1 Introdução
Todos sabemos como pensar com Foucault é procurar sair dos trilhos do pensamento convencional, é exercitar o pensar de outros modos. Isso não é o mesmo que “ser do contra” ou “ser contra” os outros modos de pensar. Em vez de ir contra a corrente, talvez o melhor seja girar e desviar-se daquilo que todos, na corrente, tomam como tranquilo, natural e bem sabido (VEIGA- NETO, 2015).
Michel Foucault 1pensador do século XX é o representante de um espírito inquieto, incomodado com os fenômenos diversos que nos afetam como seres humanos e cujas ideias nos impulsionam, também, a refletir sobre os contextos educativos na contemporaneidade e seus impactos na conformação e obediência das subjetividades. A magnitude dessa influência advém do grau em que suas ideias, embora antagônicas aos entendimentos existentes, são concludentes e persuasivas no nascimento da recusa das ideias pré-fabricadas, dos conformismos sociais.
Seus escritos sobre a relação entre os sujeitos e o poder nos levaram a problematizar os contextos na Educação Infantil, foco desse texto, com o intuito de reconhecer como se constituem e se organizam do ponto de vista das práticas pedagógicas e como afetam os sujeitos que delas participam. Com Foucault, além de analisar como o poder opera para governar as pessoas, investigamos as contracondutas, os caminhos, as possibilidades e alternativas para a constituição de uma relação entre adultos e crianças pautada na escuta ativa, no respeito e no acolhimento, como forma de resistência.
O autor considera os sistemas de ensino como um espaço controlador, onde prevalecem e materializam-se práticas disciplinadoras no tecido da obediência e do sufocamento da subjetividade. Assim, “[...] se compreendermos a educação como o conjunto de ações pelas quais uns conduzem os outros, logo compreenderemos que ela ocupa lugar de honra nos estudos sobre o governamento” (VEIGA-NETO, 2015, p. 53).
Veiga-Neto (2015, p. 55), prossegue afirmando que “[...] podemos dizer que governar a infância significa educar as crianças, moldando-lhe a alma que é, ao mesmo tempo, efeito e instrumento de uma anatomopolítica dos e sobre os corpos infantis”. Isto é, em muitos momentos, queremos docilizar o corpo das crianças, regrá-lo, ajustá-lo. E, aos poucos as crianças vão se acostumando a ficar sentadas, obedecendo pontualmente o que lhes é mandado. Essas ações, permeadas por relações de poder, são percebidas em momentos de brincadeiras entre crianças, com o controle do seu brincar por professores, além de outras situações percebidas como a imposição, sem medida, de uma maneira ‘certa’ de realizar as atividades pedagógicas, ou até mesmo com a rotina rígida ancorada no ritualismo e na repetição.
O texto, nesse sentido, objetiva refletir sobre o governamento da infância e o controle das crianças por meio da efetivação das práticas pedagógicas, a fim de compreender mais plenamente sobre o impacto das formas específicas de poder e dominação que se exerce sobre as crianças pequenas. Sobre esse assunto, é percebível no cotidiano infantil, ações de profissionais que, em prol de uma educação que se afirma ‘limitória’, criam situações disciplinares e vexatória como alternativa para o controle da disciplina: manipulações do tempo, como por exemplo: “Se não parar de fazer bagunça, vai ficar sem parque”; “Se continuar desobedecendo vai sair da brincadeira” entre outras; ensino-retribuição, principalmente, para as crianças que se comportam “bem”, que são obedientes ao professor, realizam todas as atividades propostas e com habilidade (estrelinhas, carinhas e emojis, presentes, etc.)
Diante disso, o exercício teórico-metodológico consiste em refletir, urdido pelos fundamentos de Foucault (1979; 1995; 2008; 2014), Veiga-Neto (2015) e leituras secundárias acerca do governamento da infância e controle infantil que tem se propagado de maneira efetiva no cotidiano das práticas pedagógicas voltadas ao aprendizado e desenvolvimento da criança, especificamente, de 0 a 3 anos. De modo particular, apresenta parte das reflexões realizadas na pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação da Universidade Estadual Centro-Oeste, em Guarapuava, Paraná, cujo objetivo era reconhecer e problematizar as práticas pedagógicas com crianças de 0 a 3 anos de idade sob a perspectiva das relações de poder. A coleta de dados foi realizada em dois Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) de um munícipio de médio porte no interior do Paraná, os quais denominamos de Instituição “A” e Instituição “B”. A pesquisa apoiou-se em observações de práticas e entrevistas com professoras das turmas e gestoras das instituições durante o segundo semestre do ano de 2017 e início de 2018, em turmas do Berçário, Infantil I, Infantil II e Infantil III. A escolha dessas instituições deveu-se à intenção de acompanhar o desenvolvimento do trabalho pedagógico em locais que atendem o mesmo segmento, mas com características próprias e modos de operação que podem diferenciar-se em função do público atendido e das estratégias adotadas pelas profissionais.
O texto está didaticamente estruturado em duas seções. A primeira trata das reflexões de Foucault a respeito das relações de poder voltadas para o âmbito da Educação Infantil. Posteriormente, tecemos considerações a respeito dos processos de governo que incidem sobre o sujeito infantil, no caso, a criança de 0 a 3 anos. Para tanto, o exercício far-se-á pelo estabelecimento de possíveis confluências entre os escritos foucaultianos e as percepções nas instituições voltadas ao atendimento da criança pequena.
Pensar a infância com e a partir de Foucault é questionar, estudar e refletir sobre o funcionamento das instituições e a configuração da nossa sociedade, utilizando a criticidade como instrumento de mudança e transformação. Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de escritura, essa experiência em palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferente do que vimos sendo. Assim, a educação para a criança pequena deve ser envolvida pela transformação do que sabemos e, não reprodução servil do já sabido.
2 As relações de poder em Foucault e o controle nas práticas pedagógicas
Como destacam os diversos estudiosos das obras de Foucault, o intuito do autor foi desenvolver estudos sobre o sujeito moderno, empenhando-se com intensidade no ano de sua morte, 1984. Segundo Dreyfus e Rabinow (1995, p. 231), Foucault dedicou-se à escrita “[...] da história dos diferentes modos pelos quais os seres humanos são constituídos em sujeitos [...]”, enquadrando-se na tradição filosófica como um pensador crítico, reconstruindo uma verdade produzida pela história 2e livre de relações com o poder.
Para Fonseca (2003, p.25), Foucault se dedicou às “[...] práticas que dentro da nossa cultura tendem a fazer do homem um objeto [...]”, mais especificamente na sociedade capitalista, a qual busca moldar esses sujeitos com a finalidade de torná-los produtivos. Portanto, classifica-os de acordo com suas aptidões para o trabalho e determinando a função e a posição que os mesmos devem exercer.
Foucault (1982) apresenta a compreensão do sujeito para posteriormente entender o poder, ressaltando que estamos envoltos de instâncias onde ele circula. Assim, o poder se manifesta no discurso, nas práticas, configurando contextos e ações de exercício de poder.
O autor está preocupado com formas de ‘governo’ dos indivíduos ou grupos: “[...] o governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes [...] em que governar, nesse sentido, é estruturar o campo possível de ação de outros” (FOUCAULT, 1982, p. 221). Essa forma de governo nada mais é do que o poder ‘disciplinar’ exercido por meio de sua ‘invisibilidade’ com as tecnologias normalizadores do eu
O poder disciplinar, ao contrário, se exerce tornando-se invisível: em compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos. Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles. É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeitado o indivíduo disciplinar (FOUCAULT, 1977, p. 167).
Moura (2010, p.42), contribui para essa compreensão quando menciona que “[...] as relações de poder se encontram dispersas e pulverizadas em todas as dimensões sociais, das relações homem-mulher às relações escolares, religiosas e de saúde”. Ainda, as análises foucaultianas possibilitam olharmos mais atentamente para essas relações e reconhecer o exercício do poder.
Foucault (2014) nomeou e conceituou a chamada sociedade disciplinar pela forma como o poder era exercido por meio de uma dinâmica de vigilância, com punições para os desviantes, no sentido de que a obediência disciplinar pudesse afirmar o princípio de humanidade, ou seja, a obediência nos humaniza e a desobediência é monstruosa.
Foucault (2014) revela, de forma fracionada, que a existência de dispositivos disciplinares é anterior ao surgimento da sociedade disciplinar, uma vez que sempre existiram formas de controle social as quais foram sendo modificadas a partir do século XVII, com a dissolução do poder monárquico e do Estado absolutista (marcado pelo Mercantilismo, pela burguesia nascente versus clero e nobreza, finalizado com a Revolução Francesa e Industrial). Acreditava-se que o rei era o poder central e, portanto, todo o crime cometido na sociedade era entendido como praticado contra o rei. Com o enfraquecimento do poder real, essa dinâmica vai sendo aos poucos alterada, mas Foucault nos ajuda a reconhecer que se a figura do monarca estava deixando de existir, as formas de restringir essas transgressões também foram sendo alteradas, sendo que a punição por castigos físicos foi substituída pelo encarceramento.
Essa sociedade passa a ser implantada no decorrer dos séculos VXII e VXIII configurando-se, sumariamente, numa dinâmica de controle por meio da combinação de diversos mecanismos de vigilância e monitoramento. Essa rede de controle é justificada, segundo Foucault (2014), pela necessidade sentida pela burguesia – ao compreender o perigo que a população representava caso aderisse aos ideais iluministas (homem como centro e uso da razão em substituição às crenças e ao misticismo) e da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade) – de realizar um controle mais eficiente da população e suas formas de agir e pensar.
No que tange às sociedades modernas estas são regidas por esquemas disciplinares, normatizadores e hierárquicos com vistas a tornar os corpos disciplinados (dóceis), controlar espaços e tempos e, mais recentemente, as informações. Estruturam-se em mecanismos e modelos de controle social pautados no monitoramento, na vigilância e na segregação, sendo que o poder não se limita a um grupo ou sujeito, mas se exerce nas relações.
A disciplina como preocupação na configuração do comportamento social emerge e se consolida quando os detentores do poder se deram conta que era mais eficiente e produtivo realizar o controle do que a punição, por meio de dispositivos funcionais calcados em coerções sutis. Assim, a sociedade disciplinar impõe a classificação, a individualização e a hierarquização dos sujeitos, conduzindo a conduta dos homens, submetendo seus corpos e mentes. Possui natureza opressora e também produtiva, pois ao mesmo tempo que coíbe induz a um autocontrole, a uma vigilância dos sujeitos sobre suas próprias ações (FOUCAULT, 2014).
Não obstante, essa visão e objetivação do controle foi expandida para o interior das edificações que passaram a ser projetadas de forma a garantir o monitoramento. Assim, foram construídas instalações como o Panóptico, que se trata de uma construção planejada com uma arquitetura interna que possibilitava a vigilância dos sujeitos no seu interior. Tal arranjo era destinado às prisões, manicômios e escolas, tendo sido idealizado por Jeremy Bentham (1748-1832). A construção possuía disposição circular das celas, cuja parte frontal ficava exposta à observação do diretor que estaria em uma torre ao centro, de onde poderia ver a todos os internos sem, no entanto, ser visto por eles. Tal disposição gerava incerteza quanto à presença do diretor e essa dúvida, por sua vez, fazia com que os próprios sujeitos se vigiassem, circunscrevendo uma existência governada. Essa dinâmica de vigilância oportunizava um acompanhamento e monitoramento da conduta dos sujeitos (detentos, empregados, alunos), sustentados por ameaças de punição as quais geravam medo com o objetivo de se obter o maior domínio sobre os indivíduos, coibindo revoltas e a desobediência à ‘ordem’ estabelecida (FOUCAULT, 2014).
À luz de tal questionamento “[...] devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões? (FOUCAULT, 1977, p. 199). O autor envereda seu olhar para os mecanismos que constroem instituições e experiências institucionais, e não sobre as pessoas no interior desses espaços. Assim, ao invés de contemplar o insano, o prisioneiro ou a pessoa desprovida de uma condição econômica favorável, preferiu estudar o ‘confinamento’, compreender o ‘aprisionamento’ e analisar a instituição de assistência social (FOUCAULT, 1992).
Em Foucault (2014), a sociedade disciplinar serve à domesticação e à desmobilização de movimentos revolucionários e contra hegemônicos, condição que enfraquece as formas de resistência e, ao fazer isso, dissipa as tentativas de mobilização e organização de combate a essas redes de poder com o nivelamento e a padronização dos corpos. Tais afirmativas provocam-nos a pensar: Na estrutura panóptica da atualidade, quem está nas celas e quem está na torre?
As sociedades disciplinares organizam instituições de confinamento que se utilizam do enclausuramento nos diferentes âmbitos sociais como nas famílias, nas escolas, nas fábricas e nas prisões. As instituições são mecanismos operantes que estabelecem relações de controle individual e social. Embora a teoria do panóptico seja empregada para referir-se ao controle exercido sobre os sujeitos especialmente nos séculos XX e XXI, podemos pensar nas instituições e relações sociais da atualidade a partir desse modelo, pois essa dinâmica de vigilância mencionada permanece nas fábricas, escolas, hospitais, onde uns vigiam aos outros e a si mesmos. Não é diferente nos espaços formativos voltados à educação de crianças.
A professora organiza a fila para ir ao refeitório, pede que todas as crianças coloquem a mão no colega da frente. Ressalta com firmeza: ‘não soltem a camiseta do colega’. Algumas crianças olham ao redor e falam: ‘O Eduardo 3vai por último porque empurra todo mundo’. A professora reafirma: ‘Isso mesmo, ele deve ser sempre o último’ (Diário de Campo, Infantil II, Instituição “B”, 17/04/2018).
Como é possível acompanhar pelo relato, as crianças são direcionadas para atitudes de julgamentos e categorizações, onde são governadas. Eduardo é reconhecido no grupo de crianças como ‘perigoso’, ‘arteiro’, e por isso tem um lugar já conhecido por ele e pelos colegas, que nada mais é do que o final da fila, condição, também, reforçada pela professora. Ainda, sobre a dinâmica de vigilância:
No refeitório as crianças da mesma turma sentam para comer. Elas lançam olhares umas às outras objetivando sempre cuidar, vigiar, apontar e contar à professora atitudes desagradáveis realizadas pelos colegas ao lado. O prato é posto na frente de cada criança, elas começam a comer. À medida que vão terminando vão solicitando repetições. Uma criança deseja mais almoço e pede à professora, a mesma indaga: ‘Quando quer mais o que faz?’ A criança faz gesto levantando o dedo. As demais crianças que estão próximas, falam: ‘Verdade, só ganha repetição se erguer o dedinho’ (Diário de Campo, Infantil II, instituição B”, 17/04/2018).
A situação observada revela um ordenamento que acompanha os momentos de alimentação, abarcando o comportamento individual e coletivo, no que tange à forma como as crianças comem ou solicitam mais comida. Segundo Foucault (2014), todo esse sistema de controle, por meio da submissão dos sujeitos às regras e normas determinadas pelo grupo que está no controle, gera os corpos dóceis. Estes são ainda formatados por meio da educação disciplinar a qual os sujeitos estão submetidos, que por meio dos diversos mecanismos empregados desencadeiam as forças produtivas desejadas e úteis para as corporações que detém o controle da sociedade. De acordo com Fonseca (2003), os estudos de Foucault não tinham por intuito analisar os fenômenos do poder, mas sim buscar compreender como os seres humanos tornam-se sujeitos, a partir dos caminhos que trilham e as histórias que constroem. Fonseca (2003), ressalta que o filósofo apresentava um diferencial em seus escritos no tocante à forma como olhava e abordava o problema sob diversas óticas.
Quer pensando na objetivação do sujeito falante, produtivo e vivente, realizada por modos de investigação que procuravam obter um estatuto de ciência; quer estudando a objetivação do sujeito enquanto dividido no interior de si próprio e perante outros realizada pelo que chamará de ‘práticas discordantes’ que fazem do sujeito um objeto passível de ser dividido, por exemplo, em louco e são, sadio e doente, criminoso e não criminoso (FONSECA, 2003, p. 21).
Nessa mesma linha de raciocínio, Carvalho (2015) menciona que a cultura ocidental fez emergir uma combinação entre ‘média’ e ‘hierarquização’, que além de classificar os sujeitos entre bons e maus, rotulou também os espaços e locais, categorizando os solos mais produtivos, os lugares mais perigosos, os territórios mais insalubres. A partir dessa separação emergiu a necessidade de estabelecer estratégias de governo, por meio da criação de códigos socionormativos, que enquadram e separam os sujeitos bons daqueles que oferecem perigo para um grupo, uma instituição ou à sociedade de modo geral.
Goffman (2013) é enfático ao afirmar que é nas instituições que o poder se sobressai, visto que há um maior domínio sobre os corpos dos sujeitos. Ele ainda entende que toda a instituição possui uma tendência a ser fechada, com cercas, muros altos, portas e janelas com chaves, arames, impedindo assim o contato dos sujeitos com o entorno social e condicionando seu comportamento. Assim, reconhece esses estabelecimentos como instituições totais4divididas em cinco segmentos.
O primeiro é destinado aos espaços que oferecem ajuda e cuidam de pessoas em condições vulneráveis, sendo aqui incluídos os idosos, órfãos, pessoas com deficiências visuais. O segundo segmento é ordenado para as pessoas que amedrontam à sociedade, ainda que de forma não intencional, aqui estão elencados os leprosos, tuberculosos e doentes mentais. Outro grupo, o terceiro, preza pelo bem-estar da população buscando garantir segurança e punir aqueles que oferecem perigo pelos delitos cometidos, como os presídios, cadeias e campos de concentração. O quarto segmento, de sumo interesse para nossa pesquisa, são as instituições educativas, que confinam seus alunos/crianças, na maioria das vezes, em espaços fechados, com pouca ventilação e sem adequações necessárias para cada faixa etária. E, por fim, são agrupados os que convivem em mosteiros, seminários e conventos, buscando um refúgio ou encontro pessoal. O autor define a instituição total como:
[...] um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal; aí reside seu especial interesse sociológico. Há também outros motivos que suscitam nosso interesse por esses estabelecimentos. Em nossa sociedade, são as estufas para mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu (GOFFMAN, 2013, p.22).
O autor compara as instituições às ‘estufas’, que moldam, prendem, abafam, sufocam os indivíduos. Isso porque as pessoas que nelas estão enquadradas são obrigadas a ajustar-se, mudando seus comportamentos a partir das regras vigentes em seu interior. Os sujeitos, por meio de ameaças e pressões, são compelidos a seguir um comportamento determinado pelas instituições, tornando-se colaboradores, com punições e castigos quando infringem as normas determinadas. Destarte, “[...] o medo do castigo pode ser adequado para impedir que o indivíduo realize determinados atos, ou deixe de realizá-los” (GOFFMAN, 2013, p. 152).
Aqui vale a pena retomar a compreensão de Foucault (1979) acerca do poder, pois segundo o autor devido às circunstâncias em que o indivíduo se encontra, o poder acaba tornando-se não somente repressor, mas também produtivo. Desse modo, os sujeitos são treinados, exercitados, conduzidos a seguirem as regras, limites e imposições. Quando aptos a realizarem a função designada com êxito, passam a ser vistos com bons olhos, cooperando com seu ambiente.
Durante a rodinha a professora fala várias vezes: ‘Será que hoje terá o ajudante do dia? Quem está conversando vai ser? Vou chamar aquele que estiver comportado e cantando bem bonitinho’. Terminada a rodinha a professora escolhe uma criança e ressalta: ‘Ela será ajudante porque foi quem melhor se comportou, vai ajudar as professoras durante o dia’ (Diário de Campo, Infantil III, Instituição “A” 31/10/2017).
A instituições educativas, em específico as de Educação Infantil, são marcadas por relações de poder, que objetivam já na primeira infância moldar a forma de ser e pensar, governando a infância, ajustando e padronizando as ações e comportamentos no sentido de estabelecer a conexão entre o indivíduo e a sociedade. Observando as salas visitadas na nossa pesquisa, é comum fazer parte do cenário cartazes como o semáforo do comportamento, com carinhas tristes e felizes, dentre outros materiais, como estratégia para exercer a disciplina e ajustar comportamentos:
Nós trabalhamos da seguinte forma, a gente não fica reclamando todo dia para mãe, reclamando, reclamando. A gente combina assim: abre a agenda e vai uma carinha. Quando for a carinha menor, se comportou um pouquinho, quanto maior e feia, ela não se comportou nada. E quando a carinha for feliz, é porque ela se comportou bem. Então os pais ajudam em casa, ‘hoje você vai ficar sem videogame, não vai assistir, não vai brincar’ (Entrevista Professora, Infantil III, Instituição “A” 01/11/2017).
Tais encaminhamentos podem ser reconhecidos como uma forma de exercício do poder, com ‘prêmios’ como uma carinha feliz ou com estrelinhas em seu nome, distribuição de balas e pirulitos ou ‘castigos’, que constrangem as crianças que não apresentaram um comportamento ajustado às exigências das professoras e instituição.
As crianças estão sentadas no tatame, a professora distribui no chão um alfabeto móvel e explica: ‘Vocês vão vir aqui e vão achar a primeira letra do nome de vocês e vão contar para os colegas o nome da letra. Quando acertar abre-se o baú e pega um pirulito, mas quem errar não vai ganhar pirulito’ (Diário de Campo, Infantil II, Instituição “B”, 19/04/2018).
De acordo com Goffman (2013), esses incentivos são vistos como rendimentos e mecanismos de controle, usados por professores no intuito de conseguir salas quietas e crianças ajustadas. Como exemplificação, durante o dia as professoras se dirigiam às crianças com frases como: ‘Se você não obedecer vai ficar sem parque; se você tomar o brinquedo do seu colega, vai ficar sem brincar; se você não pintar direito sua atividade não ganha carinha feliz”. Esses encaminhamentos são preocupantes, no sentido que a criança passa a entender que os conflitos se resolvem com punições, não com diálogo, uma vez que o ambiente onde passa grande parte do seu dia é permeado por chantagens e autoritarismo.
Como vimos, o ambiente educativo é permeado por relações de poder, objetivando formar sujeitos autodisciplinados, ajustados e submissos. Além das estratégias de controle do comportamento, com sinalização de quem não se encaixa na regra e prêmios para quem se comporta, as crianças passam longas horas em frente a televisores, em posição de controle do corpo, dos gestos, das falas, como na explicitação da rotina a seguir:
07h30m- 08h- chegada/café. As crianças são acolhidas com músicas da Xuxa.
08h45m- chamadinha
09h- atividade sobre os meios de comunicação. A professora mostrou figuras de meios de comunicação antigos e dos dias atuais, em seguida ela entregou uma figura para cada criança. Com a ajuda da professora eles colam em um cartaz classificando ‘meios de comunicação antigos e meios de comunicação atuais’.
09h30m- as crianças brincam com potinhos de diversos tamanhos. Enquanto brincam, a televisão permanece ligada.
10h15m-10h40m- troca/almoço. Durante a troca as crianças assistem ‘galinha pintadinha’.
11h15- momento do sono
13horas- assistem desenhos
13h30m- lancham, e após brincam com motocas no espaço externo
14h45m- assistem desenhos
15h50m- jantar
16h20min- troca
16h40min- Momento da despedida, as professoras deitam todas as crianças em almofadas, entregando sua chupeta e seu cobertor. A televisão é ligada, os pequenos esperam seus familiares deitados e cobertos. As professoras relatam que essa prática se repete todos os dias, dessa forma (Diário de Campo, Infantil I, instituição “A” 08/11/2017).
Em vários momentos do dia as crianças ‘esperam’ algumas atividades vendo televisão, e observamos que não há resistência por parte delas em permanecerem deitadas ou sentadas, pois seus corpos já estão condicionados. Cabe aqui um questionamento acerca do tempo ‘perdido’, do tempo de espera, das energias dedicadas a que todos façam a mesma coisa no mesmo momento e o sentido e significado desses encaminhamentos para o desenvolvimento infantil. Se ouvíssemos as crianças sobre essas práticas, o que elas nos diriam? Até quando nossas práticas estarão pautadas no adultocentrismo autoritário?
Forquim (1993, p.167-168) entende que “[...] educar, ensinar, é colocar alguém em presença de certos elementos da cultura a fim de que ele se nutra, que ele incorpore à sua substância, que construa a sua identidade intelectual e pessoal em função deles”. Desse modo, precisamos respeitar o protagonismo infantil consolidando o trabalho pedagógico com práticas que dialoguem sobre os valores humanos libertários, críticos e criativos. Para tanto, há a necessidade de um professor imbuído de reflexão, capaz de examinar e reexaminar, regular e modificar constantemente tanto sua própria atividade prática quanto, sobretudo, a si mesmo, no contexto do trabalho pedagógico com as crianças pequenas.
Tristão (2005), questiona: Quais são os meios culturais transmitidos nas instituições educativas? Quais são os conhecimentos dos profissionais que atuam com as crianças? A autora chama a atenção para o fato de que quando colocamos músicas e vídeos da Xuxa e da galinha pintadinha, por exemplo, estamos estampando nas crianças uma marca cultural. Nesse entendimento, cabe perguntar sobre o repertório cultural das crianças, o que já conhecem, o que gostam, sendo tarefa da instituição educativa ampliar essas referências e as experiências vividas.
Foucault (2014) amplia o debate sobre o condicionamento do corpo, mencionando que o mesmo entra em uma maquinaria, articulando e criando o formato desejado por aqueles que o manipulam. O exemplo a seguir descreve esse condicionamento:
As crianças chegam ao CMEI, guardam a mochila e sentam no tatame aguardando o horário do café. Nesse tempo, ficam ociosas, pois a professora não distribui nenhum brinquedo e por conta de estar envolvida em organizar as mochilas interage pouco com os pequenos. Após o café, a professora, distribui a cada criança peças de encaixe, porém cada um deve brincar com as suas, não podendo levantar do tatame. Enquanto as crianças brincam, a professora retira as blusas quentes (Diário de Campo, Infantil II, instituição “B”, 17/04/2018).
Essas formas proibitivas do pensamento e o autodisciplinamento são naturalizadas pela ação repetida entre professores e crianças. Ações cotidianas como esperar, não compartilhar os brinquedos, não interagir com os amigos tornam-se atitudes negativamente naturalizadas nos contextos educativos, normalizando sujeitos e seus modos de ser e viver (BUJES, 2001).
O sujeito se ajusta a essa vivência, e no decorrer de sua vida faz não somente o que é determinado pelo condutor, mas opera tais ações com rapidez, obediência e eficácia na ‘anatomia política’ ou ‘mecânica de poder’ (FOUCAULT, 2004).
3 A infância governada
De acordo com Veiga-Neto (2015, p. 51), foi por volta do ano de 1975 que o termo governamentalidade foi criado por Foucault, entendido pelo autor
[...] como o conjunto de ações pelas quais se conduzem as condutas. Assim, em termos foucaultianos, quando alguém conduz a conduta de outro(s) ou a si mesmo, o que ele está a fazer é o exercício do governo sobre o outro ou sobre si mesmo.
Desse modo, as instituições educativas ocupam um lugar de destaque nos estudos sobre o governo, uma vez que nos espaços educativos o poder opera com o intuito de conduzir a conduta de outros. Nos Centros de Educação Infantil observados por meio da pesquisa de campo, um conjunto de ações articuladas somam-se às intencionalidades que também se expressam pela organização espacial.
No momento do lanche uma criança entra embaixo da mesa. A diretora, que se encontrava no refeitório nesse momento, chamou a atenção do menino dizendo: ‘Você está querendo ficar sem parque?’ A criança ignora a fala da gestora e permanece durante todo o momento do lanche embaixo da mesa. A diretora aproveita e reforça o ocorrido dizendo às demais crianças: ‘Não olhem, nem sigam o que ele fez, vocês não querem ficar sem parque?’ Antes de se retirar do refeitório enfatiza para a professora: ‘Depois deixe ele nem que seja 2 a 3 minutos sem parque. Ele precisa sentir pelo acontecimento’ (Diário de Campo, instituição “B”, 17/04/2018).
A partir do relato é necessário atentarmos para os detalhes e para como as coisas estão organizadas e pensadas, como por exemplo perguntar: Quais regras existem e por quem são decididas? Quais as justificativas para tais ordenamentos? Quais estratégias de coerção são utilizadas? Como verifica-se o controle dos corpos e das mentes das crianças? Há evidências de transgressões e resistências ao poder instaurado? Há sanções? Como isso acontece? Há impactos sobre seu comportamento? A cena descrita acima evidencia que criança subverte a ordem, mesmo sendo advertida das implicações que sua ação geraria.
Veiga-Neto (2015, p. 55-56), alerta que “[...] trata-se, então, de não conferir antecipadamente um valor positivo ou negativo a essa ou àquela prática pedagógica, a essa ou àquela maneira de governar a infância, mas sim de examinar cada uma delas e submetê-la à crítica permanente”. Reforça o compromisso do professor frente a educação de crianças pequenas, quando questiona para onde as formas de governo estão levando as crianças. Alerta que quando nos dedicamos a refletir sobre os modos pelos quais as crianças estão sendo governadas, sabemos que rumo nossa sociedade tomará.
Carvalho (2015, p. 26) aponta que, “[...] para haver governo da infância, foi necessário criá-la como objeto de análise, de classificação e diferenciação”. Desse modo, o autor, menciona que a infância é classificada em etapas e processos. Os adultos, ao olharem as crianças e observarem seus comportamentos, determinam quem são os bons exemplos, os delinquentes, os doentes, os sadios. Assim, a infância passa a ser governada na medida em que sua existência foi enaltecida e com ela foram criadas estratégias de governo; ‘surge’ a infância e formas de educá-la, cuidá-la, socializá-la.
Segundo a abordagem de Foucault, a infância foi o foco precípuo de todas as estratégias de governo. Em primeiro lugar, pelo fato de ela emergir correlacionada à população e aos interesses socioeconômicos de se produzir um número conveniente de indivíduos conforme a distribuição das energias demandadas a todo tipo de produção social: geração e gestão de riqueza, da saúde, da aplicação de saberes, de distribuição e aproveitamento das forças de trabalho, enfim, infância como promessa de renovação política dos códigos convenientes à construção de uma sociedade normal (CARVALHO, 2015, p. 27).
De acordo com Foucault (2014, p.167), “[...] o poder disciplinador se deve sem dúvidas ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame”. O olhar de uns sobre outros é fundamental na observação e vigilância, cujo objetivo é perceptível no projeto arquitetônico, a partir da disposição das janelas, portas e câmeras. A distribuição dos espaços e a concentração das pessoas nos ambientes possibilitam que o poder fique centralizado e até invizibilizado (mas nunca esquecido), por meio da observação de cada movimento, comportamento e posição dos sujeitos. Com olhares discretos ou indiscretos, o poder objetiva tornar os corpos ajustados, treinados, produtivos, obedientes e moralizados.
A sanção normalizadora, a partir dos olhares, organiza e coloca em prática punições aos indivíduos que não se ajustam às normas estabelecidas, o que exige estar atento aos atrasos, negligências, desleixo, falta de atenção e comprometimento. Aos não cumpridores das regras, são determinadas punições, que incluem castigos e humilhações morais (FOUCAULT, 2014).
As crianças do Infantil III brincam na parte externa do CMEI. Um menino joga areia no colega. A professora repreende e o deixa sentado. ‘Vai ficar pensando/refletindo se pode fazer isso’. O menino fica sentado aproximadamente 10 a 15 minutos. Antes de liberar a criança a professora pergunta: ‘Vai bater novamente belezão?’ A criança balança a cabeça negando. A professora diz: ‘Vai então’ (Diário de Campo, Infantil III, Instituição “A” 31/10/2017).
A relação de poder que permeia a conduta da professora com a criança não se dá apenas em função do lugar que ocupam dentro da escola, mas evidencia um poder que humilha, que subjuga, que expões relações de força.
Segundo Foucault (2014, p. 181), “[...] o exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir”. Assim, o exame além de classificar, descreve as potencialidades dos sujeitos em comparação com os demais. O autor apresenta dois exemplos em que os sujeitos são colocados em situações de exame: o primeiro descreve o doente, em que se coloca aos cuidados de outros e tem o diagnóstico de sua doença por meio de realização de exames, assim o médico ou a pessoa responsável por realizar o exame atua com poder sobre um corpo doente, debilitado e fraco. No segundo exemplo, o autor se refere às instituições educativas, em que o exame rege o sistema de ensino, ditando o que ensinar e como ensinar, cujas provas são usadas pelo sistema para comprovar a assimilação ou não do conhecimento. Desse modo, os exames medem e sancionam o aprendizado das crianças.
Foucault (2014) elucida como o poder se expressa nos olhares, na sanção normalizadora e no exame. O exemplo a seguir nos mostra como isso também se confirma no universo das instituições de Educação Infantil:
No refeitório as crianças conversam entre elas, a professora lança olhares que tentam reprimir as crianças, em seguida ameaça-as: ‘Aqueles que não pararem de conversar vão para o berçário colocar fraldas e usar chupetas’ (Diário de Campo, Instituição “B”, 19/04/2018).
Outros momentos de tensão foram identificados durante as refeições das crianças:
Um menino bate no outro no banheiro. A professora entra segurando firme um deles pelo braço, leva até a mesa para a refeição. Ele reluta, pois não quer sentar. A professora faz com o que o menino sente em uma mesa isolado dos demais. Seu prato é colocado a sua frente, porém ele nega-se a comer e começa a chorar. A professora não o incentiva a comer. Entra no refeitório a diretora, que se dirige até o menino, conversa com calma e o incentiva a comer. Ele almoça, porém separado dos demais (Diário de Campo, Infantil III, Instituição “A” 31/10/2017).
Os controles verbais ou manifestos pelo olhar impõem relações que buscam formatar a conduta dos pequenos. O ‘castigo’ disciplinar tem por objetivo diminuir os desvios, e nisso se inclui a constante qualificação dos comportamentos nos Centros de Educação Infantil. As falas dos adultos predominam, ditando a todo instante o que pode ou não ser feito.
É aproximadamente 14h20min, as crianças permanecem deitadas, um menino começa a rolar no colchonete, a professora pede por diversas vezes que ele pare, contudo, já cansado de estar deitado continua se mexendo. A professora segura ele com força no colo, dizendo: ‘Você vai ficar aqui’; a criança diz que não. A professora afirma: ‘Vai sim, pois aqui sou eu quem mando’ (Diário de Campo, Infantil III, Instituição “A”, 31/10/2017).
A fala da professora ao afirmar ‘aqui sou eu quem mando’ recompõe e reforça o lugar de cada um no universo escolar, dos que mandam e dos que obedecem na tirania da submissão, preparando a criança desde a mais tenra idade, para a aceitação das ‘leis’ com as quais ela não concordaria. Em contraposição, a ‘desobediência’ seria a porta-voz para a desumanização, se pensarmos por essa lógica de compreensão.
Aconteceu um episódio essa semana de uma criança ficar sem café, porque derramou. Coisa absurda né, criança derrama, criança conversa na mesa. Elas falam que não pode conversar, mas não pode por quê? Então, eu chamei a professora e falei: você está aqui para orientar, ajudar as crianças. E a criança estava chorando, mas tomou o café com vontade. Precisa deixar uma criança chorando para punir, achar que a criança está aprendendo e que o professor está ensinando? (Entrevista Gestora, Instituição “A”, 01/11/2017).
Sobre essa questão, salientamos que obedecer, nestes moldes, é ser prisioneiro de uma relação de forças que subjuga, domina e aliena no sentido amplo do termo. Ou seja, a submissão é, definitivamente, a inteira dependência do outro que comanda, decide, grita ordens, acaba com o sujeito e destrói as vontades.
O tímido grito de resistência é quase anunciado pela supervisora que se preocupa, questiona a forma de tratamento da professora para com a criança. A gestora ainda expõe,
Eles são disciplinadinhos, seguem umas ordens, umas regras das professoras. Mas talvez eles tivessem autonomia, flexibilidade para determinadas coisas. ‘Não levante da cadeira’, isso é uma coisa tão imposta, por que não pode levantar da cadeira? Eles já possuem opinião, já sabem o que querem fazer (Entrevista Gestora, Instituição “A”, 01/11/2017).
Esse relato da gestora, desperta em nós uma possível esperança de pensar e planejar os espaços educativos infantis, para além dessa submissão que desumaniza e aniquila toda a formação de subjetividade humana com o prevalecimento da vontade do adulto sobre a criança pequena.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar, de maneira crítica e reflexiva, o exercício da docência pautado em práticas pedagógicas que visam a docilização dos corpos infantis e o governo da infância representa um desafio e uma das possibilidades de interpretar a realidade para a qual olhamos. Olhar a infância e os fenômenos educativos a ela associados levou-nos a reconhecer as relações de poder que permeiam o universo infantil de crianças entre 0 e 3 anos. Na busca de compreender como ocorrem esses tensionamentos, adotamos como referencial teórico os estudos de Foucault e, sua perspectiva de análise nos encaminhou para o reconhecimento do ambiente educativo como um espaço cujas práticas e organização revelam-se permeados por relações de poder, resistentes às mudanças, com ações punitivas e controladoras do processo de aprendizagem e desenvolvimento infantil.
A pesquisa empírica, cujos resultados são apresentados parcialmente neste artigo, acompanhou e problematizou a organização das práticas pedagógicas na educação de crianças de 0 a 3 anos de idade em dois Centros de Educação Infantil no município de Guarapuava, Paraná. Desse modo, os questionamentos por meio de entrevistas, os diários de campo possibilitaram-nos olhar pelas telas do cotidiano infantil as formas de relação entre professoras e crianças, bem como as relações de poder e os sistemas de controle vigentes.
A pesquisa revelou as preocupações de Foucault que, mesmo em momento histórico diferente dos nossos dias, torna-se um arcabouço teórico-metodológico para compreendermos como tem se constituído essas relações no universo da pequena infância. As evidências direcionam para práticas pedagógicas disciplinares e controladoras de crianças que, submetidas pela ‘falsificação’ das regras ditas pedagógicas, são conduzidas e moldadas ao mundo da obediência e submissão. As que se direcionarem para outros caminhos, sofrerão o preço da dominação: sanções diárias e ações punitivas.
As sanções diárias observadas são materializadas por encaminhamentos que afirmam a garantia de uma educação limitadora, como: ficar sentado sem brincar, ficar sem parque, ter carinha triste carimbada na agenda, receber o olhar de reprovação ou a palavra de ameaça, e outras formas de controle do adulto que pensa, cria, faz e decide pelos pequenos. Nesse sentido, a feitura desse texto torna-se uma das possibilidades, pela reflexão e denúncia, de buscarmos o livramento destas formas de controle, pelo percurso das verdades pelas quais educamos, nas quais nos educamos, principalmente, no sentido de ampliarmos nossa liberdade de pensar a educação e de nos pensarmos a nós próprios, como professores que somos, em favor de uma educação mais humanizadora e autônoma para as nossas crianças pequenas.
Isso nos permite acreditar que, independentemente da faixa etária de desenvolvimento infantil, a criança precisa aprender a interagir socialmente com o mundo, com a cultura e com as pessoas de maneira educativa, respeitosa e interativa. Partimos da premissa de que tudo aquilo que a criança aprende com o adulto ou com outra criança mais experiente vai sendo elaborado e incorporado por ela, fazendo com que seus modos de agir e pensar sejam transformados.
Desde a mais tenra idade, as crianças precisam expressar livremente seus medos, inseguranças, leituras de mundo, impressões, hipóteses, além de que precisam ter espaços para conhecer, perguntar, elaborar hipóteses, estabelecer relações e aprender de maneira real e significativa. O professor, por meio de uma proposta intencional do ensino, poderá contribuir no processo de criação de oportunidades para a relação entre criança e adultos, no sentido de que haja um movimento lúdico e de diversidade de situações de aprendizagem, com leveza, alegria, risos e muito envolvimento.
Diante disso, a educação de nossas crianças pequenas precisa ser permeada pelo desejo e superação ao modelo propagado por Foucault, ou seja, pedagogizador, conforme afirma Araújo (2002). Essa docilização pedagógica dos corpos infantis precisa ser ressignificada no processo de organização do trabalho pedagógico com as crianças de 0 a 3 anos, no propósito de fazer experiências do conhecimento pela relação interativa e mediadora do professor junto as crianças.
Nesse sentido, há a possibilidade de se pensar em cores, aromas, sensações, emoções, espaços desafiadores, cantos de atividades diversificadas para as crianças trabalharem simultaneamente em diferentes atividades, acesso a músicas, poemas, histórias, representações artísticas, teatro, dança, salas organizadas de maneira criativa, com suas tendas e seus ambientes, com a construção de um cenário educativo em que se vê a criança enquanto protagonista do processo de aprender, com suas impressões, leituras de mundo, tentativas de representação do conhecimento e da própria vida social.