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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.24  Maringá  2024  Epub 06-Nov-2023

https://doi.org/10.4025/rbhe.v24.2024.e295 

ARTIGO ORIGINAL

O destino da casa do Visconde: fins duradouros e patrióticos da educação católica

The destiny of the Visconde's house: enduring and patriotic purposes of catholic education

El destino de la casa del Visconde: fines perdurables y patrióticos de la educación católica

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


Resumo

A pesquisa investiga as representações construídas sobre o edifício do Colégio Nossa Senhora de Lourdes na imprensa periódica, indagando como a ideia de patrimônio é aí formada. Instalado na casa do Visconde de Ouro Preto em 1922, no bairro de Vila Isabel, Rio de Janeiro, o Colégio mantém-se até hoje no mesmo local, atendendo estudantes de setores médios da população. Compondo uma pesquisa maior, os resultados aqui apresentados respondem às seguintes questões: como o espaço e as construções do Colégio apareciam na imprensa? Quais as ideias de patrimônio aí veiculadas? Para isso, recorremos à catalogação das ocorrências encontradas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, sua leitura e análise ancorada nos conceitos de materialidade escolar, patrimônio e território.

Palavras-chave: Colégio Nossa Senhora de Lourdes; patrimônio escolar; periódicos; territorialidade

Abstract

This study investigates the representations of the built of the Colégio Nossa Senhora de Lourdes in the periodic press, inquiring how the idea of heritage is constructed there. Installed in the house of the Viscount of Ouro Preto in 1922, in the district of Vila Isabel, it remains until today in the same place serving students from medium sectors of the population. As part of a larger research, the results presented here respond to the following questions: How did the space and the buildings of the College appear in the press? What ideas of patrimony were disseminated there? For this, we resorted to the cataloging of the occurrences found in the Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, its reading and analysis anchored in the concepts of school materiality, heritage and territoriality.

Keywords: Colégio Nossa Senhora de Lourdes; scholar heritage; periodicals; territoriality

Resumen

La búsqueda investiga las representaciones del edificio del Colégio Nossa Senhora de Lourdes en la prensa periódica, indagando cómo se construye la idea de patrimonio. Instalado en la casa del Visconde de Ouro Preto en 1922, en Vila Isabel, permanece hasta hoy en el mismo lugar atendiendo estudiantes de sectores medios de la población. Como parte de una investigación amplia, los resultados que aquí se presentan responden a las siguientes preguntas: ¿Cómo aparecieron en la prensa el espacio y los edificios del Colegio? ¿Qué ideas sobre el patrimonio se transmiten en él? Recurrimos a la catalogación de las ocurrencias encontradas en la Hemeroteca Digital de la Biblioteca Nacional, su lectura y análisis están anclados en los conceptos de materialidad escolar, patrimonio y territorialidad.

Palabras clave: Colégio Nossa Senhora de Lourdes; patrimonio escolar; publicaciones periódicas; territorialidade

Introdução

Imponentes e monumentais colégios católicos, normalmente de redes educacionais consolidadas e com tradição de ensino no interior da Igreja, sobrevivem e marcam a paisagem da cidade do Rio de Janeiro até hoje. Muitos são tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ou pela prefeitura da cidade, contribuindo para a produção do que se entende como patrimônio nacional ou carioca. É o caso de parte das instalações ocupadas pelo Colégio Nossa Senhora de Lourdes, foco deste estudo1, conforme figura 1. No decreto de tombamento emitido pela prefeitura, foi especialmente considerado “[...] o valor cultural da chácara e do sobrado que pertenceram ao Visconde de Ouro Preto, como representante da arquitetura carioca residencial semiurbana, de linhas tradicionais em estilo neoclássico [...]”, a qual “[...] se encontra vinculada à paisagem urbana e cultural existente” (Decreto nº 41.472, 2016, p. 4-5).

Embora a noção de patrimônio e sua importância não se restrinjam às sociedades modernas ocidentais, modernamente essa categoria teve e tem o efeito de marcar um domínio subjetivo por oposição a um ‘outro’, por vezes confundindo-se com a noção de propriedade, como se fossem extensões morais de seus proprietários (Gonçalves, 2003). Como símbolo, o patrimônio detém a função não apenas de comunicar, mas também de agir. Não por acaso a noção de patrimônio constitui-se como categoria ao final do século XVIII, juntamente com a constituição dos estados nacionais.

Fonte: As autoras.

Figura 1 Fachada do Colégio em 2022. 

Nesse processo, tempo de definição de territórios, da geografia e da história do estado-nação; de unificação linguística e cultural nas escolas; de definição de monumentos e festas cívicas, a delimitação do espaço de atuação e de controle sobre o patrimônio da Igreja também foi uma preocupação. Esta instituição perdeu muito de seus bens durante a unificação italiana. A definição de seu poder sobre determinada extensão de terra só chegou a termo em 1929, com o Tratado de Latrão, assinado pelo papa e por Mussolini, dando origem ao Estado do Vaticano. Não só na Itália a Igreja perdeu territórios e bens. À medida que os estados se organizavam, construíram suas bases sobre o direito natural, ao qual a Igreja opôs o direito divino, que proclamava sua soberania sobre toda e qualquer nação (Noé, 2015).

Esse também foi um tempo em que o aumento populacional não era proporcional ao solo disponível na Europa. Como faltavam terras, tanto estados nacionais quanto a Santa Sé (braço espiritual do Vaticano) estimularam a imigração para o chamado Novo Mundo, ambos com vistas a ampliar sua influência em outras paragens. Tratava-se, simultaneamente, de busca por terras e de difusão cultural2. Se aqui no Brasil tivemos a hegemonia da língua, dos gostos e dos costumes franceses entre a elite brasileira ao longo do século XIX, durante o século XX o modelo da cultura americana prevaleceu. O que permaneceu entre um e outro século e que parece se estender até os dias atuais é a cultura católica3. Por quais vias ela logrou tal permanência? Quais práticas permitiram sua implementação e perenidade no território brasileiro?

A hipótese que norteia esta investigação é que o patrimônio imobiliário, ou o patrimônio material edificado, constituído aqui no país, tem participação nesta duração, na medida em que constitui/produz memória e territorialidades. É conhecido o fato de que as congregações religiosas imigraram em larga escala para o Brasil, no início do século XX, justamente após a proclamação da República. A realização do I Concílio Plenário para a América Latina e a publicação das Actas y Decretos indicam a importância que a América Latina tinha nos projetos da Santa Sé (Actas y decretos del Concilio Plenario de la América Latina, 1906). Por outro lado, pensamos que o estado patrimonialista4 brasileiro foi palco privilegiado para a política expansionista (também patrimonialista) da Igreja Católica. Daí a intenção de olhar para a materialidade dos edifícios, para o patrimônio material edificado.

Estudos sobre cultura material e memória das escolas possibilitaram o fortalecimento do trabalho com essas temáticas na área de História da Educação, ao diversificarem o trabalho com as fontes, ao passo que novas questões foram elaboradas. Muitos estudos entre nós tomam o ambiente interno das escolas e seus artefatos como objeto de análise (materiais, mobiliários, uniformes, bibliotecas, museus), enquanto outros trabalham com a arquitetura (Paulilo, 2019; Silva, Souza, & Castro, 2018). O estudo dos edifícios escolares possui distintos modos de refletir sobre a importância da arquitetura e do espaço5, dentre esses a apresentação da visibilidade que essas construções instauram e a materialidade que compõe sua monumentalidade (Camargo, 2019).

No que se refere a instituições de ensino católicas, estudos de caráter monográfico apontam para as marcas da presença católica na cidade, para a construção de patrimônio (como os trabalhos de Oliveira & Gatti Jr., 2002, e seu grupo de pesquisas) e para a maneira como edifícios católicos em geral, e não somente escolas, marcam as paisagens citadinas (Gonçalvez & Chaloba, 2013). Tais estudos ainda discutem a passagem de uma educação de elite de instituição católica para a educação de crianças do morro no Rio de Janeiro (Tepedino, 2007). Há, portanto, um conjunto já estabelecido que se dedica ao olhar local, com utilização de fontes internas às instituições (como crônicas, polianteias e cartas) ou ancoradas em fontes externas (como atas de assembleias da Câmara Municipal e de jornais).

Nesta pesquisa, queremos compreender o que significaram as instalações do Colégio Nossa Senhora de Lourdes para pessoas que não participavam do cotidiano da escola. O que este edifício comunicava para aqueles que não eram professores, religiosos, funcionários, alunos, poder público? Como era percebido e/ou vivido por aqueles de fora? Era gerador de uma ‘identidade citadina’? (Rocha & Eckert, 2013) Veremos.

Procuraremos responder a essas questões por meio da imprensa periódica, tendo como foco o espaço e as construções que essa escola ocupou no momento de sua fundação até o ano de 1940. O período escolhido faz referência à pesquisa mais ampla que pretende, posteriormente, colocar os resultados deste estudo em comparação com outras escolas públicas fundadas na região em 1922 e em 1933: a Escola Municipal República Argentina e a Escola Municipal Humberto de Campos. Nesta investigação propomos um olhar ‘por fora’ dos colégios e das escolas, indagando como agentes externos contribuíram para a produção de um sentido de patrimônio vinculado a estas instituições. Queremos observar como se constrói um olhar sobre a materialidade da escola, focado em suas instalações, e interessa-nos especialmente o que dizem os jornalistas sobre os edifícios escolares, como o fazem e para quem, compreendendo ser sua narrativa inseparável do acontecimento (Ricoeur, 2007).

Territorialidade ancorada no patrimônio e divulgada na imprensa

Quando tratamos da cultura material expressa no patrimônio edificado e sua relação com a cidade, a noção de território e/ou de produção de territorialidades emerge. Partimos do pressuposto de que os estabelecimentos escolares são determinados, dentre outros aspectos, por seu contexto socioespacial e que também participam da produção de território (Genevois, 2020). Território comparece neste estudo não apenas em sua acepção política de delimitação de um estado, mas também como relações de poder ligadas ao “[...] chão mais a identidade” (Santos, 2006, p. 14) e pode ser estudado em diferentes escalas. Definir um território implica definir o que nele é valorizado e constituído como patrimônio material ou imaterial, criar signos, construir identidades.

A sensação de pertencimento a determinados espaços, as possibilidades ou não de aceder ao uso de lugares, considerá-los (espaços e lugares) como algo que se observa, se utiliza, se transforma e/ou do qual se orgulha, implica compreender formas de controle material e simbólico do espaço6. Um edifício marca a paisagem, tem função de uso e função identitária, delimita fronteiras. Movemo-nos, assim, no terreno da cultura material escolar, “[…] expoente visível e, ao mesmo tempo, o efeito interpretado dos sinais e significados exibidos pelos chamados ‘objetos-chave’, bem como as representações que os replicam ou acompanham” (Alba, 2022, p. 24, grifo do autor, tradução nossa)7. O edifício, se tomado ou pensado como patrimônio, é o signo e, ao mesmo tempo, o substrato espacial e material do território.

A Igreja, as religiosas, os religiosos e os grupos sociais aos quais se aliam são produtores de espaços e de territorialidade. Ao estimular religiosas e religiosos a migrarem para a América Latina, a instituição visava construir outros domínios, tornar-se proprietária de terras, adquirir e constituir patrimônio e difundir cultura, tanto dos valores das nações de onde vieram quanto católicos.

Nesse cenário, Irmã Maria Paula, Irmã Maria Emanuelle e Irmã Maria Claver instalaram-se na Rua Oito de Dezembro, no antigo solar do Visconde de Ouro Preto8, transformando o lugar no Convento Nossa Senhora de Lourdes e, posteriormente, em um Colégio9. A antiga Congregação das Irmãs do Coração Sofredor e Imaculado de Maria, atual Instituto da Imaculada Conceição de Nossa Senhora de Lourdes10, foi fundada na França em 1863 durante o momento da renovação da fé, parte da política ultramontana11 ancorada nas imagens marianas e no estímulo à imigração das congregações para a América Latina. Após pequena expansão pela Europa, fixaram-se em Buenos Aires em 1900. Vieram para o Brasil a convite da Baronesa de Ibirá-Mirim, Maria Carolina de Souza, filha do Visconde de Mauá, estabelecendo-se primeiro em Petrópolis. Em 1911 instalaram-se em Botafogo, onde mantêm um colégio até os dias atuais, e em 1922 alocaram-se em Vila Isabel. De acordo com o site do instituto (Instituto Immacolata Concezione N.S. Lourdes: https://iclourdes.org/pt-br/), a Rede Lourdina de Educação possui, atualmente, 17 unidades no Brasil, 4 delas instaladas no estado do Rio de Janeiro: 1 em Petrópolis e 3 na cidade carioca nos bairros de Botafogo, Flamengo e Vila Isabel12.

Situado na rua Oito de Dezembro, em amplo espaço, o Colégio tem suas edificações recuadas da calçada, protegidas por gradil que deixa ver seus jardins, a antiga e espaçosa casa do Visconde de Ouro Preto, a capela e o novo edifício que destoa dos outros prédios. É, visivelmente, para quem passa pela rua, composto por camadas de outros tempos, testemunhas de sucessos de preservação ou de mudanças culturais e econômicas.

O bairro de Vila Isabel também carrega as marcas da cultura francesa, tão admirada por parte da nobreza do Império. Foi projetado pelo empresário e arquiteto barão João Batista de Viana Drummond, abolicionista, proprietário da antiga Fazenda do Macaco e organizador da Companhia Arquitetônica. Para lotear a antiga Fazenda, a Companhia contratou o arquiteto Bethencourt da Silva, discípulo de Grandjean de Montigny (Abreu, 2013; Gerson, 2013). As ruas e praças receberam, em sua maioria, nomes alusivos à lei do Ventre Livre e aos abolicionistas. O Colégio fica a apenas três quadras (1,5 km) do Boulevard Vinte e Oito de Setembro, que corta o bairro. O edifício também está próximo da estação Maracanã (2 km).

Quando o mais ilustre morador da Vila, o Visconde de Ouro Preto, morreu em 1912, seu filho, Affonso Celso, deixou a casa e a chácara. Em 1915, o empresário cinematógrafo e teatral M. Pinto, do Cine Ideal, instalou-se no local (Gerson, 2013). Em seguida, foi a vez das religiosas. Entre 1890 e 1910, várias chácaras foram loteadas (Stanchi, 2008), o que pode ter acontecido com o espaço que abrigava a casa do Visconde. Vilas operárias foram construídas com o adensamento da população, fato que pode ter favorecido a transferência do imóvel.

O período que interessa a este estudo (1922-1940) traz a marca de importantes mudanças e disputas: o avanço da industrialização, a ampliação da escolarização primária pública, os esforços de adeptos e divulgadores da cultura americana por oposição à prevalência francesa do século XIX e os embates entre os defensores da escola pública laica e os católicos. Durante a era Vargas (1930-1945), gestava-se um estado moderno, estruturado e capaz de fazer frente às antigas oligarquias locais que dominaram os primeiros anos da República, com vistas à industrialização. Era preciso construir uma cultura urbana industrial com quadros técnicos e com população alfabetizada.

Os anos 20 e 30 testemunharam disputas ferrenhas entre católicos e publicistas. Um dos resultados desses embates pode ser observado na Constituição de 1934 como um produto híbrido que adota a pedagogia moderna dos reformadores, dedicando percentual obrigatório dos fundos públicos à educação, com o intuito de alargar o sistema de educação básica, integral. Ao mesmo tempo, cede às pressões sobre o ensino religioso facultativo nas escolas públicas (Cunha, 2017). Para os outros níveis de ensino, permanecia a velha separação entre uma educação popular profissional e outra reservada ‘às individualidades condutoras’, com o secundário propedêutico à universidade, do qual o setor privado detinha 73.3% da totalidade de matrículas até 1940.

As lideranças católicas não permaneciam indiferentes às pressões populares pela educação. Dom Leme, coadjutor do arcebispo Cardeal Arcoverde desde 1921, marcava, em sua pastoral de 1916, seu projeto para a República brasileira: uma nação católica, em um Estado católico sob assessoria eclesiástica. Nessa nação, o reavivamento da fé deveria se dar pela instrução religiosa. Para isso, embora não fosse possível prescindir das escolas do Estado, seria preciso criar escolas católicas para as massas. A criação da Liga Patriótica dos Católicos em 1924 e a organização da ‘comissão de escolas’ da Confederação Católica do Rio de Janeiro propuseram a criação de 50 estabelecimentos de ensino para a educação básica, denominados Escolas Populares Cardeal Arcoverde (Martins & Leonardi, 2022). Nenhuma delas sobreviveu. Hoje, os resultados obtidos em pesquisas anteriores, ainda que com lacunas, apontam a sobrevivência de 77 escolas católicas na cidade do Rio de Janeiro, todas mantidas por congregações.

Os periódicos noticiavam, ainda que não diretamente, sobre tais disputas, assim como sobre as instalações educativas, suas festas e premiações, e participavam, assim, da produção de representações sobre as edificações e seus usos. Como fontes de informação histórica e de propagação de valores no cotidiano da sociedade urbana dos séculos XIX e XX, os jornais condensavam memórias, representações; e é neste espaço formativo e informativo que misturavam tentativas de imparcialidade e o abertamente tendencioso (Luca, 2005; Silva, 2006). Em suas páginas, o fluxo do cotidiano é perceptível nos conflitos de interesse, compromissos e paixões. Como sujeitos da história, veículos da imprensa registram, discutem, explicam e comentam, e não são meros receptáculos de informação. São fatores ativos na produção da cultura social. Por meio do texto escrito, ofereciam sobre o edifício, simultaneamente, a substituição de algo ausente e outra coisa em seu lugar (Ginzburg, 2001; Ricoeur, 2007), compunham imagens, produziam sentidos e memórias sobre a antiga casa do Visconde e sobre o Colégio. Produzia-se, assim, inteligibilidade sobre aquele tempo histórico.

Pois bem, o que diziam sobre as edificações que foram propriedade do Visconde de Ouro Preto e que foram doadas para as irmãs de Nossa Senhora de Lourdes os escritores, jornalistas e outros sujeitos que detinham o privilégio de publicar nos jornais? Em que esses sujeitos, externos ao colégio, teriam contribuído para a produção de determinada ideia de patrimônio?

Em consulta à Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, com o termo ‘Colégio Nossa Senhora de Lourdes’13, identificamos 137 ocorrências. Dentre estas 85 se referiam a outros colégios de nome semelhante, situados nos bairros São Cristóvão e Riachuelo na cidade carioca e em outros estados do País, o que indica como as atividades dos colégios privados eram presentes em jornais em geral, e não apenas em periódicos católicos. Próximo ao Colégio, contando um quilômetro e meio de distância, havia sido construída, 8 anos antes, a Igreja Nossa Senhora de Lourdes. Aparecem também ocorrências dessa Igreja que optamos por deixar à parte. Trabalhamos, finalmente, com 17 textos. Temas como as festas, o espaço e suas construções, documentos públicos, notas de aniversário ou falecimento e anúncios circularam nas páginas do Jornal do Brasil, Gazeta de Notícias, Jornal do Commercio, A Manhã, A União, O Jornal e também na Revista da Semana.

O edifício: ‘Todo o passado de uma época que ressurgia’

Nas ‘Notas sociaes’ do Jornal do Brasil, o colunista M. E. C. apresentava suas impressões - com o título ‘Femina’ - sobre o dia do lançamento da pedra fundamental do Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Conta o autor que à cerimônia, realizada na tarde do dia 14 de dezembro de 1924, compareceram figuras importantes da política e da Igreja Católica, como Conde Affonso Celso, D. Sebastião Leme e Mére Isabelle, superiora da congregação, que teria vindo da França especialmente para a ocasião. O evento foi divulgado antes em um pequeno anúncio nesse mesmo jornal, no dia 13 de dezembro de 1924, na ‘Secção Religiosa’ (Collegio Nossa Senhora de Lourdes, 1924).

O texto de M. E. C. (1924) é marcado em toda sua extensão - duas colunas que tomam um terço da página - por crítica ao progresso e à modernidade que arrasam não só a natureza como os antigos casarões. Desaparecem, com eles, as chácaras e os costumes tradicionais, o que seria “[...] uma das grandes tristezas do Rio de Janeiro” (p. 8). O autor parece ecoar a condenação de Pio IX aos chamados erros modernos explícitos na encíclica Quanta Cura e no Syllabus Errorum, de 1861. Assinalava, assim, a sensação de perda da memória e da tradição (Benjamin, 1991).

Durante as primeiras décadas do século XX, a aristocracia cafeeira sentiu a decadência gerada pelos altos custos de importação. Houve a Primeira Guerra Mundial, o custo de vida aumentou, cresceu o proletariado, surgiram os cortiços, as vilas operárias na Vila do Barão de Drummond e as primeiras greves. A cidade do Rio de Janeiro cresceu marcada por contradições, e a década de 1920 viu lançarem-se as bases para a formação metropolitana da cidade (Abreu, 2013). O lançamento da pedra fundamental do Colégio ocorria afastado das transformações promovidas pelo poder público na região central e na zona sul, foco de reformas modernizadoras pautadas no discurso moralizador e higienista (Benchimol, 1992). Portanto, estava em voga a discussão de fazer da cidade um cenário que não estivesse marcado pela presença das classes trabalhadoras e baixas nos bairros centrais. Ecoava a guerra aos cortiços, empreendida pelo prefeito Barata Ribeiro no final do século XIX, reforçada e ampliada posteriormente pelas reformas de Pereira Passos, significativas pelos processos de intervenção do Estado na urbe14.

O texto do cronista do Jornal do Brasil (M. E. C., 1924, p. 8) também é marcado por dualidades, passado e presente, moral e imoral, bem e mal. O passado é aí construído como um tempo bom, memorável, no qual havia “[...] chefes de família [...]” e “[...] solares aristocráticos na sua grandiosa simplicidade”. Em contraponto, o presente estava sendo corrompido pela ‘promiscuidade’ da nova época, pois os antigos solares que antes se faziam casas de famílias, estavam

[...] amputados do verde engaste de seus jardins, como despidos brutalmente aos olhos da turba, portas e janellas escancaradas, transbordantes de uma miuçalha maltrapilha, de pretinhos e mulatos, com mulheres descalças, sentadas a soleira e trapos multicolores seccando nas sacadas do sobrado (p. 8).

Essa ‘pobre humanidade’, vivendo em condições insalubres, como reconhece o autor, presente em locais que antes frequentavam apenas como empregados, horroriza M. E. C. (1924), que imputa tal mudança à democracia:

[...] amontoada sordidamente alli, num esforço desesperado de occupar pelo menor custo o menos espaço possível e a nobreza de linhas, a prodiga amplitude do edifício, é de intensa, de oppresora melancolia. Há uma degradação naquella decadência e há, principalmente, a prova palpavel quasi da irrepreensível evolução do espírito do tempo, do triumpho nivelador da democracia victoriosa (p. 8).

O cais do Valongo foi o porto que recebeu aproximadamente a metade das pessoas escravizadas que entraram em todo o Brasil. Com o fim da escravidão, o êxodo de pessoas libertas vindas da região cafeeira do estado, associado ao estímulo à imigração pelo poder central com fins de branqueamento, resultou na crise de moradia nas primeiras décadas do século XX (Abreu, 2013). Sem políticas de reparação após o fim da escravidão, essa população estava à mercê da própria sorte. A cidade descrita por M. E. C. era marcada por fraturas, repleta de contradições.

Mas, para o autor, nem tudo estava perdido. “Algumas chacaras [...] têm a dita de escapar a humilhação destas ignominiosas transformações” (M. E. C., 1924, p. 8). Em contraponto ao posicionamento negativo que o colunista cria em torno do presente, ele observa uma via de permanência, de preservação, de manutenção da memória e da tradição, com a criação do Colégio Nossa Senhora de Lourdes na antiga casa do Visconde de Ouro Preto. Esse espaço e as edificações ali presentes deixaram seu caráter ‘egoístico de residência’ para se transformarem, alcançando ‘fins mais elevados e mais duradouros’. Ao tornar-se um colégio católico, “[...] o antigo ninho reduzido e exclusivo, vae transformar-se numa colmeia de abelhas diligentes, um outro ninho engrandecido e acolhedor [ilegível] um refugio de almas, um centro de solidariedade humana, de estudo e de fé” (p. 8).

Naquela tarde de 14 de dezembro, aconteceu a cerimônia da benção solene da pedra fundamental do Colégio. A benção foi dada, nada mais, nada menos, que por D. Sebastião Leme, Arcebispo do Rio de Janeiro. Conde Affonso Celso15, representante e ‘chefe’ da família Ouro Preto também esteve presente e discursou. O cronista segue seu texto, entremeando suas impressões com trechos da fala do orador. Naquela tarde, o conde lembrava aos que não estavam mais presentes: “[...] passavam os vultos caros dos desapparecidos, a memoria dos dias de antanho, a figura de imperecível sobranceria que foi na história do Brasil o Visconde de Ouro Preto. Era todo o passado de uma época que resurgia” (M. E. C., 1924, p. 8).

O Colégio Nossa Senhora de Lourdes foi, na perspectiva de M. E. C (1924), o resgate dos valores de um grupo, herança do passado monarquista e de seus vínculos com a Igreja Católica, da mistura entre o público e o privado. “Inaugurar um Collegio é sempre um acto de patriotismo. O espiritual legado. E’lo profundo e puro. Entre o passado de que foi abrigo. E a esperançosa aurora do futuro” (p. 8). Esta preciosa documentação indica o prestígio do edifício para um grupo social, divulgado em um dos grandes jornais da época. Campos (2012, p. 64) lembra que “[...] os jornais são, antes de tudo, ambientes de sociabilidade entre pares [...] para construção, reconfiguração e exposição de valores, ideias e sensibilidades”.

O Jornal do Brasil iniciou seus trabalhos em 1891 como um jornal grande e capitalizado, porém, em seus primórdios, possuía um caráter monarquista que, a partir dos anos 30, foi deixado de lado, adotando posteriormente a postura de ‘ajudante do povo’, sobretudo com questões políticas. A representação de jornal do povo surgiu, em certa medida, como resposta ao modelo florianista - que também antecipa algo do populismo varguista -, como a propor uma superioridade da Monarquia no estabelecimento de vínculos diretos, em função da maior legitimidade e popularidade deste regime nos primeiros tempos da república (Lopes, 2006). Assumia postura de fidelidade à Igreja Católica e fez proveito da religiosidade da população para registrar e comentar tudo que estivesse relacionado à Igreja. No período de 1919, o novo proprietário do Jornal do Brasil, tentando recuperar o prestígio desgastado com a gestão de Mendes de Almeida, contratou novos colaboradores. O próprio conde Affonso Celso de Assis Figueiredo, filho do Visconde, fazia parte da equipe16. Cabe lembrar que o último ministério derrubado para a implementação da República foi justamente do Visconde de Ouro Preto.

As coisas que se dão a lembrar são, com frequência, mais fáceis de aceder à memória por sua semelhança com outras do que por sua singularidade, como já assinalou Halbwachs (1965). Produzia-se, assim, a memória de um grupo, coletiva, em torno da materialidade de um edifício que só teria um fim digno e manteria o patrimônio, tornando-se um colégio. Mas não qualquer colégio e, sim, um colégio católico, administrado pela filha do Visconde. Pelo site do Colégio, percebemos que irmã Maria Paula, cujo nome de batismo é Noemi Machado, foi a primeira diretora da instituição e que, segundo o site, teria adiado sua entrada para a vida religiosa a pedido do pai, fazendo-o após sua morte. O imóvel, portanto, não saiu do comando da família. O colégio era a expressão dos valores e de um passado no qual elite imperial e Igreja estavam conectadas.

Cerca de dois anos após esta cerimônia, Fernando de Azevedo, à frente da Diretoria de Instrução Pública (1926 a 1930), marcaria a nova orientação que distinguiria os ambientes familiares e escolares na cidade. Azevedo estabeleceu 16 contratos para a construção de prédios próprios, signos da modernização arquitetônica e ideais nacionalistas (Conduru, 2014; Nunes, 1993). Tão logo a Igreja se sentiu ameaçada com as ações de Azevedo no Instituto de Educação, ele foi expulso, e o padre Helder Camara assumiu a cadeira recém-restabelecida de ensino religioso (Nunes, 1993). Anísio Teixeira foi seu sucessor na pasta de Instrução Pública e, do mesmo modo, também foi destituído de seu cargo quando a Igreja se sentiu ameaçada. Em sua gestão, Anísio pensou a educação em todos os níveis, da básica ao ensino superior. A cidade recebeu 25 prédios escolares construídos entre 1934 e 1935, “[...] como elementos e signos de uma transformação que se queria radical” (Conduru, 2014, p. 30). A criação de setores específicos na Diretoria de Instrução Pública para tratar das edificações de escolas demonstra a atenção dispensada pelo educador à base física sustentadora do programa escolar que visava implementar (Dórea, 2000). Eram grandes concentrações escolares em áreas escolhidas segundo demanda e facilidade de transporte. O cronista atacava mudanças reais e pressentidas da ‘democracia niveladora’.

Também no periódico A Manhã, em 26 de janeiro de 1926, foi publicada notícia sobre o evento de lançamento da Pedra Fundamental da nova capela do Colégio Nossa Senhora de Lourdes, ofertada pelo Sr. Almirante [ilegível], Ex-Senador da República. O momento é descrito como um grande dia de solenidade que contou com a presença de muitas famílias e das autoridades da Igreja Católica, sem, no entanto, citar seus nomes. Aqui, o destaque vai para o ex-senador da República cujo nome se encontra ilegível.

Destaques dados ao edifício também são encontrados em textos que registram atividades ordinárias, como a celebração da primeira comunhão de 18 crianças, realizada na capela do Colégio, publicada no Jornal do Commercio, em 30 de novembro de 1932. Este jornal mantinha uma coluna intitulada ‘Vida Catholica’, normalmente inserida nas páginas centrais. O autor, que não assina a nota, inicia apresentando o colégio, seu ano de fundação e seu endereço. Em seguida, descreve as características do edifício e do ensino ali realizado. “Acha-se installado em magnifico predio, num dos melhores pontos da capital, dotado de todos os requisitos de hygiene moderna e conta cerca de cem alumnos. [...] Ostenta bellissímo templo, em amplo parque ajardinado” (Collegio N. Senhora de Lourdes, 1932, p. 9). Aqui vemos, em palavras, a ‘pintura’ ou construção de uma imagem (Yates, 2007), e o leitor pode criar uma imagem mental a partir do que lê.

Com relação ao ensino, o texto salienta que os alunos recebem ótima instrução e educação aprimorada, “[...] baseadas na piedade christã, ante o principio de amar a Deus, à Pátria e à Família”. A educação se mantém com ‘extraordinaria efficiencia’ porque o Colégio recebe o patrocínio da ‘Associação das Damas Hospitaleiras’, constituída por mulheres que integram a elite carioca, segundo a notícia.

Cerimônias de primeira comunhão também aparecem em jornais católicos, sem, no entanto, mencionar o edifício. Nesses textos a ênfase recai sobre os aspectos espirituais da celebração e, por vezes, sobre o número de iniciadas, o que indica a importância do evento e o tamanho do local onde ocorreu. Em 15 de maio de 1938, A Cruz, órgão da Parochia de São João Baptista, relata que a Pia União das Filhas de Maria do Colégio, associação de caráter devocional de leigos, formada apenas por mulheres que visam, pela devoção, viver os ensinamentos de Maria Santíssima, promoveu no dia primeiro de maio o sacramento da comunhão para ‘mais de duzentas jovens’. A capela ‘regorgitava de fiés’, e ‘o altar estava profusamente adornado de flores naturais e artisticamente iluminado’. Menciona-se o nome do Capelão do Colégio, Revdmo. Frei Marcelino Garcia, e comenta trechos de seu sermão. Na visão do colunista, esse evento, ocorrido em um domingo de páscoa, ‘foi um verdadeiro triunfo, em empolgante testemunho de fé e amor a Jesus-Hostia, Rei de nossos corações!’. O texto indica, ainda, que a Associação formada também por alunas fez ações no bairro para atrair pessoas para a celebração. Aqui, parece acontecer o que Nunes (1993) e Silva (2009) apontaram para o caso das escolas públicas na cidade do Rio de Janeiro: a cultura urbana impregnou as escolas, mas também a cultura escolar se espraiou pelo espaço urbano.

Notícias fúnebres, celebrações de aniversário do capelão, avisos de missa e a participação do Colégio na coleta e doação para campanhas da Igreja, como a Obra de Propagação da Fé, também foram encontradas. Em algumas dessas publicações, os colégios de Botafogo e de Vila Isabel tornam-se indistintos. A Cruz (Grande Bazar de Caridade, 1930) noticia o grande bazar de caridade que teria lugar no Palace Hotel. Diversas congregações, organizações leigas e colégios católicos tomaram parte no evento.

No mesmo jornal, em 15 de novembro de 1931, a notícia do Cha’ concerto em benefício das obras mantidas pelas religiosas do Colégio Nossa Senhora de Lourdes também não distingue de qual colégio se trata. O evento contou com o patrocínio das senhoras Getúlio Vargas, Assis Brasil, Pedro Ernesto, dentre outras, que se responsabilizariam por servir o chá. Pode-se imaginar a pompa do acontecimento que repercutiu também no Correio da Manhã e na Revista da Semana.

Curiosamente não encontramos notícias sobre procissões realizadas pelo Colégio. Um texto publicado em 10 de dezembro de 1903 na página três do Jornal do Brasil menciona crianças levando o estandarte do Colégio Nossa Senhora de Lourdes em procissão partindo da Matriz Nossa Senhora da Conceição de Lourdes17 e percorrendo as ruas do bairro. As religiosas - e, provavelmente, seus alunos - também levavam a imagem do Colégio para as ruas, onde organizaram uma barraca para venda na Batalha das Flores, festividade que acontecia no período do carnaval.

Diversas notícias, ao oferecerem a informação da proximidade do colégio com a estação Mangueira, indicavam a facilidade de acesso àqueles que desejassem participar dos eventos da igreja abertos ao público ou dos cursos de catecismo profusamente anunciados em vários jornais. Pelos anúncios, também foi possível perceber que, em 1924, o colégio ofereceu cursos primário e secundário para meninas nos modelos de internato, externato e semi-internato. Aceitavam-se meninos apenas até os 9 anos. Já em 1927 criou-se o externato misto e, em 1932, não se distinguiam meninos e meninas nos anúncios.

As notícias que celebram o edifício e as marcas de outros tempos ficaram gradativamente para trás.

Considerações finais

Iniciamos este estudo com o intuito de compreender como o espaço e as construções do Colégio Nossa Senhora de Lourdes apareciam na imprensa periódica e quais as ideias de patrimônio aí veiculadas. Para isso, empreendemos a busca no site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Há sempre limitações neste empreendimento de coleta de dados, na medida em que as ocorrências encontradas respondem a termos de busca específicos, ainda que se busque diversificá-los ao máximo. Foi o caso de não encontrarmos, por exemplo, notícias sobre procissões. Trabalhamos com 17 textos de 8 periódicos, entre anúncios de matrículas, de catequeses, notícias de cerimônias e aniversários, convites para eventos. O fato de apenas 2 desses periódicos serem católicos indica que, fosse mediante pagamento ou por rede de relações, o Colégio aparecia, era divulgado e construíam-se representações sobre o patrimônio material edificado, o qual não saiu da tutela das mãos da família do Visconde, ao menos enquanto Madre Paula esteve viva.

Entre 1920 e 1930, o edifício foi representado nas páginas dos jornais, direta ou indiretamente, como um prédio grandioso, bonito, limpo, dentro das normas de higiene, estruturado e acolhedor, abrigando a memória de outros tempos. Um local onde os alunos das famílias de elite poderiam, sob os preceitos de Deus, da família e da Pátria, usufruir daquele ambiente para sua formação moral e intelectual. A mesma tríade ainda é tão presente nos dias atuais e, naqueles anos, parecia materializar-se como imagem na casa de um nobre transformada em colégio católico.

Chamou-nos a atenção a notícia publicada no Jornal do Brasil, em 1924, sobre a solenidade de lançamento da pedra fundamental do Colégio, quando algumas obras foram ali realizadas. Foi no Jornal do Brasil, ao qual o conde Affonso Celso estava ligado, que pudemos inferir uma representação de patrimônio partilhada entre o grupo social ao qual o conde pertencia e a congregação religiosa. Os laços foram tecidos por Noemi, de nome religioso: madre Paula. Os antigos casarões têm destino patriótico e duradouro quando seu uso se vincula à educação católica e não descamba na democracia que a tudo nivela. Desse modo, não se permite, a despeito da mudança de status do bairro, que a miuçalha instale seus varais nos antigos sobrados e palacetes. Se há uma identidade citadina que se apoia nessa noção de patrimônio do grupo social aqui analisado, ela não é para todos. É o patrimônio como propriedade, e a propriedade (dos nobres ou da Igreja) como pátria. Em que medida ela teria se mantido ou em que medida ecoam, nos dias atuais, as representações difundidas naqueles tempos?

Nos processos de modernização, a escola tornou-se um dos muitos edifícios que marcam fronteiras, diferenças e formam o gosto estético. Como este edifício “[...] funcionaria hoje como signo de formação de pessoas, da cidade, da sociedade?” (Conduru, 2014, p. 24). Qual seria hoje seu “[...] poder narrativo”? (Benito, 2018, p. 103).

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Rodadas de avaliação: R1: dois convites; dois pareceres recebidos.

Financiamento: Este artigo conta com o financiamento da Faperj (Bolsa Iniciação Científica, processo nº E-26/203.563/2021 e JCN, processo nº E-26/203.018/2018. A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

1Colégio Nossa Senhora de Lourdes (Rua Oito de Dezembro, nº 328, Vila Isabel) - tombado, em definitivo, pelo Decreto nº 41.472, de 31/03/2016, e publicado no Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro em 01/04/2016.

2Os estudos de Rebecca Rogers (2014) sobre as congregações francesas em colônias africanas mostram o financiamento do governo francês para a viagem e a instalação destas organizações. Para o caso do Brasil, ver Leonardi (2010).

3Utilizar o termo ‘cultura católica’ no singular talvez seja impossível diante da multiplicidade de ortodoxias e práticas em disputa em uma instituição tão grande e multifacetada. Por cultura católica, entendemos o trabalho de seus representantes para imprimir, na sociedade na qual se encontram, marcas do que compreendem por catolicismo, forçosamente uma trama entre as determinações da hierarquia e a interpretação dos sujeitos religiosos ou leigos. Sua persistência no Brasil fica demonstrada através da atuação de seus representantes nas casas legislativas da Constituinte à Concordata Brasil-Vaticano (Wohnrath, 2017).

4Aqui pensado como uso do Estado para fins privados e do pouco desenvolvimento do setor público e suas instituições até os dias atuais (Davies, 2018; Mattos, Innocentinni, & Benelli, 2012).

5Para um levantamento da bibliografia sobre os edifícios escolares, ver Rodrigues e Martinez (2018).

6Territorialidade aqui é pensada como “[...] expressão de um comportamento vivido: ela engloba, por um lado, a relação com o território e, a partir daquela, a relação com o espaço estrangeiro” (Bonnemaison, 1981, p. 256).

7“[…] exponente visible y a la vez el efecto interpretado de los signos y de los significados que exhiben los llamados ‘objetos-huelle’, así como también las representaciones que los replican o acompañan”.

8Affonso Celso de Assis Figueiredo 1° - Importante figura política do Império. Formado em Direito pela Faculdade de São Paulo, atuou como secretário de polícia, inspetor da tesouraria provincial, procurador fiscal da tesouraria geral, deputado provincial, senador do Império, Ministro e Secretário de Estado dos negócios da Marinha, Ministro da Fazenda, foi do Conselho do Imperador e advogado da corte (Blake, 1970).

9As irmãs iniciaram suas atividades catequizando crianças da Escola Pública e posteriormente inauguraram um internato com 15 alunas e pensionistas. Em dezembro de 1924, foi lançada a Pedra Fundamental do Colégio na chácara que pertencera ao Visconde e, em 1925, a comunidade se juntou, realizou donativos para ajudar a concluir as obras da sua construção. Em 1937, foi inaugurado o Jardim de Infância e, em 1946, a Escola Noturna São José e o Ensino Secundário. Em 1972, o colégio comemorou 50 anos de fundação no bairro de Vila Isabel. Outro edifício foi construído, e a estrutura anterior transformou-se em um prédio grande e moderno, o qual conta atualmente com 30 salas de aulas, auditório, 3 quadras, ginásio, piscina e capela. No ano de 2022, o Colégio Nossa Senhora de Lourdes Unidade Vila Isabel completou 100 anos de história. (‘2022 um ano muito especial, 100 anos do Colégio Nossa Senhora de Lourdes- Unidade Vila Isabel’- Jornal vinculado à comemoração aos 100 anos da instituição).

10O nome foi modificado quando, em 1870, o Instituto passou a ter sua sede na cidade de Lourdes, na França. A fundação inicial foi na cidade de Lannemezan, França, em 1863.

11Ultramontanismo ou romanização foi a reforma empreendida pela Igreja com a finalidade de centralizar seu controle sobre o clero e as práticas em todos os países onde estivesse presente. Uma de suas marcas foi a promulgação da encíclica Quanta Cura, por Pio IX, em 1864, seguida do Syllabus Errorum, lista de condenação dos chamados erros modernos. Ações da reforma envolviam, além da uniformização do culto e da atuação dos religiosos, novas construções, difusão de novas devoções e substituição das antigas irmandades, centralizando o culto na figura do padre. Sobre o assunto, ver Beozzo (1996). Consideramos que o Concílio Plenário para a América Latina fazia também parte dessa política.

12Os dados sobre o colégio e a congregação utilizados neste artigo provêm do Banco de dados do Grupo Focus (Focus, n.d.), do site da Congregação e do Colégio e de material comemorativo dos 100 anos da escola. O contato com a direção da escola não resultou em acesso aos arquivos.

13Grafado de diferentes formas e com diferentes combinações de abreviações.

14Barata Ribeiro foi prefeito do Distrito Federal entre 1892 e 1893. Pereira Passos, o Haussman tropical (Benchimol, 1992), prefeito entre 1902 e 1906, empreendeu diversas reformas na cidade com o objetivo de deixar para trás definitivamente a cidade colonial.

15Affonso Celso de Assis Figueiredo 2° - Filho do Visconde de Ouro Preto. Realizou faculdade de Direito como o Pai, foi ministro de D. Pedro II, atuou como deputado geral de sua província e demonstrou interesse pelo campo das letras e realizou alguns feitos na área (Blake, 1970).

16Além dele, compunham a equipe Carlos de Laet, Luís Murat, Medeiros de Albuquerque, Múcio Leão, Benjamim Costallat, Barbosa Lima Sobrinho e Aníbal Freire. Nessa mudança de posição do Jornal, as colunas passaram a receber contribuições de membros da Academia Brasileira de Letras (ABL) (Ferreira & Montalvão, 2015). Affonso Celso Júnior foi um dos fundadores da ABL (Academia Brasileira de Letras. Fundação. Recuperado de: https://www.academia.org.br/academia/fundacao).

17Em agosto de 1900, a capela dedicada à Nossa Senhora de Lourdes foi desmembrada da paróquia de São Francisco Xavier, criando-se a freguesia de Vila Isabel. Foi durante a gestão do cardeal Arcoverde. Em 1902 a confraria local uniu-se à Arquiconfraria de Nossa Senhora de Lourdes, na França. Em 1914 foi lançada a pedra fundamental do atual edifício no Boulevard 28 de setembro (http://www.nsl.org.br/nossa-historia).

Recebido: 30 de Setembro de 2022; Aceito: 25 de Abril de 2023; Publicado: 15 de Setembro de 2023

*Autora correspondente. E-mail: leonardi.paula@gmail.com.

Paula Leonardi:

Pós-doutora em História da Educação e Historiografia pela Faculdade de Educação USP (2011), com bolsa FAPESP. Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (Proped/UERJ), pesquisadora dos grupos Focus (Grupo de Pesquisa sobre Educação, Instituições e Desigualdade, FE, Unicamp) e GEHER (Grupo de Estudos História da Educação e Religião, núcleo Rio de Janeiro, Edu, UERJ). Atuou como professora convidada na Universidade Bordeaux Montaigne entre dezembro de 2019 e maio de 2020, com financiamento Capes Print. E-mail: leonardi.paula@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-4046-9703

Giullia de Luca Maia:

Estudante de Pedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), participante do Grupo de Pesquisa GEHER Rio (Grupo de Estudos História da Educação e Religião). Bolsista de Iniciação Científica pela FAPERJ. E-mail: giulliadlmaia@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-0852-280X

Editor-associado responsável:

Raquel Discini de Campos (UFU) E-mail: raqueldiscini@uol.com.br https://orcid.org/0000-0001-5031-3054

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