Introdução
As pesquisas históricas que envolvem os estudos sobre livros didáticos atualmente se relacionam com aquelas que têm os impressos como fonte de investigação, por expressarem, os últimos, um dos suportes materiais oriundos do surgimento da imprensa que, na sua crescente circulação ao longo do século XVIII no espaço europeu, teve papel ativo nos processos de transformações culturais das práticas de leitura e escrita.
Uma importante contribuição dessas investigações, para os estudos sobre os livros didáticos e a história das disciplinas no Brasil, foi visualizar o lugar das editoras na construção de políticas culturais e sua ligação com os poderes instituídos desde meados do século XIX. Verificou-se que, por intermédio de projetos editoriais, os livros didáticos participaram na constituição de meios institucionais educativos, na divulgação de leituras, de discursos e na criação de uma memória social. De modo que, no campo das pesquisas sobre os livros didáticos de História, os estudos sobre o papel dos impressos na vida social produziram um rico debate sobre a edição de livros escolares e sua relação com projetos político-culturais na afirmação dos Estados nacionais, tanto na Europa como nas Américas (Choppin, 2004). Debates que apontaram ligações entre os projetos editoriais e “[...] os processos históricos de edificação nacional e de construção das identidades culturais; na sua capacidade de difusão e transformação das culturas políticas” (Dutra & Mollier, 2006, p. 9).
Essa condição de produtor de políticas culturais e de memórias faz do livro didático referência para periodizar a produção da escrita da história escolar e a trajetória intelectual de autores que escreveram seus livros no cenário brasileiro. Como mostram alguns trabalhos sobre intelectuais, no Brasil, no início do século XX, revistas, jornais, panfletos, mapas, gravuras, boletins, calendários, almanaques, entre outros suportes, , como os livros, passaram a fazer parte do universo das letras e dos letrados, fundamentalmente no Rio de Janeiro (Dutra & Mollier (2006)1. A partir de então, foi possível localizar a constituição de um grupo de intelectuais, ‘professores-autores’, que, por meio de suas experiências sociais como professores nas escolas normais e nos cursos secundários, voltaram-se para a publicação de livros didáticos de História destinados ao ensino escolar primário e ao secundário bem como contribuíram para a organização de um caminho que levou à profissionalização docente (Bittencourt, 2005; Gasparello, 2011).
Neste trabalho, interessa verificar como projetos editoriais, voltados para a produção livros didáticos de História e elaborados no cenário carioca nas décadas iniciais do século XX, participaram da esfera pública por meio de políticas culturais desenvolvidas no governo republicano. Pensado no âmbito da ‘História Política dos Intelectuais’ (Sirinelli, 2003), mas com intenções de contribuir com a história da disciplina (Chervel, 1990), o trabalho atenta-se para o papel do letrado paranaense, José Francisco da Rocha Pombo (1857- 1933), na configuração de uma historiografia didática nacional e regional no conturbado início da república brasileira, na cidade do Rio de Janeiro.
Rocha Pombo viveu num momento em que os letrados exerciam atividades diversas na arena social como, por exemplo, no Conselho Superior de Instrução Pública, nas delegacias regionais, no juizado, na promotoria, e, ainda, em “[...] cargos ou funções em estabelecimentos de ensino públicos, particulares e religiosos” (Gasparello & Vilella, 2009, p. 52). Entende-se que essa diversidade de atuação na esfera pública configura o pertencimento do grupo intelectual a uma rede de sociabilidades que marca a trajetória de vida de letrados que escreveram textos sobre ensino e livros didáticos. Sociabilidades2 que, além do reconhecimento social por suas atividades intelectuais, literárias ou científicas, também se faziam na docência em diferentes lugares institucionais (Escolas Normais, Liceus regionais, e, principalmente, no Colégio Pedro II) (Gasparello, 2011).
O paranaense é um autor bastante estudado por produzir obras de caráter literário, sociológico e histórico3. Suas obras didáticas de História já foram analisadas no sentido de se verificar qual o conceito de ‘nação’ é predominante em sua narrativa, a sua interpretação de raças na formação social brasileira, a ‘concepção’ de história e produção historiográfica em seus compêndios e manuais (Cardim, 1958; Queluz, 1994; Santos, 2007, 2009; Vianna, 2009; Pedro, 2016; Silva, 2013b). No presente estudo, particularmente interessado nas relações de sociabilidades, atentou-se para três aspectos principais que articulam a vida do autor e sua produção didática: os círculos sociais de Rocha Pombo quando de sua chegada ao Rio de Janeiro, as instituições à que ele se vinculou para chegar à produção da série ‘Resumo Didactico’, projeto editorial do qual participou ativamente nas primeiras décadas do século XX.
O objetivo desta reflexão é, portanto, indagar: Que ecos de memória são esses que tornam Rocha Pombo um autor paradigmático para o estudo da história da disciplina escolar no Brasil? O que o seu trajeto indica sobre as sociabilidades intelectuais no cenário carioca que permite a circulação dos seus escritos didáticos de História e a constituição de um público letrado vinculado aos projetos editoriais e à formação de professores para o ensino primário? A proposta central do artigo é, portanto, apresentar Rocha Pombo como um autor de livros didáticos de História e cuja trajetória intelectual foi marcante para compreender como, nos anos iniciais da república brasileira, a produção editorial estava vinculada com o campo político e a profissionalização da docência.
Trata-se, neste trabalho, de compreender os ‘grandes eixos de engajamento’ da vida intelectual de Rocha Pombo que permitiram que o autor paranaense chegasse a ser convidado a produzir livros didáticos de História para a importante série ‘Resumo Didático’ e que, ao mesmo tempo, possibilitaram compreender alguns aspectos do itinerário da profissionalização docente no Brasil no decorrer do século XX.
Rocha Pombo: um letrado e o impresso em sua vida
“Nenhum paranaense subira intelectualmente tão alto perante a opinião de seu meio, nenhum fizera carreira tão vertiginosamente na imprensa e nas letras” (Nestor Vitor4, 1924, p. 68).
Às vésperas do raiar do novo século, José Francisco da Rocha Pombo, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, nascido em 4 de dezembro de 1857 na cidade de Morretes, cidade próxima ao litoral e importante região paranaense até fins do século XIX, vivia em um círculo de intelectuais na capital do Estado quando decidiu mudar-se para a capital da República em 1897.
No Paraná, sua vida pública foi marcada pela escrita literária e pelo jornalismo, participou por pouco tempo da vida política na cidade de Castro e dedicou-se ao debate sobre temas como: educação, modernidade, civilização, deixando, nos impressos que escreveu, seus rastros. Foi no Rio de Janeiro, entretanto, que se consagrou como homem público, exercendo, num círculo restrito de intelectuais, suas atividades voltadas para a docência e para a produção de livros didáticos de História.
O Rio de Janeiro tornava-se, enquanto cidade-capital na virada do século XIX para o XX, um espaço de muito interesse para os letrados das diferentes regiões do país. Sofrendo transformações em seus mais variados aspectos, era vista como ‘a cidade das letras’ um lugar de onde mais se poderiam observar as transformações políticas e culturais5 com a inauguração da república e participar ativamente dos debates que se instauravam sobre a sociedade brasileira. No centro da vida política nacional, as ruas tornavam-se palco do novo anunciado, mas, sobretudo, enquanto universo sócio-cultural que, desde o final do século XIX, já contava com um número significativo de espaços literários compostos por cafés, livrarias e bibliotecas, frequentadas pela população letrada - testemunhas oculares das mudanças - a qual formava um círculo de leitores bastante eclético, conforme mostrou Bessone (1999, p. 27). Tratava-se de ‘homens de letras’ que tinham como principais afinidades o interesse pelo livro, a leitura e a formação de um acervo, como elemento simbólico e ativo da ‘cidade das letras’, para o qual a cidade-capital “[...] era mais que um espaço, era uma causa política”.
Tais grupos tinham como prática cotidiana a troca de ideias, de correspondências e amizade, que formavam ‘redes de sociabilidades’ a garantir inclusão e manutenção dos seus pares nos meios institucionais em funções do prestígio e de indicações para exercer funções nas instituições culturais que despontavam na capital republicana. Rocha Pombo, particularmente favorecido pela sua presença em jornais e em revistas de ampla circulação no Paraná6, mas também pelo convívio nos meios letrados, de onde sairia o projeto reformador republicano que orientou suas produções, já era conhecido por sua produção no mundo da imprensa7 quando decidiu seguir para o Rio de Janeiro. Lá, continuou a exercer o jornalismo e a literatura, porém retomou definitivamente a docência como atividade central. Exerceu o magistério na importante Escola Normal do Distrito Federal [Atual Instituto de Educação do Rio de Janeiro], onde teve seu primeiro compêndio de história publicado e adotado. Foi professor na cadeira de ‘História da Civilização Brasileira’ em 19028 no Pedagogium e colaborou com a ‘Universidade Popular do Ensino Livre’ no ensino de História Universal em 1905. Sobre essa instituição, consulte Lopes (2006).
Quando o paranaense chegou à capital da república, encontrou um ambiente social em que o governo tateava mediações que consolidassem a nova ordenação vivida. Dentre os projetos em debate estavam às reformas educacionais e a criação do Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, em 1890, que, numa tensão significativa9, regulamentou as instruções primária e secundária conhecidas como Reforma Benjamim Constant (1890-1891). A inserção de Rocha Pombo nas atividades de ensino ocorreu nesse período de renovação educacional de que o Rio de Janeiro foi palco.
Em 1897, ano de sua chegada, um anúncio público sobre um concurso promovido pelo Conselho Superior da Instrução Pública do Distrito Federal sobre livro didático foi definitivo para sua ascensão no meio educacional. O conselho, então recentemente criado, tinha Manoel José do Bomfim (1868-1932) como membro e diretor da Escola Normal do Distrito Federal. Pertencentes ao diminuto mundo letrado, Rocha Pombo e Manoel Bomfim eram conhecidos por seus escritos. Bomfim, pela sua participação nas causas institucionais da república, escrevia nos jornais da época, como o A República, no qual tecia críticas à instrução educativa dos governos10. Rocha Pombo, por sua vez, não se tratava de um estranho entre os letrados cariocas. Além de ser conhecido como importante intelectual do Paraná, já se encontrava no Rio de Janeiro quando tornou público, por ocasião das comemorações do centenário de ‘Descobrimento do Brasil’, o escrito O Paraná no Centenário, publicado em 1900.
Rocha Pombo se inscreveu no concurso em 04 de agosto de 1897, uma investida de Manoel Bomfim que, além de representante da Escola Normal, era também diretor da Instrução Pública do Distrito Federal. O concurso tinha por finalidades intensificar as mudanças nos programas de ensino e revisar o conteúdo da disciplina de História, incluindo o estudo das Américas. Cabia ao Conselho Superior de Instrução Pública, órgão responsável pela definição dos conteúdos das disciplinas escolares, a indicação dos livros a serem adotados nas escolas públicas e elaborar os critérios para a publicação das obras. Eles se faziam por meio da realização de concursos, prática “[...] razoavelmente comum e estavam inseridos nos processos de nacionalização da produção didática” (Santos, 2010, p. 36).
Com o objetivo de eleger o melhor trabalho que versasse sobre a História da América, o edital do concurso previa que o vencedor receberia prêmio em dinheiro além de ter a obra publicada e adotada nas escolas do Distrito Federal para a formação de mestres no exercício do ensino nas escolas primárias. Sobre o tema do concurso - a História da América - Circe Bittencourt observa que o interesse pela América nas primeiras décadas do regime republicano advinha da procura, de parte da intelectualidade brasileira, em redefinir a organização de um sistema educacional que, liderados por Manuel Bomfim, correspondeu às tentativas de se “[...] deslocar uma constituição identitária forjada sob os moldes europeus para o espaço americano, então criador de novos projetos para as nações do continente americano” (Bittencourt, 2005, p. 8).
O intelectual paranaense - único candidato - se inscreveu com o pseudônimo de Cristovão Colombo e apresentou seu escrito. Seu texto foi aprovado com elogios de Manoel Bomfim, e, em 1898, Rocha Pombo passou a compor o quadro de professores da instituição, além de receber o financiamento do Conselho Superior para a publicação do compêndio, que aconteceu em 1900. A Escola Normal do Distrito Federal foi, portanto, o lugar institucional no qual Rocha Pombo publicou o seu primeiro livro didático - o Compêndio de história da América -, o que o promoveu entre ilustres figuras da época, como Manoel Bomfim.
O parecer de Bomfim (1900, p. 3, grifo do autor) salientou como uma das características mais favoráveis de Rocha Pombo a capacidade que este apresentou de expor em ‘quadros sintéticos’ os conteúdos da história com os quais o professor tinha que lidar. Disse Bomfim: “[...] essas ‘qualidades de forma’, essenciais a todo o ‘trabalho literário’ não faltam ao autor da presente História da América”. O aspecto pedagógico também determinou, não sem propósito, os elogios feitos pelo diretor da Escola Normal. Atendendo ao solicitado, que informava ser o objetivo do concurso editar um compêndio sobre a História da América a ser utilizado na formação de professores das escolas normais, Rocha Pombo anunciou o que considerava ser uma obra didática:
Uma obra didática em geral deve ser simples, clara e concisa: quando mais quando tem por objeto a história. [...] a primeira qualidade de tal trabalho é a de por, ante os olhos de quem estuda, os fatos em suas linhas gerais, de modo que a variedade deles não faça esquecer nunca ao espírito do leitor a grande síntese em que esses fatos se completam e animam (Rocha Pombo, 1900, p. XXXIII).
O aspecto pedagógico da obra estaria, portanto, em uma narrativa capaz de despertar o interesse dos leitores em ‘transmitir’ informações que valorizassem a história do continente americano e que favorecesse uma educação filosófica a partir da História. Com uma preocupação política e pedagógica, Rocha Pombo realizou a ‘grande síntese’ dos fatos, que era um dos critérios de avaliação do concurso. Texto destinado11, sua monografia o tornou ainda mais conhecido nos círculos intelectuais carioca como um ‘autor-professor’ de prestígio. Sua inserção na instituição de ensino e as amizades consolidadas possibilitaram que, no mesmo ano de 1900, fosse encorajado a encaminhar o compêndio, junto com o seu livro O Paraná no Centenário (1500-1900), para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) com o objetivo de ocupar um lugar como sócio efetivo na ilustre instituição.
Tendo o conselheiro Souza Ferreira como relator, a comissão de sócios do IHGB aceitou, na nona sessão ordinária de 1900, o intelectual paranaense nos quadros oficiais. O compêndio de Rocha Pombo, embora com críticas à interpretação do autor, quanto ao seu entendimento de que o Império teria sido “[...] um verdadeiro prolongamento da colônia sob o ponto de vista social e político [...]”, foi aceito, assim como o seu livro comemorativo:
[...] na compendiosa obra do Sr. Rocha Pombo encontra-se um grande cabedal de pesquizas históricas e valiosos subsídios para o nosso continente a par de muita erudição por parte de seu autor. No mesmo caso está o segundo livro do Sr.Rocha Pombo, ‘O Paraná no Centenário - 1500-1900’, o qual constitui uma monographia valiosa dessa parte do nosso território, tão opulentamente dotada pela natureza, e da qual já em 1819 dizia o sábio Augusto de Saint-Hilaire: ‘É alli a região privilegiada, o assento sem limites para a grande colonização européa’ (Actas das Sessões de 1900, 1900, p. 454, grifo do autor).
O autor foi considerado, pelos que o avaliaram, um dos “[...] operosos cultores das cousas pátrias [...]” e suas obras “[...] valioso titulo para sua admissão no gremio deste Instituto” (Actas das Sessões de 1900, 1900, p. 455). O contexto em que o compêndio e a monografia foram divulgados determinou, em boa medida, o interesse que membros do IHGB apresentaram pelas duas obras. O primeiro, por representar “[...] uma versão sobre os caminhos a serem seguidos pela recente república que finalmente se inseria no mundo do republicanismo americano” (Bittencourt, 2005, p. 8). A Rocha Pombo coube iniciar reflexões sobre o continente numa perspectiva republicana, e, no que diz respeito à segunda obra apresentada, membros do IHGB tinham um oportuno interesse pelo estudo das regiões do país, além do caráter de obra comemorativa.
Uma vez conquistada a cadeira no IHGB, Rocha Pombo continuou a exercer o ensino de História escolar. Atuou ainda no Pedagogium e na Universidade Popular do Ensino Livre, - experiências que possivelmente contribuíram significativamente em seu interesse pela docência na formação de professores e pela ampliação do ensino primário.
O Pedagogium foi uma instituição de formação pedagógica fundada pelo médico Joaquim José de Menezes Vieira (1848-1897) que, a convite de Benjamin Constant, ao dirigiu de 1890 a 1897. Para Menezes Vieira, a criação do Pedagogium teria sido uma expressão da ‘modernidade’ educacional brasileira, na medida em que atenderia à necessidade pública em uma sociedade que, preocupada com o ‘progresso’, seguia as iniciativas dos países ‘civilizados’. A Universidade Popular do Ensino Livre, instituição fundada em 1904 por Elísio de Carvalho, teve por finalidade “[...] empreender a instrução superior e a educação social do proletariado”. Sobre essa instituição - também conhecida como Universidade do Povo -, consultar Clarice Caldini Lemos (2010, p. 31). A participação de Rocha Pombo como professor voluntário na cadeira de ‘História Universal’ na instituição permitiu o entendimento de que o letrado paranaense se aproximou de intelectuais de variadas tendências políticas - de bases socialistas e anarquistas - que marcaram o cenário cultural do Rio de Janeiro da época e sua proximidade com projetos educativos com a educação popular.
Em 1906 participou do concurso para professor de História do Colégio Pedro II, no entanto, foi reprovado por Capistrano de Abreu, que compunha a comissão avaliadora. A crítica de Capistrano baseou-se na compreensão de que a obra de Rocha Pombo tratava-se de uma ‘compilação’, palavra que foi entendida como “[...] mais uma de outros tantos estudos falhos que pouco continha de pesquisa documental” (Abreu, 1954, p. 197). Tal observação indicava que Capistrano tinha como referência a concepção de que a história se fazia com documentos inéditos, um ideal de objetividade com intenções científicas. Por manter uma preocupação centrada no uso de documentos, a obra de Rocha Pombo lhe pareceu falha na pesquisa documental, uma compilação sem inovação historiográfica.
A crítica efetuada por Capistrano indicou, no entanto, que a preocupação do autor-professor estava em divulgar, nas carteiras do ensino primário e da Escola Normal, o saber histórico já produzido. Seu objetivo pedagógico se definia, fundamentalmente, por promover a divulgação da História ao público infantojuvenil e aos professores em formação, daí seu caráter ‘compilatório’. Por intermédio do livro didático, Rocha Pombo divulgou um saber social, respondendo à necessidade de ensinar condutas de comportamento e, sobretudo, o patriotismo. O alcance de suas obras foi dimensionado pelo manual Nossa pátria, lançado em 1917 pela Editora Weisflog Irmãos e a Companhia Melhoramentos de São Paulo, que recebeu 88 edições. Na edição de 1917, Rocha Pombo esclarece seu objetivo com a obra ao anunciar que, por meio de seu livro, os leitores poderiam ‘amar a pátria’, conhecer ‘melhor nossa história’ para que pudessem ‘sentir orgulho’ dos heróis e seus sacrifícios. Este seria, enfim, o “[...] sentido da história” (Rocha Pombo, 1917c, p. 2).
Antes desse manual, em 1905, Rocha Pombo se dedicou à escrita de sua obra mais extensa: a Historia do Brazil (Illustrada). Obra em dez volumes publicados ao longo de 12 anos, de 1905 a 1917, e reeditada várias vezes12. Marcado pelo interesse na docência do ensino primário e atuando na Escola Normal, esse caminho, bem como sua inserção no IHGB, o levou a ocupar um lugar no mundo dos impressos escolares, sendo convidado a produzir livros didáticos para um projeto editorial que tinha como finalidade a preparação dos professores normalistas para ensinar História. Seu contato com a Companhia Melhoramentos de São Paulo, editora da coleção ‘Resumo Didático’, ocorreu nesse momento em que as obras didáticas tornaram-se assuntos nacionais por meio de políticas culturais voltadas à educação escolar primária no Brasil.
Um autor e um projeto editorial: a série ‘Resumo Didáctico’
“É este o quinto volume didático que escrevo para a Casa Weisflog Irmãos (hoje Companhia Melhoramentos de São Paulo)” (Rocha Pombo, 1929, advertência).
No início do século XX, quando Rocha Pombo iniciou suas edições didáticas, ensinar nas instituições formadoras de professores para atuar no ensino primário e escrever livros didáticos para o secundário eram atividades intelectuais às quais se dedicava apenas uma pequena parcela da população. A tarefa de produzir livros para o ensino foi assumida como necessária e própria à função docente, o que contribuiu para a expansão de editoras interessadas na publicação dos livros escolares. Desse modo, as editoras participaram do debate sobre as necessárias mudanças no ensino escolar, acompanhando não apenas uma nova abordagem para a história nacional, mas, também, e fundamentalmente, às questões metodológicas para o exercício do ensinar, num momento em que os debates sobre a ‘escola nova’ ganhavam relevo.
Para essa ampliação, as modificações na organização da estrutura de ensino, após a proclamação da república, propiciaram a especialização das obras didáticas e a ampliação de suas edições, incentivando o investimento das editoras estabelecidas nessa área (Hallewll, 2005), de maneira que a relação entre o livro didático e as editoras se intensificou com as políticas educacionais voltadas para o ensino primário e a formação dos professores, que se tornaram mais visíveis nas primeiras décadas do século XX.
A partir da primeira década de 1900, a produção de cartilhas, manuais e compêndios de história e de livros de temática cívica dedicados à infância cresceu consideravelmente13. Para Fernanda Lucchesi (2008), os acontecimentos da Primeira Guerra e o decorrente ‘surto nacionalista’ intensificaram a produção desse tipo de literatura, e a educação primária passou a ocupar um lugar de destaque entre os intelectuais brasileiros. Esse ambiente de interesse pela escola primária propiciou que a Editora Weizsflog e Irmãos, decidisse criar, em 1916, uma ‘seção escolar’, projeto que foi desenvolvido e ampliado pela Companhia Melhoramentos de São Paulo e deu origem à série ‘Resumo Didáctico’.
A ampliação do mercado editorial produziu novos investidores, como foi o caso da Weiszflog Irmãos que incorporou, em 1920, a Companhia Melhoramentos especializada, até 1890, apenas na produção de papel. Recebendo atenção da área editorial, os livros didáticos ganharam destaque na política cultural e as editoras, a exemplo da Weizsflog, investira na publicação da área escolar, encomendando-os a autores renomados. A Companhia Melhoramentos teve importante papel na divulgação dos livros de Rocha Pombo. Foi essa editora que, entre os anos 1918-1936, publicou os seus principais livros didáticos daquele para outros Estados. Observa-se, na 18ª edição, por exemplo, a informação de que o Nossa pátria14 teria sido aprovado oficialmente para uso nos Estados de São Paulo, Santa Catarina, Sergipe, Maranhão, Paraná, Bahia e Rio Grande do Norte (Silva, 2008), de modo que Rocha Pombo recebeu destaque no universo das editoras com o sucesso do Nossa pátria.
Para o intelectual paranaense, a Weizsflog encomendou ainda outros compêndios de História e alguns volumes na série ‘Resumo Didactico’, produzida entre 1918 (com a Weizsflog) e 1932 com a Companhia Melhoramentos. Inédita no período, como mostram Bechler e Silva (2015), a série foi organizada em 12 volumes com a colaboração de dois importantes historiadores da época, Afonso d´Escragnolle Taunay e Oliveira Lima, conforme o quadro 1:
Cada título dedicou-se à história regional de um Estado do país e circulou em diferentes níveis de ensino bem como para os professores das Escolas Normais. O livro História do Estado de São Paulo, de autoria de Rocha Pombo, inaugurou a série, em 1918. A preocupação em elaborar histórias regionais, por sua vez, estava ligada às questões de identidade nacional com a proclamação da república. Ensinar o que era o Brasil implicava, naquele cenário, incorporar as histórias regionais ao conjunto nacional. Sobre essa relação entre o novo regime político e as ações culturais do governo e o interesse nas histórias regionais, afirma Silva (2014, p. 352, grifo do autor) que
Tais histórias, publicadas em sua maior parte com o financiamento dos governos estaduais15, tinham o duplo desafio de estabelecer o que era comum aos brasileiros e o que era diferente e singular da região. Também precisavam - assim como a escrita da Historia do Brasil - definir os novos ‘outros’ em relação à ideia de nação que se forjava naquele momento.
A série estava destinada aos alunos das Escolas Normais e professores das escolas primárias do país, embora constem registros de que seus usos ultrapassaram esses espaços institucionais. O sucesso da Companhia Melhoramentos de São Paulo se deveu, em boa medida, ao investimento no projeto cultural que produziu materiais escolares, impressos de ‘difusão cultural’ e livros didáticos de história regional. Sobre a relação dos autores com a editora, tem-se a informação de que:
Os autores convidados compõem um grupo de historiadores de diferentes Estados, tendo em comum sua filiação ao IHGB ou aos seus congêneres nos Estados. Constituíam, assim, um grupo de intelectuais ligados à produção historiográfica e, com algumas exceções, sem vinculação direta com os problemas educacionais da escola primária (Bechler & Silva, 2015, p. 4).
As vicissitudes do projeto editorial estavam certamente relacionadas ao contexto político republicano que definiu a importância das regiões da Confederação na história nacional. Nesse aspecto, a presença de Taunay na organização da série indica a estreita relação do projeto editorial com o saber histórico e a compreensão de história que se firmava. Ou seja, na empreitada de fazer surgir uma identidade regional articulada com a questão nacional, nos anos iniciais do século XX, São Paulo tornou-se, nas representações da época, o lugar do ‘progresso nacional’. Não foi sem razão que a Revista do Brasil ganhou corpo em 1916 e o primeiro livro da série foi História de São Paulo.
Além da presença comercial, a influência de autores renomados, como é exemplar o caso de Teófilo das Neves Leão - secretário de Educação na gestão do presidente Prudente de Morais, por exemplo -, definiu o lugar ocupado por essa editora no mercado de livros didáticos,, nas décadas de 1920 e 1930. Nas memórias da editora encontra-se a seguinte passagem, indicativa do prestígio e sua influência no cenário nacional:
Nos anos 20, [...] no centro nevrálgico, social, político, econômico e financeiro da cidade, a loja Melhoramentos na rua Líbero Badaró se tornou ponto de atração. Exibia novidades. Entre elas os sucessos ‘Cardápio Nacional, Quadros de História Pátria’; os vinte quadros litografados da série ‘Nossa Lavoura, o Cantador Brasil’, aparelho de ensino de aritmética. O catálogo preparado para a abertura do ano escolar - 1925 - festejava o Grande Prêmio obtido pelos livros e pelo material didático da casa da Exposição Internacional do Centenário da Independência (Donato, 1990, p. 81, grifo nosso).
A forte relação com os poderes políticos e, entre eles, os contatos feitos com escritores renomados formaram as estratégias editoriais (Moreira, 2010), assegurando a presença do material e dos livros da Editora nos estados centrais do país: São Paulo, Bahia, Pernambuco, Paraná, Ceará, além do Rio de Janeiro. A divulgação se fazia por meio de representantes estaduais como: Evaristo Bianchini (Rio de Janeiro); Anibal Bandeira de Mello (Bahia); Francisco Verucci (Belo Horizonte); Carlos Rober (Vitória). Tais modos de sociabilidade faziam parte do círculo de relações de Rocha Pombo e media a sua importância de como autor ‘da casa’ no período.
Reconhecido por já ter escrito uma história comemorativa de seu Estado - O Paraná no Centenário (1900)16 -, bem como por suas ‘viagens pedagógicas’ (Silva, 2013a, p. 155), Rocha Pombo conhecia os debates sobre as indefinições dos limites internos entre as regiões do país. E, com o intento de “[...] traçar um panorama das culturas regionais como forma de expressar o federalismo brasileiro [...]”, aceitou escrever a História de São Paulo e a História do Rio Grande de Norte, com o seguinte objetivo:
Depois, do que nos viesse dos Estados, faríamos a síntese grandiosa da vida nacional e aí teríamos, viva, palpitante, sublimada, a nossa epopeia de povo americano em quatro séculos de esforço e de trabalho (Rocha Pombo, 1980 apud Nascimento, 2013, p. 3).
Membro de institutos históricos regionais, assim como do IHGB do Rio de Janeiro, Rocha Pombo recebeu projeção no universo dos autores de livros didáticos fundamentalmente por carregar a experiência de lecionar e escrever para os ‘mestres escolares’ Suas obras destinadas ao público infantojuvenil produziram uma memória sobre a história nacional e sobre histórias regionais de maneira a enfocar o sentimento patriótico e colocar seus leitores em sintonia com o passado heróico. Sobre seu sucesso no mundo editorial, afirmou Rodolfo Garcia, seu sucessor no IHGB:
[...] não há como desconhecer o extraordinário mérito da obra de Rocha Pombo, sua utilidade provada, os serviços prestados aos estudiosos, que a estimam sobre todas as congêneres. Se conferidas as estatísticas das bibliotecas, verifica-se que sua História do Brasil é, nessa classe, o livro mais consultado, o mais lido de todos, o que significa popularidade e vale pela mais legítima das consagrações [...] Publicou, também, além de poesias e obras de ficção: História Universal - Nossa Pátria (com mais de 40 edições) - História da América (para uso das escolas primária) - Compêndio de História da América - História do Rio Grande do Norte - História de São Paulo - História do Paraná - O Paraná no Centenário - Dicionário de Sinônimos da Língua Portuguesa (Garcia, 1933 apud Actas das Sessões de 1900, 1900).
Tal observação dimensiona a importância do autor paranaense para a história da disciplina e do livro didático de História bem como sua intervenção na produção de memórias sobre o passado nacional e as histórias regionais. Pertencente ao grupo identificado com a cultura letrada e com uma trajetória construída no interior de uma rede de vínculos sociais e experiências socioprofissionais, o autor paranaense passou a ser definido e reconhecido como intelectual que, além de autor de livros didáticos de História, se dedicou ao oficio de professor desta disciplina, tornando-se um ponto de referência para a história da disciplina e dos livros didáticos.
Considerações finais
O trabalho tratou do livro didático como parte das estratégias editoriais utilizadas na produção das identidades nacionais e individuais por meio das políticas culturais que marcaram os anos iniciais do século XX no Brasil. Foi possível compreender um dos motivadores do surgimento de livros destinados aos professores das Escolas Normais e outros diferentes gêneros didáticos, para além dos compêndios e manuais que marcaram a produção em tempos anteriores no Brasil.
Para o trato com a temática, voltou-se para a publicação de livros didáticos de História e teve como eixo de análise o trajeto percorrido pelo intelectual paranaense José Francisco da Rocha Pombo (1857- 1933), para abordar questões referentes ao tema que relaciona livros didáticos de História e projetos editoriais. No desenvolvimento do texto, observou-se que, no início do século XX, quando Rocha Pombo iniciou suas edições didáticas, ensinar nas instituições de ensino primárias e secundárias e escrever livros didáticos foram atividades intelectuais identificadas ao diminuto conjunto de indivíduos que se destacava da massa iletrada da população, conforme afirmou Gasparello (2011). A tarefa de produzir livros para o ensino primário foi assumida como necessária e própria à função docente, o que contribuiu para a expansão de editoras interessadas na publicação de livros escolares nas diversas áreas de saber.
Ao longo do século XX, à Companhia Melhoramentos de São Paulo, - como importante editora de livros escolares, coube, junto com a Irmãos Weizsflog, a produção da série ‘Resumo Didáctico’, da qual Rocha Pombo participou ativamente. Cada título da série dedicou-se à ‘história regional’ de um Estado e destinou-se às normalistas e professoras primárias. Rocha Pombo, reconhecido intelectual no seu Estado e também nos espaços institucionais do Rio de Janeiro, foi convidado a participar. Além de pertencer ao universo de intelectuais dedicados ao ofício de ensinar e ser membro dos Institutos Históricos e Geográficos, a atuação de Rocha Pombo como professor e autor de livros didáticos oportunizou o convite que lhe foi dirigido para produzir, entre ilustres autores, livros de História para a série ‘Resumo Didáctico’.
O sucesso de seus livros, por sua vez, se deveu à preocupação pedagógica de produzir edição didática. Ou seja, no contexto dos debates sobre a ‘escola nova’ no Brasil, a preocupação metodológica com o ensinar abriu caminhos para a organização de práticas escolares irradiadas por algumas daquelas obras, mas também pelo brilho que emanava do Estado republicano - por meio da opinião letrada - que anunciava soluções para diminuir a massa analfabeta e a expansão da escolarização.