Introdução
O presente artigo analisa vários textos publicados na revista Icomi-Notícias a fim de identificar e elucidar as diretrizes e as ações educativas da Indústria e Comércio de Minérios S. A. (Icomi) no Território Federal do Amapá (TFA), entre 1964 e 1967, período de circulação do referido periódico. A Icomi, uma modesta empresa criada no ano de 1942, em Belo Horizonte, começou no final da década seguinte (1957) a explorar as imensas jazidas de manganês então existentes no centro do losango amapaense. Essas jazidas fizeram do Brasil o quarto maior exportador mundial desse minério. Por outro lado, ações estatais que em meado do século XX estimularam a exploração mineral atendiam a demandas globais (Monteiro, 2005). A União Soviética havia suspendido a venda desse importante antioxidante do aço aos Estados Unidos (EUA), que passaram então buscar novos fornecedores1.Portanto, as mudanças na ordem social global, orientadas pelos imperativos do mercado, não só influenciaram a sociedade local (do TFA), como tornaram aí a educação algo estratégico ao avanço da fronteira da modernização capitalista.
A historiografia que enfoca o Projeto Icomi tem abordado, sobretudo, as formas de exploração e controle dos trabalhadores no espaço da produção, dando pouca atenção aos programas desenvolvidos pela empresa a fim de cultivar nas famílias que viviam em suas company towns novos hábitos e valores (Brito, 1994; Silva, 2002; Nunes, 2010; Paz, 2011a)2. Entretanto, tais programas eram fundamentais no esforço icomiano para produzir um ‘trabalhador virtuoso’: homem disciplinado, higienizado e devotado ao labor cotidiano e à manutenção do conforto familiar (sobretudo por meio do consumo de mercadorias). Esta senda pouco estudada do primeiro grande projeto de exploração mineral da Amazônia é o objeto deste artigo, que objetiva responder as seguintes questões norteadoras: quais eram as diretrizes e ações educativas do Projeto Icomi? E de que modos estas ações concorreram para a implantação do modelo fordista de acumulação de capital no TFA? Para responder a tais perguntas analisamos diversos artigos da revista Icomi-Notícias, um periódico produzido pela mineradora para divulgar suas realizações.
Em fins de 1946, a área das jazidas manganíferas amapaenses foi transformada em reserva nacional. No ano seguinte, a Icomi ganhou a concessão para fazer a prospecção (estudo da viabilidade econômica da exploração desta reserva). Quase quatro anos depois, esta empresa, associada à empresa estadunidense Bethlehem Steel, apresentou o relatório final dos estudos preliminares. Entre 1951 e 1953, a empresa realizou uma série de esforços no sentido de se capitalizar para dar início a sua grande empreitada no Amapá. E para dirigir todo o trabalho de construção do parque industrial foi contratada, em janeiro de 1954 (na cidade de Nova York), a Foley Brothers. A mineradora precisava de ampla infraestrutura para tornar possível a exploração e o escoamento da produção manganífera amapaense. Esta infraestrutura foi dividida em três seções: a) área de mineração; b) a ferrovia (que transportava o minério); c) e o Porto de Santana, onde terminava a linha ferroviária e de onde o manganês saía, em navios, para o exterior. Abria-se, assim, no Amapá, diversificada frente de trabalho, justamente no momento em que o governo territorial encontrava sérias dificuldades financeiras para manter o ritmo de suas construções3.
No início dos anos 1960 foram implantadas nas terras amapaenses duas company towns icomianas: Serra do Navio (mais próxima da área de extração mineral) e Vila Amazonas (na área portuária responsável pelo embarque do manganês em grandes navios cargueiros). Essas cidades-empresa contavam com complexas e modernas estruturas urbanísticas e amplas redes de serviços (Paz, 2011b). Aí estavam incluídas as escolas, que viabilizavam grande parte do programa educacional da mineradora. Ao criar estas cidades no meio da floresta, a empresa antevia a formação de um homem novo, não mais afeito ao modo de vida caboclo ou ribeirinho. Portanto, como evidenciaremos nas linhas a seguir, o objetivo da Icomi no Amapá não se restringia a produzir manganês a ser vendido para países como EUA, Inglaterra e Alemanha. Ela visava igualmente gerar aí, por meio da educação (que não se esgotava na escolarização), um novo modus vivendi.
Desbravar, ocupar e civilizar são motes sempre presentes nos projetos dos velhos e novos movimentos imperialistas que elegeram a Amazônia como espaço de atuação. Um exemplo vem dos planos de Henry Ford para esta região nos anos de 1920, compreendidos por Grandin (2010, p. 18) como uma competição entre o “[...] vigor, dinamismo e a energia que definiam o capitalismo no início do século XX [...]”, representado por Ford, e a Amazônia, que “[...] incorporava a imobilidade primitiva, um mundo antigo que até então havia se mostrado inconquistável”. Ainda para Grandin, o projeto de heveicultura em amplíssima área amazônica consolidou “[...] uma nova e titânica luta entre a natureza e o homem moderno”. Ao longo das décadas seguintes, intelectuais e agentes governamentais comprometidos com a visão hegemônica de desenvolvimento apregoaram a necessidade de prover mais braços à Amazônia a fim de transformar seus recursos até então ociosos (terras, minérios, madeiras etc.) em riqueza nacional. O almejado aumento populacional, segundo os arautos da modernização amazônica, somente seria possível por meio do advento de grandes vagas de migrantes.
As terras amapaenses foram separadas do Pará em 1943, momento em que passaram ao controle do governo federal, que com o slogan ‘sanear, educar e povoar’ se propunha a desenvolvê-las. Escolhido diretamente pelo presidente Getúlio Vargas, o primeiro governador do Amapá, Janary Nunes, afirmava que seria possível por meio da exploração do manganês retomar a ‘cruzada bandeirante’ e vencer o que ele considerava ser o maior inimigo do progresso regional: o colossal espaço despovoado (Nunes, 1959). Na segunda metade do século XX, a Amazônia oriental brasileira passou por uma série de mudanças que podem ser percebidas à luz de dados econômicos, sociais e culturais. Desde então, diversos recursos minerais passaram a constituir seu maior percentual de exportações. Mas, essa política desenvolvimentista centrada na exploração mineral não impulsionou dinâmicas econômicas que ficassem socialmente enraizadas. Uma vez terminada a extração mineral todo o dinamismo econômico gerado acabava se esvaindo (Monteiro, 2005). Neste atinente, Maria Celina d’Araújo (1992) afirma que o modelo de desenvolvimento oferecido à região em meados do século XX foi o tecnocrata, gerador de uma volumosa riqueza que, no entanto, ficara concentrada e que era quase toda carreada para fora.
Essa modernização, caracterizada como draconiana, carregava consigo novos moldes de gestão do espaço, do tempo e das relações sociais em geral e era apresentada pelos agentes do Estado como vitoriosa - como se sua força compressora tivesse verdadeiramente esmagado os modos de vida assentados no comunitarismo e na produção em pequena escala (Lobato, 2019). Em meados do século XX, políticos e intelectuais alinhados ao pensamento nacionalista autoritário afirmavam que o homem amazônico possuía todo o potencial para desempenhar o papel de protagonista do crescimento econômico regional. Portanto, um futuro de glórias estaria reservado ao ‘caboclo’ desde que ele fosse dotado dos saberes, competências e valores intrínsecos à racionalidade instrumental, o ethos do capitalismo, que pretende tudo transformar em fator de produção de riqueza. Tendo em vista a necessidade de criação do ‘homem novo’, afeito ao trabalho disciplinado e previdente, a educação tornou-se uma estratégia fundamental tanto do Estado quanto de empresas, como a Icomi4.
Além das atividades de exploração de minério, o projeto Icomi trouxe para o TFAum pioneiro programa pedagógico. Esse programa estava conectado às políticas educacionais nacionais e foi implantado inicialmente em salas de aula provisórias, instaladas nos acampamentos temporários da empresa. Mudanças significativas começaram a ocorrer a partir de 1959, com a construção e inauguração da escola elementar de Serra do Navio5. Diante disso, consideramos necessário compreender o modo como foram idealizadas e materializadas as práticas educacionais desta empresa, problematizando seus sentidos. Para tanto, analisamos diversos artigos da revista Icomi-Notícias, que, conforme já destacamos, foi produzida e distribuída pela empresa às famílias de seus operários entre 1964 e 1967.
Crianças, adultos e mirada para o progresso
Enquanto a quase totalidade dos técnicos contratados pela Icomi saíram dos EUA e do sudeste brasileiro, os operários dela eram, maciçamente, oriundos do Nordeste, do Pará e dos interiores do Amapá. Em seu relato sobre o TFA do início dos anos 50, Antônio Teixeira Guerra (1954, p. 297) destacou: “[...] o recrutamento de mão-de-obra está ocasionando a existência de uma corrente de população que deixa o baixo curso da Região dos Lagos e do Araguari para subir em direção a Serra do Navio”. E adiante: “[...] esse êxodo ocasiona o abandono da coleta das sementes oleaginosas, da extração do látex e também das fazendas de gado das áreas referidas”. A Icomi criou uma série de estratégias para moldar esse trabalhador amazônico ou a fim de habilitá-lo ao trabalho produtivo altamente racionalizado. A criação de um amplo programa educativo foi um dos meios adotados para o alcance do objetivo da empresa.
A Icomi inseriu no TFA o sistema industrial baseado na organização fordista do trabalho e da produção. O fordismo incutiu valores, habilidades e uma ‘nova’ visão de mundo nos trabalhadores, intervindo na sua vida privada (Gramsci, 2008). O fordismo buscava instituir a centralidade do trabalho na vida e nas mentes dos trabalhadores, retendo a irritante mobilidade deles por meio de salários relativamente altos e de outras vantagens. Tais vantagens deveriam compensar uma rotina mais estafante do que aquela existente nos espaços não ‘fordizados’, onde a permanente racionalização taylorizada das energias e dos movimentos humanos não havia se tornado a regra (Gramsci, 2011). A extrema uniformização dos procedimentos possibilitava uma automação mais abrangente de trabalho, bem como um controle constante do ritmo de produção, com cadência única e previamente determinada para um grande número de mãos (Pinto, 2010). Por outro lado, os agentes do modelo fordista realizavam a padronização dos produtos, que eram fabricados numa escala imensa, da ordem de centenas ou milhares por dia, com baixo custo produtivo, contrabalançados pelo aumento do consumo.
Formar novas gerações ‘sadias e instruídas’, gerar uma consciência social calcada na noção de progresso, bem como racionalizar os métodos de trabalho constituíram a base do ideário fordista de produção e regulação social vigente de forma global desde os anos 30 do século XX (Frigotto, 2010). O fordismo possibilitou a máxima conexão dos trabalhadores no circuito do consumo, na ‘repartição’ dos ganhos da produtividade e na rendição de segmentos do movimento operário. Behring e Boschetti (2014, p. 115) apontam que as possibilidades de acesso ao consumo e as conquistas no campo na seguridade social davam a impressão de que o capitalismo, a partir daí, ao menos nos países ditos centrais, “[...] havia encontrado a fórmula mágica, tão ao gosto da socialdemocracia, para combinar acumulação e equidade”.
Ao implantar esse modelo econômico no TFA, a partir de 1957 (início da produção e exportação do manganês), a Icomi tomou como base organizativa o gerenciamento taylorista da força de trabalho do homem amazônico, usando a plataforma da divisão técnica e minuciosa das funções entre os numerosos agentes envolvidos na produção e no escoamento do manganês. Entretanto, a empresa insistia que sua relação com o operariado não se restringia ao espaço-tempo da produção. Publicado na revista da Icomi, o artigo ‘O homem não pode ser ‘êsse desconhecido’’ destacava que, desde o primeiro instante, tal companhia “[...] se negou a olhar para o homem como um item de sua atitude puramente econômica, na exploração das riquezas do Território” (Nunes, 1965, p. 1). No ano seguinte, este periódico asseverava que “[...] a ICOMI não vê o homem que trabalha com ela como um item que pode ser definido, friamente, sob a classificação de ‘força de trabalho’”. E acrescentava: “O homem, dentro da Companhia, tem uma significação plena e verdadeiramente ajustada à sua condição humana” (A Icomi..., 1966, p. 5, grifo autor). Essa ‘significação plena’ abrangia todo o modo de vida dos trabalhadores com os saberes, valores e práticas que compunham sua base material e imaterial. Segundo Elke Nunes (2010, p. 76), a Icomi procurou “[...] estruturar uma nova maneira de organizar a mão de obra, tanto no processo produtivo quanto na criação de uma condição de vida diferente para esse trabalhador”. Essas mudanças eram realizadas com a firme fé no poder da técnica.
A racionalidade técnica, segundo criam os articulistas da Icomi-Notícias, era capaz de vencer os obstáculos que dificultavam a criação de uma sociedade moderna no denominado ‘inferno verde’. Se na Amazônia o homem até então se encontrava submetido aos ditames de poderosas forças naturais - como a portentosa floresta, os caudalosos rios, as torrenciais chuvas, as endêmicas febres etc. - era porque não contava com os meios técnicos necessários para domá-las, afirmavam aqueles articulistas (A experiência..., 1966). O nomadismo - percebido como desdobramento do extrativismo florestal e da pequena agricultura itinerante -, o analfabetismo e o impaludismo, figuravam na representação do homem regional como sinais do ‘atraso’ da incorporação da Amazônia à sociabilidade moderna. Tal discurso, cujo embrião pode ser encontrado nos relatos dos primeiros cronistas europeus a singrarem as águas barrentas do rio Amazonas, recorrentemente serviu como justificativa para formas autoritárias de intervenção nos territórios de indígenas, quilombolas e de trabalhadores rurais em geral (Messina, 2016).
Durante a ditadura militar iniciada com o Golpe de 1964, este discurso ganhou maior fôlego. Segundo Octavio Ianni (1986, p. 229-255???, grifo do autor), entre 1964 e 1970, “[...] o poder público foi levado a interferir praticamente em todos os setores do sistema econômico nacional [...]”, reelaborando “[...] as condições de funcionamento dos mercados de capital e força de trabalho como ‘fatores’ básicos do processo econômico”. Dispondo de um controle completo das variáveis políticas, o governo passou à planificação da economia, à criação de incentivos fiscais e de ampla tecnoestrutura (agências de fomento) para atrair e subsidiar a iniciativa privada. Ademais, governo e empresariado criaram, neste contexto, uma psicosfera favorável aos vultosos empreendimentos de exploração agromineral que iriam se instalar na Amazônia, apresentando-os nos mass média como poderosos feitos da engenharia humana ou promissoras epopeias das forças civilizacionais a rasgar as matas virgens onde então a barbárie partia em retirada (Huertas, 2009).
Os articulistas da Icomi-Notícias afirmavam que a Amazônia carecia de capitais. Porém, ressaltavam que estes deveriam ser complementados pela educação (Educadores..., 1967). Na perspectiva da empresa, era necessário preparar as crianças para que no futuro pudessem dar continuidade à obra iniciada por seus pais (O Amapá..., 1965). Era preciso então formar “[...] os decenalistas de amanhã”6 (Hoje..., 1965, p. 22). Nessa perspectiva, “[...] a criança ganha importância por apresentar-se como o homem que amanhã poderá estar substituindo os decenalistas de hoje” (O futuro..., 1966, p. 19). Por meio destas e de outras frases torna-se evidente que o principal desafio do sistema de escolarização da Icomi era tornar o trabalho o centro da vida das crianças. A infância deveria ser vivida como uma eficaz preparação de corpos e mentes para o futuro ingresso no mundo do trabalho, por meio do qual homens e mulheres contribuiriam para a dinamização do ‘Amapá progressista’. Esse homem novo, imbuído da ética do trabalho e dotado dos conhecimentos científicos, era o único compatível com as aspirações dos industrialistas (Gusmão, 1965).
Para atingir suas metas, a Icomi criou um departamento de educação, bem como construiu e equipou escolas (em Serra do Navio e Vila Amazonas). Inicialmente as aulas ocorriam em salas provisórias, instaladas nos acampamentos temporários da empresa. Entre 1959 e 1960 foram edificadas as escolas elementares das company towns da mineradora. Em fevereiro de 1959 foi inaugurada a primeira escola definitiva, em Serra do Navio. Em Vila Amazonas as seis primeiras classes do curso primário (de 1ª a 5ª série) foram instaladas ainda em prédio provisório, no ano de 1960. Em 1962 as escolas das duas cidades-empresas apresentavam-se completamente equipadas, contando biblioteca infantil e pedagógica (Icomi, 1983). Em 1963, mais de 700 crianças frequentavam os cursos infantil e primário das duas escolas, sem contar aqueles adultos que aí assistiam às aulas do curso noturno de alfabetização. Em 1965 chegava a quase mil o número de crianças matriculadas nestas escolas (Educação..., 1965). Professores e orientadores educacionais eram contratados em instituições de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e eram dirigidos por diretoras que trabalhavam sob a supervisão geral do chefe do departamento de educação (RP Consultoria, 2006). Os educandários contavam ainda com professores de educação física, que conduziam as aulas especializadas ao ar livre. A Icomi investiu na formação dos seus docentes. E estes já totalizavam 50 em 1967. A eles eram oferecidos cursos de orientação técnico-didática que poderiam durar duas semanas. Eram também concedidas bolsas para a realização de estudos fora do TFA (Orientação..., 1965).
A Icomi, por outro lado, não poderia meramente esperar a lenta formação de uma nova geração de trabalhadores para garantir o bom funcionamento de seu sistema de extração e beneficiamento primário do manganês. Urgia investir na educação de operários adultos que pudessem desde já corresponder às expectativas da mineradora. Tendo isto em mente, o autor do artigo ‘O homem no progresso do Amapá’ destacara,
Ao falarmos na necessidade de formação, logo nos ocorre um procedimento com relação à infância e à juventude. É evidente que por aí é que começa a formação do homem. Mas os acelerados processos de desenvolvimento, comuns em nossa época, e destes o do Amapá é um exemplo, não podem esperar pela meticulosa formação de gerações, que só daqui a um ou dois decênios estarão em condições de intervir diretamente.
A rapidez do desenvolvimento, exigida como uma decorrência da necessidade de recuperação do tempo perdido, impõe a formação dos novos nos planos para o futuro e requer, como indispensável, a integração de todos os elementos válidos para a obra imediata (O homem..., 1965, p. 28).
A formação dos trabalhadores adultos ocorria fundamentalmente de duas formas: por meio do ensino supletivo noturno e dos cursos técnicos oportunizados pela companhia. No segundo semestre de 1966, a Icomi-Notícias destacava que “[...] os pais, tanto quanto os filhos, precisam aprender [...]” e que os adultos que não tinham completado seus estudos escolares poderiam então fazê-lo por meio do curso supletivo (Os pais, 1966, p. 26). Em 1964, o curso supletivo da Escola de Vila Amazonas contava com 73 alunos, que cursavam da primeiraà terceirasérie primária. Apenas no ano seguinte seria aberta a turma de quarta série (Reabertura..., 1964). Por seu turno, a Escola de Serra do Navio já contava em fins de 1963 com 91 alunos no curso supletivo, entre funcionários, familiares, empregadas domésticas, moradores e colonos das áreas próximas (Com grande..., 1964).
Em 29 de abril de 1964 a Icomi celebrou acordo com o Senai visando oferecer treinamento a seus operários por meio desta instituição. Criado em 1942 pelo governo Vargas em convênio com a Confederação Nacional das Indústrias, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) deveria contribuir para o atendimento à demanda por trabalhadores qualificados. Demanda que cresceu muito no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial. No Amapá, o Senai deveria contribuir com formação do trabalhador parcial, aquele com o domínio de uma função restrita ou de uma fração do ofício (Ribeiro, 2005; Taylor, 1990). O Acordo Icomi-Senai facultava à mineradora reter 80% de sua contribuição para aquele Serviço, valor que seria então aplicado “[...] em cursos de adestramento do pessoal, na formação de artífices, na promoção de conferências e outros meios de aperfeiçoamento técnico” (Acôrdo..., 1964, p. 21). Este acordo, em 1966, passou a também garantir a oferta de cursos aos filhos dos operários entre 13 e 18 anos, num claro esforço da companhia em prol da reprodução de sua força de trabalho especializada (Prossegue..., 1966)7.
Um exemplo de formação do trabalhador parcial foi o curso de solda elétrica e oxiacetilênica realizado em Serra do Navio durante 15 dias e do qual participaram 15 pessoas (Curso, 1965). Para gerenciar esse tipo de formação a Icomi criou, em 1965, centros de treinamento em Serra do Navio e Vila Amazonas. Estes, além de selecionar os participantes dos cursos promovidos pelo Senai, ofereciam atividades formativas preparadas pela própria mineradora, tais como curso de operador de máquina cinematográfica, de eletricista em reparos e manutenção de mesa telefônica PBX, de operador de mesa telefônica PBX, de pessoal de secretaria e instrumentos de medição (Treinamento..., 1965; Treinamento..., 1966). Ademais, por meio de textos publicados em suas páginas, a Icomi-Notícias tentava motivar os operários a se engajarem na sua formação profissional. Um exemplo é a notícia do prêmio concedido ao operário José Bandeira da Silva. A empresa lhe reembolsou todas as despesas com o curso de mecânica da National School de Los Angeles (EUA), feito por correspondência e por iniciativa do próprio trabalhador (Melhorando..., 1964).
O ensino médio polivalente
Além dos cursos realizados no TFA, os operários também poderiam fazer aqueles oferecidos em outras unidades da federação contando, eventualmente, com bolsas concedidas pela Icomi para tal fim. Essas bolsas também eram concedidas a estudantes do ensino secundário (ginasial, colegial, técnico ou pedagógico). A empresa se ressentia por não poder contar, em âmbito local, com uma ampla rede escolar secundarista. Em março de 1965, a Icomi-Notícias trouxe a lume o artigo ‘O ensino secundário no Amapá: seus problemas - A Cades’. Nele, a revista faz o balanço de que este ensino atravessava “[...] uma de suas fases mais difíceis quando é patente a falta de professores experimentados, sofrendo carência de material didático, sem aproveitamento real dos colégios existentes”. Como consequência disto, um grande número de alunos era obrigado “[...] a permanecer estático, sem poder frequentar uma escola de nível secundário” (O ensino..., 1965, p. 2).
Em 1965, havia no TFA 191 escolas primárias. A maioria delas era mantida pelo governo territorial, pois não chegavam a 30 as que eram sustentadas por entidades religiosas e filantrópicas, pela Icomi e particulares. Existiam então apenas oito ginásios, sete em Macapá e um no município de Amapá. Estabelecimentos do segundo ciclo do ensino médio havia apenas dois na capital amapaense, onde eram ofertados os cursos científico e comercial (Educação..., 1965). Em 1966, a Prefeitura Municipal de Macapá, o Instituto Regional de Desenvolvimento do Amapá (Irda), o Ministério da Educação e o governo territorial iniciaram uma colaboração para a criação do Ginásio Municipal de Santana. Para tal escola, a Icomi cedera 20 professores de nível universitário. Segundo a revista da empresa, “[...] a ICOMI teve interesse na concretização desse sonho, pois o Ginásio abriu facilidades aos filhos de seus empregados, até a pouco obrigados a fazer ocurso ginasial em Macapá” (Ginásio..., 1966, p. 21). Distante cerca de 20 quilômetros da cidade de Macapá, o distrito de Santana abrigava a Vila Amazonas, onde moravam os trabalhadores do porto por onde o manganês era exportado. Inaugurado em 21 de março de 1966, este educandário iniciou suas atividades com mais de 100 estudantes matriculados (Mais de 100..., 1966).
A Icomi-Notícias apresentou com entusiasmos a nova orientação do Ministério da Educação para o ensino médio. Segundo este periódico, os ‘ginásios modernos’ deveriam estar voltados “[...] para o trabalho, através de cursos comuns, com opção para a prática da indústria, comércio e agricultura”. Essas escolas ginasiais deveriam aos conteúdos tradicionais do ensino médio juntar a formação para a integração dos estudantes, a curto prazo, no mundo do trabalho. Neste sentido, o periódico icomiano ressaltava que
A educação nos ginásios deverá proporcionar, àqueles que continuarem os estudos em níveis acima do ginasial, uma compreensão adequada dos novos valores introduzidos na sociedade contemporânea pelo desenvolvimento e expansão da indústria, da automação e das organizações empresariais. Por outro lado, esta educação para o trabalho assumirá um certo sentido de iniciação profissional, para aqueles que ao término do curso ginasial, ou mesmo antes, se virem obrigados, por motivos diversos, ao exercício imediato de uma atividade assalariada (O ensino..., 1965, p. 2).
Claramente dois percursos formativos eram então delineados. Esse sistema dual favorecia a reprodução da sociedade de classes. Apenas as famílias amapaenses mais abastadas conseguiam garantir a ascensão de seus filhos do primário, passando pelos poucos ginásios existentes, até o ensino superior. Segundo a Icomi-Notícias: “[...] só os jovens que sejam filhos de famílias de posse suportam deslocar-se para Belém ou Manaus e, nessas capitais, seguir a sua vocação. O Território [do Amapá] não forma doutor”. Porém, mesmo o ensino profissionalizante era insuficiente para atender as demandas da Icomi. Em tom de queixa os articulistas da empresa afirmavam: “[...] enquanto o progresso passa a exigir profissionais cada dia em maior número, as escolas que os deviam formar não se expandem em ritmo equivalente”. Por isso a mineradora se via obrigada a apelar para o aprendizado espontâneo, realizado no espaço laboral (Educação..., 1965, p. 5).
Os ginásios deveriam aderir a um sistema polivalente de educação, que favorecesse o desenvolvimento de diferentes vocações. O currículo era composto por matérias fundamentais (como língua portuguesa e matemática), optativas, práticas educativas, bem como artes e técnicas industriais e comerciais. Estas artes e técnicas eram distribuídas nas quatro séries, consistindo em trabalhos com madeira, cerâmica, eletricidade, automóvel, desenho técnico, documentação e registro, compra e venda etc. Nos ginásios femininos (havia 01em Macapá) desenvolvia-se um programa de educação para o lar, com o aprendizado de: arte culinária, corte e costura, puericultura, enfermagem, etc. Delineava-se, portanto, uma divisão sexual do trabalho em que ao homem era aberto um leque de possibilidades na indústria e comércio, enquanto a mulher era relegada no trabalho doméstico, podendo, no máximo, almejar aquelas profissões ligadas ao cuidar, como professoras primárias ou enfermeiras (O ensino..., 1965; Oliveira, 2016).
Essa formação técnica, voltada aos interesses do mundo do trabalho era a substância do programa educacional da Icomi. A partir da década de 1960, no contexto da ideologia desenvolvimentista, a política educacional brasileira passou a ser pensada como parte dos planos econômicos globais e, na seara da política pública, passou a atuar na esteira da abertura de novas frentes de exploração econômica. Esse é o contexto da política calcada no binômio educação e desenvolvimento - e mais claramente educação e trabalho. Neste momento, a teoria do capital humano estabelece-se como pedra angular das transformações em curso. Theodoro W. Schultz (1902-1998) foi quem criou a teoria do capital humano nos EUA dos anos 50. Para ele, o trabalho qualificado pela educação fazia aumentar a produtividade e, por consequência, os lucros. O capital humano consistia, para Schultz, na soma dos investimentos do indivíduo em aquisição de conhecimentos (adquiridos, sobretudo, nas escolas e universidades). Conhecimentos que se revertiam em ganhos para seu possuidor, como melhores empregos e vantagens na adaptação às mudanças do mercado de trabalho (Aguiar, 2012; Shiroma, Moraes, & Evangelista, 2011).
Considerações finais
A análise das páginas da revista Icomi-Notícias nos possibilita reconhecer e problematizar a importância do programa educacional do primeiro grande projeto de mineração da Amazônia. A educação não era percebida como algo acessório, mas como um fator fundamental na formação de um novo homem. As escolas das duas company towns da Icomi deveriam formar uma nova geração de trabalhadores e trabalhadoras plenamente capazes de corresponder às expectativas dos empreendimentos que seguiam a lógica capitalista. Essa, segundo as diretrizes fordistas, deveria reger a conduta do trabalhador aquém e além do chão da fábrica. O trabalho deveria então ocupar um lugar central na vida de crianças e adultos. A escolarização era entendida como sinônimo de preparação do futuro trabalhador, por meio do cultivo de saberes, valores e práticas coerentes com a racionalidade técnica e instrumental. No quadro da abertura de novas frentes de exploração dos recursos naturais da Amazônia (terras, minérios, madeiras e outros), este novo homem era percebido como o colaborador ideal.
Se por um lado a Icomi percebia o homem regional na sua totalidade, por outro, no espaço da produção essa empresa o preparava para ser um trabalhador parcial, aquele que teria domínio apenas sobre uma pequena parte do processo produtivo e que, portanto, deveria ser formado para executar perspicazmente trabalhos especializados. A Icomi se ressentia de não poder contar para isso com um amplo sistema público de ensino profissionalizante. Os investimentos do governo ditatorial no sentido de instituir nacionalmente um modelo polivalente de escola ginasial não ocorriam no ritmo esperado pela mineradora. Estabelecimento de acordo de cooperação com o Senai, concessão de bolsas e criação de centros de treinamento foram algumas das ações realizadas por esta empresa para responder às suas próprias demandas por profissionais especializados.
Assim, é possível inferir que a Icomi, abrindo uma nova e ampla frente de exploração econômica numa região onde imperava o extrativismo, a pequena e itinerante agricultura de subsistência e uma sociabilidade onde o trabalho não era o centro da vida, reconheceu a escola não como um meio de reprodução do modo de vida local. Esta instituição deveria promover uma transformação profunda na sociedade amapaense, que era reputada nas páginas da revista Icomi-Notícias como atrasada e, portanto, carente do impulso modernizador de empresas e governantes. Tal impulso, acelerando o tempo histórico, concebido como linear e teleológico, possibilitaria a superação do retardo socioeconômico. Em que medida e de que formas as famílias amapaenses aderiram a esse desideratum que é tema para futuras pesquisas.