Em tempos de ataques quase diários às instituições republicanas e democráticas tão arduamente construídas ao longo das últimas décadas em nosso país, aos direitos sociais e à educação pública, laica, gratuita e de qualidade para Todos, garantidos constitucionalmente, é importante e necessário também demarcar os movimentos e espaços de resistência e (re)existência em defesa de um Estado de Direito democrático e da relevância das instituições e servidores públicos.
Nesse sentido, vale ressaltar as séries de denúncias realizadas recentemente por servidores do INEP, órgão com mais de 80 anos de existência e responsável, entre outras coisas, pela elaboração da prova do ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio. Após sofrerem assédio moral e pressão por suprimir questões com temas considerados inadequados pela presidência do órgão, mais de 30 funcionários pediram demissão em massa no intuito de preservar a lisura do processo de elaboração das provas e explicitar a crise em curso na entidade.
Pouco tempo depois, mais de 110 coordenadores e consultores da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), de distintas áreas, renunciaram às suas atividades na instituição por questionarem a falta de compromisso com a qualidade da avaliação quadrienal dos programas de pós-graduação e pela pressão por liberarem de forma apressada e pouco criteriosa propostas de pós-graduação stricto sensu de ensino a distancia (EAD), sem ao menos ouvir os respectivos programas nas universidades.
Esse recrudescimento de políticas e ações autoritárias também se faz presente nas universidades públicas brasileiras, que têm sofrido interferências constantes em sua autonomia, como, por exemplo, na ruptura dos espaços de tomada de decisão coletiva para a escolha de seus dirigentes. Enquanto instituições que trazem em sua essência a valorização da ciência, da educação, da cultura e da democracia, as universidades têm sentido de forma muito intensa as consequências do desinvestimento e desmonte desses setores em nossa sociedade.
Contudo, tais retrocessos na educação e nas instituições de ensino superior também têm sido tensionados, desencadeando mobilizações de distintas entidades e associações da área científica e educacional, dentre as quais ressaltamos particularmente a atuação da Associação Nacional de Política e Administração da Educação – ANPAE, que neste ano de 2021 completou 60 anos de (re)existência. Ao longo de sua história, a associação passou por momentos e contextos políticos no Brasil que trouxeram grandes desafios, mas que por outro lado a fortaleceram, permitindo que a ANPAE seja hoje referência não apenas na produção científica na área, como no seu engajamento político em momentos cruciais do país. Como nos lembra o presidente da associação, Romualdo Portela Oliveira, por mais difícil que seja o presente, há também que se comemorar e preparar o futuro, renovando a disposição de seguir juntos na construção de uma nova sociedade.
O conjunto de artigos que compõe este número da RBPAE, que fecha o ano de 2021, retrata e reflete esse momento que vivemos na sociedade brasileira e na educação em particular, marcado pela influência do autoritarismo, conservadorismo e desmonte de um projeto autônomo e democrático de país. Tais embates perpassam desde os trabalhos que analisam teórica e empiricamente as reformas educacionais e as políticas de regulação da educação, os estudos acerca da atuação e limitações de órgãos colegiados, quanto as políticas de financiamento da educação, os colégios militares e a intensificação das desigualdades educacionais, dentre outras questões abordadas.
Para iniciar esse número da RBPAE, contamos com o cuidadoso estudo realizado por Ana Lúcia Feliz Santos e Emília Vilarinho, em seu artigo intitulado “Regulação e accountability na (re)configuração das políticas para a educação”, no qual problematizam o conceito de accountabilty enquanto elemento que tem orientado as políticas de avaliação educacional no Brasil e em outros países. Por meio de pesquisa bibliográfica, compreendem que a accountability se apresenta enquanto medida de regulação da educação, por meio dos pilares da avaliação, prestação de contas e responsabilização, mas observam que há uma diversidade de modos pelos quais ela se expressa nos distintos sistemas de ensino no Brasil.
Luís Gustavo Alexandre Silva e Ricardo Antônio Gonçalves Teixeira dão continuidade ao debate acerca das políticas de regulação da educação ao analisarem os efeitos da reforma educacional realizada no Estado de Goiás sobre a gestão escolar, particularmente no trabalho do diretor. No artigo “Reforma educacional no sistema estadual de ensino: do enfraquecimento dos princípios democráticas às contradições na gestão dos processos educativos na escola pública em Goiás”, por meio de análise documental e aplicação de questionários, os autores observam que as políticas de avaliação e bonificação em vigência no estado interferem no desenvolvimento de práticas coletivas de tomadas de decisão junto à comunidade escolar, pois a direção da escola, apesar de defender uma gestão democrática, acaba por sacrificá-la para atingir os parâmetros avaliativos.
Na região Sul do país, também é possível observar as influências da Nova Gestão Pública na definição das estratégias de gestão da educação, como indica o artigo “Planos de Gestão Escolar: contradições e disputas na nova política de governança das escolas públicas estaduais de Santa Catarina”, de Janete Palú e Oto João Petry. Ao analisarem a implementação de uma nova forma de escolha do gestor e de estratégia de governança nas escolas públicas estaduais, percebem que os Planos de Gestão Escolar, apesar de serem anunciados enquanto instrumentos de gestão democrática, têm sua origem e operacionalização associadas à reformas educacionais de cunho neoliberal, ancoradas a uma concepção de educação enquanto um serviço mais do que um direito e que alteram o sentido da participação, transformando a participação cidadã em participação fiscalizadora.
As redes municipais de educação também são fortemente impactadas por esses debates, como se percebe no estudo realizado por Caroline Pereira Leal, na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, que discute a recente reforma educacional implantada a partir de 2017 na capital. No artigo “Gestão por resultados e a nova rotina escolar na rede municipal de ensino de porto alegre (RME/POA)”, a autora analisa, por meio de pesquisa documental, os instrumentos adotados pela administração municipal como forma de construção e de funcionamento da gestão por resultados aplicadas à educação, concluindo que a intervenção efetuada na realidade escolar gerou uma intensificação do trabalho docente sem, contudo, atingir seus objetivos em termos de efetividade da gestão.
No âmbito dos Institutos Federais de Educação, o artigo intitulado “Importância e fatores intervenientes na representatividade, democratização e tomada de decisão nos Conselhos Superiores de Institutos Federais de Educação”, tem como objetivo analisar a representatividade, os fatores intervenientes no processo de tomada de decisão e a potencialidade dos órgãos colegiados dos Institutos para a democratização institucional. A partir do aporte teórico dos estudos sobre Modelos Racionais de tomada de decisão, de pesquisa documental e trabalho de campo, os autores Marcos Vinicius Campelo Junior, Érison Ferreira Mendonça Filho, Jonas de Paula Oliveira e Suzete Rosana de Castro Wiziac constataram um elevado índice de representatividade nos conselhos e autonomia na tomada de decisões, indicando uma gestão democrática efetiva, mas observaram que há necessidade de aprimorar a socialização de informações aos seus membros, a comunicação entre eles e a organização dos modos de deliberação nas reuniões. Já o estudo realizado por Francisco José da Silva, acerca do Conselho do Fundeb do Distrito Federal no acompanhamento e controle social de recursos financeiros identifica um conjunto de questões que dificultam sua atuação. Por meio de análise documental, no artigo “Conselho do Fundeb no DF: missão quase impossível!”, o autor observa que é necessária a ação de fiscalização dos recursos financeiros da educação, mas que esta deve continuar a ser de competência dos órgãos de controle, e não como atribuição dos Conselhos do Fundeb. Propõe que estes concentrem suas ações no acompanhamento e controle social, mas que se amplie sua responsabilidade, abrangendo todos os recursos da educação e não apenas aqueles do Fundeb.
O debate acerca do financiamento da educação também é o objeto de estudo dos pesquisadores Alessandra Bertasi Nascimento, Maria Dilnéia Espíndola Fernandes e Leandro Sauer, no artigo “A política de financiamento da educação no estado de Rondônia entre 2007 e 2019”. Por meio da análise documental, os autores constatam que a política de financiamento da educação no estado se desenvolveu em dois ciclos no período estudado: o primeiro foi marcado pela ampliação do direito à educação e o segundo foi influenciado pelas políticas de austeridade fiscal, rompendo com os avanços conquistados no ciclo imediatamente anterior.
Ao abordar os processos de implementação de políticas, os autores Alex Andrade e Pedro Lucas de Moura Palotti, em seu artigo “A política pública de apoio financeiro à escola família agrícola de Natalândia: um enfoque sobre a implementação”, fazem uso da teoria bottom-up e do conceito de “burocratas de nível de rua” para compreender os desdobramentos do Programa em Minas Gerais. Como resultados, indicam que o processo de implementação foi bem- sucedido particularmente devido à realização de um trabalho conjunto, que permitiu aos diferentes atores dialogar em prol da essência do programa.
O artigo de Elitana Antoniolli e Maria Silvia Cristofoli segue a discussão sobre os processos de implmentação de políticas públicas educacionais, agora com foco na análise do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) no âmbito de alguns municípios do Rio Grande do Sul. Por meio de pesquisa documental e bibliográfica, além do uso de entrevistas semiestruturadas, o artigo “A implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) em municípios do norte do Rio Grande do Sul” identifica que a implementação do PNAE depende de três pilares básicos: a) recursos financeiros; b) agentes da política; c) sistema normativo que rege o programa.
Outro tema que tem ganhado espaço nos debates educacionais, especialmente nesse ano de 2021 em que comemoramos seu centenário, é o debate sobre o legado de Paulo Freire para a educação brasileira, objeto de estudo de Arthur Da Rezende da Silva e Rafael Bastos Costa de Oliveira. Em seu artigo “Aproximações entre o legado freireano e a Educação Profissional e Tecnológica: uma análise textual discursiva do Estatuto do Instituto Federal Fluminense”, por meio da técnica de Análise Textual Discursiva (ATD) do estatuto do IFF, os autores observam uma forte presença freireana nas orientações do Instituto, com ênfase em uma formação emancipatória do estudante e em oportunizar experiências de uma gestão democrática.
O artigo de Elaine Constant, Sandra Cordeiro de Melo e Daiane França continua o diálogo acerca das contribuições de Paulo Freire, agora com foco na relação entre alfabetização e inclusão social. O texto “Paulo Freire, alfabetização e inclusão escolar: o direito à educação a partir da formação crítica e reflexiva”, por meio de uma revisão da literatura sobre o tema, se estrutura a partir de dois eixos analíticos: alfabetização e letramento como processos de inclusão social e a construção política dos princípios de Educação para Todos. Ao final, identifica que além das lutas no campo educacional contra o analfabetismo absoluto e funcional, novos riscos emergem no cenário atual: o analfabetismo virtual e os refugiados digitais.
Investigar o uso dos meios digitais por parte o Instituto Ayrton Senna é o objetivo do estudo de Rui da Silva e Theresa Adrião, no texto “Redes sociais e política educacional: análise do Instituto Ayrton Senna no Twitter de 2013 a 2020”. Por meio de um corpus documental composto pelos tweets do IAS ao longo de 8 anos, realizou-se análise de conteúdo e análise de frequência de palavras, que identificaram a concentração de resultados em questões inerentes aos temas ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM em inglês) e ao uso de evidências científicas e referências a organizações como UNESCO e OCDE para legitimar as ações e posições defendidas pelo IAS.
O debate sobre a militarização da educação, tema que tem alcançado grande destaque na área, é explorado no texto de Rogério Pacheco Alves e Debora da Silva Vicente, intitulado “A expansão dos colégios militares no Rio de Janeiro: uma análise sob a perspectiva constitucional”. Nesse artigo, os autores analisam o processo de expansão dos colégios militares no Rio de Janeiro, por meio de uma revisão bibliográfica, observando que, sob a perspectiva da Constituição de 1988, a militarização da educação configura-se incompatível com o regime democrático.
Na esteira dos debates atuais acerca da crise sanitária desencadeada pela Covid-19 no mundo e seus impactos na educação, o artigo de Fernando Andre Muzime e Octavio Jose Zimbico nos aproxima dos desafios vividos em Moçambique, com suas semelhanças e particularidades. A partir da pesquisa bibliográfica e uso do materialismo histórico-dialético, no texto “Covid-19 e a Educação em Moçambique: entraves, desafios e possibilidades de reinvenção da educação”, os autores discutem o fomento de novas metodologias de ensino, particularmente por meio de organizações internacionais como a UNESCO, a necessidade de novos investimentos em infraestrutura e formação docente e a importância de um Pacto Educativo de modo a superar a crise que se instaurou em seu sistema educativo.
Em âmbito nacional, o estudo desenvolvido por Rosangela Fritsch, Ricardo Ferreira Viteli, Luciane Flores Homem e Sílvio Nei Da Silva Machado tem como objetivo analisar o ensino remoto no contexto da pandemia sob a perspectiva de estudantes de Ensino Médio de escolas públicas estaduais da região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, por meio da aplicação de um questionário on-line a estudantes e da coleta de relatos de gestores escolares, submetidos à análise estatística e textual. No artigo “O ensino remoto no contexto da pandemia de Covid 19 em escolas públicas de Ensino Médio”, os autores identificam variáveis de contexto e fatores negativos que interferem no percurso escolar mapeado, evidenciando que as desigualdades sociais e educacionais historicamente presentes no contexto educacional brasileiro se acentuaram nas escolas públicas durante a pandemia.
As desigualdades educacionais no ensino médio também são objeto de estudo de Anderson Paulino da Silva e Rodrigo Rosistolato, no artigo “Participação no Enem: desigualdades no contexto das escolas públicas no Rio de Janeiro”, onde analisam a participação de concluintes do Ensino Médio nas escolas estaduais do Rio de Janeiro no ENEM entre 2012 e 2016. Ao considerar os impactos da Lei de Cotas sobre expectativas dos estudantes, os autores propõe um indicador da taxa média de participação no Enem por escola, com modelos de regressão linear e logística para comparar as escolas. Como resultado, observam que ao longo do período estudado houve um aumento na participação dos estudantes no ENEM, contudo também percebem um movimento de estratificação horizontal nas escolas da rede.
Este número da revista é finalizado com o Discurso de Abertura do XXX Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação do presidente da ANPAE, Romualdo Portela de Oliveira, que nos convida à importante reflexão acerca das reminiscências de nosso passado de modo a buscar caminhos que nos preparem para o futuro que começamos a tecer e trilhar, neste momento em que alcançamos 60 anos da entidade. Há muitos motivos para celebrar, como a presença da ANPAE nas lutas democráticas da sociedade brasileira ao longo de sua história, sua presença hoje em 24 estados brasileiros e no Distrito Federal, o crescimento do quadro associativo, o fortalecimento da editora da ANPAE e da RBPAE, que completará em 2022 seus 40 anos de existência, o lançamento da revista Educação Básica em Foco, ampliando a relação da associação com a educação básica, além da continuidade do engajamento na articulação com outras entidades para fortalecer a ação conjunta e a participação popular na definição das políticas e na gestão da educação, fundamentais diante das incertezas e retrocessos que vivenciamos atualmente em nosso país. Como nos lembra o presidente da ANPAE, a educação tem um papel estratégico na construção de uma nova sociedade, o que é indissociável do investimento em pesquisa, ciência e tecnologia, como forma de resgatar um projeto de construção autônoma e democrática de país. Desse modo, neste aniversário da entidade, renovamos nossos laços de solidariedade, do fazer juntos e da disposição de seguir adiante!