1 Introdução
A formação de educadores é um tema largamente aventado por Paulo Freire no conjunto de sua obra, em que várias categorias como diálogo, práxis, ideologia, libertação e conscientização são articuladas de modo a evidenciar o caráter político da educação. Assim, desde os seus primeiros escritos, Freire vai elaborando a sua concepção do saber fazer docente, ora dando ênfase aos fundamentos políticos, filosóficos e antropológicos, construindo, pois, o cenário para a compreensão da prática docente, ora aprofundando núcleos temáticos específicos relacionados ao ensinar-aprender e à formação dos educadores.
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é mapear e analisar a literatura que verse sobre contribuições de Paulo Freire para a formação de professores de Ciências Naturais no Brasil, com especial enfoque às disciplinas de Química e Biologia, considerando as contribuições para a prática e formação docente comprometidas com uma educação transformadora. Compreende-se que essa discussão é relevante tendo em vista os ataques que o pensamento crítico vem sofrendo, notadamente a obra do próprio Freire, e a importância de discutir os limites e possibilidades das discussões desse grande educador brasileiro em sua relação mais específica com a formação de professores em Ciências.
Todavia, é importante assinalar que, considerando os limites espaço-tempo deste artigo e o conjunto de trabalhos sobre a obra e as categorias do autor em tela, a discussão apresentada é centrada nos elementos da revisão ora empreendida e na análise desses materiais.
2 Metodologia
Em termos metodológicos, utilizou-se da abordagem qualitativa (LÜDKE; ANDRÉ, 1986), a partir de um levantamento bibliográfico de trabalhos publicados considerando pesquisa realizada no Google Acadêmico, Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Banco de Teses e Dissertações da Capes. Foram utilizados três descritores: “formação de professores em Ciências” and “Paulo Freire”; “formação de professores em Química” and “Paulo Freire”; e “formação política and formação de professores” and “Paulo Freire”. Em todas as plataformas de busca, consideraram-se trabalhos de 2010 a 2020, em português. Importa ainda frisar que o levantamento foi realizado entre março e novembro de 2021.
A primeira etapa de “filtragem” dos textos foi realizada a partir da análise dos títulos e palavras-chave, conforme os descritores e objetivos da pesquisa. Na segunda etapa, foi realizada uma nova filtragem a partir dos resumos1. Por fim, durante a análise dos trabalhos, foram elaboradas as categorias/eixos e também uma nova filtragem2, resultando nas tabelas de quantitativo de produções3 que seguem:
Descritores | N° de trabalhos |
---|---|
“formação de professores em Ciências” and “Paulo Freire” | 17 |
“formação política and formação de professores” and “Paulo Freire” | 4 |
“formação de professores em Química” and “Paulo Freire” | 6 |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
Base de dados | N° de dissertações | N° de teses | N° de artigos | N° total |
---|---|---|---|---|
Banco de teses da Capes | 7 | 5 | - | 12 |
Google Acadêmico | - | - | 6 | 6 |
Periódicos da Capes | - | - | 9 | 9 |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
Como se pode observar na Tabela 1, o descritor com maior número de resultados considerados foi “formação de professores em Ciências” and “Paulo Freire”. Na Tabela 2, verifica-se que o maior número de produções (para todos os descritores) foi localizado no Banco de Teses e Dissertações da Capes.
3 Resultados e discussão
Optou-se por organizar os dados do levantamento bibliográfico a partir de eixos que agrupam as principais discussões empreendidas nas produções mapeadas/ analisadas. Todavia, é importante ressaltar que tais eixos não são estanques ou dissociados, mas, pelo contrário, estão intrinsecamente relacionados. No Quadro 1, são apresentados os eixos analíticos elaborados, o número de produções e as categorias freireanas que ganham ênfase nos trabalhos dos respectivos eixos.
Eixos | N° de trabalhos | Categorias utilizadas nas produções |
---|---|---|
Paulo Freire na formação de professores | 11 | Práxis, criticidade, dialogicidade, conscientização, tema gerador |
Contribuições da pedagogia freireana para o ensino de Ciências | 6 | Dialogicidade, criticidade, mediação, problematização, contextualização, reflexão, emancipação, temas geradores |
Paulo Freire, formação de professores e formação política | 2 | Educação bancária, problematização, dialogicidade, humanização |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
Eixo 1: Paulo Freire na formação de professores
Nas produções analisadas neste eixo, constata-se que a principal problemática é a desconexão entre formação pedagógica e formação para a área específica nos cursos de formação de professores de Ciências Naturais. Conforme Nascimento (2011, p. 29), “[...] parece prevalecer a ideia de dicotomia, como se, além da antecedência de uma sobre a outra, elas pudessem existir independentemente”. Essa problemática central está relacionada a, pelo menos, duas questões. A primeira refere-se às Políticas de Formação de Professores (políticas endereçadas à área), enquanto a segunda está orientada pela análise de projetos de cursos e entrevistas/questionários com licenciandos e professores, indicando problemas internos nos cursos de formação de professores em Ciências.
No que se refere a esse primeiro eixo (Políticas de Formação de Professores), foram localizados dois trabalhos dedicados centralmente ao tema. Silva (2018) investigou a presença/ausência de categorias da pedagogia de Paulo Freire nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores nos Cursos de Licenciatura e nas Diretrizes que orientam os Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPCs) de licenciatura na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mesmo não se tratando de uma discussão endereçada apenas aos cursos de licenciatura em Ciências Naturais, suas conclusões são caras à discussão aqui estabelecida. A autora verificou indícios das categorias freireanas nos documentos que orientam a política de formação de professores e da instituição investigada, contudo afirma que os documentos não expressavam os elementos centrais da pedagogia freireana, que estão relacionados ao compromisso com uma educação libertadora. Desse modo, a utilização de categorias freireanas nos documentos oficiais poderia ser compreendida como “de efeito discursivo” e não expressava, efetivamente, “[...] preocupação com a ordem social e a transformação do ser e do mundo” (SILVA, 2018, p. 91).
Essa “desconexão” também é apresentada por Lunardi et al. (2013), quando analisam as perspectivas críticas em trabalhos sobre formação de educadores na área de Ensino de Ciências. Para os autores, com frequência, as ideias/referências críticas foram apresentadas de modo isolado e desarticulado da compreensão da educação e da formação como atos políticos e pedagógicos.
De forma menos central, a obra de Freire é apontada como perspectiva crítica na pesquisa de Campos et al. (2017), na qual se teve como objetivo compreender as concepções envolvidas na construção e formação de um ser crítico que se comprometa com uma sociedade justa. De acordo com a produção, temas como pedagogia crítica, caráter classicista da escola, práxis, dialogicidade do professor com o aluno e do aluno com o professor e a sociedade, conhecimento científico, reflexão e ação, caráter de dominação e desenvolvimento histórico são temas necessários para a valorização da formação docente.
Sendo assim, são caras à formação de professores as contribuições de Freire no sentido de pensar o homem como um ser inacabado, um “ser mais”, por possuir vocação para promover a “[...] problematização, dialogicidade e conscientização” (CAMPOS et al., 2017, p. 7). Trata-se de uma compreensão educacional centrada na relação entre conscientização e libertação, sendo um processo coletivo de desconstrução de irracionalismos e do senso comum, a fim de potencializar os interesses dos oprimidos (BOTELHO, 2016; FREIRE, 1987).
Como afirma Botelho (2016, p. 94):
Para que a educação alcance seu fim mais radical para Freire, ela também há que ser fundamentalmente um processo de humanização. Não é do homem biológico apenas que Freire está falando. É do homem, ser biológico e cultural. Portanto, um ser que, em sendo múltiplo, constrói relações distintas com o mundo e os outros, de modo que ele se recria e se transforma nessas relações. A potência interpretativa da humanização nos termos de Freire encontra-se justamente neste ponto: porque é capaz de perceber-se e recriar-se como ser que conscientemente se transforma e transforma o mundo, o ser humano tem, com relação à humanização, um valor intrínseco. [...] Um projeto de educação que não for capaz de servir a esse fim e de organizar suas práticas, meios e finalidade para esse propósito é inconciliável com o projeto educativo freireano.
No que se refere ao segundo eixo (Contribuições da pedagogia freireana para o ensino de Ciências), foram localizadas pesquisas que se dedicaram mais propriamente a compreender como o legado freireano vem fazendo parte dos cursos de formação inicial de professores, dos Projetos Político-Pedagógicos (PPP), das ementas das Unidades Curriculares ou ainda das propostas pedagógicas.
A tese de Silva (2017) teve como objetivo compreender a Educação Dialógica Freireana (EDF) em cursos de licenciatura da Universidade Federal do Ceará (UFC) a partir de documentos do curso e entrevistas com professores do curso. Os docentes entrevistados afirmaram não reconhecer a proposta pedagógica de Freire como um referencial direto. No que se refere aos documentos analisados, foram encontradas poucas referências às obras freireanas, dentre elas o conceito de dialogicidade. Contudo, de acordo com a autora, tal conceito apresenta-se, em grande parte, de forma superficial e intuitiva.
Cabe salientar, então, que Freire entende o diálogo como força que impulsiona o pensar crítico-problematizador e que potencializa a possibilidade de olhar o mundo e a nossa existência em sociedade como realidade inacabada e em transformação. Nesse sentido, Freire tece a teoria da dialogicidade tendo por base a compreensão de que o diálogo é fundamental no processo educacional, uma vez que faz parte da comunicação entre os sujeitos, que a conhecem mediatizados pelo mundo. Para Freire (1996, p. 63):
A formação dos professores e das professoras devia insistir na constituição deste saber necessário e que me faz certo desta coisa óbvia, que é a importância inegável que tem sobre nós o contorno ecológico, social e econômico em que vivemos. E ao saber teórico desta influência teríamos que juntar o saber teórico-prático da realidade concreta em que os professores trabalham. Já sei, não há dúvida, que as condições materiais em que e sob que vivem os educandos lhes condicionam a compreensão do próprio mundo, sua capacidade de aprender, de responder aos desafios. Preciso, agora, saber ou abrir-me à realidade desses alunos com quem partilho a minha atividade pedagógica. Preciso tornar-me, se não absolutamente íntimo de sua forma de estar sendo, no mínimo, menos estranho e distante dela. E a diminuição de minha estranheza ou de minha distância da realidade hostil em que vivem meus alunos não é uma questão de pura geografia. Minha abertura à realidade negadora de seu projeto de gente é uma questão de real adesão de minha parte a eles e a elas, a seu direito de ser.
Zaneti et al. (2019) discutem a inserção das Pedagogias Críticas nos cursos de licenciatura em Ciências Biológicas em instituições federais localizadas no estado de São Paulo, a partir da análise de documentos, planos de ensino de disciplinas obrigatórias e análise do PPP. Dentre as universidades pesquisadas, os autores verificaram que a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) foi a instituição que apresentou maior número de disciplinas didático-pedagógicas. Todavia, também essa instituição apresentou a menor quantidade de disciplinas com inserção de obras/autores do campo crítico. Considerando as disciplinas didático-pedagógicas de todas as universidades analisadas, os autores mais citados foram Dermeval Saviani (expoente da Pedagogia Histórico-Crítica) e Paulo Freire (expoente da Pedagogia Libertadora). Por outro lado, os autores concluem que há “[...] uma baixa expressividade da influência crítica nas disciplinas didático- -pedagógicas que compõem os cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas de Instituições Federais do Estado de São Paulo” (ZANETI et al., 2019, p. 7).
Santos (2015) trouxe para o debate a questão da Educação de Jovens e Adultos (EJA) na formação inicial do professor de Ciências a partir do diálogo durante os Estágios Supervisionados. De acordo com a autora, a tematização proposta por Freire inicia-se através da prática conscientizadora, e esta, por sua vez, não compreende uma conscientização ingênua, que se relaciona somente à apreensão da realidade. A tematização requer um conteúdo programático que pode ser construído através da própria visão do educador.
Ainda no campo do Estágio, a tese desenvolvida por Leite (2015) teve como objetivo investigar a possibilidade de os Estágios Supervisionados no curso de licenciatura em Química serem desenvolvidos a partir de uma perspectiva problematizadora, compreendendo as concepções e práticas dos estagiários, juntamente com os fatores que colaboram ou dificultam o desenvolvimento dessa metodologia no ensino de Química. Leite (2015) revelou que os sujeitos investigados compreendem o processo de ensino-aprendizagem a partir da lógica transmissão-recepção. Assim, as instituições educacionais são “alimentadas” pela valorização do domínio de uns sobre os outros e, em consequência disso, influenciam as concepções e ações dos sujeitos que são formados por elas.
A tese ainda ressalta a necessidade de mudanças curriculares a fim de garantir a identidade do curso de formação de professores, integrando teoria-prática juntamente com as particularidades do trabalho dos professores na disciplina em específico. Para além, a autora afirma que é preciso superar o modelo de formação de professores como apenas executores das decisões definidas por outras instâncias.
Silveira e Zanetic (2016) utilizam obras infantis de Monteiro Lobato, especialmente os Serões de dona Benta, para identificar trechos onde apareciam abordagens específicas de conhecimentos químicos interpretados à luz da pedagogia de Paulo Freire. A avó professora deixa evidente que formar não é treinar, ensinar não é apenas transferir conteúdo, tensionando a visão sobre docência que os licenciandos possuem ao ingressarem na universidade, sendo esta, na maioria das vezes, fundamentada por uma concepção tradicional de educação. Desse modo, especialmente as disciplinas de perfil pedagógico nos cursos de licenciatura em Ciências Naturais têm grande relevância na construção de uma visão ampla sobre a educação, a escola e o processo de ensino-aprendizagem.
Eixo 2: Formação de professores e o ensino de Ciências: abordagem entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) e temas geradores
Ao discutir-se sobre o ensino de Ciências, é importante destacar que a compreensão educacional freireana é voltada ao questionamento, de modo a transpor a repetição ou recognição dos saberes. Sem tirar a relevância do conhecimento historicamente produzido e socializado no formato de matérias de ensino, Freire entende ser necessária uma educação a partir dos problemas locais e de seus conflitos, de modo a “[...] construir entendimentos e sociabilidades resistentes à lógica dominante de hierarquizar os saberes em nome do poder instituído e de docilizar as consciências para a aceitação das contradições em que social e historicamente elas se encontram” (BOTELHO, 2016, p. 106). Tal compreensão vem embasando o desenvolvimento de abordagens e metodologias de ensino, como a abordagem CTS e os temas geradores, como também identificamos no levantamento de literatura.
Cabe frisar que a abordagem CTS surgiu como um movimento de renovação curricular, tendo como principal objetivo preparar cidadãos capacitados para julgar e avaliar as possibilidades, limitações e implicações do desenvolvimento da formação científica e tecnológica nas escolas, os processos que envolvem o ensino e aprendizagem de Ciências. A perspectiva freireana é então destacada de forma importante no desenvolvimento de atividades pautadas na perspectiva CTS, com o objetivo de propiciar uma formação voltada para a emancipação dos sujeitos.
Conforme aponta Lopes (2013), apesar de Freire não fazer referências específicas à perspectiva CTS e ao ensino de Ciências, é possível fazer relações a partir de conceitos das obras freireanas, como a curiosidade epistemológica. De acordo com Lopes (2013), na abordagem freireana, considera-se que o saber da experiência é o ponto de partida para a prática da educação dialógica. Nesse sentido, “[...] o interesse dos alunos possui ligação direta com suas vivências e deve estar previsto na organização dos conteúdos, contidos no currículo escolar” (LOPES, 2013, p. 209).
Destaca-se a pesquisa realizada por Jesus (2017) sobre a contextualização do ensino de Química por meio do enfoque CTS atrelado à pedagogia de Paulo Freire. Segundo a pesquisadora, a utilização de temas geradores contextualiza o ensino, sendo necessário para isso conhecer o educando, reconhecendo-o como indivíduo que faz parte do âmbito social (JESUS, 2017). O professor, portanto, faz o papel de um mediador da educação, contribuindo para a formação de um aluno crítico. Um problema, contudo, apontado por Jesus (2017) é que, apesar de existirem trabalhos que articulam Paulo Freire e CTS, eles não são incorporados de forma efetiva nas salas de aula.
Vacheski (2016), por sua vez, analisa o processo de formação docente de estudantes do curso de licenciatura em Química de uma universidade estadual. A autora destaca que a utilização de temas e materiais que contemplam relações entre ciência, tecnologia e sociedade contribui para a formação de sujeitos capazes de se posicionarem e participarem de discussões polêmicas e atuais da sociedade.
Cabe ressaltar ainda a pesquisa de Fernandes e Gouvêa (2019), que apresenta uma análise sobre diferentes percepções e apropriações de professores de Ciências sobre a perspectiva CTS. Segundo o estudo, os professores têm dificuldade em entender e, sobretudo, aplicar os princípios da abordagem CTS, da contextualização e da proposta freireana, como também foi indicado por Jesus (2017).
Neres e Gehlen (2018) identificam pesquisas que utilizam os pressupostos freireanos na proposição de processos formativos de professores de Ciências e analisam como as etapas da Investigação Temática estão sendo inseridas no contexto da formação inicial e continuada de professores. Essas pesquisas têm por objetivo minimizar problemas no contexto escolar, contribuindo para uma reconfiguração curricular acompanhada de reflexões acerca da formação e prática docente. Conforme as autoras, os pressupostos teórico-metodológicos da educação problematizadora e dialógica, concebidos por Paulo Freire, são empregados no ensino de Ciências, em propostas com foco na reconfiguração curricular, a exemplo da Abordagem Temática Freireana (DELIZOICOV; ANGOTTI; PERNAMBUCO, 2011) e da Práxis Curricular via Tema Gerador (SILVA, 2004).
Especificamente sobre o Tema Gerador, Silva (2015) reforça que a natureza deste é dialógica e problematizadora e pode ser entendida como ponto de partida a uma organização didático-pedagógica que promove uma visão crítica do mundo, ou seja, em que há promoção da passagem da “curiosidade ingênua” dos educandos para a “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 1975).
Eixo 3: Paulo Freire, formação de professores e formação política
Apesar de a obra freireana fundamentar-se a partir da compreensão da educação como um ato político, foram localizadas poucas produções quando pesquisada a relação entre formação de professores em Ciências e formação política. Esse resultado, contudo, não causa surpresa, uma vez que persiste uma espécie de “dicotomia” entre área específica e pedagógica em muitos cursos de licenciatura na área de Ciências Naturais.
Fortuna (2015), em sua dissertação, afirma que o olhar de Freire a respeito da formação de educadores está imbuído de práticas que promovem autonomia, emancipação e autocrítica. Outros aspectos importantes resgatados pelo autor referem- -se aos conceitos de humanização, educação libertadora e educação como ato político. Desse modo, a educação, além do papel formativo/pedagógico, assume um papel político, ético, social e histórico de constituição humana e na humanização.
Nicolodi e Silva (2016) apresentam experiências com estudantes de uma turma do curso de licenciatura em Ciências e de uma turma do 9º ano do ensino fundamental no litoral paranaense, apoiados na pedagogia freireana. Por meio da docência compartilhada4, os autores apresentam suas percepções sobre os processos de mediação na formação de professores e na formação humana.
Apesar da limitação de artigos sobre o tema, percebemos que a questão é levantada na maioria dos trabalhos selecionados sobre formação de professores. Alguns deles, inclusive, indicam limites no desenvolvimento do pensamento crítico na formação de professores de Ciências e a necessidade de transformações nesse sentido. Todavia, a discussão não ocupa um lugar central de inquirição ou é apresentada de forma abstrata.
4 Considerações finais
Ancorado no reconhecimento do papel social da universidade na formação inicial dos profissionais da Educação, este artigo buscou discutir as contribuições de Paulo Freire para a formação de professores de Ciências Naturais no Brasil (priorizando-se as disciplinas Química e Biologia). Em linhas gerais, a partir da revisão de literatura empreendida, compreende-se que, apesar de ser indicada a potencialidade da obra freireana para a formação de professores de Ciências Naturais, tal perspectiva é pouco utilizada nos cursos de licenciatura de Química e Biologia, bem como há uma desconexão epistemológica no que tange à utilização das obras do autor no âmbito da formação de professores.
No que se refere mais especificamente ao ensino de Ciências Naturais e à formação de professores em sua relação com a obra freireana, percebe-se que a associação ao Tema Gerador e CTS foi mais expressiva, apesar de produções apontarem que tais abordagens são pouco utilizadas em salas de aula.
Na pesquisa que considerava a articulação com a formação política, foram encontrados poucos trabalhos, o que indica um “perfil” da apropriação das obras do autor na formação de professores de Ciências Naturais mais pautado no conhecimento de metodologias (dentre elas, as propostas ancoradas na lógica freireana) do que especificamente na compreensão das propostas educacionais e didático-pedagógicas a que elas estão vinculadas.
Assim, ao compreender que formação docente diz respeito a um processo dinâmico, inacabado, inserido em um contexto histórico, cabe frisar que, no âmbito do capitalismo e de sua razão instrumental, o processo de formação docente tende a ocorrer predominantemente de forma fragmentada e instrumentalizadora, com poucos espaços de formação mais ampla e humana, exigindo a disputa das políticas de formação de professores e também o movimento contra-hegemônico no “chão” das universidades e das escolas.
Por fim, ressalta-se que o artigo faz uma contribuição pontual sobre a temática em questão e não esgota o tema. Nesse sentido, outros trabalhos, como investigações acerca de ementas, planos de ensino e projetos de curso, questionários ou entrevistas são importantes para localizar os limites, problemas e potencialidades da obra desse autor para a formação de professores em Ciências no Brasil.