1 Introdução
As transformações sociais vividas em alguns contextos atuais alertam para a facilidade de violação dos direitos da criança, sendo essa uma temática amplamente abordada nos contextos científico e midiático. Desse modo, considera-se que há conquistas que precisam ser vivenciadas para que as crianças tenham efetivamente seus direitos apropriados, reconhecidos e valorizados - prioritariamente, os de participação, já que não costumam ter suas opiniões consideradas (MARCHI; SARMENTO, 2017).
Nomeadamente, é possível reconhecer na criança a capacidade de pensar e de agir de acordo com os próprios ideais, por exemplo, em relação à vivência urbana. Rodrigues e Ferro (2020, p. 24) referem-se à urgência de que suas vozes sejam ouvidas para a reorganização das cidades, de modo que esses espaços também sejam projetados para esse grupo:
É necessário promover a participação ativa das crianças na cidade, assegurando- -lhes o seu direito a brincar, a usar os espaços urbanos de forma autónoma, garantindo igualdade de oportunidades para crianças com diferentes origens sociais e a sua participação efetiva nos processos de definição das políticas públicas à escala urbana (por exemplo, como protagonistas em processos de desenho de espaços públicos urbanos concretos, para além dos espaços especializados que lhes são destinados).
Uma cidade que considera as crianças como participantes em seu planejamento corrobora com o que está previsto na Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) (UNICEF, 1989), já que os seus direitos passam a ser reconhecidos e valorizados. Simultaneamente, a valorização dos direitos de participação não extingue a necessidade de que os de proteção, de desenvolvimento e de sobrevivência sejam salvaguardados (MARCHI; SARMENTO, 2017), contrariando a ideia de que não possam coexistir.
A escola, como uma das principais instituições socializadoras na infância, possui um papel fundamental no que diz respeito à temática dos direitos da criança, afinal, conforme mencionado por Souza e Diniz (2022, p. 11), na escola é possível “[...] articular cenários escolares e não escolares […] promover e viabilizar a cidadania e, para tanto, é necessário que os processos educativos ocorram de forma integrada à vida cotidiana”. Desse modo, as relações estabelecidas nesse contexto podem (ou não) propiciar a vivência da cidadania e o direito à participação.
A noção de cidadania torna-se, assim, imprescindível para a vivência na escola, a qual se relaciona diretamente aos direitos de participação, inclusive, em Portugal, a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento é obrigatória no 1.º Ciclo do Ensino Básico (1.º CEB) e transversal durante todo o ciclo. É possível, destarte, reconhecer no Perfil dos alunos para o século XXI (CNE, 2017, p. 4) a noção de participação:
As finalidades de um sistema educativo, que estão subjacentes a muitos dos quadros de referência analisados, contemplam três dimensões: de desenvolvimento pessoal (capacidades de saber questionar o adquirido e de saber pensar, de gerir emoções e negociar conflitos), de cidadania (ativa e participativa - princípio da civilidade e ética da responsabilidade para com os outros e a sociedade) e profissional (na trilogia de conhecimento, habilidades/aptidões e atitudes, indispensável à aquisição de qualificações), exigindo uma capacidade de adaptação e de resposta aos desafios de um mundo global.
Por vezes, em suas relações próximas, como aquelas vivenciadas na família ou mesmo na escola, as crianças experienciam situações que não são correspondentes aos seus direitos, aqueles determinados na CDC (UNICEF, 1989). Em meio à emergência de saúde pública e, em um segundo momento, de pandemia, quando o assunto dos direitos da criança esteve em foco, foi realizada a presente investigação com o objetivo de analisar as percepções dos alunos finalistas do 1.º CEB de uma escola pública de Lisboa sobre os direitos de participação e de brincar (NASCIMENTO, 2020).
Com este artigo, objetiva-se refletir sobre as percepções das crianças em relação aos seus direitos. Num segundo momento, reflete-se sobre como o contexto pandêmico atual pode ter interferido nesses direitos das crianças.
2 Metodologia
Foram incluídas no estudo crianças de ambos os sexos, com idade entre 9 e 11 anos, de qualquer nacionalidade, que se comunicassem na língua oficial do país, que frequentavam o 4.º ano do 1.º CEB de uma escola pública em Portugal. Foram excluídas as duas crianças que não entregaram os termos de consentimento assinados pelos encarregados de educação.
A investigação decorreu de acordo com os fundamentos da pesquisa qualitativa, considerando o discurso dos sujeitos para analisar as representações existentes em relação à temática abordada (AMADO, 2014). Para tanto, construíram-se roteiros de entrevistas e determinaram-se categorias estabelecidas em congruência com os objetivos da pesquisa; entrevistaram-se crianças individualmente e em grupo e utilizou- -se o software NVivo 12 Pro como apoio para a análise de conteúdo, o qual contribuiu para a organização dos dados das entrevistas, além da própria análise do corpus.
Primariamente, foram realizadas entrevistas individuais com 22 crianças; e, posteriormente, entrevistas de grupo, no último dia de aula presencial do ano letivo de 2019/2020 - por esse motivo, apenas 13 crianças estavam presentes.
Os codinomes dos participantes foram por eles escolhidos livremente, sendo assim, há nomes próprios, representativos de personagens, seres vivos ou inanimados.
Para a recolha dos dados, recorreu-se a uma entrevista semiestruturada. Elaboraram-se dois roteiros: o primeiro para a entrevista individual; após transcrição e primeira análise desta, elaborou-se o segundo roteiro para a entrevista de grupo focal. As entrevistas decorreram entre os meses de fevereiro e março de 2020, já que o seu prolongamento foi interrompido pela suspensão das atividades letivas presenciais a partir do dia 16 de março, com reavaliação no dia 9 de abril (PORTUGAL, 2020).
A entrevista individual foi dividida em três blocos: o primeiro refere-se aos direitos da criança de modo geral; o segundo, sobre o direito a brincar (artigo 31 da CDC); e o terceiro, acerca dos direitos de participação, com foco nos artigos 12, 13 e 15 da CDC. Ademais, as questões foram realizadas após a apresentação das imagens retiradas da versão amigável para crianças da CDC (UNICEF, 2015). Já a entrevista de grupo teve três partes: na primeira, foi entregue uma folha para as crianças escreverem ou desenharem sobre os direitos de participação e de brincar; na segunda, refletiram sobre como gostariam de vivenciar os respectivos direitos; e, na terceira, foram questionadas sobre serem adultos dentro e fora da escola.
Além de reforçar o abordado nas entrevistas individuais, com o foco nos direitos de participação e de brincar, a realização das entrevistas de grupo visou perceber o ponto de vista das participantes em grupo, já que “[...] as crianças ficam mais descontraídas quando estão com um amigo em vez de a sós com o adulto. Ajudam-se uns aos outros nas respostas. Também se vigiam umas às outras e vigiam a mentira” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 141).
Não obstante, a realização de uma pesquisa com seres humanos implica o consentimento informado; a privacidade e a confidencialidade dos dados; o acesso à divulgação do estudo; a possibilidade de desistir da pesquisa, sem nada que a desabone; e a proteção dos participantes (SPCE, 2014). Em relação à pesquisa com crianças, por fazerem parte de um grupo vulnerável (SPCE, 2014), para além dos princípios éticos que foram anteriormente mencionados e das autorizações da Comissão de Ética da Universidade e da Direção-Geral da Educação (no caso de pesquisas realizadas na escola), obteve-se a autorização, através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de um responsável legal (encarregado de educação), assim como a autorização da diretora da escola, através do Pedido de Autorização, e o Termo de Consentimento para Participação, assinado pelas próprias crianças.
Através do software NVivo 12 Pro, as respostas das entrevistas foram agrupadas em categorias; elaboraram-se nuvens de frequência de palavras de modo a reconhecer as palavras que foram mais vezes mencionadas pelas crianças, além da elaboração de tabelas de referência cruzada e matrizes estruturais.
3 Resultados e discussão
A pesquisa teve como participantes 11 crianças do sexo feminino e 11 do sexo masculino, com idades entre 9 e 11 anos (sendo 11 crianças com 9 anos, 10 crianças com 10 anos e uma com 11 anos, com uma média de 9,5 anos de idade e um desvio padrão de 0,68 para os meninos e 0,52 para as meninas). Todas frequentavam uma turma do 4.º ano do 1.º CEB. Em relação à nacionalidade, 18 crianças são portuguesas, três são brasileiras e uma é angolana.
A análise dos dados obtidos nas entrevistas teve como base o princípio da análise de conteúdo, com o apoio do software NVivo 12 Pro. Conforme referido por Amado (2014), para a realização da análise, são estabelecidas categorias determinadas com base na interpretação dos dados e das informações que seriam apreendidas para a conclusão do estudo, as quais vão ao encontro dos objetivos estabelecidos. Foram eleitas, pois, três categorias: direitos da criança, direito a brincar e direitos de participação.
Em relação aos direitos da criança, no que diz respeito à definição do termo “direito”, 21 das 22 crianças responderam, sendo que foi possível reconhecer a exemplificação com direitos conhecidos e um conflito existente entre os significados de direitos e deveres:
O que ela deve ter? Ela deve ter direito à família, direito à saúde, direito à liberdade, direito à educação. […] O que ela deve ter para sobreviver. (GAMER, 10 anos).
É o que podemos fazer. […] Não tenho certeza se é o que nós podemos fazer ou se é o que mandam-nos fazer, mas eu acho que é mais isso, eu acho que é mais o que podemos fazer. (BONECO DE NEVE, 10 anos).
Quando questionadas sobre os direitos conhecidos, os mais citados foram o direito a brincar e o direito a ser livre, consoante é possível verificar na Tabela 1, na qual se encontram os cinco direitos mais citados pelas crianças durante as entrevistas individuais.
Direitos mencionados | Percentagem (%) |
---|---|
Direito a brincar | 64% |
Direito a ser livre | 50% |
Direito a ter uma família | 32% |
Direito a ter uma casa, lar ou abrigo | 32% |
Direito à saúde | 32% |
Fonte: Autoria própria (2020).
Acerca do direito a brincar, 20 crianças consideraram sua importância, enquanto duas referiram que é um direito “mais ou menos” importante, pois reconheceram que todas as crianças podem e devem brincar. A análise de frequência de palavras, realizada com o software NVivo 12 Pro, possibilitou o reconhecimento das palavras mais citadas (Figura 1), sendo que “crianças”, mencionada 43 vezes, recebe destaque, seguida pela palavra “pode” (referida 30 vezes), “tem” (dita 23 vezes) e “fazer” (citada 22 vezes) - as quais correspondem à relevância atribuída ao brincar, já que as crianças podem, têm e fazem algo enquanto vivenciam esse direito.
A importância do brincar foi reconhecida por todos os participantes da pesquisa, prioritariamente durante a infância. Destaca-se o excerto da entrevista realizada com Carol (10 anos), na qual a menina relacionou o brincar à infância, diferentemente do que ocorre na vida adulta:
Porque nem sempre a nossa vida tem que ser estudar, estudar, estudar, fazer muitas tarefas. Nós temos de ter sempre um momentinho para brincar, porque senão vamos perder nossa infância. Vamos perder a nossa infância. […] Seria que, enquanto somos crianças, não aproveitar, ter o momento de estudar e ter outro de brincar, seria ser tipo adulto na altura e na idade de uma criança.
O brincar foi associado ao divertir-se por 11 participantes; ao executar jogos e fazer brincadeiras, por nove crianças. Também foi relacionado ao movimentar-se e à liberdade, à escolha daquilo que realmente desejam fazer e diferente do estudar (associado a trabalhar). Em relação à vivência desse direito, elaborou-se a Tabela 2 sobre os três lugares ou situações mais referidos pelas crianças:
Lugares ou situações | Percentagem (%) |
---|---|
Recreio/Intervalo | 82% |
Casa | 77% |
Jogos | 55% |
Fonte: Autoria própria (2020).
A relação entre o brincar e o recreio foi evidente nesta pesquisa, assim como o brincar em casa, o que corresponde ao fato de o recreio ser o momento propício para brincadeiras na escola, enquanto a sala de aula seria um local de “trabalho”, mesmo quando também possa existir momentos em que se realizam atividades associadas ao brincar (eg., dançar, partilhar ideias sem conteúdos sentidos como curriculares, desenhar), segundo o mencionado por algumas crianças:
Na sala de aula, nós não devemos brincar como brincamos no recreio, dentro da sala de aula, o que nós brincamos é, às vezes, fazer desenhos; às vezes, é dançar; às vezes, é falar sobre o que nós queremos, hum… brincar no pátio não é igual a brincar na sala, porque brincar na sala é um pouco menos brincadeira, é como se tivesse a fazer desenhos, a falar de outra coisa ou a falar de coisas, ou a dançar. Às vezes, as professoras, de ALE ou psicólogas também fazem isto, que é atividades para as crianças. (CÍRCULO, 10 anos).
Observou-se que as crianças participantes do estudo diferenciaram a experiência do brincar e do jogar com a utilização de recursos tecnológicos, sem desconsiderar as brincadeiras mais tradicionais (principalmente no contexto escolar), assim como na pesquisa desenvolvida por Azevedo e Betti (2014), conforme referido:
Pesquisadora: E, no caso, Minecraft é em casa? Que você disse.
Pombo: Isso é jogar.
Pesquisadora: Certo. Mas jogar é brincar?
Pombo: Hum… mais ou menos.
Pesquisadora: Por quê?
Pombo: Não consigo explicar.
Pesquisadora: Não há problema. Mas, se você estivesse jogando, e eu perguntasse: ‘Pombo, está brincando agora?’, diria que sim?
Pombo: Não. (POMBO, 10 anos).
A relevância atribuída ao brincar corresponde ao encontrado na literatura, quando autores (MRNJAUS, 2014; PALMA, 2017) enfatizam a importância desse ato para o desenvolvimento infantil; afinal, “[...] é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o self” (WINNICOTT, 1975, p. 80).
No que se refere aos direitos de participação, foi possível reconhecer sua associação com o “fazer algo” ou “fazer parte de algo”, principalmente de um jogo ou de uma brincadeira (Figura 2), já que a palavra “fazer” foi citada 18 vezes, “jogar” foi referida 14 vezes e “queres” foi mencionada 12 vezes durante as entrevistas. Ao promoverem essa relação, percebeu-se a associação entre os dois direitos, indo-se ao encontro do mencionado por Mrnjaus (2014) ao referir que o brincar consiste na primeira forma de participação da criança.
A noção de participação, como um processo que influencia decisões tomadas (TOMÁS; GAMA, 2011), foi mencionada poucas vezes pelos entrevistados, sendo possível encontrá-la em alguns excertos da entrevista: “É questionar. Os nossos pais têm o direito a participar dos votos para quem vai ser o presidente da república; temos o direito de participar nos votos de quem vai ser o presidente da turma” (POMBO, 10 anos).
Além disso, apresentam-se (Tabela 3) os lugares ou as situações nos quais as crianças mais participam - ressalta-se, contudo, que, na sala de aula, a noção de participação encontra-se enviesada no significado, já que consideraram como participação os momentos em que respondem, por exemplo, ao que é perguntado pela professora.
Lugares ou situações | Percentagem (%) |
---|---|
Aula | 86% |
Casa | 77% |
Brincadeiras | 59% |
Fonte: Autoria própria (2021).
No que concerne à participação em casa, as crianças relacionaram-na à expressão de alguma opinião, seja na escolha do que irão comer, por exemplo, seja na atribuição de uma qualidade a algo: “Em casa dou. [...] Em relação aos brinquedos da minha irmã. São muitos giros. […] Falo que gosto deles” (BORBOLETA, 10 anos).
Ainda que os sentidos atribuídos aos direitos de participação não possam ser considerados equivocados, nota-se certo distanciamento da noção de modificação de contextos após terem sua opinião considerada, destacando-se a diferenciação da participação na vida adulta, assim como do brincar: “Normalmente é os adultos que têm este momento de participar nas reuniões. Nós também temos em participar nas brincadeiras, nisso” (GAMER, 10 anos).
Ressalta-se que, ao serem questionadas sobre o conhecimento dos direitos de participação e de brincar, seis crianças referiram conhecer o primeiro, enquanto 20 mencionaram conhecer o segundo - 14 disseram espontaneamente enquanto exemplificavam os direitos conhecidos.
Conforme indicado anteriormente, após a conclusão das entrevistas individuais, foram realizadas três de grupo, no dia 13 de março de 2020, com 13 das 22 crianças que haviam sido entrevistadas. O primeiro e o segundo grupo foram formados por quatro participantes; e o terceiro grupo, por cinco participantes.
Durante as entrevistas em grupo, a relação entre os direitos de participação e de brincar recebeu ainda mais evidência, assim como a relevância do brincar, já que esse é associado a sentimentos prazerosos, como a felicidade. A ideia de que viver esse direito é importante para não perderem a infância esteve presente no Grupo 2: “Diego: Acho que temos que aproveitar enquanto ainda estamos na fase da infância. […] A brincar. Felizzz: Ir pra piscina” (DIEGO; FELIZZZ).
Outrossim, uma observação pertinente à situação de pandemia experienciada desde 2020 é que, durante a realização do Grupo 1, Pombo (10 anos) levantou a temática do estudo em casa, e, em concordância, Gamer (10 anos) assinalou: “Eu também mudaria uma coisa, a escola, ficava de estudos em casa. […] Iríamos à rua, ligava para o Pombo, Pombo vestia e íamos brincar”.
No Grupo 3, as crianças enfatizaram a quantidade de tempo que passam na escola e mencionaram a necessidade de transformação da instituição escolar, ao considerarem passar muito tempo a fazer atividades semelhantes, fato que se encontra em concordância com o referido na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (PORTUGAL, 2017) sobre a necessidade de inovação nesse contexto perante mudanças imprevisíveis.
Como, durante a realização das entrevistas individuais, os participantes mencionaram a distinção entre ser adulto e ser criança, no que diz respeito a ambos os direitos, foi possível questioná-los sobre serem adultos na escola e fora dela. Elaborou-se, então, o Quadro 1 com a análise das respostas.
Na escola | Fora da escola | |||
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Direito a brincar | Direitos de participação | Direito a brincar | Direitos de participação | |
Grupo 1 | Atitudes que possibilitem o brincar e a mediação de conflitos. | Permitir a participação das crianças e a interdição de comportamentos inadequados. | Interdição em relação a brincadeiras inadequadas das crianças. | Possibilitar que uma criança participe de algo que deseje participar. |
Grupo 2 | Intervenção em situações conflituosas e ensino de comportamentos adequados. | Intervenção em situações conflituosas e ideia de modelo para as crianças. | Uma participante disse que, como adulta, permitiria que as crianças brincassem consigo. | Uma participante referiu que ajudaria a criança a regular seu tempo. |
Grupo 3 | Diálogo para intervir em situações conflituosas. | Passar menos tempo dentro da escola. | O grupo optou por retomar o assunto anterior (se fossem adultos na escola). | O grupo optou por retomar o assunto anterior (se fossem adultos na escola). |
Fonte: Autoria própria (2020).
Após o questionamento sobre serem adultos dentro e fora da escola, as crianças apresentaram opiniões concernentes à realidade vivida, pois suas intervenções neste ambiente correspondem àquelas já experienciadas, como no caso das assistentes educacionais, que intervêm em conflitos entre os alunos e em comportamentos inadequados. Além disso, não houve sugestão de diferentes posturas por parte do adulto, exceto quando Pedro (Grupo 2) mencionou sobre a importância de o adulto ser um exemplo para a criança e agir de acordo com aquilo que preconiza (MONTEIRO, 2013).
O reconhecimento da necessidade de passarem menos tempo dentro da escola, assim como a noção de transformação de algumas práticas comuns à comunidade escolar também foram assinalados pelos participantes dos grupos 1 e 2, o que demonstra a capacidade de compreensão da realidade, além de corresponder ao referido por Fantin (2017), quando a autora aponta a demanda de transformação e de adaptação do contexto escolar à realidade contemporânea, afinal, o desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação propiciam novas interações, através das diversas redes existentes, influenciando nas experiências vividas na relação com os profissionais da área da educação.
Para mais, as crianças participantes demonstraram dificuldade em falar sobre serem adultos fora do contexto escolar. No Grupo 3, os entrevistados optaram por retomar à temática sobre serem adultos na escola. No Grupo 2, Flor mencionou o que faria como adulta, o que não foi acordado entre os diferentes elementos do grupo. Já no Grupo 1, os alunos abordaram atitudes semelhantes àquelas que fariam na escola, como no caso de intervenção em comportamentos considerados inadequados.
Apesar de as pesquisas referenciadas datarem de alguns anos anteriores ao referido estudo, verifica-se paridade no que diz respeito aos direitos estudados, uma vez que a proximidade com o direito a brincar e o distanciamento dos direitos de participação, no que tange à transformação no contexto, encontram-se firmemente presentes.
Observa-se que os dois direitos mais citados pelas crianças nesta pesquisa (direito a brincar e a ser livre) foram afetados diretamente durante o período do confinamento obrigatório, além de terem algumas regras mais restritivas, mesmo com o regresso à instituição escolar. De acordo com um artigo da Acta Médica Portuguesa:
81,3% das crianças ou adolescentes apresentaram alterações de comportamento. As crianças em idade pré-escolar e escolar foram as que estiveram mais ansiosas, irritadas, desafiadoras e fizeram mais birras. Sentiram mais falta de ir a parques, do ensino presencial, e demonstraram mais saudades dos familiares. (PEIXOTO et al., 2021, p. 317).
A relevância atribuída ao recreio, pois, como momento propício para o brincar junto com os amigos e, concomitantemente, “serem livres” para escolherem com quem, quando e como irão brincar, foi e tem sido afetada pela pandemia, visto que algumas limitações ainda são impostas pelas escolas.
No estudo realizado, as crianças demonstraram o evidente gosto pelas brincadeiras mais tradicionais praticadas na escola: “Jogar a corda, jogar a bola, várias coisas” (FUTEBOLISTA, 9 anos); “Brincar é tipo saltar a corda, a jogar” (DANIEL, 11 anos). Entretanto, de acordo com uma investigação realizada pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD, 2020, p. 40), verificou-se, durante a pandemia, que, ao estarem mais tempo em casa, por não poderem ir a espaços públicos, as crianças estiveram mais tempo centradas em jogos virtuais, afinal:
[...] por força de um contexto de confinamento generalizado e de isolamento social, a pandemia da Covid-19 criou as condições para a afirmação da Internet como espaço de trabalho, aprendizagem, comunicação, informação e lazer. Tal reflete-se nos padrões de utilização da Internet de uma percentagem considerável de respondentes, traduzindo-se num aumento do tempo passado on-line, nomeadamente a trabalhar e a comunicar, e, de forma menos acentuada, também em videojogos.
Contudo, o fato de as crianças não utilizarem o espaço público data de antes da pandemia, pois, conforme Sarmento (2018), verifica-se que a escola corresponde a um dos locais nos quais a criança pode e consegue estar, assim como algumas outras instituições destinadas para receber esse público, como em instituições não governamentais. Entretanto, com a vivência da pandemia, observou-se que o espaço público, o qual já não era efetivamente preparado para o recebimento de crianças cidadãs, tem sido ainda menos utilizado, principalmente durante os confinamentos obrigatórios (RODRIGUES; FERRO, 2020).
Portanto, com esta pesquisa, foi possível perceber que as crianças conseguem falar sobre temas conhecidos, assim como citado na literatura; observou-se que os direitos que lhes são mais próximos são aqueles aos quais elas mais aludem, seja nas entrevistas grupais, seja nas individuais.
5 Considerações finais
A pandemia do SARS-CoV-2 (Covid-19) engendrou diversas mudanças no modo como a sociedade mundial estava habituada a viver. No que concerne a Portugal, foi no dia 16 de março de 2020 que as escolas tiveram o ensino presencial suspenso pela primeira vez. Sendo assim, é possível questionar como seriam as respostas das crianças após os períodos de confinamento a que foram submetidas. Em razão de as mesmas crianças terminarem o 1.º CEB naquele ano e, consequentemente, mudarem de escola, não foi possível dar continuidade à pesquisa, a qual obteve autorização para ser realizada no contexto escolar até junho de 2020. Afinal, a importância atribuída ao contexto escolar, no que diz respeito não somente às aprendizagens formais, mas também àquelas vivenciadas no recreio, grupal e informalmente, são vivências que foram diretamente alteradas.
Nesta pesquisa, constatou-se, pois, que as crianças precisavam ter uma proximidade maior com a temática dos direitos, prioritariamente com os direitos de participação, já que suas experiências ainda parecem algo obscuro no contexto pesquisado. Ainda que a pesquisa não seja passível de generalização, por ser um estudo a nível micro, considera-se como um contributo para a divulgação das vozes dos participantes.
Para mais, o interesse pela temática sobre a vivência da comunidade em tempos de pandemia torna-se relevante para os meios social e acadêmico, dado que as mudanças experienciadas durante esse período estarão conectadas às histórias de vida dessas pessoas, assim como a adaptação da comunidade escolar ao que estava a ser imposto. A proximidade com a internet e com os recursos tecnológicos durante o confinamento também poderá ser algo reconhecido pelas crianças em pesquisas futuras, assim como outras experiências e aprendizados.
Portanto, a escola é um lugar que propicia a expressão de sentimentos diversos com base nas relações ali estabelecidas (FLORES; ALBUQUERQUE, 2021), o que pode ser constatado no discurso das crianças participantes, uma vez que os ambientes escolares estão presentes na vivência do direito a brincar e dos direitos de participação. Como implicações para trabalhos futuros, considera-se que o referido afastamento da escola e o retorno presencial - com as normas de distanciamento que permeiam a sociedade desde 2020 - se refletem (e se refletirão), inevitavelmente, nos direitos das crianças, os quais são afetados em diferentes proporções, a depender do determinado contexto social.