Introdução
A Reforma do Ensino da qual o então governador Vidal Ramos1 incumbiu o professor paulista Orestes Guimarães foi anunciada no texto da lei 846, de 1910 (Lei nº 846..., 1910). Nessa ocasião, a iniciativa foi apresentada como parte dos esforços de difusão de “[...] modernos processos pedagógicos” (Lei nº 846..., 1910, p. 1), sendo então previstas as categorias de estabelecimentos de instrução, a reorganização da Escola Normal Catarinense e a contratação de “[...] até três professores de reconhecida competência, para dirigirem os primeiros grupos escolares que forem criados e auxiliarem o Governo na referida organização” (Lei nº 846..., 1910, p. 1). Já no ano seguinte, em 8 de junho de 1911, o nome de Orestes Guimarães foi indicado para o cargo de Inspetor Geral do Ensino Público, no qual permaneceu até a extinção efetiva do cargo2, em 1919 (Lei nº 1030..., 1914, p. 45).
Esse não foi o primeiro cargo de Orestes Guimarães em terras catarinenses. O professor paulista já havia sido comissionado para a reestruturação do Colégio Municipal de Joinville, no norte do estado, entre os anos de 1907 e 1909. Todavia, foi o cargo de inspetoria que o alçou a uma posição central na hierarquia da instrução pública catarinense, colocando-o em igualdade funcional, inclusive, em relação ao Diretor do Ensino (Lei nº 1030..., 1914). A partir de então, ele ficou responsável pelas funções de fiscalização do ensino primário, sendo, para tanto, necessário coordenar um corpo de inspetores comissionados que teriam atuação ambulante nos três distritos escolares nos quais o estado foi dividido. Na esfera municipal, a sua atuação seria conjunta aos Chefes Escolares, de quem também foi incumbido da orientação e supervisão (Costa, 1911). Foi também designada como atribuição de Orestes Guimarães a indicação de materiais de uso didático adequados à instrução primária local, a qual foi feita através de publicação de parecer específico, no qual recomendou reiteradamente o uso da ‘Série de Leitura Viana’, material de uso didático já adotado nas escolas primárias paulistas (Guimarães, 1911).
O contrato celebrado entre Vidal Ramos e Orestes Guimarães posicionou o último nas mais altas esferas do gerenciamento da instrução catarinense e foi responsável pelo início da Reforma de 1911, também nomeada na historiografia como Reforma Orestes Guimarães (Teive, 2008). Esse arranjo organizacional alinhavou disputas no interior dos órgãos e institutos de gerenciamento e oferecimento do ensino catarinense (Teive, 2006), uma vez que podou o exercício do mando do então diretor do ensino, Horácio Nunes Pires. Por outro lado, essa organização hierárquica em torno da Diretoria da Instrução e da Inspetoria Geral do Ensino teve o efeito de ligar os nomes de Orestes Guimarães e Vidal José de Oliveira Ramos nos documentos que se produziram acerca da reforma do ensino que encamparam.
Esse padrão se manteve, inclusive, nos expedientes disparados para a comemoração do aniversário de 25 anos da Reforma de 1911. Na ocasião, foi lançado um número especial da Revista de Educação - Órgão do Professorado Catarinense dedicado exclusivamente à exaltação dessas iniciativas e dos sujeitos que a encabeçaram. Nela, listaram-se os feitos de Vidal Ramos e Orestes Guimarães por meio de textos, fotografias, ilustrações, hinos e organogramas organizados e escritos por diversos nomes da política e do funcionalismo público local. Ademais, tentou-se operar o recurso discursivo de ligar, em uma linha de continuidade, a reforma de 1911 e os esforços para a reestruturação do ensino estabelecidos quando da publicação da revista, em 1936.
Nesse sentido, esse artigo tematiza a publicação dessa edição comemorativa da Revista de Educação de Santa Catarina, categorizando e inquirindo seus dispositivos narrativos, políticos e de modelização das práticas docentes (Carvalho, 2018). Para tanto, usa como fonte artigos, relatórios e homenagens dispostos nas páginas da Revista e que efetivamente tematizaram o vigésimo quinto aniversário da Reforma de 1911. Interessa, pois, mapear os recursos retóricos para a afirmação das iniciativas do movimento de reestruturação do ensino, as práticas (Vidal, 2007) disparadas para a sua divulgação e as operações que as mobilizaram (Certeau, 2009, 1985).
Também por essa via torna-se viável matizar a retórica de continuidade entre a Reforma de 1935 e a Reforma Orestes Guimarães tal qual rastreada nas páginas da Revista de Educação. Apresenta-se, pois, a problematização a respeito dos usos desses dispositivos textuais como estratégias para a memorialização e para a promoção sistemática de legitimidade dessa iniciativa de reorganização do ensino no estado. Da forma como aqui se entende, a operacionalização dessa manobra teve o efeito de sublimar diferenças entre as iniciativas de remodelação do ensino e obliterar as rusgas entre os sujeitos políticos que ocuparam as esferas de gerenciamento do ensino. Para tanto, este artigo se organiza em dois tópicos: ‘a construção da narrativa’ e ‘a exaltação da atuação’. No primeiro, pretende-se destrinchar a narrativa historiográfica a respeito da Reforma de 1935 e situar a publicação como parte de suas estratégias de divulgação. Na segunda, o conteúdo da Revista de Educação é tematizado pela via dos dispositivos narrativos que encampou, sobretudo, a respeito da atuação de sujeitos específicos.
A construção da narrativa
Conforme Neide de Almeida Fiori (1975), os efeitos da parceria entre Orestes Guimarães e Vidal Ramos na reestruturação do ensino catarinense foram longevos de tal forma que deram o norte da instrução pública local até 1935, quando a Reforma Trindade endossou alterações significativas na filosofia e na política educacionais (Fiori, 1975). A esse respeito, essa mesma autora destaca que ela foi assim nomeada por dois motivos. O primeiro ficou a cargo do sobrenome de Luiz Sanches Bezerra da Trindade, então diretor do ensino e propulsor da reforma. O outro, por sua vez, era uma referência à parceria estabelecida por ele com os professores João dos Santos Areão e Elpídio Barbosa, apelidada como a “Santíssima Trindade em Educação” (Fiori, 1975, p. 149).
Essa nova reorganização do ensino no estado acarretou a reestruturação da Diretoria Geral da Instrução Pública em 1933 e a posterior organização do Departamento de Educação em 1935, agora, alçado à categoria de órgão autônomo e organizado em subdiretorias (Decreto nº 713..., 1935). Ela foi ainda entendida pela historiografia como uma forma de burocratização da instrução pública no estado (Fiori, 1975; Moreira, 1954) e como parte de um processo de aparelhamento desse Departamento, o que lhe deu uma organização complexa, objetivando a gestão do espaço escolar e o estabelecimento de domínios ramificados de gerenciamento da instrução (Schweitzer, 2008). Ademais, o Departamento de Educação tornou-se o “[...] centro de deliberações para o campo” (Bombassaro, 2009, p. 222), convertendo-se em um aparelho autônomo destinado a abarcar serviços técnicos e administrativos referentes à instrução.
Essa reorganização departamental foi apresentada nas páginas do jornal A República não somente como uma nova Reforma da Instrução, mas também como a materialização de algumas das aspirações averbadas na Conferência do Ensino Primário. Por essa mesma razão, o periódico a apresentou como parte de um processo de “[...] obediência a um plano de uniformização que se vem processando com o apoio de vários estados da federação” (1935, p. 1), estando relacionada “[...] à corrente renovadora do ensino público no Brasil, que tem como generais Anísio Teixeira e Lourenço A reforma do ensino, Filho” (A Reforma do Ensino, 1935, p. 6). Ainda nesse ano, a Reforma Trindade e a estruturação do Departamento de Educação catarinense foram propagandeadas pelo trânsito político e social de seus representantes. Foram, então, comuns e constantes as presenças de Luiz Trindade, João dos Santos Areão, Elpídio Barbosa e do inspetor escolar Antônio Lúcio em eventos em torno do interventor estadual Aristiliano Ramos (Festa de inauguração..., 1935; Cel. Aristiliano Ramos, 1935; Santa Catarina e o ensino, 1936), dividindo espaço com membros da Diretoria Central do Partido Liberal, agora, na chefia do governo do estado.
Em que pese o esmorecimento da interpelação política de Luiz Trindade após a posse de Nereu Ramos como novo interventor estadual em meados de 1935, o diretor do ensino permaneceu presença marcante em eventos pedagógicos, notadamente nas Semanas de Educação e nas Semanas Ruralistas, as quais eram fartamente noticiadas nos jornais catarinenses e na Revista de Educação local, veiculada pelo Departamento de Educação. Essa publicação, vale dizer, teve a sua publicação bimestral organizada em sete números, divididos em seis volumes publicados entre 1936 e 1937. O segundo deles, publicado entre os meses de março e abril de 1936, foi o que se ocupou das homenagens em torno do vigésimo quinto aniversário da reforma de 1911.
A esse respeito, alguns apontamentos são necessários. O primeiro indica que essa publicação se deu em um momento no qual as relações entre Luiz Trindade e Nereu Ramos, então Interventor Federal, se afrouxaram politicamente. Para isso, contribuiu a farta interpelação política do primeiro com membros do ‘Partido Republicano Catarinense’3 em ocasiões anteriores, o que o afastou do posicionamento de Nereu Ramos, membro do ‘Partido Liberal’. Ademais, Luiz Trindade foi próximo de Adolpho Konder4, ex-governador catarinense, que declarou aberto apoio a Júlio Prestes, candidato de oposição a Getúlio Vargas no pleito eleitoral de 1930, e seguiu como oposição varguista, tendo inclusive apoiado o levante Constitucionalista deflagrado em São Paulo em 1932 (Konder, 2020). Não surpreendentemente, após a consolidação de seu lugar político, Getúlio Vargas indicou novos interventores para o estado catarinense. Um deles, pois, foi Nereu Ramos, que permaneceu na Interventoria Estadual ao longo de todo o período do Estado Novo (1937-1945).
Tamanha reordenação das forças políticas nacionais e estaduais refletiria no espaço de atuação do Departamento de Educação catarinense e, por conseguinte, de seu diretor Luiz Trindade. Não por acaso, após a posse de Nereu Ramos, sucessor de Aristiliano Ramos na Interventoria Estadual, Luiz Trindade não mais participou dos eventos e sociabilidades político partidárias locais. Nesse ínterim, o local de gerenciamento até o momento ocupado pelo Departamento foi solapado pela criação, via decreto, da Superintendência Geral de Ensino5, ficando a ela subordinados todos os serviços referentes à instrução (Fiori, 1975). Para a sua chefia, nomeou-se o paulista Sebastião de Oliveira Rocha, que celebrou contrato de dois anos, incumbindo-se de superintender matérias de ensino no estado catarinense (Decreto lei nº 100, 1938).
Para além da criação da Superintendência, Nereu Ramos noticiou, no mesmo ano, a criação da pasta estadual da Inspetoria Geral de Escolas Particulares e Nacionalização do Ensino. Dentre outras tarefas, era da sua competência a realização de concurso para inspetores escolares, o zelo pela efetivação das leis de nacionalização do ensino, a fiscalização das associações escolares, a cooperação com a Superintendência, o auxílio à fiscalização federal do ensino primário e a aplicação de penalidades regulamentares a quem coubesse (Ramos, 1938). Para essa inspetoria, o interventor designou Luiz Trindade, alegando tê-lo feito “[...] pela sua capacidade de trabalho e conhecimento perfeito do meio, [sendo] garantia segura da eficiência desse novo aparelho fiscalizador do ensino e das associações de fins culturais e desportivos” (Ramos, 1938, p. 27). Por meio dessa manobra, Luiz Trindade não somente perdeu o posto de direção do órgão autônomo de gerenciamento do ensino local, como também ficou, na qualidade de inspetor, subordinado ao recém nomeado Superintendente do Ensino, Sebastião de Oliveira Rocha.
O segundo ponto que vale ser lembrado é a estreita vinculação da Revista com o Departamento para além da ligação institucional mais óbvia. Isso, porque, além de a revista ser a publicação institucional desse Departamento, os seus quadros editoriais e temas giravam em torno de suas iniciativas e ações. A esse respeito, vale destacar que todos os nomes que constaram como autores e colaboradores da edição comemorativa aqui esmiuçada tiveram, em diferentes momentos e intensidades, vínculos funcionais com a Diretoria da Instrução e o Departamento.
Por fim, tamanho esgarçamento dos laços políticos de Luiz Trindade respingou em algumas interpretações endossadas pela historiografia. Para Neide Fiori, por exemplo, a reorganização do ensino proposta por ele:
[...] não teve a organicidade, amplidão e a complexidade da reforma levada a efeito por Orestes Guimarães, [tendo sido] uma política de ensino que [...] pouco frutificou por ter sido basicamente uma superestrutura administrativa e que nada introduziu de novo aos currículos escolares (Fiori, 1975, p. 147).
Esse posicionamento coincidiu com o já avalizado por João Roberto Moreira (1954), para quem a educação catarinense conviveu com um ‘modelo paulista’ de um ‘modelo carioca’ de gestão do ensino público. Ao primeiro, referenciou a atuação de Orestes Guimarães e, ao segundo, a de Luiz Trindade. Assim sendo, o autor percebeu, em 1935, o desmonte do modelo escolar desenhado em 1911 da seguinte forma:
O planejamento e a organização que, até então, tinham se realizado sadiamente e não por ensaios e erros, isto é, não empiricamente ou por simples cópia e imitação, foi quase inteiramente transformado. [...] Do ressentimento das populações coloniais surgiu a oposição passiva ou manifesta ao governo; daí a politização da escola e do professor, num sentido negativo e regionalista, com a queda do seu valor institucional (Moreira, 1954, p. 41).
Em que pesem as elaborações de Neide de Almeida Fiori e João Roberto Moreira, a Reforma Trindade foi também objeto da historiografia catarinense pela via da formação de professores (Bombassaro, 2009, 2006) e de reverberações das iniciativas de modernização do ensino em Santa Catarina (Bombassaro & Silva, 2011), pela formação de redes de sociabilidade burocráticas em seus gabinetes de gestão (Gentil, 2014) e, por fim, pela estruturação burocrática imprimida no Departamento de Educação local (Schweitzer, 2008). Nesse sentido, a construção da narrativa a respeito dessa reestruturação do ensino oscilou de um teor fortemente crítico às iniciativas de Luiz Trindade à enumeração de suas iniciativas didáticas e pedagógicas. Contudo, é fato que Luiz Trindade preocupou-se com a divulgação de suas iniciativas pela via de publicações próprias6 e periódicas. Dentre elas, o número 2 da Revista de Educação (1936) chamou atenção pelos sujeitos que mobilizou e pela defesa reiterada das iniciativas de reforma que ali se engendraram.
A exaltação da atuação
O uso reiterado de textos associados a ilustrações e fotografias não foi exclusividade da edição comemorativa da Revista de Educação. Nessa, porém, essa associação textual e imagética veio a propósito do estabelecimento de recursos discursivos e narrativos que ligaram as ações de reforma do ensino à atuação de governantes específicos. Ademais, nesse número comemorativo, a impressão de partituras musicais, bustos de autoridades, gráficos e mapas concentrou-se mais do que em suas demais edições. A propósito disso, é válido realçar que o volume foi aberto com um retrato de Vidal Ramos - anunciado como ‘Governador do Estado em cuja gestão se processou a reforma da instrução pública’ -, seguido da imagem do ‘Professor Orestes de Oliveira Guimarães - o reorganizador da instrução pública em Santa Catarina’. Apenas depois disso os nomes de Luiz Trindade e João dos Santos Areão foram anunciados, o primeiro como ‘cooperador da reforma e atual Diretor do Departamento de Educação’ e, o segundo, como ‘cooperador da reforma e atual Inspetor Federal da Nacionalização do Ensino’.
Essa organização textual e imagética leva ao segundo ponto: a distinção entre os ‘governadores’, ‘reorganizadores’ e ‘cooperadores’, cujas funções não coincidem no tempo. Vidal Ramos não era mais governador quando da publicação do volume, ao passo que Orestes Guimarães, já falecido, tampouco era parte do projeto. Dessa forma, Trindade e Areão não responderam a eles, como a ideia de cooperação dá a entender. Assim, imagens e legendas mostram que a narrativa de Reforma evidenciada na Revista de Educação não é a de que com o Decreto nº 713 (1935) algo novo tenha surgido; mas que as decisões tomadas pelo Departamento de Educação, em 1935, seriam continuidade daquelas adotadas em 1911. A retórica, portanto, é a de que não há uma Reforma em 1935, e sim uma continuidade do esforço reformador de 1911.
Para o entendimento de como esse esforço narrativo foi engendrado, selecionaram-se os artigos, transcrições e organogramas que faziam referência direta ao aniversário da Reforma do Ensino7. Eles, por seu turno, foram interpelados a partir das categorias ‘autores e colaboradores’, ‘temáticas abordadas’ e ‘citações’. Na primeira, conglomeraram-se os nomes de Antônio Lúcio, Arlindo Chagas, João Ambrósio da Silva, Ernesto Lacombe e João dos Santos Areão. Na segunda categoria, foram listadas as seguintes temáticas: ‘reforma de 1911’; ‘instrução paulista’; ‘atuação de Orestes Guimarães’; ‘contribuidores da reforma’; ‘reforma de 1935’; e ‘instituições escolares’. Por fim, na categoria ‘citações’, listaram-se as referências aos Decretos nº 585 de 1911, 109, 110, 111, 113, 144 e 713 de 1935.
Na categoria ‘autores e colaboradores’, os nomes de Antônio Lúcio, Arlindo Chagas, João Ambrósio da Silva, Ernesto Lacombe e João dos Santos Areão aglutinaram uma série de similaridades funcionais e políticas. Dentre elas, destacam-se a inserção em cargos de gerenciamento de ensino e o trânsito por esferas políticas convergentes. Nesse sentido, vale destacar que Antônio Lúcio, João Ambrósio da Silva e João dos Santos Areão ocuparam cargos técnicos na Diretoria da Instrução8 após a sua reorganização (1933), quando da atuação de Aristiliano Ramos na Interventoria Estadual. Também eles se mantiveram nessas esferas depois da posse de seu sucessor, Nereu Ramos, tendo, inclusive, manifestado apoio a ele em diversas ocasiões (A caravana liberal no sul do estado, 1933; A propaganda liberal no sul do estado, 1933) e, no caso específico de João Ambrósio da Silva, ter conseguido uma ascensão funcional a partir de um despacho desse interventor (Resolução nº 513..., 1935).
Além disso, essas proximidades políticas se fizeram ver em suas carreiras partidárias. No caso de Antônio Lúcio, o diretor da Revista, elas culminaram em uma trajetória de participação ativa em diretórios do ‘Partido Liberal Catarinense’ (Partido Liberal Catarinense, 1931; Representações, 1931; Partido Liberal Catarinense, 1933a; Partido Liberal Catarinense, 1933b), de candidaturas a cargos do legislativo pela mesma sigla (Viajantes, 1934; As eleições de 14 de outubro e 16 de dezembro, 1935) e de participação em movimentos políticos em prol de Getúlio Vargas (Resolução nº 1.866..., 1932; Movimento de São Paulo, 1932; O sul do estado homenageia o deputado Fontoura Borges, 1933). Nesse meio confluíram ainda as relações políticas e pessoais de João Ambrósio da Silva, fazendeiro lageano casado com Helena Ramos da Silva, irmã do também político Vidal Ramos, pai de Nereu Ramos (Falecimento, 1934), e de Ernesto Lacombe, membro da Aliança Liberal9 e participante ativo de levantes em prol do movimento de 1930.
Do rol de autores e colaboradores da edição comemorativa da Revista de Educação, somente Arlindo Chagas não teve sua movimentação política e funcional noticiada nos jornais locais. Na revista, ele somente se posicionou e foi referenciado como colaborador da obra de Orestes Guimarães, não permanecendo no estado após o término de seu trabalho. Por fim, João dos Santos Areão, paulista que também fez parte desse grupo de trabalho, permaneceu em Santa Catarina e assumiu o cargo de Inspetor Escolar do Sul do Estado (1926). A partir de 1931, passou a trabalhar na Inspetoria Escolar da Capital, sendo substituído somente em 1935 pelo também inspetor e posterior colega de publicação Antônio Lúcio. Em seguida, foi designado para a recém-criada Inspetoria da Nacionalização do Ensino (Moreira, 1954), fruto de um convênio entre os governos estadual e federal10.
Com o fim de reestabelecer o foco no diretor da Revista, destaca-se que Antônio Lúcio teve seu trânsito nas diretorias de escolas e nas inspetorias de ensino catarinenses muito marcado pelos laços políticos que manteve. Quando, por exemplo, exerceu o cargo de inspetor escolar da 4ª circunscrição, com sede no município de Tubarão (Resolução nº 2.723..., 1933), fez parte ativa do diretório local do ‘Partido Liberal’. Quando da estruturação do Departamento de Educação, foi realocado na 1ª circunscrição, sediada na capital, onde passou a dirigir e escrever ativamente na Revista (Favarin, 2018). No ano seguinte ao seu fechamento e no mesmo ano de criação da Superintendência Geral do Ensino (1938), foi removido, via resolução, para a 7ª circunscrição, na vila de Concórdia (Remoções de inspetores escolares, 1938), de onde seguiu ‘atuando em prol da nacionalização do ensino’ (Nacionalização do ensino, 1938; Os inestimáveis serviços que vem prestando a instrução pública o inspetor escolar Antonio Lúcio, 1939), sempre próximo ao interventor e ao Superintendente do Ensino (Educacionistas em vista ao interventor, 1939).
É, portanto, possível perceber um distanciamento nas filiações e trânsitos políticos dos autores e colaboradores da Revista com relação ao Diretor do Departamento de Educação a quem a publicação se vinculava, Luiz Trindade. Isso, porque, ao passo que nomes como Antônio Lúcio, João Ambrósio da Silva e João dos Santos Areão se inseriram, em maior ou menor medida e de formas específicas, em um jogo de forças políticas que tendia para o ‘Partido Liberal’ local, Luiz Trindade teve o trânsito político em muito marcado pela proximidade com o ‘Partido Republicano’ e nomes como Adolpho Konder. Esse distanciamento, porém, não impediu que todos eles se inserissem nas comemorações de 25 anos da Reforma de 1911 (O 25º aniversário da Reforma do Ensino, 1936; os festejos comemorativos do 25 aniversário da Reforma da Instrução em Santa Catarina, 1936) e se articulassem em torno de uma publicação comemorativa que fez uso de recursos discursivos próprios para estabelecer linhas de continuidade entre essa e a Reforma iniciada em 1935.
Quanto às temáticas abordadas, os artigos, hinos e recursos gráficos presentes na publicação abordam a reforma de 1911, a instrução paulista, a atuação específica de Orestes Guimarães, seus contribuidores e, por fim, a reforma de 1935. Além disso, demoram-se sobre a listagem das instituições escolares inauguradas em ambas as iniciativas de reforma e sobre a organização de gráficos que mostram o crescimento do número de escolas no estado catarinense em um determinado período de tempo.
Sobre o primeiro tema - a saber, a reforma de 1911 - cabe destacar que ela foi reiteradamente anunciada mais como obra do governador Vidal José de Oliveira Ramos (Lúcio, 1936; Silva, 1936) do que como iniciativa de Orestes Guimarães. O primeiro, pois, foi apresentado como um “[...] honrado catarinense [...] dotado de elevadas virtudes cívicas, [...] um administrador público que visava [...] o bem da coletividade” (Lúcio, 1936, p. 1) e como “[...] exemplo de virtudes, personalidade inconcussa de homem público e administrador honesto” (Silva, 1936, p. 37), que chefiou uma “[...] transformação radical [na instrução, enquadrando-a] nos moldes que as necessidades sociológicas estavam a determinar” (Lúcio, 1936, p. 1). Não por acaso, a sua obra foi nomeada por Arlindo Chagas como um “[...] ressurgimento do ensino catarinense” (Chagas, 1936, p. 19) e por João Ambrósio da Silva como “[...] a porta de ouro que se abriu na legislação escolar catarinense” (Silva, 1936, p. 37). Também nesse esteio, a condição do ensino local foi anunciada, em 1936, como consequência dessa ação de reforma, já que “[...] os catarinenses [...] não se descuraram da educação de sua gente, em feliz hora remodelada pelo benemérito governo de Vidal Ramos” (Lúcio, 1936, p. 4).
Esse encadeamento argumentativo que ligou a situação da educação em Santa Catarina a uma iniciativa de 25 anos atrás e alçou-a ao lugar de marco fundador na instrução local trouxe outros desdobramentos. Foi, então, constante nos textos da publicação a apresentação da reforma de 1935 como continuidade da primeira. No que diz respeito a esse tema, as palavras do diretor da Revista, logo em seu artigo de abertura, são sintomáticas. Para ele, “[...] tão certa fora a obra encetada pelo governador Vidal Ramos, que todos os governos que se lhe sucederam seguiram as suas pegadas [...]” (Lúcio, 1936, p. 3). Como exemplo, citou a atuação do governador Nereu Ramos - o qual, “[...] apesar de ocupar a governança no Estado menos de um ano, vai seguindo a mesma trilha de seu honrado pai [...]” - e do diretor do Departamento de Educação, Luiz Trindade, “[...] um digno continuador de Orestes Guimarães, como seu colaborador desde 1912” (Lúcio, 1936, p. 4). João Ambrósio da Silva entendeu, da mesma forma, o aparelhamento escolar catarinense como “[...] perpetuação do carinho daquele que, em 1911, equilibrava com mão firme e largo tirocínio os destinos deste pedaço da Federação” (Silva, 1936, p. 37). Também para ele, as iniciativas de 1911 sobreviveram aos 25 anos seguintes e se faziam ver então, sobretudo, pela via do patriotismo, interesse e zelo demonstrados por Nereu Ramos.
Em comum, conforme a enunciação da Revista, ambas as reformas têm o engajamento de seus governadores. Esse, ainda de acordo com os artigos listados, se deu de tal forma que garantiu uma linha de continuidade entre uma e outra, a qual, por sua vez, se fez ver também pela manutenção da família Ramos nos cargos de governo, posto que Vidal e Nereu Ramos foram reiteradamente citados como organizadores da empreitada. Orestes Guimarães, por seu lado, respondeu a outros títulos. Ele foi apresentado como um representante do “[...] estado líder do país [...], capaz de refundir, ou melhor, de criar uma nova organização [...]” do ensino (Lúcio, 1936, p. 2), um “[...] bandeirante, [...] mestre excelso que, com inteligência, abnegação e civismo inigualáveis, [...] [líder] dos educadores que fizeram parte da Missão Paulista” (Chagas, 1936, p. 20). A sua atuação, pois, foi validada sobretudo pelo lugar discursivamente conferido à instrução paulista e pela reiterada abertura de Grupos Escolares em solo catarinense.
Sobre a primeira, muito se falou nas páginas da edição comemorativa da Revista de Educação. Para Arlindo Chagas, “[...] já no tempo de Anchieta e Pontes, o paulista era ousado e aventureiro” (Chagas, 1936, p. 19), o que justificaria a potência das iniciativas educacionais desse estado. Para Antônio Lúcio, ele se destacava e se distanciava dos demais estados da federação, sobretudo, graças à “[...] introdução de novos métodos e instalações pedagógicas [...]”, ganhando, portanto, “[...] destaque como o vanguardeiro que sempre foi no progresso nacional” (Lúcio, 1936, p. 1). Também de lá veio a comitiva docente chefiada por Orestes Guimarães quando recém comissionado no cargo de Inspetor Geral do Ensino, da qual faziam parte: Gabriel Ortiz; Antônio Reimão Helmaster; Henrique Gaspar Midon; Pedro Nolasco Vieira; Arlindo Chagas; João dos Santos Areão; Gustavo Assunção; e Possidônio Sales (Lúcio, 1936).
Quanto à inauguração dos Grupos Escolares em Santa Catarina, eles foram diretamente relacionados à reforma de 1911 e ao início do exercício do Inspetor Geral (Lúcio, 1936) e foram apresentados como “[...] estabelecimentos [...] instalados em edifícios próprios obedecendo a todos os preceitos pedagógicos e higiênicos, dotados de excelente material didático” (Lúcio, 1936, p. 2). No ano de 1936, somavam 49 instituições espalhadas pelo estado (Lúcio, 1936). A ele, segundo dados e gráficos dispostos nessa edição, somaram-se 39 escolas normais primárias (26 estaduais e 13 equiparadas), 4 secundárias, 6 ginásios sob fiscalização federal e subvencionados pelo tesouro estadual, o que equipa o estado com “[...] uma escola para cada 542 habitantes, ou seja, 65 crianças em idade escolar para cada uma11” (Lúcio, 1936, p. 4). Para exemplificar o progressivo movimento de abertura de unidades escolares, foram citados os decretos de número 109, 110, 111, 113 e 114, os quais criaram 30 escolas e o Grupo Escolar Henrique Lage, “[...] prova de que continuamos sempre em progresso” (Lúcio, 1936, p. 3-4).
Por fim, a atuação dos catarinenses Marinho Lobo, Selistre de Campos, Vítor Konder, Cid Campos (Lúcio, 1936), Vidal Ramos, Hercílio Luz e Felipe Schmidt (Chagas, 1936) foi também enaltecida ao longo da publicação por sua “[...] clarividência e patriotismo” (Chagas, 1936, p. 18). A respeito de Vidal Ramos, especificamente, referenciou-se a sua “[...] firme resolução de solucionar [o problema da instrução] [...] dotando o Estado de um serviço educacional capaz de satisfazer o povo” (Lúcio, 1936, p. 1), por meio da promulgação do Decreto nº 585 (1911), que foi responsável pelo início da Reforma comemorada nessa edição da Revista.
No que se refere à reforma estabelecida a partir de 1935, exaltou-se a ação de Aristiliano Ramos,
[...] que criou o Decreto n. 713, de 5 de janeiro de 1935, dando assim uma nova e utilíssima organização no que diz respeito ao ensino primário e secundário, que reclamava, dado o desenvolvimento sempre crescente, uma providência reta e equilibrada, qual a de aperfeiçoar o ensino sob o ponto de vista técnico e pedagógico (Silva, 1936, p. 37-38).
Ambos os decretos organizadores dos dois movimentos de reforma ganharam transcrição integral no corpo da Revista, tendo o segundo recebido até mesmo um organograma explanando-o. Deu-se, dessa forma, a ancoragem informativa aos artigos por meio da listagem do aparato legal que deu respaldo às iniciativas de reforma. A eles, somaram-se gráficos, tabelas e organogramas que esmiuçaram a organização departamental e a expansão do ensino no estado de modo a compor a narrativa de exaltação da reforma comemorada e da atuação dos seus propositores e colaboradores.
Considerações finais
Em que pese a reiterada centralidade da Reforma de 1911 e a importância das comemorações do seu aniversário ao longo dessa edição da Revista de Educação (1936), seus dispositivos textuais e imagéticos atuaram ainda na elaboração narrativa sobre os ocupantes do executivo estadual e da reforma de ensino iniciada em 1935. Nesse sentido, nela lançaram-se textos, números e gravuras, os quais, ali ordenados, propagandearam os esforços de reestruturação do Departamento de Educação Catarinense e a movimentação política encampada pela família Ramos. Deu-se, portanto, a exaltação insistente da atuação não somente daqueles que encabeçaram a iniciativa de 1911, como também daqueles sujeitos ativos política e socialmente na época da publicação.
A esse respeito, cabem duas colocações sintéticas a título de breves considerações finais. A primeira é que esse número da Revista do Departamento de Educação local organizou-se textual e imageticamente como forma de veiculação e de difusão das estratégias de reforma alavancadas após 1935. Não por acaso, a organização departamental foi esmiuçada pela via da transcrição integral do decreto que a ordenou e por um organograma que ocupou uma página inteira. Para tanto, a estratégia de elaboração discursiva lançada dependeu da defesa de uma linha de continuidade entre as reformas de 1911 e 1935, ainda que os seus organizadores e colaboradores não necessariamente coincidissem no tempo.
A segunda colocação vem a propósito de destacar que a publicação, da forma como foi organizada, sublimou diferenças importantes entre tais iniciativas e algumas rusgas persistentes entre os sujeitos que disputavam o gerenciamento da instrução catarinense. O caso mais diretamente ligado à publicação foi o de Luiz Trindade, cuja curta permanência na chefia do Departamento de Educação permite perceber os efeitos das incongruências políticas entre ele e os ocupantes do executivo estadual.
Por fim, vale lembrar que, entre os autores que escreveram artigos na edição aqui esmiuçada, todos demonstraram aproximações políticas ou pessoais com a família Ramos em alguma altura da vida. Isso não necessariamente pôde ser percebido na trajetória de Luiz Trindade. Cabe, dessa forma, pensar a dinâmica comemorativa discursivamente engendrada nessa revista como parte de um verniz de continuidade que, de alguma forma, importou para a divulgação e a manutenção das estratégias alçadas na Reforma de 1935.