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Revista de Educação Pública

versión impresa ISSN 0104-5962versión On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.29  Cuiabá ene./dic 2020  Epub 02-Mar-2020

https://doi.org/10.29286/rep.v29ijan/dez.7118 

Artigos

O discurso pedagógico ambiental no jogo Minecraft

The environmental pedagogical discourse in the Minecraft game

Elisângela Barbosa MADRUGA1 
http://orcid.org/0000-0001-6079-7056

Paula Corrêa HENNIMG2 
http://orcid.org/0000-0003-3697-9030

1Mestre em educação ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Rio Grande, RS. Integrante do Grupo de Pesquisa em Educação, Cultura ambiente e Filosofia - GEECAF

2Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professora Associada do Instituto de Educação, professora permanente do Programa de Pós-graduação em Educação Ambiental e do Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande –FURG.


Resumo

O artigo em questão buscou abordar as relações de poder, as formas de condução da conduta dos sujeitos e a formação de um discurso pedagógico ambiental empregado no jogo eletrônico Minecraft. A partir do tema Educação Ambiental e jogo eletrônico, tomou-se como problema de pesquisa a questão: quais lições ambientais são acionadas no jogo Minecraft? Para responder a problemática lançou-se mão da análise foucaultiana do discurso como metodologia. Ao se analisar o jogo, verificaram-se táticas discursivas que visavam ensinar os sujeitos jogadores, por meio de lições de produção e cultivo de horta e plantio de árvores, formas de ser ambientalmente correto.

Palavras-chave Educação Ambiental; Discurso pedagógico ambiental; Minecraft

Abstract

The article in question sought to address the power relations, the ways of conducting the conduct of the subjects and the formation of an environmental pedagogical discourse employed in the electronic game Minecraft. From the theme environmental education and electronic game, it was taken as a problem of research the question: What environmental lessons are triggered in the game Minecraft? To answer the problematic, Foucault's discourse analysis was used as a methodology. When analyzing the game, there were discursive tactics that aimed to teach the players subjects, through lessons of production and cultivation of vegetable garden and planting of trees, ways to be environmentally correct.

Keywords Environmental Education; Environmental pedagogical discourse; Minecraft

Introdução

A trajetória dos jogos eletrônicos vem sendo constituída e marcada por relações de poder. Tais relações são configuradas por meio de estratégias globais e por articulações que formam parcerias que rendem bilhões de dólares e agregam múltiplos públicos. Nesse sentido, observa-se que o mercado dos jogos tem sido permeado por disputas acirradas, as quais fazem do discurso1 uma tática para se manter em um território que é produzido por interesses econômicos. Com isso, discursos são acionados nesses artefatos para capturarem e ensinarem os sujeitos formas corretas de se conduzirem em diferentes âmbitos da sociedade. Assim, depreende-se que tais relações não tratam “[...] simplesmente de discurso e de verdade, mas igualmente de poder, status, de interesses econômicos.” (FOUCAULT, 2010, p. 175).

Seguindo os rastros do referido autor, nota-se que em meio a relações de poder despontam outros discursos que ligam os jogos a diferentes campos de saber, por exemplo, o de superação de diversos problemas por meio do pensamento computacional2. O discurso vencedor emerge para solucionar as dificuldades habitualmente enfrentadas por alunos no processo de ensino-aprendizagem. A falta de motivação, desânimo, desinteresse, dificuldade na aplicação de habilidades prévias seriam vencidas com a aplicação do pensamento computacional. Segundo Gomes e Melo (2013, p. 651, destaques nossos), ele promoveria “[...] a resolução de problemas nos mais diversos campos do conhecimento, [tornando-se] uma habilidade fundamental para todas as pessoas [...]”

Ao se desejar instrumentalizar os sujeitos escolarizados, os jogos digitais entram como metodologias para atraírem e motivarem os alunos, permitindo abordarem diversos conteúdos devido ao seu caráter multidisciplinar. “Além disso, aprendizagem baseada em jogos fornece ligações entre o cálculo baseado em reestruturação (abstração), computação interativa (jogos como modelos de sistemas complexos) e pedagogia construtivista.” (CZERKAWSKI; LYMAN, 2015, p. 60, tradução nossa).

Pesquisas desenvolvidas em 2012 na Universidade de Genebra, na Suíça, têm justamente reforçado o discurso a favor dos jogos eletrônicos. Pesquisadores do Departamento de Psicologia e Ciências cognitivas apontam que jogos de ação, como Call of Duty e Halo, aumentam a capacidade de atenção e favorecem a rápida tomada de decisão do jogador. Para Bavelier et al. (2012, p. 409, tradução nossa), “o jogo de ação pode agir permitindo um conhecimento mais generalizável através de várias abstrações, incluindo a extensão na qual a informação relevante não deve ser suprimida [...]”

Diante de uma série de dizeres, os jogos eletrônicos ganham ares de verdade e em conjunto com um pensamento computacional buscam solucionar dois dos grandes problemas enfrentados neste tempo: as crises educacionais e, principalmente, ambientais. Sendo assim, o presente artigo toma como problema de pesquisa a seguinte questão: quais lições ambientais são acionadas no jogo Minecraft? Os ditos dão materialidade ao discurso, que pronunciam o que é verdadeiro e necessário para este tempo; assim, tem-se o objetivo de apresentar a emergência de um discurso pedagógico ambiental no jogo Minecraft. Opera-se metodologicamente com alguns conceitos-ferramentas da análise do discurso desenvolvida por Michel Foucault, pois se visa perceber o que está dito e visível no jogo. E para se compreender as táticas empregadas nesse artefato, ampara-se teoricamente nos estudos sobre o dispositivo pedagógico da mídia3, desenvolvido por Fischer (1996). Cabe então, primeiramente, pensar quais foram as condições que possibilitaram os jogos eletrônicos emergirem na atualidade com tamanha força, o que será tratado na próxima seção.

Tecnologias/jogos eletrônicos: uma breve história

O percurso histórico dos jogos eletrônicos começou especificamente em um período conturbado da história: entre o final da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria (anos 1945-50). Os físicos Thomas Goldsmith Junior e Estle Ray Mann, ao testarem equipamentos para a produção de televisores e monitores, em 1947, desenvolveram um passatempo que utilizava um tubo de raios catódicos num osciloscópio. Com isso, surgia o dispositivo para diversão de tubo de raios catódicos, assim patenteado e batizado, que simulava mísseis. Os jogos desenvolvidos tinham como propósito a distração do ambiente tenso que a corrida bélica e tecnológica iniciava em meados dos anos 1950 (FINCO, 2010).

No mesmo período, a informática também buscava seu lugar ao sol. Por um longo tempo destinado aos militares para cálculos científicos, seu uso civil difundiu-se durante os anos 1960. Com o aprimoramento e popularização, dos microprocessadores, segundo Rodrigues e Colesanti (2008, p. 61), “[...] estabelece-se um ajuste estratégico entre o audiovisual, a informática e as telecomunicações, o que resulta na comunicação virtual e nas denominadas novas tecnologias de comunicação e informação.”

A primeira tentativa de produzir um videogame diferente da distração de guerra apareceu em 1958, com a criação de um jogo de tênis elaborado por Willy Higinbothan. No entanto, o idealizador não considerou a potencialidade da invenção e não patenteou seu invento. Alves (2005, p. 38), indica que

Na década de 1960, Ivan Sutherland defendeu sua tese de doutorado no Instituto de Tecnologias de Massachusets – MIT, apresentando um desenho do que podemos considerar o primeiro sistema interativo em tempo real de criação de gráficos para computadores, dando origem ao precursor dos atuais geradores para produção de programas de multimeios e videogames.

De acordo com Alves (2005), em 1962, Steve Russel, também um estudante do MIT, produziu o que seria indicado como o primeiro videogame informático, o Space War, exposto em uma tela de raios catódicos. O entendimento de controle ou plataformas de videogame somente surgiu em 1966, com Ralph Baer, que desenhou o primeiro protótipo para ser conectado a uma televisão doméstica. A partir dessa proposta inicial, diversos pesquisadores de tecnologias eletrônicas passaram a elaborar programas de computador que alicerçaram os jogos eletrônicos produzidos nos anos 1970 (FINCO, 2010). A criação e a comercialização do microprocessador lançaram múltiplos processos econômicos e sociais de grande escala (LÉVY, 2010), o que também possibilitou a qualificação dos videogames. O jogo Sprint, criado pela Atari, foi o primeiro a agregar um microprocessador em sua estrutura (ALVES, 2005).

Em 1972, a empresa Magnavox lançou o primeiro console doméstico, o Odyssey. No entanto, no mesmo ano, a Atari lançou o jogo Pong, ocupando rapidamente o espaço no mercado (FINCO, 2010). Mas, em 1976, a empresa Atari, em crise, é vendida para a Warner Communications. Nesse período, havia mais de 20 empresas que competiam nesse mercado, o que acarretou na crise do setor e na queda acentuada de investimentos (ALVES, 2005).

Entre 1979 e 1982, o mercado, de forma tímida, começou a se restabelecer, principalmente pela inserção de uma empresa japonesa, a Nintendo, que lançou os games para salões recreativos, como o Pac-Man, entre outros. Todavia, esse crescimento não pode ser percebido isoladamente, visto que existiu uma ligação direta com os problemas enfrentados em outros setores do entretenimento. Como a indústria cinematográfica hollywoodiana, que nesse contexto passou por uma crise, cujos efeitos, entre outros, refletiram quedas nas vendas dos ingressos. O mercado do cinema também foi superado, em muito pelo das discotecas e dos games (ALVES, 2005).

“Os anos 80 viram o prenuncio do horizonte contemporâneo da multimídia.” (LÉVY, 2010, p. 32). Na mesma medida em que se acentuava o número de usuários dos computadores pessoais, havia queda na quantidade de usuários de consoles, porém, o mercado das tecnologias sempre oscilava. Os computadores, segundo Alves (2005, p. 42), “[...], propunham-se a ocupar o espaço de entretenimento e desenvolvimento de atividades pedagógicas. Diante desse novo universo de alternativas, as empresas de games começavam a desaparecer do cenário. Decretou-se, portanto a morte dos videogames.” Todavia, a empresa Nintendo reage, contrariando as expectativas de substituição dos consoles pelos PCs. Ao fazer testes em Nova Iorque para vender o console Nintendo Entertainment System (NES), fez ressurgir o sucesso dos videogames, ao ocupar o mercado norte-americano. Em 1981, lançou o jogo Donkey Kong, em que apareceu pela primeira vez o personagem que se transformaria num símbolo da Nintendo, o Mario Bros (ALVES, 2005).

No final de 1989, a Sega entrou no mercado com o console Mega Drive. Em 1991, a Sony lançou o PlayStation, para enfrentar o Super NES, e a Microsoft inseriu-se com o Xbox. O mercado cria demandas e a Microsoft (Xbox) e a Nintendo (GameCube) desenvolvem uma nova geração de consoles com acesso à Web (ALVES, 2005). No início da década de 2000, “[...] inovações realmente interessantes começam a ser vistas. Em 2005, o novo console da Microsoft é lançado: o Xbox 360. Em novembro de 2006, a Nintendo lança o Wii, enquanto a rival Sony lança o Playstation 3.” (FINCO, 2010, p. 31).

Hoje, o mercado de games já está bem consolidado, mas não menos disputado. Alicerçado em avanços tecnológicos, exposições de feiras de games, ampliações de plataformas e a coadunação com outros campos de saber, o setor ganha o mundo. Como um exemplo de feira no Brasil, pode-se indicar a Brasil Games Show (BGS), uma feira de exposição de games que na atualidade acontece anualmente em São Paulo e tem movimentado esse mercado. Criada em 2009, bianualmente, atraiu 4.000 visitantes (BGS, 2017). A partir de 2012, tornou-se anual, ampliando ainda mais o número de expositores e de público.

Seguindo as constantes inovações e as demandas da sociedade, surgem outras tendências dentro dos próprios jogos eletrônicos, por exemplo, na franquia The Sims4 evidenciam-se lições de cuidado com as plantas, produção de horta, uso de fertilizante natural, consumo de produtos naturais na alimentação e de realização da reciclagem. Nessa mesma linha, o jogo eletrônico ECO5 busca trabalhar as questões de sustentabilidade e ensina que, “[...] cada recurso impacta diretamente no funcionamento do planeta, e sem um planejamento e entendimento do ecossistema pode haver desmatamento, rios podem ser poluídos, habitats destruídos e espécies podem ser extintas.” (CRITICAL HITS, 2017, n.p.). Entre as seis versões do jogo, uma se destaca por ser especial para a sala de aula, que custa US$ 500 (STRANGE LOOP GAMES, 2018).

Manter-se num mercado tão competitivo exige estratégias inteligentes, inovações tecnológicas constantes, parcerias e muita divulgação na mídia. Por isso, se colocam em suspenso as verdades fabricadas e legitimadas pelos jogos, assim como os modelos e as relações socioambientais de preservação do planeta, centradas em atitudes política e ecologicamente corretas dos sujeitos.

O jogo eletrônico Minecraft

Minecraft é um jogo eletrônico que foi criado pela empresa Mojang em 2009, na Suécia, mas lançado oficialmente em 2011. Em 2014, a empresa Microsoft comprou a criadora do Minecraft por US$ 2,5 bilhões. Em janeiro de 2018, a chefia da Mojang informou que o jogo de bloquinhos tinha atingido a marca de 74 milhões de jogadores ativos e vendeu 144 milhões de cópias, mundialmente (ADRENALINE, 2018).

O jogo lembra os blocos de montar da Lego, devido ao seu formato quadrado. Os jogadores exploram nesse jogo um mundo de recursos naturais esgotáveis. O Minecraft possui três modos: criativo, aventura e sobrevivência. No modo criativo, o jogador já possui todos os itens na barra de materiais para construir livremente. No modo aventura, o jogador também possui todos os itens, mas as ferramentas somente funcionam se forem utilizadas adequadamente. E no modo sobrevivência o jogador inicia o jogo sem nada de materiais, de forma que tudo deverá ser adquirido, conforme seu progresso.

Diversas reportagens têm surgido para ressaltar a importância do jogo em vários âmbitos, mas principalmente na educação. O jogo Minecraft já foi utilizado em salas de aula de mais de 40 países, entre eles, Estados Unidos, Suécia, Irlanda e Brasil (PORVIR, 2016). Na Suécia, o jogo se tornou uma disciplina obrigatória nas escolas (DIÁRIO GAÚCHO DE PORTO ALEGRE, 2013). “Além das escolas, ‘Minecraft’ também virou base para projetos sociais. [...] O projeto, chamado Bloco por Bloco, é coordenado pelo Habitat, escritório da ONU para desenvolvimento urbano e ambiental [...]” (FOLHA DE S. PAULO, 2013, n.p.).

No Brasil, movimentos de adesão do jogo começam a aparecer aos poucos. A página do site do UOL Educação traz o exemplo de uma escola em São Paulo cujo projeto foi vencedor do Fórum Global de Educadores promovido pela Microsoft. O responsável pelo projeto afirma que: “A oficina de games mostra que o jogo extrapola o próprio jogo. [...] utilizamos o que os jovens gostam em benefício da formação deles, desenvolvendo habilidades vocacionais e sociais que as demais disciplinas convencionais não desenvolvem.” (UOL EDUCAÇÃO, 2015, n.p., destaques nosso). A reportagem apresentada no site do jornal Zero Hora traz o exemplo de uma escola em Porto Alegre-RS, que vem utilizando o Minecraft como ferramenta pedagógica e aponta o quanto tem sido grande a confiança nesse artefato. Segundo a reportagem, um dos idealizadores do projeto na escola afirma que “[...] os jogos obtêm sucesso onde a escola muitas vezes fracassa: na capacidade de prender a atenção da garotada.” (ZH NOTÍCIAS, 2013, n.p.).

Devido as suas peculiaridades, o jogo tem se aproximado das questões dos campos da Educação Ambiental e pensamento computacional. “No jogo é possível trabalhar questões pessoais e identificar habilidades, o entendimento da arte, a geografia por meio das unidades de relevo, a ciência, o pensamento computacional que leva à lógica da programação. A chance de se estudar história, construção ou decoração. Tudo por meio dos blocos.” (G1 EDUCAÇÃO, 2016, n. p.). O site Giz Modo Brasil (2016, n.p., destaques nosso), ao comentar os lançamentos da Microsoft para a educação, especialmente o Minecraft: Education Edition, aponta:

A diferença em relação ao jogo tradicional está em recursos adicionais para escolas: esta versão permite que professores criem e apliquem projetos para seus alunos. [...] A Microsoft temdiversas lições sugeridas, incluindo “fatores e múltiplos”, “área e perímetro”, “perda de biodiversidade”, “desmatamento”, “planejamento de cidades”, entre muitas outras.

Em se tratando de questões ambientais, esse artefato tem se mostrado ainda mais potente para uma investigação no campo da Educação Ambiental. Em 2015, a Monsanto, uma multinacional da agricultura e da biotecnologia, promoveu um desafio no Brasil Game Show (BGS). O desafio intitulado Desafio Fazenda Sustentável, consistia em criar “[...] no ambiente do jogo [Minecraft] uma fazenda de acordo com critérios de boas práticas na agricultura, [...], por exemplo, delimitar Áreas de Proteção Permanente (APP) e de Reserva Legal.” (GLOBO RURAL, 2015, n.p., destaques do autor).

Os ditos presentes nas mídias dão apenas os primeiros vestígios para um forte discurso pedagógico ambiental no jogo Minecraft, pois a mídia não apenas difunde informações, mas fabrica discursos e constrói significados e sujeitos (FISCHER, 1997). Com isso, uma rede discursiva permeada de relações de poder e interesses abre as portas mansamente das escolas para o Minecraft. Entre interesses econômicos e pedagógicos, observa-se uma clara proposta do jogo de educar os sujeitos para situações reais.

Analisando o discurso pedagógico ambiental

A predileção pelos conceitos/ferramentas de Foucault como metodologia é norteada por sua potência diante do objeto escolhido, o jogo eletrônico Minecraft. Uma análise do discurso tem como proposta perceber as recorrências discursivas que produzem verdades. Em épocas e sociedades diferentes existiram produções discursivas. Reguladas, escolhidas, ordenadas e redistribuídas por técnicas que visam conclamar poderes e perigos para controlar os acontecimentos casuais, evitando a pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 2014). Sendo assim, nota-se que existem discursos ambientais que exercem ações nos artefatos culturais e nos muitos sujeitos para instituírem relações de verdades.

Nesta proposta de pesquisa, olhou-se para o material com o objetivo de se perceber o dito, o que está contido em caixas de informações e comandos dados pelo jogo para o jogador, e o visível, mediante cenas que se desenvolvem dentro do jogo. Segundo Fischer (2013, p. 142), “[...] coisas efetivamente ditas, escritas, gravadas em algum tipo de material, passível de repetição ou reprodução [são] ativadas através de técnicas, práticas e relações sociais.” Por isso, buscou-se interagir, jogando com o objeto investigado por aproximadamente um ano, com intuito de perceber nas cenas produzidas e nos comandos dados pelo jogo as lições e as características dos personagens que poderiam apontar para uma relação discursiva, ou seja, para a produção de um discurso pedagógico ambiental. A versão do jogo Minecraft utilizada foi a 1.12 original para PC. Para fins de análise utilizou-se a ferramenta de captura de tela do computador, por meio da qual foram realizadas 297 capturas de tela, referentes aos momentos e ações desenvolvidas no artefato.

A análise trata da forma sistemática da exterioridade; segundo Foucault (2015), a descrição histórica das coisas ditas é transpassada pela oposição do interior e do exterior, comandada pelo retorno da exterioridade. Contingências ou necessidades materiais, corpo visível ou tradução incerta, que se direciona ao núcleo essencial da interioridade, o qual múltiplos sujeitos se reconhecem como parte de um dito naturalizado em verdades.

Observou-se no material lições que educam ambientalmente os sujeitos-jogadores, que engendram e sustentam um discurso pedagógico ambiental no jogo eletrônico Minecraft. No jogo, o jogador deve, ao construir a horta (Figura 1a), escolher um lugar próximo à água ou regar bem a plantação, pois as plantas no jogo necessitam de um solo úmido para seu melhor desenvolvimento, bem como preparar a terra, lavrando-a com a enxada (Figura 1b), que é o instrumento indicado como adequado para esse trabalho.

Fonte: produzidas pelas pesquisadoras

Figura 1  lições verdes (a) (b) 

As sementes são plantadas uma após a outra para que se tenha uma visão planificada e uniforme do crescimento das plantas, o que possibilita, por sua vez, uma ordenação e controle da natureza. Fertilizar as plantas com adubo orgânico, para que as plantas cresçam mais rápido. O jogador deve saber reconhecer o tempo de fazer a colheita, a partir da mudança da coloração das folhagens das plantas. Entendeu-se que todas essas orientações se configuram em lições que ensinam aos sujeitos jogadores como devem interagir no mundo de forma ambientalmente correta. “Se atentarmos bem para o modo como são elaborados inúmeros produtos midiáticos, há um sem-número de técnicas através das quais se propõe a todos nós que façamos minuciosas operações sobre nosso corpo, sobre nossos modos de ser, sobre as atitudes a assumir.” (FISCHER, 2002, p. 4).

Muito semelhantemente, as árvores devem ser plantadas para que não se esgote esse recurso e, de igual modo, os animais também devem ser reproduzidos. Uma natureza bela, útil e desejável é projetada nas cenas exuberantes do artefato. Notadamente, o modo como o Minecraft é construído possibilitou apontar nele a existência de um discurso pedagógico ambiental, “[...] supondo que um produto dessa natureza se faz “pedagógico” a partir da própria estruturação de seus [paratextos], sons e imagens.” (FISCHER, 1997, p. 66, destaques da autora).

O jogo cumpre estrategicamente bem o seu papel ao se produzir também como objeto discursivo, com chamadas e aparecimento súbito de comandos, tais como: É hora de plantar, Plante uma semente e veja ela crescer..., Adquira equipamento. “A estratégia de aparecimento súbito funciona, então, na associação de técnicas corporais (gestos, olhares, posturas etc.) e das técnicas intelectuais (memorizar, diferenciar, contar etc.), tendo como base, também as narrativas montadas com as imagens-sons.” (MENDES, 2006, p. 106). Repetições de cenas e de sons não apenas orientam a conduta do jogador, como, de igual modo, o capturam por meio da imersão que o coloca dentro do jogo. “Reproduzem-se práticas e, mais do que isso, reproduz-se uma linguagem: a linguagem do fragmento, do clipe, [do jogo], da imagem e do som do momento.” (FISCHER, 1996, p. 289).

Sendo assim, um poder passa a atuar na atenção e na memória para promover a ligação das imagens, sons e cores ao mundo real, criando, assim, identificadores que conectam, ou melhor, capturam os sujeitos. De acordo com Lazzarato (2006), a memória e a atenção são motores que funcionam no plano virtual e, ao se articularem com as tecnologias de ação à distância, se modulam para constituir subjetividades quaisquer. A ação de modulação das mentes dos sujeitos pode ser compreendida pelas narrativas dos jogadores, que transcendem o ambiente virtual do jogo. Cita-se o exemplo de uma jogadora e youtuber chamada Bibi Tatto, que lançou um livro contando suas experiências no jogo Minecraft. A autora faz as seguintes narrativas, ao descrever o mundo em que se passa o jogo:

Olho para o lado e vejo um riozinho. Fico feliz, é sempre bom ter água por perto. Escolho descer das árvores [...], me aproximo um pouco mais e percebo que não é um riozinho, e sim algo bem maior! Logo eu me lembro do rio Nilo, o mais extenso do mundo, situado no continente africano, e também do rio Amazonas [...] (2016, p.13).

Nossa, que nascer do sol lindo! A vista que tenho da entrada é realmente encantadora! Subo o morro. Olha aí, já avistei um frango! (2016, p. 31).

As narrativas apresentadas nos trechos anteriores se confundem com cenas presenciadas no cotidiano dos sujeitos ao vislumbrarem uma paisagem real. Vê-se que personagem e jogador, natural e artificial, bem como atual e virtual, se transpassam a ponto de se mesclarem. Evidencia-se nas palavras da autora/jogadora uma espécie de encantamento por uma determinada visão de natureza natural, que imediatamente a direciona a paisagens reais. De acordo com Mendes (2006), no âmbito das estratégias é possível conduzir a conduta do jogador, pois as fantasias narradas nos jogos não são apenas entendidas pelos jogadores, ou seja, são vividas e significadas em processos narrativos que transfiguram e transpõem o ser jogadores.

Na atualidade, os youtubers de jogos eletrônicos ganham cada vez mais influência entre os jogadores e na própria sociedade. Ser um youtuber pode se tornar uma atividade rentável, tanto para as empresas, YouTube e Microsoft, quanto para os sujeitos que se dispõem. Em notícia divulgada nos sites da internet, por exemplo, Band (2017), foi propagado que a revista Forbes lançou uma lista dos youtubers mais bem pagos pelo site. No primeiro lugar está o britânico Daniel Middleton de 26 anos, também conhecido como The Diamond Minecraft, que lançou seu canal de games intitulado o Dan TDM, em 2012. Em 2017, ele faturou cerca de R$ 54,3 milhões.

Os youtubers, com suas estratégias, arrebatam um público enorme de seguidores. Pode-se indicar, a título de exemplo, o canal intitulado Authentic Games, que grava e divulga vídeos e gameplays, em especial do jogo Minecraft. Seu canal no YouTube tem atualmente mais de 12 milhões de inscritos (AUTHENTIC GAMES, 2017). De acordo com Mendes (2006), a filiação a uma comunidade acontece de modo sutil e é montada com base em diversas frentes; entre elas, a internet é uma das principais. O universo dos jogos eletrônicos não é somente configurado por uma comunidade, mas por múltiplas, que podem ser encontradas em torno de tais artefatos. Nessas comunidades, o jogador incorporará um conjunto de práticas, participando, assim, ativamente da condução da conduta de si e de outros. Segundo Fischer (1996, p. 289, destaques da autora):

Os mecanismos de poder tornam-se realmente cada vez mais sutis e de uma sofisticação tal que quase não ousamos questioná-los, até porque acabamos por percebê-los como um bem para nós. Isso é dado pelo tipo de relação que se estabelece entre [mídia e público], como também pelo próprio ambiente em que se realiza essa relação “pedagogizante”.

Notadamente, os sujeitos jogadores do jogo Minecraft transcendem o papel de simples usuários para serem promulgadores de discursos no âmbito social. Com isso, verificou-se a amplitude e a potência desse artefato em fabricar sujeitos. Uma potência que se realiza em espaços que ultrapassam paredes para se constituir em redes virtuais, que englobam uma infinidade de ditos e não ditos. Em consonância com Lazzarato (2006), percebeu-se que a criação e a efetuação do jogo são sempre exercidas numa compreensão mútua, aberta, aleatória, infinita, visto que a empresa, a Microsoft, e os usuários, os jogadores, tendem a se mimetizar. Assim, a captura e fidelização dos clientes significa, especialmente, capturar a atenção e a memória, capturar as mentes, em suma, a constituição e captura de desejos, crenças e redes. Portanto, a figura do público se acentua mediante o apagamento de uma perspectiva de mercado comumente disseminada.

Considerações finais

Mediante o apresentado, entendeu-se que as cenas produzidas no jogo ensinam muito a partir daquilo que é fixado nas mentes dos sujeitos. Os artefatos culturais “[...] educam sobre diferentes questões, constituindo e produzindo, afirmando ou negando determinadas identidades, gestos e posturas.” (GARRÉ, 2015, p. 60). Na esteira desse pensamento, viu-se que o dito e o visível presentes nas imagens e nos paratextos do jogo são mobilizadas para ensinarem formas de olhar e agir para a natureza. Num movimento que se preocupa em produzir os elementos naturais que são passíveis de fazerem parte do mundo humano.

Depreendeu-se que o discurso que se coloca em funcionamento a partir de diversos ditos é o de educar ou pedagogizar os sujeitos por meio de lições ambientalmente corretas. O jogo Minecraft, bem como outros artefatos tecnológicos, meios de informação e comunicação, fabrica significados e exerce decisivamente uma ação na formação dos sujeitos. Não apenas propaga informações, mas também constrói saberes e formas personalizadas de comunicar e de produzir sujeitos, assumindo, nesse sentido, uma função claramente pedagógica (FISCHER, 1997).

Os ditos produzidos pelas cenas e pelos comandos do jogo mostram ao jogador, passo a passo, os modos corretos de elaborar uma horta. Nota-se que o Minecraft não é desprovido de interesses e, de alguma forma, ele educa para o consumo e para ações ambientalmente corretas, em suma, de um modo ou de outro se evidencia o seu papel pedagógico (MENDES, 2006). A potencialidade de fabricar sujeitos capazes de resolver problemas ambientais, sociais e educacionais é proclamada por diferentes ditos, que, por meio de pequenos fragmentos do discurso, potencializam o discurso pedagógico ambiental produzido no Minecraft. No manejo das táticas de tal discurso, as lições ambientais acionadas no jogo se constituem como um bem, “[...] finito, limitado, desejável, útil - que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca [...] a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta, e de uma luta política.” (FOUCAULT, 2015, p. 148).

Diante de tais fragmentos, compreendeu-se que as imagens produzidas no jogo ensinam modos de olhar a natureza por meio de identificadores que são engendrados pela atuação de um discurso pedagógico ambiental. Para Lazzarato (2006), os mecanismos de formação do sensível e dos públicos, imprensa, literatura, televisão, rádio, internet, jogos eletrônicos, smartphone, etc., fabricam maneiras diferentes de atualizar e efetuar o que se diz, se pensa, se vê, se faz, se considera, em suma, são formas de transmitir o discurso, de construir e capturar as subjetividades.

Com isso, a Educação Ambiental emerge como “[...] uma certa objetivação de sujeitos que se dá através de ensinamentos quanto às condutas e comportamentos adequados em relação às necessidades ambientais.” (GARRÉ, 2015, p. 42). Ou seja, sobre os modos como os sujeitos devem olhar e atuar numa natureza que se diz constantemente em crise. Modos também indicados nas ações da empresa Monsanto com a elaboração da horta sustentável no jogo Minecraft (GLOBO RURAL, 2015), e na própria produção do jogo ECO, que é inspirado no Minecraft e tem o foco na sustentabilidade.

Mediante o que se tem explanado até aqui entendeu-se, conforme Lazzarato (2006), que o processo de criação e de realização de mundos não são inseparáveis de uma política de redes, fluxos e de memórias artificiais. A propagação da palavra, da percepção, da visão, dos conhecimentos, das informações e dos saberes, se difunde em espaços de disputa e de relações de poder. Por isso, o jogo eletrônico Minecraft se torna não somente alvo do discurso pedagógico ambiental, mas seu instrumento na fabricação de sujeitos ambientais nesse tempo.

Referencias

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1Para Foucault (2015, p. 143), o discurso é “[...] constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência.”

2Carvalho, Chaimowicz e Moro (2013, p. 642) indicam que o pensamento computacional é “[...] uma maneira de pensar que utiliza conceitos e metodologias da computação para resolver questões em um amplo espectro de assuntos oferecendo, então, um conjunto de habilidades importantes para qualquer das ciências modernas.”

3Segundo Fischer (1997, p. 63, destaque da autora), “[...] se constrói através da linguagem mesma de seus produtos; de que há uma lógica discursiva nesses materiais, que opera em direção à produção de sentidos e de sujeitos sociais; e de que há uma mediação, na relação complexa entre os produtores, criadores e emissores, de um lado, e os receptores e consumidores, de outro, a qual é dada particularmente pelo modo como se estruturam os ‘textos midiáticos’.”

4Série de jogos eletrônicos de simulação da vida real desenvolvidos pela Electronic Arts.

5Jogo produzido pela Strange Loop Games, e sua criação foi inspirada no jogo Minecraft.

Recebido: 17 de Agosto de 2018; Aceito: 02 de Setembro de 2019

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