1 INTRODUÇÃO
As constantes transformações políticas, econômicas e sociais das últimas décadas têm gerado ressignificações em diversas esferas da sociedade. O cenário do trabalho docente não passou ileso a tais variações, sendo sujeito de políticas, programas e ações de governo que manejam a educação pública como instrumento de condução e conformação da sociedade. Essas transformações, nos últimos anos, têm avançado por meio de reformas e contrarreformas com nítidos delineamentos dos organismos internacionais e contam, na sua execução, com as parcerias público-privadas.
Em relação aos organismos internacionais, fica clara a centralidade de suas propostas e diretrizes acordadas nas Conferências de Educação, em documentos que trazem a público e nos acordos de cooperação firmados com discursos homogeneizantes e, de certa forma, sedutores. Utilizam uma ampla gama de indicadores que demonstram os baixos índices educacionais das populações dos países pobres e em desenvolvimento, responsabilizando a educação pelo fracasso econômico e social. Mas, ao mesmo tempo, munidos de uma racionalidade neoliberal, colocam essa mesma educação como a grande redentora, a responsável por impulsionar o desenvolvimento, sugerindo que a melhoria na sua oferta seria a principal base de sustentação para alavancar a economia e para a resolução de uma grande parte das mazelas que o capitalismo gera com o seu modelo de acumulação.
Ainda, essas propostas têm tido adesão sem a devida crítica, por parte dos formuladores e executores das políticas públicas. As ideias vinculadas são operadas por meio da legislação, das normativas, das diretrizes e de referenciais com pouca ou nenhuma discussão com a sociedade. As propostas e os planejamentos vão se naturalizando como se somente o modelo de educação por eles proposto resolvesse os problemas sociais, ambientais, econômicos e educacionais. Problemas esses que foram agravados a partir de 2020, devido à situação pandêmica mundial, e que afetaram mais fortemente os países pobres e os chamados países em desenvolvimento.
No Brasil, na área de educação, a partir de 2016, com a ruptura institucional gerada pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff (2011/2016), intensificaram-se os movimentos de reformas e contrarreformas. Esses movimentos tiveram como base o discurso de inserir o País em um modelo avançado de desenvolvimento tecnológico, econômico e social, no qual a educação seria o motor que alavancaria o processo de inserção na chamada sociedade do futuro. De acordo com o Marco de Ação 2030, a educação e os sistemas educacionais precisam responder e se adequar rapidamente às mudanças propostas pelo mercado de trabalho e aos avanços tecnológicos. É preciso que todos desenvolvam “[...] as habilidades e as competências flexíveis de que necessitam para viver e trabalhar em um mundo mais seguro, sustentável, interdependente, baseado em conhecimentos e guiado pela tecnologia” (UNESCO, 2016, p. 25).
Nessa transição para o futuro, a educação precisa se adequar à formação de um trabalhador alinhado a esse novo tempo: o do sujeito moldado para responder às necessidades produtivas e suas demandas. As reformas ocorridas foram mediadas com nítidos vieses de uma agenda baseada nos discursos de desenvolvimento econômico. E, ao mesmo tempo, reafirmam a educação como princípio universal de bem público e de direito humano, primordial para a paz entre os povos, a tolerância, a realização humana e o desenvolvimento sustentável, elemento-chave para propiciar o pleno emprego e a erradicação da pobreza (UNESCO, 2016, p. 6).
Essa proposta reafirmada na Conferência em 2015 não é nova. Conforme Warde e Haddad (2000), sobre as reformas educacionais propostas pelo Banco Mundial ao País, desde a década de 1990 elas já tinham como intuito submeter a educação à lógica do campo econômico, impor uma racionalização do sistema e o corte dos custos educacionais, produzindo um ordenamento no campo educacional necessário à difusão dessa lógica.
Assim é que vamos assistindo à naturalização dos significados dessas reformas para vários países do Terceiro Mundo: descentralização, capacitação dos professores em serviço, livros didáticos, guias curriculares, educação à distância. […] Suas orientações vão sendo universalizadas, com receituário único, independente da história, cultura e condições de infraestrutura de cada um desses países. (WARDE; HADDAD, 2000, p. 11, grifo do autor).
Pontuamos que um projeto educacional é importante para a construção de uma nação (SHIROMA; ZANARDINI, 2020). Suas ações devem ser pensadas e propostas como elementos de planejamento em curto, médio e longo prazo para as distintas áreas do conhecimento que necessitam de políticas públicas. Essa tarefa não deve ser delegada a apenas um grupo que impõe sua visão de mundo, homem e sociedade, mas deve ser realizada conjuntamente, por meio da participação de todos.
Exemplo de participação no planejamento da educação brasileira ocorreu com o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014/2024, que foi aprovado para um período de dez anos. Ele foi um documento discutido com os diferentes segmentos da sociedade e, ao final do processo de elaboração, aprovado por meio da Lei n. 13.005/2014; portanto, mesmo apresentando limites e críticas, é um documento pautado por discussões e participação da sociedade.
Por sua vez, as Resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE) n. 02/2019 (BNC-Formação) e n. 01/2020 (BNC-Formação Continuada) apresentaram uma nova proposta de reformulação dos cursos de licenciatura e das formações continuadas sem o devido aprofundamento das discussões com a área de educação. Inicialmente, foi estipulado o prazo de dois anos para a implantação da BNC-Formação pelas Instituições de Ensino Superior (IES). Em 2022, o prazo de implantação foi prorrogado para 1º de janeiro de 2024. Essas resoluções impõem uma visão restrita de educação e formação de professores e têm a finalidade de que os cursos estabeleçam as modificações implementadas pela Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNCC), instituída, pelas resoluções CNE n. 02/2017 e BNCC-Ensino Médio n. 04/2018.
Ainda, corroborando a ideia de que as organizações internacionais são representantes do capital em nível global e necessitam manter um controle hegemônico sobre os países que aderem à sua agenda, questionamos como as ações dos governos brasileiros, nessa delimitação temporal a partir de 2014, reorientaram-se para responder à Agenda 2030 para a Educação. Essa agenda apresenta um discurso sedutor de manutenção da ordem estabelecida, assegurando as condições mínimas para a reprodução da educação, em detrimento de políticas educacionais mais universalizantes, como as propostas pela Constituição Federal de 1988. Dessa forma, não permite ações além das minimamente necessárias para conservar o curso da acumulação capitalista propiciada pelas condições políticas do País a partir de 20162, que se mostraram propícias à sua execução.
Ressaltamos que o documento “Declaração de Incheon e Marco de Ação para a implementação do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável”, publicado em 2016, visa assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. As proposições são para os países em desenvolvimento, cujas economias ainda estão sob os efeitos de uma crise do capital e precisam responder à agenda. Esta agenda traz os argumentos da melhoria das condições de existência, diminuição da pobreza, da fome, do saneamento básico, da promoção do emprego e do empreendedorismo, das condições de trabalho, além das pautas de igualdade de gêneros, das mulheres e dos vulneráveis (UNESCO, 2016). Segundo Shiroma e Zanardini (2020, p. 698), é uma agenda pensada para manter o “[…] desenvolvimento nos limites do capitalismo que precisa assegurar minimamente a reprodução das condições sociais de produção”.
O objetivo deste artigo foi o de analisar as influências propostas pelo Marco de Ação da Educação 2030 nas Resoluções n. 02/2019 e n. 01/2020 do CNE para formação inicial e continuada de professores. Esse Marco foi acordado no Fórum Mundial de Educação, na Coreia do Sul, organizado por organismos internacionais, do qual o Brasil foi signatário.
A delimitação da análise foi no entretempo de 2014 a 2020 e teve como pressuposto que os acordos internacionais influenciaram as políticas educacionais brasileiras, por meio de um campo de tensão que abarca distintos projetos de educação. Ainda, dentro do marco temporal, a partir do ano de 2014 foi instituído o Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024); no ano seguinte, houve a Conferência Mundial de Educação de Incheon (2015) e a posterior deflagração do impeachment da presidenta Dilma Rousseff (2016). Em seguida, ocorreram as reformas da educação, entre elas, a do Novo Ensino Médio (2016), Base Nacional Comum Curricular (2017 e 2018) e, em 2019 e 2020, as proposições do CNE para a formação inicial e continuada de professores, a serem executadas pelas IES e pelos sistemas de ensino. Essas reformas vieram no bojo das contrarreformas da previdência, trabalhista e econômica (Emenda Constitucional n. 95/2016), em um momento histórico que tornou possíveis os avanços do sistema de governança neoliberal.
Os documentos analisados foram o PNE 2014-2024 e “Educação 2030: Declaração de Incheon e Marco de Ação para a implementação do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável” (UNESCO, 2016), nos pontos que tratam da formação inicial e continuada de professores, e a Resolução CNE n. 02/2019 e a Resolução CNE n. 01/2020 (BRASIL, 2019, 2020). Os documentos foram analisados nas perspectivas de que são portadores de um discurso que não pode ser visto apenas na sua aparência e descontextualizados com o momento em que foram produzidos, mas mediados pelo movimento da totalidade histórica.
O texto, além desta introdução, tece considerações sobre a formação de professores e o trabalho docente, que podem ser modificados pelas reformas propostas e limitam a autonomia do docente, anulando as especificidades do fazer pedagógico. Em seguida, analisa as modificações delineadas pelas Resoluções do CNE que visam a uma formação pensada em termos de competências e habilidades, por meio de um viés tecnicista de educação, de competências técnicas e reducionismo de conteúdos. Por fim, tecem-se as considerações em processo refletindo que o Marco de Ação 2030, ao instrumentalizar uma formação pensada para atender somente ao desenvolvimento econômico, à conformação e manutenção da ordem estabelecida, distancia-se da pluralidade dos processos formativos que levam em conta a formação e integração dos sujeitos em suas dimensões individual, histórica e social.
2 FORMAÇÃO DE PROFESSORES E TRABALHO DOCENTE
As reformas educacionais têm se acirrado nos últimos anos. Apontam contradições e inconstâncias que divergem em seus princípios e objetivos. Em um caminho cada vez mais pautado pelas discussões e recomendações de organizações internacionais e com a crescente interferência de instituições privadas e interesses empresariais, as políticas educacionais aparentam antepor o papel do professor em sua dimensão técnica e instrumental, concebendo projetos de regulação e controle voltados a atender interesses mercadológicos (BRZEZINSKI, 2018).
Ao aliar a educação ao desenvolvimento global, proclamando as desigualdades educacionais como justificativa para as desigualdades econômicas, os grupos ligados às vertentes economicistas, ao empresariado e em combinação com governos de viés neoliberal projetam a educação pela oferta de habilidades e competências necessárias para o trabalho produtivo. A utilização da lógica do capital e da produção capitalista nos processos educacionais como estratégia voltada para a acumulação ignora o fato de que o trabalho educativo se configura como produção não material, visto que o produto (aprendizagem) não se separa do ato de produção (ensino). A tentativa de subordinação do processo pedagógico de produção escolar ao capital configura a descaracterização do próprio processo educativo, do mesmo modo que não só o professor seria o produtor, mas o aluno coprodutor da sua educação, visto que é sujeito ativo nessa atividade. Surgem, então, outras dificuldades de enquadramento do processo educativo, em categorias como: objeto, sujeito, produto e matéria-prima (RUSSO, 2007).
Partindo-se dessas incoerências, fica nítida a impossibilidade de enquadramento do trabalho docente às relações de produção, sob o risco de anular as especificidades pedagógicas desse processo. Com isso, também ficam evidentes as fragilidades das políticas educacionais formuladas a partir de princípios econômicos e gerenciais, sejam aquelas que se referem aos currículos, às diretrizes ou à formação de professores.
O entendimento da necessidade de formação inicial e continuada de professores é parte do que se compreende como valorização dos profissionais da educação, presente como princípio da educação nacional e como metas a serem atingidas nos planos de educação. A menção à garantia de condições mínimas ao trabalho dos professores já se mostrava latente desde a Constituição Federal de 1988. Haja vista seu artigo 206, inciso V, dos princípios que baseiam o ensino, que trata da valorização dos profissionais da educação escolar. Porém, tal precedente não poupou a classe de lutas constantes na busca por pequenas conquistas no campo político.
Ainda, as diferentes conceituações de qualidade da educação permeiam várias discussões, e podem ser encontradas duas principais formas de conceber a questão. Uma que se refere à educação que objetiva a formação humana da apropriação dos saberes historicamente produzidos como caminho para a transformação da realidade (PARO, 1998). A outra refere-se à qualidade mensurada por testes, avaliações, gráficos e estatísticas. Com foco na gestão dos investimentos, essa concepção alia a educação ao desenvolvimento econômico e à preparação para o trabalho produtivo. Alguns exemplos de estratégias presentes no campo educacional, coerentes com esse conceito, consistem em recompensas por desempenho e produtividade, parâmetros de controle e regulação e na inclusão de setores empresariais no planejamento e na execução de ações. Esses elementos podem ser vistos no documento do Banco Mundial (2010), denominado de “Achieving world class education in Brazil: the next agenda”3, no qual foi divulgado um relatório dos progressos da educação brasileira no período, indicando os desafios para os próximos anos e trazendo recomendações para a superação das dificuldades (BANCO MUNDIAL, 2010).
Em ambas as perspectivas, percebem-se a importância e a responsabilização dadas ao trabalho do professor. A diferença entre elas fica explícita nas políticas de formação e no que expressam como valorização do professor. Enquanto uma entende a necessidade da autonomia e do protagonismo da ação docente, a outra oferece competências e habilidades como objetivos educacionais bem ao gosto das metodologias das competências, direcionadas para o mercado de trabalho.
Sendo a sua atividade laboral tão fundamental para a sociedade democrática, é incontestável a necessidade de professores com formação apropriada para o domínio dos conhecimentos científicos. Somente de posse desses conhecimentos e valores, que são a matéria-prima para a educação do aluno, este terá condições de materializá-los na sua interpretação da realidade e na tomada de decisões conscientes (RUSSO, 2007).
O que se questiona no processo de formação são as condições sob as quais ele tem acontecido, visto que o contexto delineado das políticas de formação de professores não propicia as transformações necessárias na prática educativa. E a efetivação da formação inicial ou continuada, que se debruça sob o “aprender a aprender” em detrimento da construção do conhecimento intelectual, beneficia o trabalho alienado e intenta adequar os envolvidos à realidade e às exigências do mercado de trabalho e dos não tão novos Marcos de Ação da Educação 2030.
Resulta disso que o próprio professor não se percebe em sua função (DERISSO, 2013), e a formação fica alijada à mera execução das proposições impostas, como visto nos documentos dos organismos internacionais traduzidos e nas duas últimas resoluções do CNE aqui analisadas. Além, é claro, dos processos de avaliações sistêmicas como elemento de controle dos sistemas de ensino, em um claro cerceamento da autonomia das instituições e do trabalho do professor.
Não se trata somente de impor uma visão utilitarista/tecnicista orientada pelo campo econômico, dirigindo “[…] a ação escolar para as atividades instrumentais do fazer pedagógico” (FONSECA, 2009, p. 173). Nessa perspectiva, o professor deve ser preparado para aplicar técnicas e ferramentas determinadas pelos gestores das políticas, reforçando a ideia mecânica do trabalho docente como mero cumpridor de tarefas (LIBÂNEO, 2011), sem problematizar as reais necessidades da prática docente e sem possibilitar que o professor se torne o pesquisador dessas problemáticas que surgem no decorrer da sua prática.
Nesse percurso, as políticas de formação inicial e continuadas propostas no PNE (2014) e na Resolução CNE n. 2/2015 (BRASIL, 2015) foram descontinuadas em sua implementação e do propósito de uma formação ampliada. Ainda, assistimos a programas formativos mecanicistas e instrucionais que ensinam “como fazer”, com metodologias generalistas e sem considerar a realidade profissional e institucional do professor. Prevalecendo o que Gatti e Barreto (2009) indicavam, de que, ao gosto dos modismos, periodicamente surgem novas orientações e diretrizes que ensinam técnicas e métodos, por vezes recém-descobertos e limitados com relação às comprovações de sua efetividade. Com isso, esforço e dinheiro são despendidos para que os professores das redes públicas sejam atualizados ou reciclados, a fim de que estejam aptos a seguir uma nova cartilha (GATTI; BARRETTO, 2009, p. 196).
E, a partir dos Marcos de Ação 2030, a nova proposta de formação deve garantir que os professores e educadores sejam empoderados, motivados e recrutados adequadamente. Que sejam bem treinados e qualificados profissionalmente em sistemas educativos que disponham de bons recursos, geridos de forma eficiente e eficaz. Que promovam uma educação que propicie ao aluno a aquisição de habilidades básicas em alfabetização e matemática, resoluções de problemas, habilidades cognitivas, interpessoais e sociais para responder aos desafios locais e globais (UNESCO, 2016, p. 7).
Como se essas propostas fossem possíveis de se realizar sem mudanças na ordem social e sem aportes de investimentos públicos, via financiamento, como proposto na Meta 20 do PNE. Talvez resida aí, nessas propostas de reformulação, a importância de reciclar e esvaziar os conhecimentos, pois não é por acaso que os trabalhadores que realizam as atividades-fim da educação são importantes para a construção da conformação social e na ajuda para evitar uma irrupção social (SHIROMA; ZARNADINI, 2020, p. 697-698).
3 AGENDA GLOBAL DA EDUCAÇÃO E A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO BRASILEIRA
O ajuste das reformas na educação se acirrou a partir do impeachment em 2016 e objetivou “[…] calibrar o conjunto da educação brasileira ao padrão de acumulação empreendido pelo bloco no poder” (LEHER; SANTOS, 2020, p. 228). Mesmo com a trajetória de formação de professores ainda iniciando o seu processo, como havia sido estabelecido nas metas do PNE (2014-2024) e na Resolução n. 02/2015, o CNE propõe a reestruturação das formações inicial e continuada aliadas à BNCC, desconsiderando os princípios elencados no artigo 3º da LDB n. 9.394/1996 (BRASIL, 1996). E, apesar de o CNE trazer em suas argumentações a necessidade de atingir as metas do PNE, a condução do processo de formação foi modificada com nítidas influências do campo empresarial (FREITAS, 2021) e dos Marcos de Ação 2030 formulados após a instituição do PNE 2014-2024, pois, ao se tornar signatário das proposições, o país precisa responder à agenda a ser implementada.
O PNE (2014-2024) expressou os consensos e as contradições possíveis no seu processo de construção, porque foi um documento gestado na participação e refletiu as distintas concepções que se consubstancializaram na Lei n. 13.005/2014. As metas de 15 a 18 incidiram diretamente na valorização dos profissionais da educação.
A meta 15 do PNE assegurou a formação específica de nível superior na área de atuação a todos os professores da Educação Básica, concedendo destaque à formação inicial ao garantir a criação da política nacional de formação de professores em regime de colaboração entre todos os entes da Federação. Na sequência, a meta 16 trata das estratégias definidas para a formação continuada, e é estabelecida a formação de 50% dos professores da Educação Básica em nível de pós-graduação até o último ano de vigência do PNE (2014-2015). Além disso, é definida também a garantia de formação continuada para todos os profissionais da educação, conforme suas necessidades, demandas e contextualizações.
Um dos movimentos para a efetivação da Meta 15 foi a Resolução CNE n. 02/2015, que foi submetida à consulta pública em um chamado à participação e se consubstanciou no Decreto n. 8.752/2016. Ressaltamos que a Resolução CNE n. 2/2015 fundamentou-se em uma concepção de formação indissociável de uma política de valorização do profissional da educação, no qual o tripé (formação, carreira e condições de trabalho) representava um consenso educacional que articulava teoria e prática e uma visão histórico-social dos processos de ensino e aprendizagem relacionados a uma perspectiva emancipadora (DOURADO, 2017).
Em 2015, entre os dias 19 e 22 de maio, aconteceu o Fórum Mundial de Educação. O documento, resultado desse Fórum, foi um instrumento de reforço do movimento global Educação para Todos, iniciado em Jomtien (1990) e reiterado em Dakar (2000), com o compromisso de trabalhar no desenvolvimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) número 4, que visou assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos (UNESCO, 2016).
Além de definir princípios e valores da educação, o documento estabelece a educação como elemento-chave para a conquista do pleno emprego e da erradicação da pobreza. E define focos de esforço, acesso, equidade e inclusão, além da qualidade e dos resultados da aprendizagem. No que se refere à qualidade da educação, o documento assegura a melhoria dos resultados, reforço de insumos, avaliação de aprendizagem e mensuração do progresso. Garante, ainda, que professores e educadores “[...] sejam empoderados, recrutados adequadamente, bem treinados, qualificados profissionalmente, motivados e apoiados em sistemas que disponham de bons recursos e sejam eficientes e dirigidos de maneira eficaz” (UNESCO, 2016, p. 8, grifo do autor).
A declaração atesta que a educação de qualidade se torna possível por meio da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS) e da Educação para a Cidadania Global (ECG). Nota-se que não é mais uma cidadania voltada para o local, para as distintas culturas e organizações societárias que compõem os países. Nesse caminho, é reafirmada a responsabilidade dos governos no sucesso da implementação da agenda.
A educação é definida como fundamental para o desenvolvimento humano e a sustentabilidade econômica, assim como para alcançar todos os ODS. A agenda educacional é caracterizada como única, renovada, abrangente, holística, ousada, ambiciosa e universal. Uma das metas para alcance do ODS 4 define o aumento até 2030 do contingente de professores qualificados. Com isso, o Marco de Ação da Educação 2030 aponta a efetivação dos compromissos com a proposição de formas de implementação, coordenação, financiamento e monitoramento das ações, além de propor indicadores que devem ser utilizados como base para o desenvolvimento de planos e estratégias contextualizados.
O documento define metas, estratégias e meios de implantação. De forma geral, o destaque é dado ao desenvolvimento e uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), ao ensino a distância e, também, às aprendizagens informais e não formais. Na parte referente à implementação, com grande ênfase são citadas as participações de “partes interessadas” quando se refere às parcerias com o setor privado e as organizações da sociedade civil. As “comunidades de pesquisa”, sem menção específica às universidades, são consideradas de importante contribuição ao “[...] desenvolver pesquisas relevantes sobre as políticas, incluindo pesquisa-ação, para facilitar o alcance das metas, e disponibilizar conhecimentos sobre a educação de forma útil para os elaboradores de políticas” (UNESCO, 2016, p. 59); além disso, podem identificar práticas inovadoras, replicáveis e transferíveis.
Os professores também são citados nesse mesmo tópico com o potencial de contribuir com seu profissionalismo e compromisso, além de
[...] trazer a realidade da sala de aula para a linha de frente do diálogo político, da elaboração de políticas e do planejamento; bem como fazer a ponte entre política e prática, contribuindo com suas experiências como praticantes e com suas ideias e conhecimentos coletivos para políticas e estratégias gerais; promover a inclusão, a qualidade e a equidade, além de melhorar currículos e a pedagogia. (UNESCO, 2016, p. 58).
No que se refere à formação de professores, dentre as metas de implementação, consta a necessidade de aumentar o quantitativo de professores qualificados, “[...] inclusive por meio da cooperação internacional para a formação de professores” (UNESCO, 2016, p. 53). O documento explicita as previsões de defasagem no quantitativo de profissionais qualificados e elenca fatores que dificultam o atendimento das demandas, como a desigualdade na distribuição de profissionais qualificados, a falta de atratividade da profissão e a necessidade de diálogo do governo com “organizações de professores”. No decorrer do texto, é dada ênfase à importância - e responsabilidade - que os educadores têm no sucesso e na qualidade da educação. Além disso, a declaração inclui a formação de professores na lista de causas do insucesso da educação:
A falta e/ou a inadequação de apoio e desenvolvimento profissional contínuo de professores e padrões nacionais para a profissão docente são fatores-chave que contribuem para a baixa qualidade dos resultados de aprendizagem. Sistemas educacionais bem-sucedidos, que garantem a qualidade e a equidade, concentraram-se em contínuo de desenvolvimento profissional que apoia a aprendizagem e o aperfeiçoamento dos próprios professores ao longo de suas carreiras (UNESCO, 2016, p. 54).
Dentre as estratégias de atendimento à meta já mencionada, estão: ações de atração e motivação de candidatos à docência; medidas políticas e legislativas com garantias de salário, condições de trabalho e de seguridade; revisão, análise e melhoria da qualidade de formação inicial e continuada de professores; desenvolvimento profissional e contínuo; oferta de habilitação em TICs, redes sociais, alfabetização midiática e pensamento crítico; implementação de sistemas de feedback para apoiar o “bom ensino” e garantir que a qualificação promova impacto positivo no trabalho dos professores; fortalecimento das lideranças escolares e o diálogo social institucionalizado com as organizações representativas na formulação de políticas educacionais.
Dentre os indicadores globais sugeridos para a avaliação e acompanhamento das metas, está a proporção de professores com a qualificação mínima necessária “pré-serviço ou em serviço” para o nível de ensino em que atuam. Já dentro dos indicadores temáticos se encontra o conceito da qualificação mensurado pela porcentagem de professores qualificados segundo padrões nacionais por nível educacional e por tipo de instituição. O conceito de treinamento trata da proporção de professores com formação mínima reconhecida como necessária no país. A condição salarial em equiparação com outras profissões que requeiram um nível comparável de qualificação educacional surge como indicador do conceito de motivação.
4 PROFESSORES BEM TREINADOS: COMPETÊNCIAS E HABILIDADES NA GARANTIA DOS DIREITOS AO DESENVOLVIMENTO E À APRENDIZAGEM
O percurso formativo da Resolução n. 02/2015, ao ser modificado, gerou tensões na área quando as propostas de formação inicial e continuada foram contrapostas pelas novas resoluções do CNE. A efetivação dos princípios da educação nacional (BRASIL, 1988), como a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas são substituídos pelos embasamentos pedagógicos de “[…] dominar os direitos de aprendizagem, competências e objetos de conhecimento da área da docência estabelecidos na BNCC e no currículo” (BRASIL, 2019, p. 15).
As duas resoluções apresentam algumas diferenças em seus embasamentos legais. Enquanto a BNC-Formação Inicial se refere à LDB e a BNCC, a BNC-Formação Continuada já traz o amparo do PNE em suas metas 15 e 16. Em comum, as resoluções apresentam, em seus primeiros capítulos, as dimensões fundamentais que, “[…] de modo interdependente e sem hierarquia, se integram e se complementam na ação docente”. São elas: o conhecimento, a prática e o engajamento profissional.
Com as dimensões estabelecidas, cada uma recebe suas competências específicas e, a partir delas, são definidas as habilidades correspondentes. Além disso, a resolução de 2019 traz a organização curricular e de carga horária dos cursos de licenciatura a partir da divisão de grupos. Dispõe que o grupo I compreenderá 800 horas de estudo dos “conhecimentos científicos, educacionais e pedagógicos e fundamentam a educação” (BRASIL, 2019, s.p.). O grupo II refere-se aos conteúdos específicos da área e objetos de conhecimento da BNCC. O terceiro trata da prática pedagógica. Ainda, o documento defende a criação de unidades integradas de formação e o envolvimento de docentes das IES com professores da educação básica. São incluídos nessa regulamentação também a segunda licenciatura e a formação pedagógica. Ademais, é definida elaboração de novo formato do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE) para as licenciaturas e de avaliações diversificadas que demonstrem o aprendizado e estimulem a produção intelectual dos licenciandos.
A resolução de 2020 traz a definição dos princípios norteadores, dos fundamentos e das características, focando o conhecimento pedagógico no conteúdo; no uso de metodologias ativas de aprendizagem; no trabalho colaborativo entre pares; e na coerência sistêmica. Além disso, os cursos são organizados de acordo com as cargas horárias previstas para os cursos de atualização, de extensão, de aperfeiçoamento, de pós-graduação e de mestrado ou doutorado. Por fim, é definida a concepção de formação ao longo da vida, em serviço, que seja alinhada com as necessidades e contextualizadas com as práticas.
As diretrizes propostas têm como objetivo centralizar o poder, ou seja, há um direcionamento dos conhecimentos considerados necessários para a formação, que são pensados somente em termos de competências e habilidades. Também vai ocorrer um processo de simplificação da formação, tendo por base diretrizes pensadas a partir da teoria do capital humano e a educação como um investimento para o trabalho, mão de obra com competências técnicas e a aprendizagem reduzida ao estritamente necessário (PROFOR UFSC, 2021).
Quanto à formulação das duas resoluções para o cumprimento da BNCC (2017), Freitas (2021) argumenta que:
[…] 2. A formação proposta expressa uma concepção do professor como executor técnico prático e reduz a docência a habilidades práticas e saberes esvaziados de teoria, o que contraria a concepção de formação assumida pelas IES públicas; 3. O texto da Resolução 02/2019 não se configurou a partir da problematização e escuta da sociedade organizada fragilizando a proposta; 4. Desapareceu na Resolução 02/2019 o ensino como face importante do processo, enquanto que o foco está na aprendizagem. Neste sentido, o docente enquanto sujeito da concepção, produção e socialização de conhecimento dá lugar ao resultado do processo: a aprendizagem. 5. Não há qualquer menção à avaliação escolar como diagnóstico dinâmico do processo ensino-aprendizagem. 6. Não há menção quanto à condição social dos estudantes de licenciatura no texto da Resolução 02/219-CNE. 7. Desconsidera os estudos e pesquisas sobre a formação de professores realizados nas Instituições de Ensino Superior Públicas. (FREITAS, 2021, s.p.).
Nas distintas ponderações que são elencadas por Freitas (2021), observa-se o foco no pragmatismo e no utilitarismo; o docente se constitui em um profissional meramente executor e técnico, com formação esvaziada e sem diálogo com a formação integral e humanística delineada em estudos e conhecimentos acumulados pela área de formação de professores. Nesse sentido, destacamos a nota de entidades representativas da educação, em um manifesto divulgado em 2019. Para as entidades, as novas diretrizes
[…] desconsideram a produção e o pensamento educacional brasileiro ao retomarem concepções ultrapassadas como a pedagogia das competências; apresentam uma visão restrita e instrumental de docência e […] descaracterizam os núcleos formativos, a formação pedagógica e a segunda licenciatura; ignoram a diversidade nacional, a autonomia pedagógica das instituições formadoras e sua relação com a educação básica; […] retrocedendo, desse modo, nos avanços que a área alcançou com a Resolução n. 02/2015. (NOTA…, 2019, p. 1).
Nessa nova proposição de formação apresentada nas resoluções, as entidades empresariais passam a ter a hegemonia dos processos formativos. O levantamento acerca das relações estabelecidas e dos modelos de educação e sociedade presentes nas diretrizes deixam em evidência os pressupostos de predominância desse setor, tendo em vista que o setor privado, por meio de parcerias público-privadas, acaba adentrando os setores públicos, imprimindo suas concepções de eficiência, eficácia e formação direcionadas para suprir demandas do mercado de trabalho com a justificativa de imprimir maior qualidade na educação.
A simplificação da formação atende a esses interesses e deixa de atender o sujeito na sua plenitude e na sua formação integral ao se restringir a conteúdos específicos. A razão mercantil, “[...] ao privilegiar a busca de resultados econômicos, costuma menosprezar os fins educativos, favorecendo encaminhamentos e abordagens que passam ao largo das boas práticas pedagógicas e do conhecimento técnico-científico sobre educação” (PARO, 2015, p. 50-51).
Ou seja, o que está em jogo é o setor privado adentrando o setor público na disputa por uma concepção de educação e na perspectiva de uma formulação curricular. Até porque, ancoradas na Resolução n. 02/2015, as IES já trabalhavam e discutiam vários horizontes formativos. As novas resoluções respondem aos Marcos de Ação 2030 quando trazem a necessidade de engajar parceiros sociais no desenvolvimento e na oferta de programas de educação e formação com caráter holístico, para que os currículos da educação básica, principalmente do Ensino Médio e das universidades, garantam programas que incluam tanto as habilidades relativas ao trabalho “[…] quanto habilidades não cognitivas/transferíveis - inclusive habilidades de empreendedorismo e TIC […]” (UNESCO, 2016, p. 42).
Dessa forma, assiste-se a um crescimento exponencial de fundações e institutos ligados a grandes empresas, bancos e organizações sociais presentes fortemente nas causas da educação, por meio de parcerias e projetos que influenciam as redes de ensino e também delineiam a formação inicial e continuada nas IES. Nesse sentido, as resoluções respondem à proposta nos Marcos de Ação 2030 da Educação, quando se delega para o Estado o papel de fomentar
[…] parceria com a sociedade civil, governança participativa, direito à participação das “partes interessadas”, legitimando a participação de provedores privados da educação pública. Esse intuito fica expresso nas propostas de educação formal, não formal e informal para construção da ‘cidadania global’. (SHIROMA; ZANARDINI, 2020, p. 711).
As prescrições expostas no documento, além de retirarem a autonomia das instituições, ferem o direito à educação previsto na Lei n. 9.394/1996, no seu artigo 2°, que explicita que a educação visa ao pleno desenvolvimento do educando, ao exercício para a cidadania e também à sua qualificação para o trabalho. A nova proposta vem para intensificar a formação para o trabalho e para o mercado, esquecendo-se da visão histórico-social do processo de ensino e aprendizagem, da perspectiva emancipadora, de um sujeito crítico e ativo.
5 CONSIDERAÇÕES EM PROCESSO
O estudo buscou discutir as tendências delineadas e as críticas formuladas em relação à formação inicial e continuada de professores, caso haja a implementação das novas resolução do CNE. O Estado brasileiro foi convocado a implantar uma nova matriz de formação nos moldes gerencialistas que atendem aos interesses da acumulação capitalista e esvaziam os sentidos da formação para a cidadania discutidos e propostos pela Constituição Federal de 1988, dentro dos consensos estabelecidos pela participação na formulação do PNE (2014-2024) e na Resolução n. 02/2015.
Ressaltamos que esses dois documentos, PNE (2014-2024) e Resolução n. 02/2015, em um contexto articulado e organizado, estabeleceram os conhecimentos necessários e uma visão ampla de docência, visando não só à formação para o trabalho, mas também à formação de um pensamento crítico necessário para se viver e conviver em uma sociedade excludente como a brasileira.
Nessa mudança de trajetória, as novas diretrizes apresentam um cenário de tensão que enfatiza o papel do professor e da concepção do trabalho docente como cumpridor dos objetivos de aprendizagem estabelecidos pela BNCC, além de resumir a formação continuada de professores como forma de suprir as necessidades, faltas e falhas da formação inicial. Ademais, atendem aos objetivos dos Marcos de Ação 2030, para instrumentalizar uma formação pensada no desenvolvimento econômico, voltada para conformação e manutenção da ordem estabelecida e para um futuro que se mostra difícil de ser atingido pelos contingentes populacionais ao quais esse marco se direciona.
Corroboramos a ideia de que a formação, como direito a ser garantido, deve ser incentivada e proporcionada aos professores como caminho para o desenvolvimento do trabalho educativo e como forma de assegurar a educação em sua complexidade e pluralidade de processos. E, ainda, conforme afirma Paro (2012), para a concretização dos programas de formação, não basta que neles sejam contempladas variadas opções para o aprimoramento moral e intelectual dos professores, se estas opções não estiverem coerentemente elaboradas dentro de políticas educacionais que visem à qualidade de ensino e que levem em conta a capacidade de mediação do processo de formação e integração do homem em suas dimensões individual, histórica e social.