Introdução
Ao longo da primeira metade do século XX, a educação sexual mobilizou diferentes grupos, entre médicos, educadores, higienistas e sacerdotes. As campanhas de educação sexual eram empreendidas como ‘cruzadas profiláticas’ que visavam a um só tempo combater as perversões sexuais, as doenças venéreas, a criminalidade e os desarranjos familiares, contribuindo para a formação de uma ‘ciência sexual’ no Brasil (Carrara, 1996; Oliveira, 2012). Alcançar o público leigo através da leitura tornava-se estratégia fundamental para propagar a educação, sobretudo a partir da primeira década do século XX, quando se verifica grande crescimento da produção de livros sobre educação sexual voltadas a esse público (Reis & Ribeiro, 2004).
Entre os grupos que procuravam atuar como autoridade sobre o tema, os católicos se destacavam enfatizando a importância da família na formação moral dos indivíduos (Felicio, 2012)1. Procuramos neste artigo tratar da participação dos religiosos nos debates sobre a educação sexual a partir da análise das seções ‘Intercâmbio com as leitoras’, publicada no jornal Lar Católico (1912-1984) e ‘Confie-me seu problema’, da revista Família Cristã (1934-atual). Ambas as seções buscavam responder perguntas enviadas pelos leitores e, desta forma, incentivar a participação do público leitor. Além disso, apresentavam uma dinâmica interessante e particular de evangelização dos fiéis ao abordar diversos temas à luz da doutrina católica, incluindo a educação sexual. A década de 1950 corresponde ao período em que tais seções ganharam maior destaque nos impressos católicos aqui analisados2.
Se a participação dos religiosos no debate sobre a educação nacional é longa3, pode-se dizer que a década de 1950 torna-se de particular interesse por evidenciar na atuação dos religiosos as profundas tensões entre tradição e modernidade que o período abriga. Com efeito, esse momento é marcado por um intenso debate sobre a modernização dos costumes, cujas mudanças esbarravam em fronteiras morais conservadoras, criando a necessidade de enfatizar qual deveria ser o papel do homem e da mulher no casamento e, por extensão, na sociedade (Pinsky, 2014). Em outros termos, buscamos discutir a seguinte questão: num período de rápidas transformações dos costumes, como a educação sexual se apresentava no discurso religioso estabelecendo novas relações entre religião e ciência? Que estratégias foram criadas pelos católicos para fazer frente às explicações não religiosas sobre os assuntos sexuais na formação dos leigos? Este período também é atravessado por transformações importantes tanto na esfera institucional da Igreja Católica, com maior abertura do papa Pio XII às contribuições científicas ao trabalho pastoral, quanto no âmbito da modernização da produção material dos impressos, importante recurso de evangelização dos fiéis.
Durante os anos 1950, o Brasil se mantinha como um país majoritariamente católico: o país tinha 51.944.397 habitantes, dos quais 93% se declaravam ‘católicos romanos’ (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 1959). Essa expressão marcou, assim como em outros países de tradição católica como Itália, Áustria e Escócia, a importância e influência da religião no debate público sobre a educação sexual (Sauerteig & Davidson, 2009). Através da mobilização dos meios de comunicação de massa - sobretudo da imprensa - na promoção de uma educação sexual considerada adequada, os católicos desempenharam forte protagonismo no debate público sobre a temática, rejeitando medidas educativas que deslocassem da família o papel central na formação sexual de crianças, adolescentes e jovens. Embora reconhecessem a importância dos preceitos de higiene e profilaxia, compreendiam a educação sexual como parte de uma educação geral que deveria ser direcionada para a formação da castidade. Portanto, competia aos pais desempenhar o protagonismo na formação das crianças e adolescentes nos assuntos sexuais, a fim de ensiná-los a “[...] defender-se [...]”, a “[...] guardar a pureza da alma [...]” e a “[...] dominar os impulsos [...]” segundo a vontade (Negromonte, 1958, p. 31-32).
A valorização da educação sexual como um campo de atuação religiosa também está relacionada a novas orientações pastorais decorrentes de mudanças institucionais importantes no seio da Igreja Católica. O papado de Pio XII (1939-1958), nesse sentido, é fundamental para compreender esse movimento de abertura eclesiástica a questões seculares tratadas pela ciência. Compreendemos que esse movimento não foi alheio a outro fenômeno: o fortalecimento da própria ciência no cenário internacional, sobretudo no contexto pós-Segunda Guerra e a criação da Unesco. Como afirma Maio (2004, p. 147), “[...] a ciência assumiria então papel central na construção de um mundo liberal-democrático [...]”, em contraposição ao nacionalismo xenófobo que gerara o conflito. Pode-se dizer que este período foi marcado pela internacionalização da ciência como divisa do próprio desenvolvimento, em diversas esferas, e regida pelos Estados-nações. Até o final da Guerra Fria, a ciência aparece como autoridade em matéria de saberes, nela reconhecendo um magistério superior sobre o mundo sublunar (Pestre, 2015). É marcadamente nesse momento que a ciência se tornava também uma autoridade política e uma legitimidade consensuada entre as nações, que diariamente retiraria a prova de sua força através de novas capacidades técnico-científicas.
O debate sobre a educação sexual católica em interseção com a ciência aparece de modo mais explícito na imprensa. Vale ressaltar que os anos 1950, mítica e nostalgicamente denominados de ‘anos dourados’, foram marcados pelo desenvolvimento do consumo de massas de novos bens culturais, como o crescimento da produção de livros e de novas mídias que impactariam sobre os padrões de comportamento da sociedade. A americanização do estilo de vida nas cidades, as novas expressões artísticas e a crescente profissionalização e modernização técnica da imprensa integram o cenário político de maior experiência democrática após o Estado Novo varguista (Ribeiro, 2003).
Se a imprensa se tornou um recurso privilegiado de evangelização para os católicos desde as últimas décadas do século XIX, interessa-nos observar de que maneira a proposta de educação sexual católica realizada nos impressos reflete as novas orientações institucionais da igreja de meados do XX, impactando na forma de se relacionar diretamente com os fiéis. Essas mudanças aparecem nas publicações impressas Lar Católico e Família Cristã selecionadas no presente estudo, pela sua importância representativa e circulação. Através das respectivas colunas, dois intelectuais mediadores católicos - Maria Madalena Ribeiro de Oliveira e o padre Videns- se correspondiam com leitores leigos, criando assim espaços que se destacavam como importante recurso de (in)formação dos leigos nos assuntos da doutrina católica.A partir de suas seções, é possível observar como agentes católicos se valeram da mídia impressa para defender ou condenar comportamentos sexuais, controlando as leituras sobre o sexo como forma de promover a educação sexual considerada adequada aos fiéis.
A Igreja Católica na década de 1950
Apesar de o Concílio Vaticano II, convocado em 1961, ser apontado como o principal marco do diálogo da igreja com o mundo secularizado, os anos 1950 sinalizam algumas mudanças na orientação da Igreja Católica. Se o ‘lado sombrio’ do papado de Pio XII (1939-1958) foi também destacado (Costa, 2006, p.112), é possível indicar que ele constituiu um período de transição importante de uma postura da igreja até então combativa às questões seculares para um diálogo ‘extramuros’ com outros campos, dentre eles a ciência (Soffiati, 2016). Essa conduta é observada, por exemplo, na encíclica Humanis Generis (Pio XII, 1950), em que o papa esclarecia que a teologia não representava ‘empecilho ao progresso e obstáculo à ciência’, e na sua participação em diversos congressos internacionais de psicologia4.
A aproximação junto a associações profissionais católicas é considerada um marco importante da modernização da igreja por reconhecer a incorporação da ciência aos cuidados pastorais dos fiéis (Desmazières, 2011). Sem pretender adentrar em assuntos especializados, Pio XII buscava valorizar as contribuições da ciência e, ao mesmo tempo, ressaltar seus limites ao afirmar que o conhecimento médico e científico não deveria estar acima da moral, mas caminhar com ela, levando em conta os interesses da ciência, mas também os do paciente e da comunidade. Citava a psicanálise como exemplo desse diálogo, ao esclarecer que esta não era condenada pela igreja, tendo em vista que “[...] existem métodos psicanalistas que não estão contaminados com o vício do pansexualismo e que todos [...] têm em comum princípios e métodos psíquicos que não são contrários à ética natural ou à moral cristã” (Pio XII, 1952).
A Igreja Católica no Brasil acompanha esse movimento. De acordo com Scott Mainwaring (2004), a modernização se configura através da passagem da igreja da neocristandade (1916-1955), marcada por uma postura combativa e antissecular5, para uma igreja reformista (1955-1964), caracterizada por uma maior abertura junto a questões contemporâneas, em sintonia com as orientações romanas. Alguns fatores específicos do contexto político brasileiro também explicam as transformações na organização institucional católica: o crescimento do número de protestantes e espíritas, a ‘ameaça comunista’, o fortalecimento dos movimentos populares e a instabilidade das alianças políticas com os governos democráticos pós-Vargas. Tais fenômenos contribuíram para que a igreja constatasse sua dificuldade de dialogar com as massas e a necessidade de revisar suas próprias ações pastorais (Mainwaring, 2004).
Dentre os órgãos e associações católicos mobilizados com a formação dos leigos, destacava-se a Ação Católica Brasileira6, cuja ‘militância leiga’ retirava do clero a exclusividade na formação pastoral e incorporava os próprios leigos como agentes formadores na doutrina (Souza, 2006). As novas estratégias de formação dos fiéis estavam ligadas a uma ‘renovação catequética’ que passava a compreender a iniciação cristã como um processo de caráter contínuo e permanente e, portanto, não deveria se limitar à infância, mas ocorrer também durante a fase adulta. Havia ainda uma preocupação com a repercussão da educação cristã na vida cotidiana dos fiéis (Lima, 2016). É neste sentido que podemos entender que a educação sexual passou a compor a educação mais ampla dos fiéis católicos, tornando-se uma ‘disciplina necessária’ (Negromonte, 1958). O monsenhor Álvaro Negromonte foi um dos principais porta-vozes católicos desse novo modo de fazer catequese, e dedicou boa parte de sua vida à produção de manuais de catecismo para pais e professores, a exemplo de A educação sexual (cuja 1ª edição é publicada em 1939) e Noivos e esposos (1955). Tais livros buscavam oferecer ferramentas aos educadores católicos para que pudessem promover uma orientação moral de crianças e adolescentes. Enquanto Negromonte abordava o assunto em livros, outros atores se destacavam por uma evangelização mais ativa na imprensa. É o caso de Maria Madalena Ribeiro de Oliveira e do padre Videns, que assinavam seções de correspondência com os leitores nos impressos Lar Católico e Família Cristã. Como veremos adiante, ambos recomendavam os livros de Negromonte a seus consulentes.
É preciso dizer, no entanto, que a defesa de uma educação sexual e de um diálogo mais amplo com a sociedade secularizada no período não constituía consenso entre os próprios católicos. A partir da categorização proposta por Scott Mainwaring (2004) sobre os grupos católicos, podemos identificar nossos autores como modernizadores conservadores, grupo que projetava maior diálogo com as mudanças sociais através de um trabalho pastoral mais ativo. Esses católicos se diferiam tanto dos tradicionalistas, que rejeitavam totalmente a secularização, quanto dos reformistas, mais progressistas e defensores das mudanças sociais como um fim em si mesmo, aproximando-se dos grupos de esquerda do país. Como modernizadores conservadores, tanto Maria Madalena Ribeiro de Oliveira quanto o padre Videns atuaram como mediadores católicos engajados na educação sexual, ora tecendo críticas aos católicos pelo ‘excesso de pudor’ com que tratavam o sexo, ora condenando uma educação sexual exclusivamente científica e alheia aos valores morais cristãos.
O confessionário em revista: a imprensa como recurso evangelizador
A mobilização do laicato pelas associações católicas encontrava nos meios de comunicação de massa, principalmente na imprensa, um importante recurso a serviço da evangelização. É o caso de Lar Católico (1912-1986)7e Família Cristã (1934-), publicações que tinham a família como público leitor alvo e abordavam diversos assuntos para além da doutrina católica, como política, história, geografia, moda e culinária. Ambos os impressos se destacavam por manter seções assíduas de participação direta dos leitores. Em Lar Católico, havia a seção ‘Intercâmbio com as leitoras’, assinada por Maria Madalena Ribeiro de Oliveira e publicada desde 1954 no suplemento quinzenal ‘Página Feminina’, onde predominavam assuntos como namoro, casamento, família, estudos, trabalho e dicas domésticas. Já em Família Cristã, a interação com os leitores se dava em ‘Confie-me seu problema’, seção onde um padre que assinava sob o pseudônimo de Videns respondia dúvidas dos leitores sobre temas gerais da doutrina, incluindo a educação sexual.
O jornal Lar Católico era publicado semanalmente em Juiz de Fora pela Congregação do Verbo Divino, os denominados padres verbitas8, e tinha assinantes em todo o país, principalmente nos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo9. Já Família Cristã (1934-) é uma revista mensal publicada em São Paulo pela Pia Sociedade Filhas de São Paulo, as irmãs paulinas10, e até hoje se mantém como uma das principais publicações católicas do país. Circulava em 13 países (Itália, Brasil, Argentina, Estados Unidos, Japão, México, Colômbia, Ilhas Filipinas, França, Espanha, Chile, Portugal, Irlanda), sendo o Brasil o de maior tiragem - 110 mil exemplares mensais - depois da Itália, país de origem das irmãs paulinas e da revista (Panoramas..., 1957, p. 6)11.
Ambos os impressos pertenciam a congregações religiosas, o que configura certa particularidade à imprensa católica. A Congregação do Verbo Divino e a Pia Sociedade Filhas de São Paulo são ordens religiosas que têm a comunicação como missão evangelizadora e isso lhes conferiu uma atuação importante na constituição da imprensa católica no Brasil desde o século XIX12. Assim, os católicos buscavam incorporar novas estratégias à produção e circulação de impressos para combater o secularismo da ‘imprensa ímpia’ e garantir uma esfera de atuação política e social (Gonçalves, 2008). Tal como afirmado por Aline Dalmolin (2012), o propósito missionário de levar a igreja até os fiéis através dos recursos comunicativos mais modernos permitiu que as publicações mantidas por congregações alcançassem maior tempo de circulação em contraste com outros tipos de impressos católicos, como boletins informativos e diocesanos. A incorporação de novidades técnicas pelas congregações religiosas em suas publicações conferiu maior longevidade a Lar Católico e Família Cristã.
Apesar da diversificação dos meios de comunicação de massa durante os ‘anos dourados’, a imprensa se mantinha como principal suporte na produção e circulação de conhecimento devido a transformações técnicas e tecnológicas que modernizaram o jornalismo (Ribeiro, 2003). As revistas, em especial, se tornavam símbolos da ‘era do consumo’ e anunciavam as novidades do desenvolvimento econômico e do cenário político democrático da época, ao mesmo tempo em que materializavam essas mudanças em suas páginas por meio de aspectos materiais e gráficos (Corrêa, 2015).
Pela natureza informativa desses periódicos e pela segmentação que caracteriza seu público, podemos interpelar esses impressos13 como fontes privilegiadas para a análise das tensões sociais e culturais relacionadas aos papéis sexuais durante a década de 1950. Compreendidos como bens culturais específicos de mediação, voltados a um público leitor que se quer moldar e ao mesmo tempo espelhar, tais impressos permitem observar aspectos como a reafirmação das funções do homem e da mulher no casamento, da família enquanto garantia da harmonia conjugal e da ordem social. Ainda, possibilitam observar como a censura permanecia muito presente na abordagem dos assuntos sexuais. A reafirmação de padrões sexuais tradicionais era constante nas propostas de educação sexual católica, que visavam conformar a sexualidade no casamento e corrigir os desvios da função sexual reprodutiva.
Mais ainda, as seções de correspondência com os leitores atuavam como confessionários em revista na instrução sexual dos leigos, ao incentivar leitores constrangidos em procurar pessoalmente um médico ou padre para confessar suas angústias íntimas a escreverem sob a garantia do anonimato. Embora ‘Intercâmbio com as leitoras’ e ‘Confie-me seu problema’ não apresentem informações muito detalhadas sobre os autores das cartas enviadas às redações dos impressos, como nome, idade, estado civil ou localidade, tais seções nos apresentam com clareza os assuntos que mais mobilizavam os leigos na busca por aconselhamento sentimental e espiritual e os conselhos dados. A educação sexual aparece articulada a questões mais amplas relacionadas a casamento, ao namoro, à família e ao discernimento vocacional. A partir das narrativas confidenciais dos leitores, Maria Madalena e Videns aconselhavam, censuravam e apresentavam soluções possíveis aos problemas confessados por homens e mulheres em suas cartas, sempre de forma individualizada e em conformidade com a doutrina da Igreja Católica, apresentada em uma linguagem clara e objetiva.
Nesse sentido, nossos personagens são tratados aqui a partir das práticas de ‘mediação cultural’ que exercem, uma vez que atuavam como produtores e divulgadores do conhecimento sexual do ponto de vista religioso. Tal como proposto por Gomes & Hansen (2016) para a análise dos intelectuais mediadores, tais personagens ocupavam uma posição estratégica na produção e comunicação de ideias ao atuar nas fronteiras entre os processos de criação e os de recepção do conhecimento. Em sua função específica de tratar da educação sexual junto a um público não especializado, tais agentes utilizavam as seções de correspondência como um canal de comunicação direta com os leitores. ‘Intercâmbio com as leitoras’ e ‘Confie-me seu problema’ se caracterizavam como um espaço dialógico nos impressos com os leitores, demonstrando uma estratégia de aproximação com o seu público, ainda que nos informe pouco sobre a identidade real desses sujeitos. As seções também demarcam uma natureza de mediação interessante, pois ao mesmo tempo em que abrem espaço para a voz aos leitores eleitoras, tais diálogos com o público são também uma criação mediatizada, depurada, selecionada, editada ou mesmo inventada pelos editores14.
Também podemos considerar Maria Madalena e padre Videns como ocupantes de uma posição intermediária entre as elites intelectuais e as massas leitoras para quem se endereçavam, num modelo de ‘popularização’ ou divulgação que fora engendrado através da imprensa (mas também a partir de outros meios)15. As seções nos permitem analisar como os mediadores concebiam suas audiências e quais estratégias utilizavam para alcançá-las. No caso da educação sexual realizada em Lar Católico e Família Cristã, a correspondência com os leitores era o recurso utilizado para alcançar e promover a instrução sexual individual dos leigos. Ainda que os mediadores compartilhassem das mesmas estratégias na busca por legitimidade e aproximação junto aos fiéis, é possível observar uma diferença quanto à posição que ocupavam na hierarquia eclesiástica e que se refletia no tipo de relação que estabeleciam com seus consulentes. A seção assinada por Maria Madalena era publicada em um suplemento feminino e, portanto, as mulheres eram seu principal público interlocutor. A conselheira aproveitava ainda para projetar uma imagem de amiga junto a suas consulentes e, assim, estabelecer uma relação de confiança e intimidade. Além disso, Maria Madalena utilizava a seção para divulgar e vender os livros de sua autoria, como a coleção de ‘Cadernos de preparação para o casamento’, que podia ser adquirida por reembolso postal através da própria seção por 200 cruzeiros (Cr$200,00). Essa dinâmica nos permite concluir que ‘Intercâmbio com as leitoras’ atuava não só como espaço de aconselhamento, mas também de divulgação literária e expansão das atividades pastorais de Maria Madalena dedicadas à formação de homens e mulheres para o casamento.
Padre Videns, por sua vez, assumia uma postura mais tradicional de confessor e autoridade. Em suas respostas, é possível observar um aconselhamento mais rigoroso e até mesmo censor na forma como abordava as questões junto a seus consulentes. Ainda que as mulheres também constituíssem maioria entre os leitores que escreviam para ‘Confie-me seu problema’, seu público era mais diversificado que o de Maria Madalena, pois também respondia cartas enviadas por homens. As cartas respondidas por Videns tratavam de assuntos mais gerais e seus consulentes eram esclarecidos de forma mais explícita à luz da doutrina católica, com menções a documentos oficiais da igreja e versículos bíblicos.
Em diálogo com Michel Foucault, compreendemos a confissão enquanto ritual discursivo “[...] que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas a instância que requer a confissão [...]” e que, por isso, “[...] produz em quem a articula modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação” (Foucault, 2017, p. 69-70). Embora apenas um dos mediadores fosse um padre, portanto um confessor nos moldes mais tradicionais da doutrina, compreendemos que as seções de correspondência com os leitores se assemelhavam a um confessionário, uma vez que os leigos recorriam a tais interlocutores na busca de orientação, aconselhamento e redenção. A dinâmica do confessionário em revista nos lembra da importância fundamental da confissão para a vivência religiosa dos católicos enquanto um sacramento de cura, através do qual seria possível se reconciliar com Deus. Ainda que os leigos não recebessem uma penitência e a expurgação de seus pecados pelos mediadores católicos nos confessionários dos impressos, a interação realizada nas seções de correspondência permite entrever uma relação de autoridade estabelecida entre os agentes evangelizadores e os leigos, uma vez que estes últimos escreviam para as seções de correspondência por reconhecer nos conselheiros uma autoridade capaz de aconselhá-los e resolver seus problemas individuais de forma anônima, quando tinham vergonha de confessar suas intimidades e dúvidas a alguém. De todo modo, os mediadores católicos ressaltavam que sua ajuda não dispensava a procura por um confessor pessoalmente.
Mais do que acessar as possíveis apropriações dos leitores, a intenção de analisar as seções de correspondência é identificar os conselhos dados pelos mediadores e sua postura em relação aos temas que mobilizavam os leigos a escrever para as revistas. As seções nos informam o que, segundo os conselheiros e confessores, os leigos deveriam fazer de acordo com as situações narradas, com especial destaque para a leitura. O hábito de ler era considerado indispensável para ‘cultivar o espírito’ e, desta forma, fortalecer a vontade diante das imoralidades e más influências que poderiam corromper os fiéis. Assim, também é possível ter acesso aos títulos sobre educação sexual indicados aos leitores, para quais casos este tipo de literatura era recomendado e quais os critérios de avaliação e seleção dessas leituras.
A educação sexual segundo a moral católica
Para os católicos, a educação sexual tinha como principal finalidade a preparação para o casamento e a educação dos filhos, enquanto extensão da vocação matrimonial. A formação nos assuntos sexuais deveria ser uma formação moral, ou seja, “[...] de acordo com a reta razão e a vontade positiva de Deus” (Negromonte, 1954, p. 18). Segundo a doutrina católica, o ato moral é definido como a ação humana orientada pela consciência e a ênfase na dimensão moral do sexo era constantemente mobilizada por padres e leigos enquanto aspecto fundamental da educação sexual católica. A educação sexual era apresentada, portanto, como sinônimo de uma ‘educação da pureza’ capaz de ensinar os fiéis a ter domínio de si e guardar a integridade do corpo e do espírito através do controle dos instintos sexuais (Pio XII, 1953; Negromonte, 1958).
Além disso, os religiosos ressaltavam a importância de compreender a educação sexual enquanto parte de uma formação mais ampla e integrada a outros aspectos da moral católica. Os jovens deveriam ser educados “[...] para o matrimônio com a mesma seriedade com que preparamos as crianças para a Primeira Comunhão” (Oliveira, 1959, p. 9), mas esta educação sexual não poderia se limitar apenas aos conhecimentos científicos sobre o sexo. Mais do que “[...] um curso de biologia, fisiologia ou sexologia [...]”, a instrução dos fiéis católicos no assunto deveria se fundamentar na doutrina (Negromonte, 1958, p. 27-28). O ensinamento apenas do ponto de vista biológico e científico era acusado de ser um ‘culto ao erotismo’ e uma falha grave, pois ignorava a dimensão moral do sexo. Desta forma, os católicos buscavam disputar diretamente com médicos e cientistas pela autoridade na educação sexual. Freud, Havelock Ellis, Wilhelm Steckel e outros autores eram denunciados de transformar os vícios sexuais em “[...] teorias científicas [...]” e desprezar as “[...] exigências da natureza [...]”, isto é, a reprodução (Negromonte, 1958, p. 22-23).
Compete destacar que, embora tais autores fossem alvo de críticas religiosas, muitas vezes compartilhavam da moral sexual defendida pelos católicos, circunscrita apenas em relações sexuais entre homem e mulher e com fins reprodutivos. Assim como a religião, a ciência médica compreendia a reprodução como única finalidade do ato sexual e quaisquer práticas dissociadas do casamento eram classificadas como ‘vícios’ que precisavam ser corrigidos. É o exemplo da higiene, que defendia a continência sexual como profilaxia de doenças venéreas, e da psicanálise, que propunha o casamento como terapia corretiva da homossexualidade e da masturbação (Carvalho, 2019).
Desta forma, as relações entre católicos e cientistas são muito ambíguas. De um lado, os católicos acusavam a ciência de oferecer uma instrução sexual incompleta e perigosa. De outro, incorporavam certas noções científicas, sobretudo da biologia e da psicologia, para reafirmar os papéis a serem desempenhados pelo homem e pela mulher no casamento e na família a partir das diferenças sexuais. Essa ambiguidade causava dúvidas nos próprios leigos, que escreviam para os impressos católicos em busca de orientação sobre o que a doutrina tinha a dizer sobre o assunto. Nesse sentido, as seções de correspondência com os leitores assumiam papel importante na formação religiosa dos fiéis, ao esclarecer suas inquietações particulares enviadas para as revistas. Em resposta a um de seus consulentes, Videns afirmava que a igreja não condenava a instrução nos assuntos, mas uma ‘pedagogia sexual’ baseada apenas em critérios científicos. Para provar seu argumento, mencionava ainda a encíclica Divini Illius Magistri (Pio XI, 1929), sobre a educação cristã da juventude, que alertava para o fato de que muitos pecados contra os ‘bons costumes’ eram cometidos por fraqueza da vontade, e não pela ignorância no assunto. A educação sexual católica deveria ser individual, realizada por alguém preparado e em diálogo com os princípios educacionais religiosos, a fim de evitar que os jovens fossem expostos a situações de pecado (Videns, 1958b, p. 4).
A compreensão de que o acesso a informações incorretas poderia ser ainda mais perigoso ao espírito do que a ignorância era mobilizada pelos católicos para reafirmar a necessidade de falar sobre o assunto. Além disso, havia a preocupação com discursos ditos ‘perigosos’ por não abordar a dimensão moral do sexo, como a ciência. Em Noivos e esposos: problemas do matrimônio, um dos livros recomendados aos leitores de Lar Católico e Família Cristã, o padre Negromonte denunciava a ‘propaganda antimatrimonial’ presente em livros e folhetos de divulgação científica, acusada de ‘desmoralizar a fidelidade conjugal’, ‘exaltar o amor livre’, além de promover ‘culto à pornografia e a obscenidade’. Segundo o autor, a melhor maneira de combater tais discursos seria através dos mesmos recursos comunicativos, isto é, livros e revistas (Negromonte, 1955). Daí a importância da leitura como recurso educativo fundamental à formação dos fiéis nos assuntos sexuais e das revistas enquanto suporte de divulgação dos títulos avaliados como adequados.
As tensões entre catolicismo e ciência aparecem de forma ainda mais clara no que diz respeito aos critérios de seleção de leituras sobre educação sexual. Em primeiro lugar, o hábito de ler era valorizado como a principal maneira para se proteger das más influências e configurava um dos principais conselhos dados por Maria Madalena e Videns aos fiéis com quem se comunicavam em ‘Intercâmbio com as leitoras’ e ‘Confie-me seu problema’. Entre os livros indicados aos leigos nestas seções, destacava-se leituras mais amplas de teologia que poderiam orientar os fiéis, mas também livros exclusivamente dedicados à temática da educação sexual, como A educação sexual e Noivos e esposos, assinados pelo monsenhor Álvaro Negromonte; e a coleção de ‘Cadernos de preparação para o casamento’, de Maria Madalena. Livros estrangeiros também estavam na lista, a exemplo de A serviço do amor, assinado por doutor Carnot e Edith Carnot; e a coleção ‘Intimidade conjugal’, de Pierre Foyer, que também tinha edições distintas para homens e mulheres.
A defesa de que a educação sexual alinhada aos valores católicos deveria formar homens e mulheres para o casamento era acompanhada de um critério rigoroso na seleção de leituras sobre o assunto. Os livros deveriam ser específicos segundo o público-alvo: as edições femininas não podiam ser lidas por homens e vice-versa. É o exemplo de A serviço do amor, um dos livros mais recomendados por Videns e Maria Madalena a seus leitores. De autoria do médico francês doutor J. Carnot, a edição feminina também era assinada por sua filha Edith Carnot como estratégia de estabelecer maior proximidade junto às leitoras, que deveriam encontrar no livro um guia para instruí-las ‘cientificamente’ para o amor. Uma vez que a reprodução era reafirmada pelos católicos como o principal sentido do ato sexual, as mulheres eram alvo de uma atenção ainda mais especial. Em Amor e paz, Maria Madalena enfatizava que “[...] a jovem que deseja casar-se deve, antes de tudo, preparar-se para ser uma boa mãe [...] e estar bem informada, de modo que possa cuidar, com eficiência, da educação sexual de seus filhos” (Oliveira, 1959, p. 11).
A maternidade era elogiada como uma ‘necessidade fisiológica’ do corpo da mulher para a procriação e, portanto, aparecia de forma exclusiva nas edições femininas dos livros. Do mesmo modo, os autores e mediadores ressaltavam que os jovens com idade própria do casamento demandavam uma formação mais detalhada do que aqueles que não pretendiam se casar em breve, o que também sinalizava uma preocupação com a faixa etária dos leitores. Maria Madalena alertava no prefácio de seus livros que estes não deveriam cair em ‘mão imatura’, a fim de não sugestionar as leitoras.
Além de atuar na divulgação de livros, as seções de correspondência da imprensa católica também se destacam por apresentar os temas mais específicos nos quais a educação sexual era apontada como necessária. Tendo em vista que as mulheres representavam o público leitor predominante em Lar Católico e Família Cristã, não surpreende que a maioria das correspondências abordasse temas relativos ao casamento e à família, como namoro, discernimento vocacional, estudos e trabalho. A partir das perguntas enviadas, os mediadores católicos aproveitavam para aconselhar ou mesmo censurar seus consulentes. Os pecados contra a pureza eram alertados como sendo os mais ‘graves’ e, portanto, as consulentes eram aconselhadas a ter muita cautela com as situações de pecado no namoro, como o excesso de carícias, situações a sós com o namorado e inclusive o beijo. Muitas vezes, ‘dar uma pausa sentimental’ e terminar o namoro era a decisão mais prudente a ser tomada quando não era possível controlar as ‘paixões baixas’ ou quando não havia firmeza de que o namoro pudesse constituir um casamento. Era importante se preparar para a vida matrimonial, mesmo que ainda tivessem solteiras, a fim de saber escolher o pretendente adequado, cumprindo adequadamente com a vocação familiar, além de evitar a ameaça do divórcio16, considerado ‘ilícito’ em qualquer situação (Videns, 1958a).
A preparação para o casamento deveria incluir o aprendizado de ‘aptidões práticas’, como corte e costura e economia doméstica. Os estudos e o trabalho eram considerados boas distrações para o espírito, com destaque para trabalhos sociais e profissões que reforçavam a ‘vocação feminina’ para ofícios relacionados ao cuidado do outro, como a enfermagem. Ainda assim, tais atividades eram mais incentivadas às mulheres solteiras enquanto as casadas eram aconselhadas a se dedicar integralmente ao lar e à educação dos filhos (Oliveira, 1954, p. 3).
Outro aspecto das leituras que mobilizava muitos leitores que enviavam cartas às revistas católicas era sobre o que poderia ser lido. Tão importante quanto ler era saber selecionar as leituras segundo critérios morais alinhados com a doutrina católica. Embora os mediadores reforçassem a importância de ler obras assinadas por autores católicos, alguns dos livros recomendados aos leitores eram assinados por médicos e outros especialistas, e não somente por religiosos ou leigos17. Essa dinâmica sinalizava não apenas um esforço de controlar as leituras, mas também de mediação entre a ciência e os leigos. Os próprios leitores escreviam curiosos em busca de opiniões e sugestões sobre títulos específicos, a fim de saber se eram adequados ou não e quais pecados poderiam ser cometidos por leituras imorais. Em resposta a consulente Indecisa, Videns enumerava os perigos das más leituras:
a) É pecado grave ler livros e revistas imorais porque excitam fortemente o prazer sensual. Tal leitura só é lícita para fins de estudos necessários ao próprio ofício. [...]
b) Ler coisas um tanto indecentes, por si só é pecado venial. Pode tornar-se mortal se a leitura é feita por má intenção ou se por experiência tem-se a certeza de consentir na tentação.
Deve-se desaconselhar especialmente aos jovens a leitura de romances eróticos que ameaçam a moralidade cristã. Com maior razão, proíba-se a leitura de revistas obscenas e pornográficas cujo veneno ofusca o esplendor da pureza e paralisa as energias da alma (Videns, 1956, p. 4, grifo do autor).
Embora seja difícil saber se de fato os correspondentes seguiam os conselhos dados nas seções, a curiosidade era mobilizada na educação a respeito dos critérios que deveriam orientar a boa leitura, sobretudo diante da concorrência com outras publicações, num momento de expansão da leitura no país (El Far, 2006). As seções, assim, podem ser compreendidas como um recurso privilegiado de mediação cultural, tendo em vista que Maria Madalena e Videns aproveitavam da própria curiosidade dos leitores para recomendar ou censurar certos tipos de leitura18.
Há uma forma de circularidade entre os redatores-produtores dos periódicos e a fabricação de seus receptores (relação entre produção e recepção tem uma forma circular nessas seções). Muitas vezes, é difícil se apropriar da voz dos leitores por esse motivo. No entanto, até que ponto estes estão presos a esse circuito relacional? Embora seja difícil saber, podemos ao menos inferir que havia uma gama de leituras possíveis para as/os consulentes dos impressos a respeito do sexo, incluindo aquelas leituras proibidas. Ou seja, tais leituras, aconselhadas ou não, estavam entre as possibilidades acessíveis aos leitores. O que significava que elas e eles liam ou tinham conhecimento de tais livros (incluindo, portanto, o desejo e intenção de ler ou a curiosidade). A importância em enfatizar certas leituras indica justamente que havia um escrutínio necessário por parte dos conselheiros católicos diante dessas brechas abertas pelos novos padrões culturais e de comportamentos sexuais. Trata-se, portanto, de falar dos desejos e da curiosidade desses leitores e leitoras.
A lista de leituras proibidas incluía livros e revistas. As revistas populares e simbólicas dos costumes conservadores da época, como Cruzeiro, Grande Hotel, Querida e Capricho, eram classificadas como ‘sensacionalistas demais’ pela “[...] falta de pudor na exposição dos problemas sexuais” (Videns, 1955a, p. 7). Muitos livros eram avaliados como ‘desaconselháveis’ ou ‘condenáveis’ pelos mediadores católicos, a exemplo de A Religiosa, de Diderot, O mártir da Gólgota, de Henrique Perez Escrich, além de romances de Émile Zola e livros ‘esotéricos’ ou publicados por editoras protestantes.
Enquanto certas obras literárias eram condenáveis pelas imoralidades e pelo excesso de imaginação que despertavam em seus leitores, as obras de cunho científico também eram colocadas sob a mira da censura católica acusadas de abordar ‘assuntos delicados com pouco critério moral’. Dependendo do grau de instrução dos leitores, poderiam ser admitidos apenas para fins de estudo, tal como ressaltado a Indecisa e também a consulente Ana Maria, ao perguntar se podia ler Nossa vida sexual, do médico alemão Fritz Kahn19. O gosto pela leitura desta última consulente era elogiado, porém acompanhado de uma advertência: “[...] acautele-se em não ler tudo o que se lhe apresenta. Porque se os livros são bons amigos e até lenitivo às nossas dores, às vezes poderá encontrar entre eles um falso amigo, um veneno para sua alma” (Videns, 1955b, p. 14). Quanto ao livro em questão, Videns a orientava que não o lesse, pois, o livro abordava “[...] assuntos delicados com pouco critério moral [...]” e, portanto, poderia “[...] ser prejudicial em vez que útil”. Por fim, recomendava à leitora outras obras elogiadas por apresentar os mesmos assuntos com ‘dignidade’: A serviço do amor, do doutor Carnot e os livros do padre Negromonte A educação sexual e Noivos e esposos (Videns, 1955b, p. 14).
Em A serviço do amor, encontramos um bom exemplo da apropriação do discurso científico pelos católicos em seu modelo de educação sexual. Assinado por um médico, o livro esclarecia que o prazer sexual constituía uma função fisiológica ‘dada por Deus’ para garantir a transmissão da vida, tão natural quanto o prazer no comer e no beber. Logo, não haveria nada de imoral em sua essência. O autor também reforçava que o desconhecimento sobre as ‘realidades do casamento’ tornava as mulheres ‘mais expostas’ a traumas psíquicos causados pelo excesso de pudor ou pela falta de conhecimento, como a frigidez (Carnot & Carnot, 1955). Para os católicos, a ausência total de prazer era considerada uma ameaça tão grave à harmonia conjugal quanto às imoralidades que pudessem dissociar o sexo da reprodução. Embora não seja possível identificar se o autor do livro era católico ou não, importa considerar que o livro apresenta algo consensual para a medicina: o sexo normal deveria estar associado ao casamento e à reprodução. Desta forma, a ciência era mobilizada pelos católicos para reafirmar o caráter natural do prazer, apesar de esclarecer que este deveria ser o meio, e não a finalidade do ato sexual. A recomendação frequente desse livro por Maria Madalena às leitoras de Lar Católico ressalta a estratégia dos católicos de incorporar o conhecimento científico à instrução sexual dos fiéis de modo a prepará-los adequadamente para o casamento e prevenir possíveis desordens afetivas que poderiam comprometer a felicidade e a harmonia matrimonial, sobretudo em sua dimensão sexual.
Ainda assim, a recomendação de livros científicos revela alguns ruídos entre os católicos quanto aos critérios de seleção e condenação desse tipo de literatura sexual, a exemplo da divergência de opiniões em torno do livro A educação sexual e afetiva, do médico psicanalista e pedagogo francês, André Berge20. O livro versava sobre “[...] o desenvolvimento harmonioso e sadio do homem e da mulher [...]” a partir de três pilares: a pedagogia, a psicologia e a moral, e destinava-se aos casados, aos jovens em preparação para o casamento e a qualquer pessoa interessada “[...] na solução dos problemas humanos causados pelos conflitos do amor e do sexo, e dos problemas sociais gerados ou geradores dessas desordens pessoais” (Berge, 1957, orelha do livro). O prefácio, escrito pelo frei dominicano Pedro Secondi, frisava a autoridade de Berge enquanto homem de ciência católico ao mesmo tempo em que esclarecia que sua abordagem era científica: “[...] o autor é certamente cristão, mas [...] quer trazer-nos somente o resultado de seus estudos de médico e de sua experiência atenta de pai, no domínio científico e prático” (Berge, 1957, p. 10)21.
Mas o fato de ser um especialista no assunto também era considerado um critério de que A educação sexual e afetiva constituía uma leitura ‘condenada’. Esta é a postura de Videns que, na condição de padre, enfatizava que o livro não deveria ser lido justamente por abordar o tema apenas do ponto de vista científico, e não religioso. Aos leitores que escreviam para Família Cristã pedindo opinião sobre este título, dava o seguinte esclarecimento:
Apesar de André Berge ser bom escritor, psicólogo e especialista dos problemas da infância, juventude e família, este seu livro é reprovado. [...] Ao longo de toda a sua exposição, o autor teima em permanecer no campo inteiramente natural. Defende alguns princípios condenados pela Igreja. Embora escrito com nobreza, o livro prejudica a quem não tiver uma formação moral muito segura (Videns, 1959, p. 5).
Nem mesmo o fato de a obra ter sido publicada por uma editora católica, a Agir, representava uma garantia de que constituía uma boa leitura. Videns concluía sua censura afirmando que “[...] infelizmente, por falta de tempo dos responsáveis que deveriam conhecer todas as obras que distribuem, ou por outro motivo, acontece que também há livros não bons em editoras católicas”. Seu conselho, portanto, era a de que o livro não deveria “[...] entrar nos lares cristãos” (Videns, 1959, p. 5).
Considerações finais
A mediação cultural realizada na imprensa católica e a indicação de leituras através das seções de correspondência com os leitores permitem extrair algumas conclusões sobre o modelo católico de educação sexual. Em primeiro lugar, a educação sexual religiosa buscava competir com um conhecimento sexual acusado de ser ‘imoral’ e ‘pornográfico’ por não abordar o tema à luz da moral cristã. Ao mesmo tempo, pretendia preencher uma lacuna deixada pelos próprios católicos na formação dos fiéis nos assuntos sexuais. A constatação de que a religião estava perdendo espaço frente a outros discursos como o da medicina e da psicanálise mobilizou iniciativas que incorporavam a educação sexual às estratégias de evangelização e que tinham a imprensa periódica como principal instrumento de divulgação do conhecimento sexual segundo princípios católicos, a exemplo das congregações religiosas responsáveis pela publicação de Lar Católico e Família Cristã. Os impressos atuavam de forma estratégica, sobretudo nas seções de correspondência que mobilizavam a participação dos leigos ao garantir seu anonimato e oferecer conselhos e palavras amigas às angústias individuais. Ainda que não informem muito sobre o perfil do público participativo nas seções, a atuação dos conselheiros, enquanto intelectuais mediadores, se apresenta como uma dinâmica fundamental na instrução nos assuntos sexuais, uma vez que atuavam de forma individual e atenta às situações confessadas nas seções. Em especial, a leitura como instrumento de formação.
Um outro aspecto que podemos destacar é que, nos discursos desses impressos, a educação sexual tinha como finalidade preparar os fiéis para o casamento, reafirmando as funções específicas do homem e da mulher na família. O casamento e a família eram, na visão dos católicos, ameaçados por influências não religiosas e ‘modernas’ divulgadas nos meios de comunicação de massa e na literatura sexual então em voga. A ênfase nas diferenças sexuais justificava uma orientação distinta para o homem e a mulher, em reação às mudanças nos papéis sociais que se anunciavam nos anos 1950, como o trabalho feminino e os métodos contraceptivos. O funcionamento dos órgãos sexuais, a maternidade como função da ‘natureza’ feminina e as diferenças psicológicas dos comportamentos masculinos e femininos eram alguns dos aspectos científicos mobilizados pelos católicos, a fim de reafirmar as diferenças sexuais não apenas segundo a Criação divina, mas também de acordo com as especificidades da ‘natureza’ de cada sexo a partir de suas evidências científicas22.
Apesar de certa apropriação dos discursos científicos sobre a educação sexual, a posição dos católicos em relação à ciência era ambígua. De um lado, os católicos reconheciam a importância do conhecimento científico sobre o corpo e inclusive recomendavam aos leigos alguns livros escritos por médicos e especialistas. De outro, criticavam a educação sexual estritamente do ponto de vista biológico, que ignorava a dimensão moral e espiritual da união sexual. Portanto, tornava-se necessário prescrever leituras que não ameaçassem a integridade moral dos fiéis. A aceitação de alguns autores que seriam em parte ‘representantes’ da ciência pode ser vista tanto como uma adequação ao discurso científico, tendo em vista maior abertura da igreja a questões seculares, como também uma estratégia de concorrer com livros já ‘populares’ que circulavam e que os leigos poderiam ter fácil acesso nas livrarias e bancas de jornais.
Os conselhos dados aos leigos por Maria Madalena e Videns nas seções ‘Intercâmbio com as leitoras’ e ‘Confie-me seu problema’ também reforçam a importância da leitura para a educação sexual. Não apenas na divulgação de publicações consideradas alinhadas à doutrina católica, mas também no controle do que os leigos poderiam ler com restrições ou não deveriam ler em hipótese alguma. Embora houvesse um consenso de que a moral deveria ser o ponto de partida da educação sexual católica, isso não se mantinha quanto aos critérios de avaliação dos livros de educação sexual.
Nesse sentido, compreendemos os mediadores católicos que atuavam nas seções de correspondência como ‘modernizadores conservadores’ (Mainwaring, 2004), uma vez que reconheciam a importância em abordar e instruir os fiéis nos assuntos sexuais, criticando os grupos mais conservadores que ignoravam a questão, porém mantinham uma postura menos progressista no que concernia ao tema das liberdades individuais. Embora admitissem a importância do prazer sexual para a manutenção da harmonia conjugal e dos estudos para as mulheres, a educação sexual promovida pelos intelectuais mediadores católicos tinha como finalidade reafirmar os valores cristãos do casamento e da família em um contexto histórico em que outros discursos ameaçavam ocupar esse lugar de autoridade na orientação das relações íntimas entre os sexos.
Mesmo aqueles que reconheciam a importância da educação sexual segundo a doutrina oficial da igreja, como o padre Videns, tinham certas reservas com uma abordagem estritamente científica do sexo e condenavam os autores - mesmo que fossem católicos - que abordavam a questão apenas sob esse prisma. Já Maria Madalena e monsenhor Negromonte, que embora não colaborasse nos impressos era muito indicado aos leitores, ressaltavam as contribuições da ciência sob a condição de que estivesse amalgamada à religião, de modo a reafirmar o sentido moral do sexo e a autoridade eclesiástica no tratamento da questão sexual. Embora a valorização da educação sexual seja considerada uma postura moderna dos católicos por substituir o silêncio que durante muito tempo predominou sobre o tema, isso não significou o desaparecimento do conservadorismo religioso: o ato sexual continuava a ser reafirmado e valorizado por sua função reprodutiva e circunscrita no casamento enquanto suas finalidades ‘secundárias’, como o prazer, somente eram aceitas como legítimas quando não atentassem contra o fim último da Criação divina.