Introdução
O recolhimento foi o modelo de instituição educativa feminina em formato de reclusão mais comum na América Portuguesa1. Para além dos recolhimentos existentes não só na América, mas em todo o Império português, é necessário atentar que em outros espaços também existiram instituições que poderiam se aproximar desse modelo (Lopes, 2012). Tais instituições apareceram no início do período moderno com uma dupla intencionalidade: proporcionar segurança para mulheres pobres e desamparadas (como viúvas, idosas e órfãs) e a correção daquelas consideradas como ‘desviantes’ das normas sociais vigentes, especialmente aquelas denominadas prostitutas. É necessário salientar que todas devem ser consideradas instituições educativas, uma vez que inculcam valores e moldam as mulheres de acordo com o interesse das sociedades locais.
As instituições do tipo recolhimento surgiram logo após o Concílio de Trento (1546-1563) como uma alternativa que complementava as orientações conciliares que instituíram a clausura perpétua para mosteiros e conventos femininos, que, entretanto, não indicaram o que fazer com as demais mulheres, que, para além das enclausuradas e das casadas, aos olhos da Igreja Católica, também deveriam ser controladas (Lopes, 2012). A alternativa seria um controle que não passava diretamente pela Santa Sé e pelas ordens religiosas, mas que surgia a partir da implementação de instituições leigas e que teriam vínculos diretos com os bispados e arcebispados locais (Zarri, 2011).
Constituíram um dos mecanismos de controlo dos destinos femininos utilizados pelas autoridades eclesiásticas, civis e familiares, no intuito de combater aquilo que consideravam marginalização social feminina, sinónimo de degradação moral, isto é, liberdade sexual. Foi uma das estratégias de normalização, impedindo o desvio social com o internamento das crianças e mulheres jovens, ou castigando-o com o recolhimento das que optavam ou involuntariamente caíam em situações socialmente reprováveis (Lopes, 2012, p. 2-3).
Foi a partir dessa estratégia de normalização para impedir o desvio social das mulheres, ou para guardá-las, que essas instituições ganharam força não só na Europa, como também no território americano recém-conquistado pelos portugueses, com suas devidas adaptações contextuais. Segundo Leila Algranti (1999, p. 45), o enclausuramento de mulheres leigas foi “[...] sempre praticado em nome dos princípios morais”. A novidade do período moderno foi o aparecimento de “[...] instituições leigas de reclusão destinadas às mulheres, quer fossem pobres ou ricas, visando a preservar a honra e controlar a sexualidade”.
Na França, existiu o modelo denominado refuge, que recebia tanto prostitutas, esposas adúlteras, amantes, ladras e todos os tipos de mulheres indesejadas, como também aquelas que buscavam a proteção e a guarda em uma instituição de reclusão. Algumas eram obrigadas a adentrar nesses espaços, porém outras ingressavam por vontade própria. Cristophe Regina (2007) indica que também a indigência feminina se constituía como um dos principais motivos para os anseios de ingresso e, mesmo que esse não fosse gratuito, a internação apresentava algumas vantagens, uma vez que o preço da pensão não era excessivo em comparação com os dotes necessários para os matrimônios. Além disso, a entrada preservava a mulher de possíveis vícios e a reputação da família era preservada.
Ao analisar a Casa de Recogida, ou o Recogimiento de mulheres na Espanha e seus domínios, María Dolores Pérez Baltasar aponta que essas instituições surgiram com a finalidade de corrigir ou reformar mulheres que tiveram poucas oportunidades em suas vidas, quer seja por meio da prostituição ou pela mendicidade. “Nestes centros se pretendia regenerar e recuperar estas mulheres para a sociedade por meio do trabalho e da oração, com uma severa disciplina” (Baltasar, 1985, p. 14, tradução nossa)2. Nas instituições espanholas não existia muita regularidade quanto ao tipo de mulher que adentrava nos recogimientos, uma vez que esses tinham uma função genérica, pois amparavam mulheres com múltiplas necessidades.
Com relação às especificidades dos recolhimentos da América Portuguesa, Riolando Azzi e Maria Valéria Rezende (1983, p. 30-31) indicam que eles poderiam ser subdivididos em quatro tipos de instituições: “[...] para meninas [...]”, que poderiam receber indígenas, órfãs, ou aquelas separadas da família por algum motivo, até a idade do casamento3; “[...] para moças ou mulheres decaídas [...]”, também chamadas de “[...] madalenas [...]”, que poderiam ser prostitutas, adúlteras, amantes, etc.4; “[...] para mulheres desejosas de uma vida na oração e na penitência [...]”, grupo constituído por viúvas ou mulheres abandonadas pelos maridos que não portavam hábito religioso, nem seguiam regra ou clausura, mas que necessitavam desses espaços para sobreviver5; finalmente, para “[...] mulheres destinadas à vida monástica [...]”, que se organizavam nos moldes conventuais, habitando espaços fechados como as clausuras, portavam hábito religioso e seguiam uma determinada regra, porém sem votos6.
Embora inicialmente tais instituições abrigassem um tipo específico de recolhida, é possível observar que a maioria dos Recolhimentos que existiram na América Portuguesa, com o tempo e o desenvolvimento de suas atividades, passou a receber uma diversidade de recolhidas (Algranti, 1999). Ao analisar as especificidades desses recolhimentos, percebe-se que ocorreu uma transformação na funcionalidade dessas instituições, uma vez que, inicialmente, diversas casas se aproximaram mais do formato conventual por conta da escassez de Conventos no território. Todavia, especialmente a partir da segunda metade do século XVIII, para além da ampliação do número de instituições existentes e ainda com uma intenção de assumir um maior controle do universo feminino por meio da guarda ou da correção, começam a aparecer alguns educandários que funcionaram como escolas anexas e, assim, algumas instituições passam a formar suas educandas para a vida secular, ou seja, não religiosa.
É necessário analisar dois movimentos de implementação dos educandários femininos no século XVIII: um primeiro momento, a partir das instituições vinculadas às diretrizes das ursulinas, congregação criada na Itália no século XVI e que tinha como princípio a escolarização feminina7; e, um segundo momento, que parte do anseio de formar as mulheres para a vida secular a partir da circulação das ideias iluministas.
Esse segundo grupo era composto por alguns recolhimentos que foram reformulados, ou que surgiram nas últimas décadas do século XVIII, os quais receberam Estatutos específicos para direcionar suas respectivas práticas educativas. Até esse momento, foi possível levantar três instituições que receberam esses Estatutos: os Recolhimentos de Nossa Senhora da Conceição, em Olinda; o de Nossa Senhora da Glória, no Recife; e o de Nossa Senhora dos Humildes de Santo Amaro da Purificação, na Bahia8.
Neste trabalho, pretende-se investigar os Estatutos do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória (Azeredo Coutinho, 1798). Essa instituição, tanto foi utilizado pelo Recolhimento da Conceição, quanto serviu de diretriz para a elaboração dos Estatutos do Recolhimento de Nossa Senhora dos Humildes.
Espaços de correção, abrigo e educação: os recolhimentos femininos da América Portuguesa
Muitas das instituições consideradas como recolhimentos iniciaram suas atividades informalmente e demoraram anos para conseguir uma aprovação régia. A resistência da Coroa portuguesa estava diretamente ligada à questão do povoamento do território. Segundo Leila Algranti (1999), a história da fundação das instituições femininas (conventos ou recolhimentos) na colônia é permeada por resistências dos colonos à política metropolitana de incentivo ao casamento para povoar e moralizar o território, especialmente nos casos de mulheres brancas e livres. Alguns documentos9 apontam para a necessidade de direcionar a população para o casamento e o povoamento do território, o que tornava o incentivo ou a proibição da abertura dos conventos e recolhimentos assuntos centrais das preocupações demográficas portuguesas.10
Também proibiram o envio de mulheres para Portugal, especialmente daquelas que tinham a intenção de enclausuramento, por meio de um Alvará de 1732, documento responsável por embargar a saída de mulheres da colônia e, consequentemente, a entrada em Portugal11. Tal impedimento gerou tensões, conflitos e lutas das elites coloniais locais para a implantação de novos espaços, uma vez que não poderiam mais encaminhar mulheres para a Metrópole. As lutas travadas pelos colonos para a abertura de conventos ou de recolhimentos passavam por duas questões: os desejos familiares de ter suas filhas nesses espaços; e o anseio de destinar dotes menores para elas, uma vez que poderia ficar mais em conta o envio das filhas para essas instituições do que dotá-las para o matrimônio.
Por exemplo: em requerimento de 1740, Alexandre Gomes de Sousa, morador da Capitania de Minas Gerais, informa que é casado e possui cinco filhos e oito filhas e que pretende encaminhar seis dessas para conventos do Reino e dar destinação de casadas apenas para duas, pois, segundo ele, não haveria recursos para todos os dotes (Arquivo Histórico Ultramarino, 1740).
Mesmo após o Alvará de 1732, percebe-se um número elevado de solicitações de envio de mulheres para instituições portuguesas, sobretudo, porque o valor para o ingresso era menos elevado em relação à colônia provavelmente pelo grande número de instituições existentes naquele local e o pequeno número na América Portuguesa. Assim, Anna Perpétua da Fonseca requeria ao rei português:
Diz D. Anna Perpetua da Fonseca moradora no Arraial do Tijuco comarca do Serro do Frio, que por falecimento de sua mãe D. Catharina Perpetua da Fonseca, ficou a suplicante no estado de donzela em que se acha sem os bens necessários para sustentar-se com a decência com que foi criada, e sem parentes que lhe fação respeito, para poder conservar-se com honra no estado da América, pelo que tem tomado a resolução de se recolher a um convento ou por freira, ou por Recolhida, mas pelo excesso dos dotes que costumam dar-se no dito estado, e do mais que é necessário para a entrada e subsistência da vida nos conventos do mesmo estado, não tem a suplicante o que lhe baste para se recolher a um convento dele, razão porque pretende transportar-se para Portugal aonde com menos despesa se pode recolher a um convento, e aonde tem parentes, que por caridade a poderão recorrer com alguma cousa quando lhe não baste os que tem para o dito efeito (Arquivo Histórico Ultramarino, 1769).
O caso acima apresenta o discurso de uma mulher sobre sua necessidade de guarda de acordo com os recursos que possuía. As tensões pela abertura de conventos e recolhimentos na América Portuguesa podem ser vistas nas diversas solicitações de abertura desse tipo de instituição, especialmente após o Alvará de 1732.
Até 1730, havia apenas uma instituição do tipo conventual e seis do tipo recolhimento; porém, a partir desse momento e até 1816, foram fundados outros cinco conventos e dezessete recolhimentos, o que comprova que a Coroa Portuguesa teve que, por muitas vezes, ceder aos anseios da sociedade com relação à fundação de instituições que abrigassem mulheres na América Portuguesa.
Essa superioridade do número de recolhimentos deveu-se à facilidade de alcançar apenas uma licença episcopal para iniciar o seu funcionamento. Em algumas situações, ocorreu a fundação de uma casa anterior à própria autorização, como foram os casos dos recolhimentos da Capitania de Minas Gerais12. Por outro lado, os conventos precisavam tanto de uma licença papal, quanto da mercê real para o seu funcionamento. Essa diferença também tem como pano de fundo o desejo da Coroa Portuguesa de ter mais mulheres disponíveis para o matrimônio e, consequentemente, para o povoamento do território. O enclausuramento conventual ia na contramão das intenções do poder português, mas os recolhimentos atendiam aos anseios de preparação das mulheres para a vida secular, bem como eram a solução dos problemas de guarda e correção ansiados pela sociedade luso-americana.
Por volta de 1806, o Sr. Bernardo Antônio do Amaral, juntamente com seu sogro, Francisco Lopes Rodrigues, moradores do Rio de Janeiro, solicitaram a transferência para o Recolhimento de Macaúbas, em Minas Gerais, de sua respectivamente esposa e filha, D. Fortunata Maria da Conceição, que passou por dois recolhimentos distintos. Os autores alegam ser necessário encaminhá-la para um lugar mais distante para retirá-la da comunicação com o mundo:
[...] nem a vigilância de ambos e nem o temor das penas inerentes às pérfidas esposas; foram bastante para conter a suplicada nos limites da honestidade e da honra; ela voltou a face a todos estes deveres, traiu a fé conjugal, prostituindo-se com pessoas inferiores ao suplicante, tentando assassiná-lo para com riqueza gozar dos seus libidinosos vícios: aterrado o suplicante dos efeitos da perfídia da suplicada, meditando na punição do crime, que devia vindicar, mas convencido da compaixão da fragilidade da suplicada, virou do meio termo de a fazer recolher ao Recolhimento de Itaipu por unânime consentimento da mesma suplicada e do aflito Pai, onde ela fosse chorar os horrores [...].
Tem sido inúteis todos os meios de que o suplicante se tem servido para afastar sua mulher da prostituição a mais escandalosa a que se tem entregado, pois que nem o exemplo e conselho de seu Pai, e do suplicante a têm podido conter, nem a reclusão em 2 diferentes recolhimentos a tem obstado na progressão da sua libidinosa conduta, fugindo do primeiro, iludindo a vigilância das Religiosas do segundo.
Pede que por Aviso seja a suplicada recolhida perpetuamente no Recolhimento da Macaúbas da Capitania de Minas Gerais, por ser o mais retirado da comunicação com o mundo (Arquivo Histórico Ultramarino, ca.1806).
Aos anseios para a guarda e o controle das mulheres, somam-se os discursos sobre a necessidade de escolarizá-las e moldá-las para a vida secular. Ao analisar os recolhimentos da América Portuguesa, é perceptível que, cada vez mais, principalmente ao longo do século XVIII, essas instituições tomaram para si um caráter mais educativo e de preparação das mulheres para o século, influenciados pelas ideias iluministas que circulavam na colônia.
Em Portugal, António Ribeiro Sanches (2003) defendia a necessidade de inserir as mulheres em colégios ou recolhimentos para introduzir a boa educação de meninas fidalgas, futuras mães e primeiras educadoras dos homens. É nessa perspectiva de preparação das mulheres para a vida secular, enquanto boas mães e esposas, inseridas e formadoras de famílias consideradas como civilizadas, concatenadas com as ideias iluministas portuguesas, que foram influenciadas diretamente a fundação ou a reformulação dos recolhimentos na América Portuguesa.
No foco dos iluministas sobre a escolarização feminina estava o seu futuro papel social. As suas capacidades eram reconhecidas e compreendiam que essas se tornavam necessárias ao progresso da sociedade, especialmente enquanto esposas e educadoras de seus filhos. “A educação das mulheres era defendida na medida em que ela se devia tornar mais culta para ser mais útil à família, nomeadamente enquanto educadora, dando bons ensinamentos e exemplos. O mesmo se aplicava para a sua função de esposa” (Araújo, 2003, p. 682).
As instituições deveriam, portanto, se voltar para a formação de mulheres que possuíam dotes para os matrimônios e que pertenciam às elites locais. Mesmo que alguns recolhimentos tivessem em sua fundação um caráter de cuidado de meninas pobres, desvalidas, órfãs, ou mulheres prostitutas, viúvas e rejeitadas por seus maridos, é possível verificar as transformações institucionais, sejam relacionadas ao tipo de recolhidas recebidas ou aos seus anseios para passarem à condição de conventos. Essas transformações estiveram presentes ao longo da história do Recolhimento Nossa Senhora da Glória no Recife, fundado em 1758.
Segundo Suely Creusa de Almeida (2003, p. 231), a fundação inicial ocorreu no Recolhimento do Paraíso, situado em uma região de mata próxima de Recife, onde um grupo vivia em comunidade e funcionava como um beatário, modelo típico dos sertões e que apresentava mulheres que viviam de esmolas e “[...] possuíam um gênero de vida mais rigorosa que o dos conventos, vivendo numa muito grande pobreza, utilizando a penitência de uma forma cada vez mais rigorosa. É inclusive provável que a vocação para a religião fosse, entre elas, muito mais rigorosa”. Em 1758, as recolhidas foram expulsas das terras que habitavam e acabaram por se instalar na região da Boa Vista, no Recife, quando então mudaram o nome da instituição.
A Regente responsável pela mudança foi Ana Maria de Jesus, a qual iniciou um verdadeiro périplo para transformar o recolhimento em um Convento Carmelita. Em um requerimento feito à rainha D. Maria I, datado de 1778, a referida Regente informa que já fora, por duas vezes e no espaço de dois anos, até Lisboa, com o intuito de solicitar que o Recolhimento fosse transformado em Convento (Arquivo Histórico Ultramarino, 1778). Ademais, informa que já havia peregrinado pelos sertões pernambucanos em busca de apoio à sua iniciativa. Junto ao requerimento, aparecem outros documentos com alguns depoimentos de membros da Câmara local em favor da conversão da instituição. Porém, ao final, há um parecer sem assinatura, o qual demonstra uma visão contrária sobre o pedido da Regente e apresenta os motivos para não permitir que o recolhimento seja adaptado para convento13:
Os inconvenientes de se permitirem mosteiros nas Colônias são tantos, quantas são as utilidades de haver nelas Recolhimentos, e Seminários onde se recolham, criem e ensinem as Filhas das Casas principais, as dos homens ricos, e ainda as de gente ordinária.
Desde o Descobrimento da América até hoje que Portugal com irreparável perda se está despovoando a si próprio, para povoar os Domínios do Brasil, e até agora, não tem conseguido mais que o ter se habitado uma pequena e insignificante parte do mesmo Brasil.
Pernambuco tem terras extensíssimas, e admiráveis, cortadas de Rios Navegáveis e capazes de toda a sorte de produções, mas desertas e incultas, por não ter gente que as povoe, e sendo esta a mais sensível falta que geralmente se experimenta, por quase todos os Domínios Americanos, não parece que o remédio de tão grande mal seja, o de se estabelecerem mosteiros nas Capitanias daquele vasto e despovoado Continente.
A Regente do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória, sito em Pernambuco, fará muito maior serviço a Deus, Sua Majestade, e aos habitantes daquela Capitania se em lugar do Mosteiro em que quer converter o Recolhimento de que é Regente, ‘procurar quem lhes faça uns bons Estatutos para o mesmo Recolhimento, nos quais se estabeleça o método de criar, educar e ensinar as Recolhidas e levando-as desde a infância na pureza dos costumes, e procurando boas Mestras que as ensinem ao trabalho da costura, de fazer rendas, bordados e outras ocupações semelhantes’ [...].
O meio único de as desterrar, não é o do estabelecimento de mosteiros, onde as mulheres se enterram em vida, mas é o de ‘Recolhimentos, e Seminários donde possam sair para o Estado de casadas, e introduzir nas suas famílias, como é natural que introduzam os mesmos costumes e educação com que se criarão’ (Arquivo Histórico Ultramarino 1778, grifo nosso).
A questão da utilização da mulher para o povoamento da América Portuguesa por meio do casamento reaparece nesse discurso, como já aparecia no Alvará de 1732, quando essas foram proibidas de entrar no Reino, particularmente com o intuito de buscar uma vida regular. Por outro lado, o controle do número de conventos e dos lugares destinados às religiosas era necessário para que não houvesse muitas mulheres enclausuradas na colônia. Contudo, o autor anônimo faz uma defesa clara dos recolhimentos, uma vez que esses poderiam ser transformados em espaços educativos femininos para a vida secular, com uma educação específica para formá-las como mães e esposas adequadas e como responsáveis pelo povoamento do território.
Suely Creusa de Almeida (2003, p. 26) aponta que o recolhimento seria uma “[...] instituição que procura solucionar problemas apresentados pelos novos tempos”. Nesse sentido é que eles passam de espaços de correção e guarda de mulheres para espaços que aliavam a educação à religiosidade feminina, como preparação para um futuro secular, diferentemente dos conventos, os quais preparavam as mulheres mais para a vida do claustro, as quais eram consideradas como enterradas em vida.
O que vislumbramos na complexa história dos recolhimentos é o seu papel como uma instituição diferenciada, constituindo uma realidade totalmente diversa da do convento, muito embora apresente semelhança. [...] O convento como instituição tinha, como objetivo principal, o desenvolvimento de uma vida de fé, contemplação do divino, dedicação mística a Cristo, enfim um afastar-se do mundo numa situação para vocacionados, como advogava o Concílio de Trento. Já o recolhimento apresenta-se como uma instituição para a educação, com o objetivo de fazer a inserção da mulher no século e não afastá-la. Foi uma casa de preparo e passagem para uma nova condição, a de educadora dos novos tempos (Almeida, 2003, p. 21).
No movimento de reformulação da funcionalidade dos Recolhimentos é que a instituição aqui analisada passa para uma segunda fase, capitaneada pelos irmãos e padres Manuel e Francisco Gondim, ricos herdeiros de fazendas de gado do sertão e que se responsabilizaram pela instituição desde a sua transferência para o Recife. Inicialmente, estabeleceram que as recolhidas não mais poderiam circular pela cidade, uma vez que teriam recursos doados e que deveriam viver como enclausuradas. Eles foram responsáveis, tanto pela manutenção econômica da instituição, quanto por deixar todos os seus bens em testamento para o Recolhimento.
O padre Manuel Gondim, Deão da Sé de Olinda, encaminhou em 1782 a solicitação de autorização do Recolhimento Nossa Senhora da Glória e um manuscrito com os estatutos para o funcionamento da Casa. Ele não se preocupava em transformar a instituição em um convento, mas pretendia resguardar a sua funcionalidade enquanto recolhimento. Segundo Suely Creusa de Almeida (2003), possivelmente, esses estatutos serviram de base para o documento que será analisado em seguida.
Os Estatutos do Recolhimento Nossa Senhora da Glória de 1798
Após as mortes dos irmãos Gondim, coube ao bispo de Pernambuco, Dom Azeredo Coutinho, garantir a destinação da herança para o Recolhimento junto à Coroa portuguesa14. Ele conseguiu um parecer favorável à solicitação; entretanto, a Coroa impôs a “[...] necessidade de a casa de clausura se apresentar como um espaço de educação, e não um espaço contemplativo” (Guapindaia, 2013, p. 78). É nesse movimento de destinação dos recursos e da pressão da Coroa portuguesa que é possível analisar a transformação da instituição. Além disso, indica-se a influência da formação ilustrada do bispo de Pernambuco em Coimbra para analisar a formulação dos Estatutos propostos por ele.
Os Estatutos do Recolhimento de N. Senhora da Gloria do lugar da Boa-Vista de Pernambuco foram publicados em 1798, na Tipografia da Academia Real das Ciências de Lisboa, e ordenados por D. Azeredo Coutinho. Cabe ainda salientar que a fonte que será aqui analisada foi produzida por uma autoridade eclesiástica distante da realidade do recolhimento e, possivelmente, a publicação dos Estatutos aconteceu antes da chegada de Azeredo Coutinho a Pernambuco no final do ano de 1798. Por outro lado, é necessário salientar que era um documento produzido por um homem para normatizar um microcosmo feminino.
Ao analisar os Estatutos de 1748 do Recolhimento de Macaúbas em Minas Gerais, Leila Algranti (2000) informa que esse tipo de documento se aproxima dos modelos das Constituições propostas para as Ordens Religiosas, porém de forma mais resumida. Ao investigar a obra proposta para o funcionamento do Recolhimento Nossa Senhora da Glória por D. Azeredo Coutinho, pode-se detectar que ela também se aproxima, na primeira parte, das diversas Constituições que normatizavam as vidas conventuais. O distanciamento estaria na segunda parte, destinada às educandas. O Estatuto proposto por Azeredo Coutinho possui 120 páginas e divide-se em duas seções:
Na primeira parte daremos regras propriamente para o governo das doze Recolhidas da Instituição, as quais deverão servir como Mães, Mestras, e Diretoras das Educandas, que se houverem de instruir, e educar no dito Recolhimento. [...] Em a segunda parte daremos regras propriamente para a educação e a instrução das mesmas educandas (Azeredo Coutinho, 1798, p. 4).
A primeira parte aproxima-se dos modelos das Constituições propostas para as instituições conventuais, em especial, quando apresenta a hierarquização e a subdivisão das tarefas exercidas pelas recolhidas. É importante salientar que a função das recolhidas se destina ao governo de uma casa na qual devem agir como mães e mestras das educandas. A partir do cruzamento de dados, foi possível estabelecer a Tabela 1 na página seguinte:
Cargo | Função |
---|---|
Superiora ou Regente | Responsável pela direção da casa, licenças para entradas no Recolhimento, controle do Arquivo. Todas as suas decisões eram fiscalizadas pelo Ordinário, responsável por elegê-la. As decisões sobre as educandas eram dialogadas com a diretora e mestra delas. |
Diretora e mestra das educandas | Responsável por criar as educandas como filhas, bem como pela instrução e norma dos costumes. |
Vigária do Coro | Ajudante da Regente que dirigia as obrigações do Coro e do Culto Divino. Determina o conteúdo e a pessoa encarregada da leitura nos momentos de refeição. |
Mestra de Primeiras Letras | Responsável por ensinar as educandas a ler, escrever e contar. |
Mestra de coser e bordar | Responsável por ensinar às educandas desenho, bordado, canto e instrumentos musicais. |
Procuradora | Responsável por controlar as receitas e despesas da casa. Responsável pela provisão da casa (alimento e vestuário). Controle de todos os móveis da casa. Uma vez por mês teria as contas fiscalizadas pela Regente. |
Sacristã | Responsável por controlar todos os objetos e vestimentas do interior da igreja, sacristia e capela que existia no interior da casa. Responsável pelo provimento da cera, vinho e hóstias e por abrir a igreja do Recolhimento sempre às sete horas da manhã. |
Porteira | Responsável pela recepção no locutório e controle das pessoas e cartas na porta do Recolhimento. |
Rodeira | Apoio à porteira, realizando o contato com o interior da casa e responsável pela limpeza do locutório. |
Enfermeira | Responsável pelo cuidado das doentes. |
Dispenseira | Responsável pela dispensa e cozinha. |
Refeitoreira | Ajudante da dispenseira, responsável pela limpeza de mesas e objetos do refeitório, além de acender os candeeiros dos dormitórios à noite. |
Fonte: Azeredo Coutinho (1798).
A partir da implementação dos Estatutos, o Recolhimento da Glória passaria a funcionar com doze mulheres recolhidas, cada uma com uma função específica e hierarquizada a partir daquela exercida pela Regente. O que diferencia o referido Estatuto daquelas Constituições presentes nos conventos são os cargos referentes às mestras, posto que o documento aqui analisado indica três mulheres encarregadas para o ensino das educandas (Diretora; Primeiras Letras; e Coser e Bordar) e, geralmente, havia apenas uma Mestra de Noviça nos Conventos regidos pelas Constituições.
Ao analisar a hierarquia entre as mulheres recolhidas, é possível detectar que as seis primeiras exerciam cargos que necessitavam mais do conhecimento de leitura e escrita. As demais exerciam trabalhos mais práticos e de cuidado da casa. Essas últimas eram acompanhadas por três serventes internas para os serviços domésticos e ainda outras duas ou três mulheres que habitavam próximas ao recolhimento e que deveriam realizar compras e fazer o contato com o mundo exterior. Para ser uma recolhida, além de haver um lugar vago na instituição, era necessário apresentar os seguintes requisitos:
1º. Se é branca, e natural do Bispado de Pernambuco, ou nele criada desde a menor idade.
2º. Se é filha de legítimo matrimônio, de pais pobres, e de boa condição.
3º. Se não tem menos de dezesseis anos de idade, nem mais de trinta.
4º. Se sabe ler, escrever e contar. Ou se tem alguma outra qualidade, que possa ser útil à Casa.
5º. Se é de bom procedimento sem nota alguma, nem fama em contrário.
6º. Se é de boa saúde, e sem algum mal contagioso, ou enfermidade crônica, que lhe impeça o servir nos ministérios da Casa.
7º. Preferirá em iguais circunstâncias a Pretendente pobre, que legitimamente mostrar ser parenta do Deão instituidor, ou seja, donzela, ou viúva; contanto que não tenha filhos, nem obrigação alguma, de que dar contas (Azeredo Coutinho, 1798, p. 46).
A aceitação de apenas mulheres brancas, nascidas de forma legítima no Bispado e de ‘boa fama’ eram requisitos necessários para se tornar uma recolhida na instituição. De outro lado, o parentesco com o falecido Deão, Manuel Gondim, facilitava a entrada. O conhecimento de leitura, escrita e contas era desejável; porém, caso não soubessem, poderiam exercer as funções de cuidado da casa. Todas deveriam usar roupas simples e de ‘cor honesta’, de lã ou de algodão, em que aparecesse o asseio, “[...] mas não o enfeite, nem a afetação, que desminta o modo de vida que elegeram” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 29). Deveriam ainda seguir três virtudes necessárias para conduzir, de forma exemplar, as educandas: caridade; humildade; e modéstia. Com relação à distribuição do tempo diário, deveriam obedecer aos seguintes horários (Tabela 2).
Horário | Local | Atividade |
---|---|---|
05:00 | Cela individual | Despertar |
05:30 | Coro | Oração mental |
06:00 | Coro | Reza da Matina e a Prima do Ofício Parvo de Nossa Senhora. Ao final, retornam para as celas. |
08:00 | Coro | Rezam a Terça do Ofício Parvo de Nossa Senhora e assistem à Missa. Depois, rezam a sexta e a Noa do mesmo Ofício. |
09:00 | Diversos espaços | Cada uma vai para o seu ofício. |
12:00 | Refeitório | Jantar. Em seguida, terão meia hora de repouso, quando podem conversar entre si. Depois, retornam para as respectivas celas. |
14:00 | Coro | Reza das Vésperas e Completas do Ofício Parvo de Nossa Senhora. Depois, cada uma vai para o seu ofício. |
18:00 | Coro | Reza em grupo o rosário de Nossa Senhora e a sua ladainha. |
19:00 | Refeitório | Ceia, seguida de meia hora de conversação. Após isso, recolhem-se às respectivas celas. |
22:00 | Cela | Toque de recolher e todas as luzes apagadas. |
Fonte: Azeredo Coutinho (1798).
É importante observar que os horários definidos para as recolhidas se aproximam do modelo conventual, uma vez que as atividades estão mais vinculadas ao Coro. Entretanto, é necessário distinguir as diferenças nos livros de leitura, dado que, nos conventos, em momentos de ‘Ofício Divino’, as freiras que sabiam ler utilizavam os Breviários em Latim, que tratavam da vida de Jesus Cristo. No caso do Recolhimento Nossa Senhora da Glória, as recolhidas que sabiam ler fundamentavam as suas ações no coro no ‘Ofício Parvo de Nossa Senhora’, obra mais simplificada do que os breviários, fundamentada na vida de Maria, publicada em português e podia ser lida por pessoas leigas.
Nesse ponto, percebe-se a necessidade do autor dos Estatutos de distanciar a instituição do modelo conventual, pois as recolhidas seriam filhas que “[...] a Providência desde o berço destinou para serem Mestras, Religiosas, ou Diretoras dos primeiros passos daqueles que um dia hão de formar o corpo da Sociedade Humana” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 2). Azeredo Coutinho propunha uma educação feminina diferenciada, de acordo com a destinação específica de cada mulher.
A ciência das mulheres, assim como a dos homens, deve ser proporcionada aos seus empregos: ‘a diferença das ocupações é a que faz a dos seus estudos’. A instrução mais sólida é aquela, que ensina a saber o modo, com que se fazem as coisas, que são necessárias para a vida humana; por ser daí donde se tiram os maiores interesses. ‘A instrução, que propriamente pertence às mulheres, deve ser regulada segundo os seus estados’: as que se destinam para ‘Religiosas’ aonde ser instruídas na mortificação da própria vontade; na inteligência da língua latina, e canto de música para o exercício cotidiano do Coro, onde devem gastar a maior parte de sua vida.
‘Aquelas porém que não aspiram à vida dos claustros’; mas sim aonde fazer a sociedade, e a propagação das famílias na vida conjugal, ‘devem ser instruídas na particular ciência de viver em paz com seus maridos; de educar os seus filhos na virtude e administrar com economia o governo das suas casas’. Não são estreitos os limites desta ciência, como muitos julgam, querendo-a fazer propriedade natural do sexo. É muito mais fácil acostumar-se a um exterior afetado, a discorrer sobre modas, e a exercitar-se em pequenas galanterias nas conversações políticas, do que instruir-se na virtude, e na economia para saber governar bem uma família, que é uma pequena República (Azeredo Coutinho, 1798, p. 86-87, grifo nosso).
As aspirantes de uma vida mais religiosa teriam uma educação que deveria ser mais voltada para as orações e atividades do Coro, local onde ficariam a maior parte do tempo. Com relação às futuras mães e esposas, essas deveriam ser instruídas para o governo e a condução da casa, além da educação dos filhos e a boa convivência com os seus maridos. Com a intencionalidade de formar mulheres para a vida secular, os Estatutos propunham uma educação diferenciada para as educandas, a partir das orientações para as suas mestras.
Mestras e educandas no Recolhimento Nossa Senhora da Glória
As educandas poderiam ser de dois tipos: pobres, que recebiam a educação de forma gratuita; ou pagantes, também chamadas de porcionistas. O número de meninas pobres dependeria dos recursos da instituição e elas deveriam comprovar os seguintes critérios para a admissão:
1º. Que são filhas de Pais brancos, e havidas de legítimo matrimônio.
2º. Que tem sete anos de idade, e não padecem enfermidade grave, ou mal contagioso.
3º. Que são naturais do mesmo Bispado, órfãs ao menos de pais e verdadeiramente pobres.
4º. Que apresentem licença do ordinário para os lugares, que pretendem (Azeredo Coutinho, 1798, p. 113).
Ao ingressar na instituição, as moças deveriam levar um enxoval, uma cama e móveis de acordo com as suas posses. As roupas seguiam o modelo das recolhidas, em tecidos de algodão ou lã, muito simples.
As educandas pobres teriam as suas despesas cobertas pela instituição até completarem 16 anos, quando seriam encaminhadas para casamentos ou outras destinações. Também poderiam reivindicar um lugar como recolhidas e teriam precedência na escolha.
As educandas porcionistas também teriam que seguir os critérios descritos anteriormente, excetuando-se o terceiro item. Embora o documento aponte que haveria a entrada de meninas pobres, cabe indagar se essas realmente estiveram nessas instituições, uma vez que, ao analisar a educação proposta nos Estatutos, verifica-se que ela se voltava para a formação de futuras mães e esposas, com posses de escravos e na direção de serviçais. Com relação ao emprego do tempo das educandas, foi possível estabelecer a seguinte tabela 3:
Horário | Local | Atividade |
---|---|---|
06:00 | Celas | Acordadas pela Diretora |
06:30 | Coro | Adoração do Santíssimo Sacramento |
07:00 | Refeitório | Almoço. Depois retornam para as celas para estudar. |
08:00 | Coro | Assistem à missa e depois vão com as mestras para as salas. |
11:00 | Celas | Guardam o silêncio por uma hora e decoram as lições. |
12:00 | Refeitório | Jantar, seguido de meia hora de repouso, quando podem conversar, sempre acompanhadas pela Diretora. Depois, retornam para as celas para estudar. |
14:00 | Salas | Aulas |
17:00 | Refeitório | Merenda. Em seguida, podem aprender música ou ir à cerca da instituição para passear. |
19:00 | Refeitório | Ceia. Após, retornam para as celas. |
22:00 | Toque de recolher. |
Fonte: Azeredo Coutinho (1798).
No transcorrer do dia, havia dois momentos (manhã e tarde) em que as educandas eram conduzidas para as salas de aula, totalizando cerca de cinco horas diárias para os diversos aprendizados. Além disso, em vários momentos, elas eram conduzidas para as suas celas, onde faziam os estudos individuais. As celas eram ocupadas de acordo com a idade por grupos de três ou quatro meninas, sempre observadas e controladas pela Diretora e pela Mestra de Primeiras Letras.
Ao realizar-se a comparação das tabelas 3 e 2, pode-se observar que existiam três momentos em que todas as educandas e recolhidas se encontravam: missa; jantar; e ceia. Os momentos no refeitório eram acompanhados por leituras de determinadas obras consideradas edificantes. Sempre uma educanda ou recolhida, escolhida pela Regente, lia uma obra com a intenção de prender a atenção de todas as demais ao longo das refeições. Com relação à alimentação, as educandas tinham um maior número de refeições, as quais deveriam ser regulares, simples e em pouca quantidade para não sobrecarregar o estômago e facilitar a digestão.
Dentre as doze recolhidas que habitavam a instituição, três eram destinadas para acompanhar as educandas. A primeira delas era a Diretora, responsável pela educação moral e religiosa e pela preparação para o futuro como esposas, mães e gestoras de suas casas. Essa recolhida era considerada e devia agir como uma mãe, além de controlar todas as suas atividades e vigiar até o sono, pois dormia próxima às celas das educandas. Ela devia ainda agir com caridade, doçura e sem castigos severos, para não criar a aversão das pupilas e era responsável por propor constantemente atividades para as educandas para que essas não ficassem ociosas. Além disso, devia controlar todos os tipos de leituras realizadas.
Daqui vem a lição de livros, que só podem nutrir a vaidade de tais meninas; em ler novelas, e escritos de fortunas quiméricas, em que quase sempre está misturado o amor profano; donde lhes resultam curiosidades proporcionadas aos seus espíritos fracos, e ociosos; e por isso sem reflexão querem e procuram saber tudo o que se diz, e o que se faz (Azeredo Coutinho, 1798, p. 62).
O controle dos espíritos ‘fracos e ociosos’ devia acontecer desde o início do ingresso da educanda na instituição. O terceiro capítulo da parte que trata do educandário intitula-se ‘Dos primeiros fundamentos da Educação’ e, nessa parte, é possível visualizar o processo educacional das meninas por parte da Diretora. Ainda, cabia à diretora responder a todas as perguntas das meninas para “[...] lhe infundir a confiança de perguntar, e nas suas respostas lhe poder ir sugerindo a instrução, que lhe há de ser necessária na maior idade” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 65). A resposta devia ser breve, somente com as informações necessárias e, muitas vezes, trazia comparações, para facilitar o aprendizado.
Com relação ao ensino da religião, era feito inicialmente com o conhecimento de Deus, por meio de conversas claras e, posteriormente, passava para o conhecimento da Bíblia, utilizando de comparações, uma vez que “[...] revestida a doutrina de imagens sensíveis, mais vivamente lhes fica impressa na imaginação” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 68). As ‘imagens sensíveis’ só deviam ser utilizadas para causar assombro quando uma menina fizesse alguma falta grave, para demonstrar a necessidade de retornar para o caminho desejado a partir do medo.
A vida de Jesus Cristo servia como um exemplo e norteava as escolhas do que ensinar às educandas. A oração não devia ser vista como algo enfadonho; e Deus não era visto como um juiz, mas como um pai. O momento de oração era uma conversação: “[...] simples, familiar e terna” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 77). Quando a menina já soubesse ler, o aprendizado acontecia a partir do Catecismo de Montpellier15.
Azeredo Coutinho (1798) se preocupou ainda em elencar os ‘defeitos ordinários’ do sexo feminino. O primeiro de todos era a ociosidade; entretanto, outros apareceriam com o crescimento das meninas, entre eles a timidez, o medo, a simulação, o fingimento, a liberdade, o exagero na fala e, por fim, a vaidade.
No início, elas deviam ser repreendidas com suavidade, mas, se persistissem, devia ser “[...] áspera a repreensão, e em público, até o ponto de a fazer envergonhar-se” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 82). Os casos de difícil correção eram encaminhados pela Diretora para a Regente do Recolhimento, que repassava ao Bispo para “[...] ou a mandarmos despedir do Recolhimento, ou darmos a providência necessária, para que o mal das incorrigíveis não passe a contaminar a boa índole, e a educação das outras” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 116). As reprimendas deviam servir de exemplo, para que as demais educandas não fossem influenciadas.
Para se tornar uma boa mãe de família, a educanda devia conhecer algumas ‘ciencias’. Inicialmente, a virtude, ensinada por meio das lições exemplares, pelas leituras de determinados livros, práticas espirituais e advertências sobre os seus vícios. Em seguida, vinha o aprendizado do sofrimento, o qual era necessário para construir a tolerância em momentos de discórdias familiares.
Os trabalhos manuais eram imprescindíveis para as mães de família, para que se afastassem da ociosidade e empregassem bem o tempo em fiar e tecer. A futura mãe devia ainda aprender como governar os seus criados, criadas, escravos e escravas, os quais seriam tratados com caridade e amor, mas com pouca confiança, para que não perdessem o respeito.
Além disso, as futuras senhoras eram responsáveis por ensinar e inculcar preceitos religiosos junto aos seus serviçais. Por fim, cabia à futura senhora ter o domínio sobre a economia da casa, principalmente, ao gerenciar os bens sem muito desperdício.
A segunda mestra era aquela encarregada de ensinar as Primeiras Letras. O aprendizado das ‘três artes’ - ler, escrever e contar - era gradativo e partia do ingresso das educandas na instituição. Com relação ‘à arte de ler’, as lições aconteciam duas vezes ao dia (manhã e tarde) e eram iniciadas pelo conhecimento das letras:
[...] e para que elas aprendam com gosto, lhes fará das cartas do alfabeto, como quatro baralhos de cartas de jogar, em papéis mais pequenos: um dos quais contenha tantas cartas, quantas letras tem o alfabeto, cada uma com a sua letra escrita com os caracteres pequenos: outro baralho da mesma forma com todas as letras escritas com os caracteres grandes, ou iniciais; o terceiro que contenha o mesmo alfabeto, escrito com os caracteres da letra Romana, ou de imprensa; o quarto composto de dez cartas, em as quais da mesma sorte estejam escritas separadamente as dez letras do algarismo. Com estes baralhos, cada um por sua vez, como com uma espécie de jogo, que lhe faça suave o trabalho do estudo as irá exercitando no conhecimento das letras (Azeredo Coutinho, 1798, p. 100).
O aprendizado das letras acontecia por meio de imagens contidas nas cartas e, com o tempo, as letras eram reunidas em grupos e, por fim, em palavras. Depois, elas recebiam cartas com palavras, até conseguirem ler pequenas frases em outras cartas. A partir daí, passavam à leitura de livros de moral e de doutrina. Cabia à mestra evitar três vícios de leitura nas educandas: inverter a ordem ou suprimir algumas letras nas palavras; soletrar as palavras; e ler de forma cantada.
Após dominar a leitura sem soletrar, a menina passava para o aprendizado da ‘arte da escrita’, o qual devia passar pela exemplificação de letras de bom caráter, as quais eram imitadas. Também deviam aprender a pontuação, ortografia e gramática por meio dos exemplos contidos nos livros oferecidos pela mestra. Quando finalizavam essa etapa de aprendizado, passavam para a ‘arte de contar’, que consistia em decorar a tabuada e, em seguida, aprender as contas de somar, diminuir, multiplicar e dividir.
Quando o aprendizado das três artes já estava bem adiantado, as educandas tinham o tempo reduzido com a mestra de Primeiras Letras e passavam parte desse período junto da terceira mestra, encarregada do ensino de costura, bordado e demais atividades, como o desenho e a música. Nesse momento, as alunas eram subdivididas de acordo com as obras de que se ocupavam e de acordo com as suas aptidões, sendo que todas deviam permanecer em silêncio. Ao mesmo tempo em que ocupavam as mãos com suas obras, a mestra era encarregada de contar algumas histórias instrutivas e edificantes, além de fazê-las “[...] entoar algumas cantigas inocentes, para as ter sempre alegres, e divertidas” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 106). Essa terceira mestra também era encarregada de acompanhar os divertimentos e as brincadeiras das educandas, sempre vigilante para avaliar as suas inclinações.
Considerações finais
É importante salientar que a história dos Recolhimentos se insere na longa duração temporal do período moderno e, como tal, acompanhou as diversas transformações e adaptações locais sofridas por essas instituições. Na América Portuguesa, não foi diferente, uma vez que os Recolhimentos substituíram o papel dos conventos em um território em que havia poucas opções desse tipo de instituição. Por outro lado, serviram como espaços de guarda e correção dos diversos grupos de mulheres existentes no território em processo de colonização. Ao final do século XVIII, os Recolhimentos passaram por novas reformulações que atendiam à circulação das ideias iluministas na América e também aos anseios do poder português.
Ao analisar a proposta contida no Estatuto organizado por D. Azeredo Coutinho e suas especificidades para o ensino das educandas do Recolhimento Nossa Senhora da Glória, deve-se refletir que as normas do documento poderiam ser aplicadas a qualquer outra instituição que desejasse implementar educandários. Por outro lado, é importante compreender que esse foi um documento fundamental para as reformulações de outros recolhimentos existentes, ou dos que foram fundados na virada do século XVIII para o XIX.
Por fim, é necessário salientar que os recolhimentos cumpriram suas funções educativas escolares até a chegada das congregações religiosas femininas e a implantação dos colégios de freiras a partir de 1849, quando chegaram as Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo em Mariana, Minas Gerais. O modelo não sobreviveu à entrada em cena maciça das religiosas congregacionistas com propostas de implantação de colégios na segunda metade do século XIX.