Introdução
Em finais do ano de 2018, momento de profundas incertezas e de muitos receios relacionados à campanha eleitoral no Brasil, recebo um vídeo de uma grande amiga educadora (com a qual trabalhei durante oito anos em uma escola pública de ensino fundamental do município do Rio de Janeiro) a favor do programa ‘Escola sem Partido’1. Essa não era a primeira vez que isso acontecia. Envolta por um profundo sentimento de angústia e de indignação, e consciente de que temos um longo e tortuoso trabalho pela frente, decido naquele instante mesmo retomar algumas discussões presentes em minha tese de doutoramento2, ciente de que algumas dessas questões poderiam ajudar-me a refletir sobre o nosso momento histórico presente. Explico-me melhor: há alguns anos, no complexo e intenso processo de pesquisa e de redefinição de meu objeto de pesquisa doutoral, voltei-me para a análise do processo de formação do espaço escolar primário no Império do Brasil (1834-1840)3. Defendi que a construção desse estratégico espaço fazia parte, de forma inter-dependentemente relacionada, de um projeto político, em escala de percepção mais ampla (Revel, 1998), de constituição da ‘comunidade imaginada’ (Anderson, 1989) e em processo de construção, o Império do Brasil, e da constituição de seus ‘cidadãos’, os ‘brasileiros’ (Da Conceição, 2014). Tendo por base essa premissa, problematizei as relações entre os projetos para a instrução pública primária de dois estratégicos personagens: Joaquim José Rodrigues Torres, presidente da província do Rio de Janeiro do Império do Brasil (1834-1836), e François Guizot, ministro da instrução pública durante a monarquia de Julho francesa (1832-1836). Minha tese principal foi a de que na construção de suas próprias propostas de ação para o ensino público primário na província fluminense do Império do Brasil, Rodrigues Torres dialogou de forma apropriativa com o que naquele momento estava sendo colocado em prática na França para o assunto por François Guizot como ministro da instrução pública. E mais, especificamente nesse caso, analisei seu projeto levado à cabo de criação da primeira Escola Normal de formação de professores primários no Império do Brasil (1835), um locus que se constituiria, como no caso francês, enquanto estratégico na formação capacitada de professores primários atrelados às ações do Estado monárquico centralizador e instrutor.
Ao tomar posse do ministério da instrução pública francesa, François Guizot atuou estrategicamente no objetivo de fazer aprovar um projeto de lei elaborado sob a sua direção e que se relacionava à construção da primeira grande lei exclusivamente relacionada ao ensino primário francês, sendo esta promulgada, entre perdas e conquistas, no dia 28 de junho de 1833. Pela nova legislação, pela primeira vez na história do ensino primário na França, estabelecer-se-ia a obrigatoriedade na criação de uma escola normal primária de formação de instituteurs em cada departamento francês4. Mas antes mesmo da aprovação da nova lei, e ainda depois disso, uma série de medidas legislativas de cunho uniformizadoras e centralizadoras referentes à instrução pública primária francesa, e mais especificamente às suas escolas normais primárias departamentais, seriam da mesma forma construídas e promulgadas sob a direção desse sujeito da história visando assegurar a aplicação desta que ficaria conhecida como lei Guizot. E isto porque, defendi, a constituição de uma lei exclusivamente relacionada ao ensino primário na França - e que o uniformizava e organizava em nível central - fazia parte de um projeto político de ação em escala maior de percepção de formação do Estado monárquico centralizador e instrutor francês. Estado este que no ato mesmo de se forjar percebia os espaços das escolas públicas de instrução primária e das instituições de formação dos instituteurs comunais franceses enquanto estratégicos no objetivo tanto de manutenção da ordem quanto de reprodução e preservação das hierarquias tais como elas existiam na sociedade francesa num tempo em que toda a efervescência dos movimentos contestatórios das ruas se fazia presente (Da Conceição, 2014; Virgier, 1991).
Isso dito, passo agora ao objetivo deste artigo. Neste, pretendo construir uma análise pormenorizada desse projeto educacional forjado pelo personagem François Guizot. Tal intuito mostra-se uma assertiva devido a três principais motivos:1) os diálogos estreitos que naquele momento histórico preciso estavam sendo estabelecidos entre a França e o Império do Brasil no campo da instrução pública primária5 2) os raros estudos dedicados a este tema, ou seja, à investigação das possibilidades de circulação e apropriação de valores, textos, práticas e ideias entre os dois lados do oceano no que concerne o tema do ensino público primário no período em questão6; 3) as relações históricas processadas entre a França e o Brasil no campo da educação.
Pensar a escrita da história da educação no Brasil, em suas experiências e perspectivas, é refletir sobre esses diálogos estabelecidos entre a França e o Brasil no campo da instrução pública primária. É proceder, assim, uma investigação sobre os projetos - coletivos e/ou individuais - em permanente (re)constituição e disputa para o assunto nessas duas estratégicas arenas políticas7. Elejo, nessa perspectiva, uma experiência individual e as ações nesse sentido de um fio condutor estratégico: François Guizot em sua atuação como ministro da instrução pública francesa.
O gouvernement des esprits
A lei de 28 de junho de 18338 estabeleciaque a instrução primária francesa ficaria dividida em dois graus de ensino9: a) o elementar, que compreendia a leitura, a escrita, a instrução moral e religiosa e o ensino dos elementos da língua francesa, do cálculo e do sistema de pesos e medidas; b) e o superior, referindo-se este por sua vez ao ensino do canto, da história, da geografia, dos elementos da geometria e de suas aplicações usuais e de algumas noções das ciências físicas e da história natural aplicáveis aos usos da vida10. Estabelecer-se-ia com isso uma hierarquização entre esses diferentes graus de ensino primário, acordando-os às necessidades de cada uma das classes existentes na sociedade francesa (Rosanvallon, 1985), tal como havia sido proposto por François Guizot.
Com a nova lei, descartava-se tanto a obrigatoriedade escolar quanto a sua gratuidade absoluta, assim como ficavainstituído que cada comuna francesa deveria manter ao menos uma escola primária elementar, cabendo também às mesmas, a partir de um conselho municipal, a função de receber edistribuir os honorários dos seus respectivos instituteurs comunais11. No que dizia respeito à designação destes, só poderiam ser nomeados indivíduos que preenchessem as condições de capacidade e de moralidade exigidas12 e que não tivessem cometido nenhum dos crimes previstos pela nova legislação13. Ainda, todo departamento francês ficava obrigado a manter uma escola normal primária no objetivo tanto de formar os candidatos à função de instituteurs comunais quanto no de aperfeiçoar aqueles professores primários que já estivessem em exercício de suas funções, mas que por essas instituições de ensino não tivessem passado.
A nova lei também fixava que fosse formado em cada escola comunal um Comitê local de vigilância, também denominado de Comitê comunal. Nota-se que ficava igualmente estabelecido que várias escolas de uma mesma comuna poderiam ser reunidas sob a vigilância de um mesmo Comitê local de vigilância, assim comoinstituía-se que o ministro da instrução pública detinhao poder de dissolver esse comitê comunal local substituindo-o por um outro, denominado de Comitê especial. Dentre as funções desse comitê local de vigilância, destacamos aqui seu dever de inspeção de todas as escolas públicas e privadas da comuna, velando por sua salubridade e disciplina, assim como ser ele o responsável tanto por apresentar os candidatos ao cargo de instituteur comunal, quanto por pedir, no caso necessário, a suspensão dos mesmos de suas funções.
Um segundo comitê criado pela nova lei em cada arrondissement francês seria o denominado Comitê de arrondissement, também denominado Comitê superior. Tal comitê tinha a atribuição primeira de ser aquele responsável tanto pela vigilância e disciplina quanto pelo estímulo à instrução primária em nível mais central14. Caberia nesse sentido e a título de exemplo a este comitê visitar constantemente as escolas públicas de instrução primária no objetivo de recolher informações minuciosas sobre a conduta moral e aprendizado de seus alunos; enviar às autoridades respectivas e ao ministro da instrução pública um relatório sobre o estado de todas as instituições de ensino que estivessem sob sua jurisdição; em caso de negligencia oufalta grave de um instituteur comunal (com a queixa desta sendo feita primeiramente pelo Comitê comunal), o repreender ou suspender; nomear os instituteurs comunais. Vale aqui, contudo, destacar que caberia ao ministro da instrução pública a palavra final quanto a esta nomeação.
Mas as prerrogativas atribuídas pela nova legislação a esta instância de ação central representada pelo ministro da instrução pública francesa não paravam por aqui. Nessestermos, ficava-se estabelecido, por exemplo, que em cada departamento francês uma ou várias comissões de instrução primária seriam criadas com o objetivo de promover examesaos aspirantes do diploma de capacidade de instituteur comunal. Para tanto, caberia ao ministro da instrução pública a tarefa de nomear os membros dessa comissão e estipular o momento no qual elesse realizariam. Além disso, ficava também sob seu poder ratificar ou não a expedição desses diplomas15. Por fim, vale igualmente acrescentar que cabiaa esta mesma comissão instituída diretamente pelo ministro da instrução pública a função não menos estratégica de promover os exames de entrada e de saída de todos os alunos das escolas normais primárias departamentais francesas16.
Alguns dias após a promulgação da nova lei, no dia 4 de julho, François Guizot remeteria a todos os instituteurs comunais franceses uma circular por meio da qual ele buscava fazê-los tomar conhecimento desta que seria consideradapelo nosso fio da trama como a verdadeira ‘carta da instrução primária’ francesa, sendo por isso de seu desejo que ela “[...] chegasse diretamente ao conhecimento e domicílio [...] de todo instituteur [...]” comunal francês (Guizot apud Gréard, 1889, p. 22). Argumentaria ainda esse homem de ação que se tais professores primários estudassem ‘com atenção’ as prerrogativas da nova legislação, se meditassem ‘atentivamente’ sobre ‘suas disposições’, estariameles certamente ‘assegurados de bem conhecer’ seus ‘deveres’, seus ‘direitos e a nova situação’ que naquele momento se apresentava diante deles (Guizot apud Gréard, 1889). Junto a esta circular, Guizot enviaria a todos os instituteurs comunais franceses a nova lei, pedindo aos reitores de todas as Academias francesas, responsáveis diretos pela entrega desse material aos professores primários, que datassem e colocassem o nome de cada um daqueles a quem o referido material teria sido expedido. Caberiam aos instituteurs, por sua vez, acusar o recebimento do mesmo17, que assim buscava chamá-los à ‘voz da razão’:
Não se engane nisso, Senhor: bem que a carreira de instituteur primário seja sem brilho, bem que seus cuidados e seus dias devam mais frequentemente se passar no recinto de uma comuna, seus trabalhos interessam a toda a sociedade, e sua profissão participa da importância das funções públicas. Não é para a comuna somente, e dentro de um interesse puramente local que a lei quer que todos os Franceses adquiram, se for possível, os conhecimentos indispensáveis à vida em sociedade, e sem os quais a inteligência decai, e às vezes se emburrece; é também pelo próprio Estado ele, e pelo interesse público; é porque a liberdade está assegurada e regular somente com um povo suficientemente esclarecido para escutar, em toda circunstância, a voz da razão. A instrução primária universal é doravante uma das garantias da ordem e da estabilidade social. Como tudo, dentro dos princípios de nosso Governo, é verdadeiro e sensato, desenvolver a inteligência, propagar as luzes, é assegurar o império e a durabilidade da monarquia constitucional (Guizot apud Gréard, 1889, p. 22).
Guizot associava, a partir dessa circular,as práticas exercidas no cotidiano escolar primário pelos instituteurs comunais franceses à uma escala de ação político-social mais ampla do que aquela relacionada aos interesses locais da escola ou da comuna, ligando-as, nesses termos, à instância de atuação central do Estado monárquico centralizador e instrutor francês (Da Conceição, 2014)18. Ainda, nesse mesmo trecho, forjava esse homem de ação uma ideia de liberdade relacionando-aà capacidade via instrução de um dado indivíduo escutar a ‘voz da razão’. Por fim e igualmente, para ele, essa mesma ‘instrução primária universal’ construir-se-ia como garantidora não somente da ‘ordem e da estabilidade social’, mas também enquanto asseguradora da durabilidade do ‘Império’ e de sua ‘monarquia constitucional’. Nessa acepção, assim prossegue nosso personagem em sua argumentação:
Penetre em você então, Senhor, a importância de sua missão; que sua utilidade seja sempre presente nos trabalhos frequentes que ela te impõe [...].
É preciso que um sentimento profundo da importância moral de seus trabalhos o sustente e o anime, que o austero prazer de ter servido os homens e secretamente contribuído ao bem público torne-se o digno salário que lhe dá sua consciência somente [...].
É em você, sobretudo, Senhor, que eu confio. Nada pode substituir em você a vontade de bem fazer. Você não ignora que é essa, sem nenhuma dúvida, a mais importante e a mais difícil parte de sua missão. Você não ignora que em te confiando uma criança, cada família te solicita de lhe devolver um homem honesto, e o país um bom cidadão! [...].
[...] Você sabe: as virtudes não seguem sempre as luzes, e as lições que recebem a infância poderiam tornar-se funestas se elas se endereçassem somente à sua inteligência [...].
[Por isso,] [...] que o instituteur não receie [...] de empreender sobre os direitos das famílias dando seus primeiros cuidados à cultura interior da alma de seus alunos. Ele deve tanto evitar de abrir sua Escola ao espírito de seita ou de partido, e de alimentar suas crianças dentro das doutrinas religiosas ou políticas que as coloquem por assim dizer em revolta contra a autoridade dos conselhos domésticos, quanto deve se elevar além dessas querelas passageiras que agitam a sociedade para se aplicar sem cessar a propagar, a firmar esses princípios imortais de moral e de razão sem os quais a ordem universal está em perigo, e lançar profundamente dentro dos jovens corações essas sementes de virtude e de honra que a idade e as paixões não sufocarão. A fé na Providência, a santidade do dever, a submissão à autoridade paternal, o respeito devido às leis, ao príncipe, aos direitos de todos, tais são os sentimentos que ele se apegará a desenvolver. [...] A paz e a concórdia que ele manterá dentro de sua Escola devem, se for possível, preparar a calma e a união das gerações a vir!19.
Somente a partir, assim, de uma atuação moralistae missionária -por meio da qual se firmavam e formariam o ‘homem honesto’ e o ‘bom cidadão’ - seriam entendidas enquanto exemplares as práticas exercidas no cotidiano das escolas públicas de instrução primária por todo e qualquer instituteur comunal francês. Guizot preocupar-se-ia ainda por meio dessa circular em demarcar que tal indivíduo exemplar não poderia de modo algum portar-se de forma insubordinada, levando-nos aqui mais uma vez a refletir não somente sobre quais seriam para ele as autoridades a serem respeitadas, mas igualmente sobre a própria hierarquização centralizadora que estava sendo construída nesse processo pelo seu projeto político de ação para a instrução pública primária francesa.
Os deveres do instituteur para com a autoridade são mais claros ainda e não menos importantes. Ele mesmo é uma autoridade dentro da comuna: como, pois, daria ele exemplo de insubordinação? Como ele não respeitaria os magistrados municipais, a autoridade religiosa, os poderes legais que mantêm a segurança pública? [...]
O maire é o chefe da comuna; ele está na liderança da vigilância local: o interesse premente, como o dever do instituteur, é pois de lhe testemunhar em toda ocasião da deferência que lhe é devida. O pároco ou o pastor têm também direito ao respeito: pois seu ministério responde ao que há de mais elevado na natureza humana. Se acontecesse que, por alguma fatalidade, o ministro da religião recusasse ao instituteur uma justa benevolência, este não deveria sem dúvida se humilhar para reconquistá-la; mas ele se aplicaria cada vez mais para merecê-la por sua conduta, e ele saberia esperá-la [...] Nada, inclusive, é mais desejável do que a concordância do padre e do instituteur [...]
Enfim, Senhor, eu não tenho necessidade de insistir sobre suas relações com as autoridades especiais que zelam sobre as Escolas [...]20.
Seguindo seu objetivo de fazer valer a nova legislação, alegaria por fim François Guizot de forma entusiástica em sua circular, a fim de trazer por esse ato mesmo para o seu lado todo e qualquer instituteur comunal francês, artífice estratégico no cotidiano escolar primário francês.
O momento no qual, sob os auspícios de uma legislação nova, nós todos entramos em um novo percurso; no momento no qual a instrução primária será objeto da experiência a mais real e a mais extensa que já se tentou na nossa pátria, eu tive, Senhor, de te lembrar os princípios que guiam a Administração da Instrução pública, e as esperanças que ela baseia em você. ‘Eu conto com todos os seus esforços para fazer ter êxito a obra que nós empreendemos em comum’: não duvide jamais da proteção do Governo, de sua constância, de sua ativa solicitude para com os preciosos interesses que são confiados a vocês21.
Para Pierre Kahn (2010), a partir de escolhas, ainda que incertas, de ação como estas estabelecidas por personagens como François Guizot far-se-ia com que os instituteurs comunais franceses se tornassem “[...] agentes do poder público para o ‘governo dos espíritos’” (Kahn, 2010, p. 55, grifo do autor). Apropriando-se das ideias de Christian Nique, afirma ainda Kahn que ‘a escola não será’ nesse ponto de vista “[...] somente uma escola do Estado, mas uma escola para o Estado” (Kahn, 2010, p. 55). Uma instituição pública de ensino primário que tinha por meta assegurar a ordem e a estabilidade político-social no ato mesmo de combinar, de acordo com Françoise Mayer (1981), a defesa dessa ideiaa de liberdade e de razão.
No mesmo dia em que a circular de 04 de julho deveria ser enviada aos instituteurs comunais franceses, outra seria remetida a todos os reitores das Academias francesas e aos seus préfets departamentais com o objetivo de também fazê-los tomar conhecimento e buscar pela aplicação da nova lei22.
Alguns dias após, no dia 16 de julho, uma nova ordenação que regulava a execução da nova legislação primáriaseria criada e promulgada por François Guizot,em conjunto com as resoluções estabelecidas pelo Conselho Real de Instrução Pública, perseguindo seu projetode uniformização e centralizaçãodas decisões e ações relacionadas ao ensino público primário francês23. Minuciosamente, buscar-se-ia explicar com a nova ordenação quais seriam as responsabilidades de cada uma das autoridades responsáveis, fossem elas locais ou centrais, por zelar pelo adequando funcionando de seu ensino.
Ainda nesse mesmo mês, no dia 24, outra circular seria endereçada a todos os préfets e sous-préfets departamentais franceses (juntamente com a lei de 28 de junho e com a ordenação do dia 16) chamando igualmenteesses personagens à ‘voz da razão’. Havia uma clara preocupação por parte de François Guizot com esta nova circularem esclarecer e fixar quais seriam exatamente as funções que caberiam a cada uma dessas autoridades - que tinham uma instância de atuação mais central do que a das autoridades comunais - em relação à execução da lei de 28 de junho e da ordenação de 16 de julho24. Buscava-se igualmente com essa delimitação da esfera de atuação dos préfets e dos sous-préfets franceses que não ocorresse um conflito em relação às atribuições que naquele mesmo momento estavam sendo endereçadas aos reitores de suas Academias 25.
Vale aqui neste momento uma importante ponderação: entendemos que ao regular a partir dessa série de medidas legislativas qual seria a singular e estratégica função de cada um desses agentes auxiliares do governo do Estado (Mattos, 1994), François Guizot objetivava não somente assegurar a corretaaplicação da nova lei26, mas também buscava colocar em prática seu projeto de uniformização e centralização dessas práticas. Nessa acepção, vale aqui igualmente chamar atenção para o fato de que estabelecer-se-ia em diversas passagens dessas medidas legislativas quais seriam as resoluções tomadas por estes indivíduos que deveriam, antes de acatadas, ser remetidas diretamente ao ministro da instrução pública.
Ainda tendo por base essa premissa, no dia 11 de outubro do ano seguinte, uma circular seria remetida por François Guizot a todos os diretores das escolas normais primárias departamentais francesas com o intuito de também informá-los sobre seus ‘deveres’ e ‘funções’ nesses estratégicos espaços de formação disciplinada dos instituteurs comunais franceses:
Senhor diretor, desde que a lei de 28 de junho de 1833 foi entregue, eu me desdobrei rapidamente para bem divulgar a todos os instituteurs primários do reino a posição que ela toma e os deveres que ela lhes impõe. Agora a lei está em vigor; o zelo dos conselhos gerais, dos conselhos municipais, de toda a administração, responde à solicitude legislativa; por toda parte as escolas se organizam, se multiplicam, e a influência dos instituteurs primários tornar-se-á uma das mais gerais e das mais ativas às quais esteve submissa a sociedade.
Ora, o sucesso da instrução elementar, maior talvez do que em toda outra parte da instrução pública, depende do mestre que a fornece; é nas escolas normais que se prepara o futuro das escolas primárias; e eu sinto, senhor, a necessidade de me dirigir diretamente a vós para vos dizer com precisão o que eu penso de suas funções, de seus deveres, para colocá-los sob os vossos olhos, em todo o seu alcance, e vos dar as recomendações que o ajudarão a cumpri-los (p. 304-305, grifo nosso)27.
O ‘sucesso da instrução elementar’ francesa estava sendo atrelado por esse homem de ação ao estratégico espaço em processo de constituição das escolas normais primárias departamentais, local por meio do qual se formavam os indivíduos-mestres responsáveis não somente pelo futuro das gerações nascentes francesas, mas igualmente por influenciar de forma ativa e ‘submissa’ a sociedade toda inteira. Para esse fim, era da firme posição de François Guizot que esses espaços sociais deveriam ter para comandá-los um ‘chefe’ que buscasse pelo ‘espírito de ordem’28 a partir, por exemplo, de práticas junto a seus instituteurs primários que propagassem ‘hábitos de simplicidade, de frugalidade e de trabalho pessoal’. Condutas estas, por seu turno, provedoras do controle de toda ‘sede excessiva de bem estar material’, responsável direta, por sua vez, por atormentar ‘o destino de tantos homens, corrompendo seu caráter’29. Com a circular de 11 de outubro de 1834, intencionava Guizot, assim, deixar bem claro o lugar singular e estratégico de todos os diretores das escolas normais primárias departamentais francesas, uma tarefa percebida por ele como uma grande e difícil missão em proveito e realizada em conjunto com as ações estabelecidas pelo Estado monárquico centralizador e instrutor francês:
Veja, senhor, eu espero muito de vós, pois o senhor tem muito a fazer. Vossas funções não se limitam nem aos cuidados administrativos nem aos trabalhos de ensino propriamente dito: uma missão mais extensa vos é confiada; é preciso que vossa conduta, vosso caráter, estejam numa constante harmonia com a tarefa à qual se devotam; todos os vossos momentos são em alguma medida preenchidos por um mesmo dever, não há, por assim dizer, ponto de vista privado para vós; o Estado vos pede mais que o tributo de vossa inteligência e de vossos conhecimentos: é o homem mesmo, o homem todo inteiro que ele exige [...]. Compartilha em certa medida, senhor, os deveres e a responsabilidade que o governo do rei se comprometeu com relação a toda a sociedade (p. 308-309)30.
Para autores como Pierre Rosanvallon (1985), o projeto levado a cabo por François Guizot, como ministro da instrução pública de expansão das escolas normais primárias na França, tinha por fim a capacitação de seus professores para certo tipo de ação social31; prática esta interligada, por seu lado, aos objetivos do État sociologue (Rosanvallon, 1985)32. Na acepção de personagens como Guizot, “[...] o instituteur deve[ria] ensinar ao pequeno povo a submissão, o respeito à lei, o amor à ordem [...]”, consolidando com isso “[...] a segurança da Monarquia e a estabilidade da sociedade” (Gontard, 1959, p. 493). Gilbert Nicolas (2006) sustenta que o corpo docente nesse sentido seria um mediador possível entre o Estado e a sociedade, um instrumento mesmo de ação estratégico no cotidiano das escolas primárias comunais francesas. E exatamente por isto, ratifica Nicolas, “[...] as escolas normais francesas, alinhadas sobre o modelo do Estado [...]”, seriam “[...] cada vez mais bem controladas” (Nicolas, 2006, p. 234). François Guizot consagrará por isso uma atenção especial em sua passagem pelo ministério da instrução pública francesa na organização meticulosa desses espaços. Em seu discurso aos professores primários pela reabertura dos cursos da Escola Normal de Paris, em 21 de outubro de 1836, assim ele se pronunciaria:
E não somente vocês os ensinarão, mas vocês os ensinarão em nome do Estado, instituídos por ele, e tendo dele vossa missão. [...] Esse princípio [...] se enraíza e se estende cada vez mais dentro das nossas instituições e dentro das nossas leis; ele dirige hoje a todo o regime de instrução primária [...]. Ele pode sozinho fundar a educação verdadeiramente nacional, a instrução verdadeiramente pública, e ao mesmo tempo ele se concilia maravilhosamente com os direitos da liberdade. Vocês falarão, vocês agirão, senhores, em nome desse princípio [...] (Guizot, 1861, p. 425-427).
Desde os primeiros anos da década de 1830, este tipo de estabelecimento de ensino para a formação dos instituteurs comunais franceses mostrar-se-ia predominante, entretanto não havendo uma uniformização em suas ações. A partir, principalmente, do primeiro ministério Guizot (1832-1836), uma normalização centralizadora (Nicolas, 2006) e, relacionada de forma interdependente a esta, uma expansão desse tipo de instituição de ensino processar-se-ia33. Para Nicolas, tal normalização centralizadora instituir-se-ia a partir das ações interligadas estabelecidas pelo ministro da instrução pública, pelo Conselho Real de Instrução Pública e pela criação em fevereiro de 1835, em cada departamento francês, do cargo de inspetor de instrução primária, função esta que simbolizava a presença estratégica daquelas duas esferas centrais de atuação do Estado monárquico centralizador e instrutor no espaçodo cotidiano escolar primário francês. Nomeados pelo ministro em acordo com o Conselho Real de Instrução pública, tais inspetores tinham como função primeira zelar pela vigilância em todos os estabelecimentos de instrução primária francesa, conforme havia sido estabelecido pela lei de 28 de junho de 1833 e pela ordenação de 16 de julho do mesmo ano. A atuação desses inspetores nas escolas normais primárias departamentais francesas, prossegue Nicolas, tinha o objetivo de uniformizar seu ensino e sua existência mesma. Diminuindo um pouco os poderes das autoridades locais, Guizot faria com que a partir da criação desse cargo, os instituteurs comunais franceses ficassem mais estritamente ligados à administração central (Kahn, 2010), instituindo-se com isso um elemento da administração departamental independente dos poderes locais (Mayer, 1981).
Em 13 de agosto desse mesmo ano, François Guizot remeteria uma circular a todos os inspetores de instrução primária com as instruções exatas para os ‘fazer conhecer com precisão, e em toda sua extensão, a missão que’ lhes estava sendo ‘confiada’ naquele momento34. Nesta, explicitaria nosso fio da trama todas as suas expectativas quanto à atuação destes personagens percebidos assim igualmente por ele enquanto estratégicos agentes auxiliares do governo do Estado monárquico centralizador e instrutor francêsno âmbito de sua instrução pública primária:
A lei de 28 de junho de 1833 designou as autoridades chamadas a cooperar na sua execução. Todas essas autoridades, os reitores, os préfets, os comitês, receberam de mim instruções detalhadas que os guiaram em seu caminhar. Eu tenho somente a me louvar de seu bom espírito e de sua devoção, e importantes resultados já provaram a eficácia de seus trabalhos. No entanto, no momento mesmo quando a lei foi entregue, todos os homens esclarecidos pressentiram que a ação dessas diversas autoridades não seria suficiente para alcançar o objetivo que a lei se propunha. A propagação e a vigilância da instrução primária é uma tarefa ao mesmo tempo muito vasta e sobrecarregada de uma infinidade de detalhes minuciosos; é necessário agir por toda parte e olhar por todos os lados de muito perto [...].
Tapar todas essas lacunas, fazer, no interesse da instrução primária, o que não pode fazer nem uma nem outra dessas diversas autoridades que se ocupam dela, servir de elo entre essas autoridades, facilitar suas relações, evitar os conflitos de atribuições e a inércia ou o incômodo que resultam disso, tal é, senhor inspetor, o caráter próprio de vossa missão. Outros poderes se exercerão conjuntamente com o vosso no departamento que vos é confiado; o vosso somente é especial e inteiramente direcionado a uma só atribuição. Senhor reitor, Senhor préfet, Senhores membros dos comitês, ocupam-se em grande parte a outros cuidados; vós somente, no departamento, eis o homem da instrução primária; só vós não tendes outros negócios que os seus; sua prosperidade fará toda vossa glória. [...] Vossa primeira obrigação será então de prestar a essas diversas autoridades que tomam parte na administração da instrução primária uma assistência sempre devotada.
[...] Talvez vossa aparição inesperada em uma escola vos ofereceria um meio mais certo de bem apreciar a sua situação. [...] Vós escapareis facilmente das armadilhas que poderiam vos pregar alguns instituteurs preparando de antemão seus alunos a fraudar vosso sufrágio [...].
O senhor é encarregado, tanto e talvez mais do que qualquer pessoa, de realizar as promessas da lei de 28 de junho de 1833, pois cabe a vós de seguir a sua aplicação em cada caso particular e até o momento definitivo onde ela se realiza. Não percais jamais de vista que, nessa grande tentativa para fundar universalmente e efetivamente a educação popular, o sucesso depende essencialmente da moralidade dos mestres e da disciplina das escolas. Reenvie incessantemente sobre essas duas condições vossa solicitude e vossos esforços. Que eles se realizem mais e mais; que o sentimento do dever e o hábito de ordem estejam incessantemente em progresso em nossas escolas; que seu bom renome afirme-se e penetre no seio de todas as famílias. A prosperidade da instrução primária custa este preço, assim como sua utilidade! (p. 358-371)35.
‘Moralidade’, ‘disciplina’, ‘sentimento do dever’, ‘hábito de ordem’. Condutas político-sociais estratégicas a serem cotidianamente perseguidas, implementadas, construídas ‘no’ e ‘fora’ do espaço escolar, ‘no seio’ mesmo ‘de todas as famílias’ francesas. Uma prática, assim, tendo por base estratégicas convicções de ‘utilidade’ político-ideológicas. Junto a esta circular, no mesmo dia, duas outras seriam enviadas por Guizot a todos os reitores e préfets departamentais franceses informando-os da primeira remetida aos seus inspetores e chamando-os a colaborar com suas funções. Nestas duas circulares, Guizot informaria que caberia a estes estratégicos personagens o envio a ele enquanto ministro da instrução pública de um relatório anual para o ‘fazer conhecer detalhadamente’ a ‘opinião pessoal’ deles “[...] sobre a capacidade do Senhor inspetor e sobre o fervor que ele leva no cumprimento de sua missão” (p. 373 e 375)36. Uma das últimas medidas legislativas relacionadas à instrução pública primária de meninos durante o período em que François Guizot esteve à frente desse ministério, estas duas circulares também faziam parte, sustentamos, do projeto político levado a cabo por essepersonagem de tanto hierarquizar e normalizar quanto de centralizar as ações relacionadas ao ensino público primário na França; engendrando o acesso nesse processo do Estado monárquico centralizador e instrutor francês ao cotidiano desses estratégicos estabelecimentos de ensino.
No final da década de 1830, ainda não existia uma escola pública primária de meninos por comuna francesa, conforme havia sido previsto pela nova legislação. Contudo, a proporção deste tipo de estabelecimentode ensino aumentaria de forma significativa (Reboul, 1991; Gontard, 1976). Quanto ao número de alunos por habitante, o processo seria o mesmo (De Broglie, 1990; Gontard, 1976). Além disso, o orçamento do ministério da instrução pública voltado para esse tipo deinstituição educativaquase dobraria: de 7.883.803 francos em 1832 para 13.826.460 em 1837(De Broglie, 1990).
Em seu célebre le moment Guizot, Pierre Rosanvallon (1985) afirma que no momento em que François Guizot assumiu o ministério da instrução pública francesa ele buscou colocar em prática suas ideias sobre o gouvernement des esprits a partir, sobretudo, de três principais eixos: a) a reconstituição da Academie des Sciences Morales et Politiques; b) a construção de um programa de trabalho sobre a história da França;c) e a estruturação de um projeto educativo forte; forjando, com estas ações em conjunto, um novo senso às práticas do Estado monárquico francês.
No que concerne seu programa educativo, a partir da concepção do l’État instituteur, Guizot teria tido por objetivo, prossegue Rosanvallon, associar a liberdade de ensino ao movimento de centralização deste. A própria ideia de corps enseignant, problematizada por Guizot em seu Essai sur l’histoire et sur l’état actuel de l’instruction publique en France (1816), pode ser tomada como um exemplo da percepção que estava sendo construída naquele momento por esse ator histórico disto e, nessa acepção, sobre o significado e/ou o lugar para esse personagem do gouvernement des esprits:
O gouvernement des esprits repousa todo inteiro em colocar em ação esse esquema: constituição de polos organizadores e reguladores autônomos, imersos na sociedade civil, mas estruturados pelo Estado e unidos a ele (seu grau de autonomia variando segundo o caso: mais forte para as sociedades eruditas e acadêmicas, mais brando para os corps enseignant) (Rosanvallon, 1985, p. 234).
François Guizot defendia, com isso, a proposta de que esse corps enseignantdeveria estar “[...] imerso na sociedade e unido ao Estado” (Rosanvallon, 1985, p. 235), estando por isso os instituteurs comunais franceses “[...] no coração do [seu] projeto de gouvernement des esprits” (Rosanvallon, 1985, p. 251). Nesse fim, ele procurará formar no espaço político-social estratégico das escolas normais primárias de cada departamento francês “[...] um meio intelectual coerente, a tecer uma rede de professores devotos à sua causa com os quais ele conservará laços quase pessoais” (Rosanvallon, 1985, p. 235). Entendemos igualmente que era aqui tambémo governo do Estado (Mattos, 1994) tentando adentrar o espaço do cotidiano escolar primário francês.
E governar os espíritos significava para François Guizot a moderação “[...] das paixões pelo saber” (Rosanvallon, 1985, p. 228). O espírito nessa perspectiva poderia ser entendido como a opinião, o pensamento, as influências, a liberdade total - sendo todos estes valores percebidos por vezes por ele enquanto excessivos, nefastos, irracionais -, questões estas centrais e estratégicas, sustenta Rosanvallon, numa sociedade secularizada, tal como era o caso da sociedade francesa. Assim, ao “[...] governar para a gerência dos espíritos, e não para a agitação das existências” (Guizot apud Rosanvallon, 1985, p. 223), François Guizot - e a facção política da qual ele fazia parte da Résistance, ou ainda, o parti de l'ordre (Da Conceição, 2014; Morel, 2010; Virgier, 1991) - buscava “[...] conciliar a ordem e a liberdade, a autoridade do Estado e a autonomia dos indivíduos [...]” (Rosanvallon, 1985, p. 224); inscrevendo-se ele no “[...] movimento no qual o tema do gouvernement des esprits se engancha diretamente [...]”, qual seria este: a percepção de que ‘educar e governar’ eram “[...] duas tarefas indissociáveis” (Rosanvallon, 1985, p. 241).
Nesse termos, a construção por François Guizot daquela série de medidas legislativas que tinham por intuito o cumprimento da nova legislação francesa para a sua instrução primária-buscando para issodeixar bem claro quais eram as respectivas, inter-relacionadas e estratégicas missões/tarefas das autoridades responsáveis, dos instituteurs comunais edos diretores das escolas normais departamentais francesas - fazia parte de um projeto político de ação em escala de percepção mais ampla (Revel, 1998) por meio do qual estes atores políticos eram percebidos e identificados por Guizot com e enquanto agentes possibilitadores desse gouvernement des esprits. Forjava-se, nesse processo, no cotidiano escolar primário francês, uma estratégica rede política de ação promovedora esta por sua vez do controle das sempre insidiosas e por isso mesmo temerosas paixões pelo saber.
Para concluir, poderíamos aqui por fim inferir duas importantes ponderações: a) exatamente como homens viabilizadores desse juste-milieu, simbolizavam esses agentes históricos a presença do Estado monárquico centralizador e instrutor francês nos espaços de sociabilidade estratégicos e em processo de construção tanto das escolas normais departamentais quanto das escolas públicas comunais de instrução primária francesas; b) por serem considerados por Guizot enquanto “[...] homens esclarecidos” (Guizot, 1816, p. 85), seriamesses indivíduos igualmente percebidos por esse homem de ação enquanto cidadãos capacitados a agir segundo a razão política (Rosanvallon, 1985; Da Conceição, 2014)37.
Considerações finais
Em seu célebre Mémoires pour servir a l'histoire de mon temps, François Guizot (1860, p. 65) afirma ser o ensino primário elementar “[...] em todo lugar necessário, nos campos os mais afastados e para as mais humildes condições sociais”. Já no que concerne à instrução primária superior, esta seria, em sua opinião, aquela “[...] destinada às populações laboriosas que nas cidades têm a tratar com as necessidades e os gostos de uma civilização mais complicada, mais rica e mais exigente”. Nesse ponto de vista, para esse homem de ação, o ensino primário superior construir-se-ia enquanto um complemento ao ensino primário elementar, ligado, por sua vez, à prática, à indústria e ao comércio das cidades (Mayer, 1981; De Broglie, 1990). Na defesa de posições como esta, François Guizot nos faz refletir sobre seu projeto de hierarquização do ensino público primário francês, tendo em vista que, era sua concepção, “[...] a instrução não é um meio de fazer progredir a igualdade entre os homens. Ela tem por alvo deixar coerente uma sociedade que repousa sobre a desigualdade entre os homens. Ela tem por objetivo prevenir o perigo democrático definido como ‘confusão social’” (Rosanvallon, 1985, p. 246, grifo do autor).
Como educador político-intelectual da burguesia,o intelectual François Guizot38, em sua atuação no ministério da instrução pública francesa, buscava com isso colocar em prática seu projeto de capacitação de operários qualificados (Rosanvallon, 1985). Ou, em outros termos, uma função político-social específica estava sendo cunhada e levada a cabo por este personagem em sua passagem pelo ministério da instrução pública francesa para o grau de ensino primário, considerado este como seria por esse sujeito da história enquanto um locus estratégico na construção de alguns valores e práticas relacionados à formação das ‘classes inferiores’ (Guizot, 1816) da sociedade francesa em tempos intensos e incertos - tempos estes, como diria o próprio Guizot, de ‘fermentação nascente’ - em que cotidianamente toda a força da rua se fazia presente (Da Conceição, 2014; Virgier, 1991).
E movimentos estes contestatórios à ordem político-social estabelecida na França da monarquia de Julho que hoje, em tempos de Brasil atual39, muitos de nós - como professores e educadores (Bergamaschi, 2003) comprometidos com uma educação que se quer emancipadora (Rancière, 2002; Biesta, 2012) - clamam à ação!
Nesses termos e para finalizar, resta-nos por fim firmar aqui o desejo de que o espaço escolar - sobretudo em tempos de ‘Escola sem Partido’- não se constitua enquanto um lugar de formação de indivíduos que atuem em prol de uma leviana e excludente gerência dos espíritos - num diálogo aqui com o que fora proposto e colocado em prática por François Guizot como ministro da instrução pública francesa - mas como um locus estratégico de construção de sujeitos históricos existenciais (Correia, 2012) desmoderadamente insidiosos, subversivos, insubmissos, sedentos, enfim, de um saber libertador que vise a transformação social, consolidando com isso uma política democrática crítica entre nós (Giroux, 2017). Que a indignação e a revolta nos mobilizem!