).
Ressalta-se que, provavelmente, essa mudança no curso complementar estava em consonância com as perspectivas da época de que uma boa preparação pedagógica se fazia, principalmente, com o treino, com a prática. É uma pedagogia estruturada sob o primado da visibilidade, propondo-se como arte, cujo segredo é a imitação dos modelos, isto é, ensinar a ensinar é fornecer bons moldes (Carvalho, 2001, 2015).
Apesar de a comissão não ter registrado informações acerca de como eram realizados os exames finais do Instituto Normal de Señoritas, o excerto apresentado abaixo demonstra que as autoridades gaúchas também reorganizaram as provas finais sob a inspiração do que acontecia no país vizinho.
O Curso Complementar foi ampliado de mais um ano, a fim de melhor atender à preparação pedagógica dos futuros mestres. Novo critério, mais liberal e seguro, preside também os exames finais, considerando-se agora aprovado o aluno que durante o ano der prova continuas de aproveitamento e aplicação. [...] O abandono dos velhos métodos que, ao em vez de auxiliar, tolhiam as manifestações mais espontâneas da criança, vai produzindo lisonjeiros frutos, atestados pelo nível moral e intelectual da juventude, que ascende continuamente (Rio Grande do Sul, 1917, p. 23).
Nessa nova configuração, a banca examinadora dos exames finais passou a ser composta de três professores, devendo, no julgamento das provas escritas, ser considerada a média do ano de cada aluno (Art. 19, decreto nº 2.224 de 1916). A presença em todas as sabatinas mensais e a média de 4 ½, atingida nas mesmas, indicava a aprovação do aluno na respectiva matéria (Art. 26, decreto nº 2.224 de 1916).
Verificam-se também, analisando-se a prescrição legal mencionada, a alteração nos conceitos das notas, as quais passaram a ser quantificadas, de 0 a 5, sendo em ordem crescente nula, má, sofrível, regular, boa é ótima, e a exigência de um quantitativo padrão mínimo para a indicação do aluno aprovado simplesmente, o que alcançasse a média de 3 ½; do aprovado plenamente, o que obtivesse a média 4; e do aprovado com distinção, quando atingisse 5 (Arts. 18 e 21, decreto nº 2.224 de 1916). Todos esses aspectos permaneceram em vigor na legislação promulgada no ano de 1927.
Nota-se, assim, além do acréscimo de um ano no ensino complementar, a reorganização dos exames escolares com o aditamento das sabatinas que, até então, não eram previstas nas legislações escolares do Rio Grande do Sul e da alteração nos conceitos das notas, as quais passaram a ser quantificadas. Além disso, também se identificaram a desvinculação das matérias de pedagogia e de português e a contratação de um novo professor específico para ministrar pedagogia no curso complementar (Rio Grande do Sul, 1914).
É interessante problematizar, entretanto, que as falas das autoridades e a análise da legislação elucidam que a maior parte das mudanças no sistema gaúcho ocorreu, em um primeiro momento, na Escola Complementar de Porto Alegre haja vista que as redações das regulamentações foram sempre indicando a Escola Complementar ou o colégio anexo à mesma como locus para tais modificações. Considerando-se, ainda, que o grupo de professores que participou da viagem de 1913 atuou por muitos anos na escola complementar e que as professoras que viajaram em 1914 também trabalharam na referida instituição, mas tiveram significativa circulação por várias escolas públicas do Estado, é importante indicar que, provavelmente, o que elas observaram no Uruguai tenha inspirado e modificado não só as práticas pedagógicas na escola complementar, mas também em outras instituições nas quais atuaram no Estado. Salienta-se, desse modo, o quanto os saberes adquiridos e observados em outros países e Estados vão sendo (re)configurados, (re)criados e (re)inventados à medida que são apropriados em diferentes contextos por distintos sujeitos, relações e interesses18.
Logo, os dados da pesquisa demonstram que a missão de estudos propiciou significativas experiências e aprendizados para os professores e professoras participantes da mesma, além de efetivamente deixar marcas no sistema educacional gaúcho que estava em processo de consolidação no Estado nas primeiras décadas do século XX.
Considerações finais
Com o estabelecimento dos sistemas públicos de educação, particularmente na Europa e nos Estados Unidos, diversos países da América do Sul incentivaram viagens educacionais no intuito de trazer subsídios e/ou possibilidades de desenvolvimento para seus próprios sistemas educativos, fato que vigorou principalmente nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. A maior parte dessas viagens foi incentivada e financiada pelo poder público por oportunizar investigar em que medida as condições educacionais de outras nações - tidas como referência - poderiam ajudar a melhorar a instrução pública de seu contexto.
Não obstante, as autoridades do Rio Grande do Sul também constituíram uma missão de estudos, a qual foi enviada a Montevidéu com o objetivo de qualificar o sistema de ensino público do Estado. Com essa intenção a missão foi realizada em dois momentos. No primeiro, no ano de 1913, um grupo de professores, em sua maioria atuantes na escola complementar de Porto Alegre, foi a Montevidéu visitar diferentes instituições de ensino primário.No segundo momento da missão, no ano de 1914, um grupo de seis professoras foi aperfeiçoar seus estudos no Instituto Nacional de Señoritas e praticar os métodos de ensino lá utilizados.
A escolha daqueles que integrariam os dois momentos da missão de estudos não foi realizada a partir de um processo com etapas pré-definidas, configurando-se, assim, como uma indicação por parte das autoridades gaúchas e do próprio diretor da Escola Complementar de Porto Alegre. Com o argumento de investimento na qualificação do sistema de ensino público, o Estado arcou com praticamente todas as despesas tanto da viagem realizada no ano de 1913 como da executada em 1914, com exceção das três matrículas no Instituto Normal de Señoritas, que teve auxílio financeiro do governo uruguaio.
A análise do amplo corpus documental da pesquisa possibilitou destacar um conjunto de aspectos que caracterizou o sistema de ensino uruguaio como exemplar, particularmente quanto à arquitetura dos prédios, ao ensino da moral, ao ordenamento e à disciplina dos alunos. Além disso, a maneira competente com que o ensino intuitivo era ministrado nos diferentes graus do ensino primário, a sólida formação de professores e o caráter prático que recebiam durante seu processo formativo também receberam destaque no relatório da comissão sul-rio-grandense. Nesse sentido, destaca-se que houve certa idealização do modelo uruguaio em detrimento do sistema educacional gaúcho. Além do mais, as impressões apresentadas no relatório de viagem também identificavam certa similaridade entre os dois sistemas, especialmente no que dizia respeito ao mobiliário escolar, à escrituração escolar produzida para e pelas escolas públicas primárias e a alguns aspectos didático-pedagógicos como, por exemplo, o uso do método intuitivo e o desenvolvimento do ensino da leitura e da escrita.
A análise das informações apresentadas no relatório de viagem, da obra adaptada pelas duas professoras que participaram do segundo momento da missão, em 1914, a cartilha Queres Ler?, e das documentações oficiais e das legislações do Estado, bem como com as reportagens veiculadas nos dois jornais pesquisados, possibilitou constatar que alguns elementos do sistema de ensino uruguaio foram sendo incorporados à realidade educacional gaúcha, especialmente aqueles que foram anunciados pela comissão como possíveis de serem adotados.
Assim, verificaram-se as seguintes mudanças efetivadas: a orientação de que o número máximo nas classes de alfabetização deveria ser de 30 alunos; a noção de dezena passaria a ser desenvolvida assim que a criança aprendesse o número 10 e que o quinto dom de Froebel seria usado para facilitar o aprendizado da noção de quebrados (frações ordinárias); a adaptação e o uso de um novo método para o ensino da leitura expresso por meio da obra didática Queres ler?; o acréscimo de um ano de estudos no curso de formação de professores da Escola Complementar de Porto Alegre para ampliar a carga horária destinada ao ensino prático dos aspirantes ao magistério; a realização de sabatinas mensais; e a articulação da média atingida pelos alunos nesses exames à aprovação na matéria.
Assim, diante de tudo que foi exposto no decorrer do texto, é possível afirmar que a missão de estudos inspirou e legitimou mudanças no cenário gaúcho, especialmente no que diz respeito aos aspectos didático-pedagógicos, àcultura material do ensino primário e à organização da formação de professores, bem como colocou em circulação uma nova concepção para o ensino da leitura e da escrita por meio do uso da obra didática Queres Ler?.