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Educação & Formação

versión On-line ISSN 2448-3583

Educ. Form. vol.8  Fortaleza  2023  Epub 23-Feb-2024

https://doi.org/10.25053/redufor.v8.e11492 

Artigos

A linguagem escrita em uma instituição de educação infantil: concepções e práticas em interação

El lenguaje escrito en una institución de educación infantil: concepciones y prácticas en interacción

Pedro Neto Oliveira de Aquino1  i
http://orcid.org/0000-0003-4624-3860; lattes: 2799418103208208

Larissa Naiara Souza de Almeida2  ii
http://orcid.org/0000-0001-9121-2268; lattes: 0244831781036405

Messias Holanda Dieb3  iii
http://orcid.org/0000-0003-1437-791X; lattes: 4729675669995125

1Secretaria de Educação, Prefeitura Municipal de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil

2Secretaria de Educação, Prefeitura Municipal de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil

3Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil


Resumo

Analisamos, neste artigo, a percepção de professores sobre práticas de/com linguagem escrita desenvolvidas com duas turmas de crianças em uma instituição pública de Educação Infantil. Como fundamentação teórica, utilizamos os estudos de Vygotsky (2007), de Sepúlveda e Teberosky (2011), relacionados com as ideias de Abramovay e Kramer (1985), Kishimoto (2010) e Martins (1991) sobre a relação entre criança e linguagem. A pesquisa, de abordagem qualitativa, contou com a participação de duas professoras de Educação Infantil em sessões de observação com registros escritos e visuais, e uma experiência de grupo focal. Constatamos que a linguagem escrita era concebida como um conhecimento com o qual as crianças deveriam interagir e se apropriar, reconhecendo nesse objeto/instrumento de conhecimento especificidades de ensino/promoção pelas docentes e de aprendizagem/desenvolvimento pelas crianças, tratando-se de um conhecimento socialmente relevante. Todavia, não identificamos situações significativas em que a linguagem escrita fosse abordada na perspectiva do letramento.

Palavras-chaves educação infantil; linguagem escrita; práticas pedagógicas.

Resumen

Nosotros analizamos aquí la percepción de docentes sobre las prácticas de/con lenguaje escrito en salas de una institución pública de Educación Infantil. Las ideas de Vygotsky (2007) y Sepúlveda y Teberosky (2011) se vincularon a los estudios de Abramovay y Kramer (1985), Kishimoto (2010) y Martins (1991) para fundamentar teóricamente la investigación presentada en este artículo. La investigación, con un enfoque cualitativo, contó con dos maestras de Educación Infantil para participar en sesiones de observación con registros escritos y visuales, y de una experiencia en grupo focal. Descubrimos que el lenguaje escrito fue concebido como un conocimiento con el cual los niños deben interactuar y apropiarse, reconociendo, en este objeto/instrumento de conocimiento, especificidades de enseñanza/promoción por las maestras y de aprendizaje/desarrollo por los niños, tratado como un conocimiento socialmente relevante. Pero, no identificamos situaciones significativas en las que el lenguaje escrito fuera manejado desde una perspectiva de alfabetización social.

Palabras clave educación infantil; lengua escrita; prácticas pedagógicas.

Abstract

In this article, we analyze the perception of teachers on practices of/with written language at two classrooms of a public institution dedicated to Early Childhood Education. The ideas of Vygotsky (2007) and Sepúlveda and Teberosky (2011) were linked to studies of Abramovay and Kramer (1985), Kishimoto (2010), and Martins (1991) to find the theory of the research presented in this paper. The research, under a qualitative approach, counted on two teachers of Early Childhood Education classes to participate in sessions of observation with written and visual records, and in an experience of focus group. We found that written language was conceived as a knowledge with which children should interact and appropriate, recognizing, in this object/instrument of knowledge, specificities of teaching/promotion by teachers and learning/development by children, treated as a socially relevant knowledge. However, we did not identify significant situations in which written language was handled from a social literacy perspective.

Keywords early childhood education; written language; pedagogical practices.

1 Introdução

A inserção das crianças na(s) cultura(s) escrita(s) geralmente começa no cotidiano de suas casas e se amplia na e por meio da organização dos espaços, dos materiais, dos tempos e das experiências que lhes são propostas nas instituições de Educação Infantil. Nesse processo, as crianças vão se apropriando de várias linguagens, dentre elas, a linguagem escrita, criando hipóteses sobre a sua construção e sobre as práticas sociais por ela possibilitadas e sustentadas. As Instituições de Educação Infantil são, portanto, espaços em que professores vivem situações pedagógicas com as crianças, nas quais é preciso escutá-las e com elas dialogar, oportunizando que as crianças possam interagir com artefatos materiais e simbólicos da linguagem escrita.

Segundo Baptista (2010, p. 2):

O trabalho com a linguagem escrita deve permitir à educação infantil assumir um papel importante na formação de leitores e de usuários competentes do sistema de escrita, respeitando a criança como produtora de cultura.

As características dos contextos socioculturais nos quais as crianças, desde bem pequenas, vivem suas primeiras práticas sociais são fatores que influem na apropriação da linguagem escrita por esses sujeitos. Por isso, segundo Galvão (2016, p. 16), o texto escrito está presente em quase todas as situações da vida cotidiana, com adultos e crianças, sejam estes das elites, da classe média ou das camadas populares. Portanto, mesmo aqueles que não sabem ler e escrever estão, nesses casos, imersos em um mundo em que o texto escrito ocupa um lugar fundamental nas formas de comunicação, de socialização, de registro e até de lazer.

Sendo assim, vivemos em um mundo letrado, repleto de práticas de letramento, ou seja, de usos sociais da leitura e da escrita em diferentes contextos discursivos. Contudo, para que a criança possa vivenciar e usar esses conhecimentos em diferentes situações, seja na escola ou fora dela, é necessário que ela compreenda especificidades da língua na modalidade escrita, entendendo como funciona, em nosso caso de falantes da língua portuguesa, o Sistema de Escrita Alfabética (SEA), o que se torna possível por meio do processo de alfabetização. Vale ressaltar que o processo de alfabetização não existe sem o de letramento e vice-versa e, por isso, para que as crianças ampliem seus conhecimentos sobre a cultura escrita, esses processos devem acontecer de forma articulada e indissociável, respeitando sempre as especificidades do desenvolvimento da criança desde a etapa da Educação Infantil (SOARES, 1998; 2011).

Considerando que o debate sobre a apresentação da linguagem escrita para as crianças pequenas, entre 3 e 5 anos de idade, ainda rende algumas controvérsias, resolvemos abordar a questão neste texto. Isso se justifica pela preocupação, entre alguns educadores e pesquisadores da infância, de que essa apresentação ganhe contornos de uma escolarização precoce, mediante, inclusive, a ansiedade dos pais para que as crianças já cheguem escrevendo com desenvoltura ao primeiro ano ensino fundamental. Nesse sentido, com base em dados construídos a partir de uma investigação empírica de natureza qualitativa, temos como objetivo analisar a percepção de professoras sobre as práticas de/com linguagem escrita desenvolvidas em turmas de pré-escola em uma instituição pública de Educação Infantil.

Para darmos concretude textual a essa discussão, apresentamos, além desta introdução, uma discussão, a seguir, sobre concepções e práticas de/com a linguagem escrita na Educação Infantil. Na sequência, descreveremos o desenho metodológico da pesquisa que foi realizada. Mais adiante, faremos a apresentação e a discussão dos dados construídos, seguidas por algumas considerações finais acerca da questão tratada.

2 O ensino da linguagem escrita a crianças na Educação Infantil

As escolas de Educação Infantil devem ser espaços, intencionalmente planejados e permanentemente avaliados, em que as crianças possam interagir com o SEA de modo imersivo nas culturas escritas. Galvão (2016) define as culturas escritas como sendo os lugares, tanto simbólicos como materiais, ocupados pelo escrito em/para determinado grupo social, comunidade ou sociedade. A partir das interações com os objetos culturais e com os membros mais experientes, meninas e meninos de uma determinada sociedade se apropriam dos significados e usos da escrita, principalmente na comunidade em que vivem e na qual a linguagem escrita pode exercer, com maior ímpeto, uma determinada função e ser veiculada com mais frequência em um ou outro suporte de texto. Portanto, ao nascerem em uma sociedade marcada pela escrita, as crianças pequenas acabam entrando no fluxo dessa cultura, procurando responder às suas demandas de comunicação e entender os usos da escrita, bem como a implicação dessa modalidade da língua para o que querem representar, expressar, comunicar etc. (GOULART; MATA, 2016).

Essas compreensões geram implicações para o trabalho pedagógico em creches e pré-escolas. Por exemplo, a promoção de situações de escuta, de fala e de compreensão da língua mediante a vivência de diversas situações comunicativas, como nas rodas de conversa, nas atividades de atenção pessoal, nos momentos de refeição, de acolhida, de despedida, de conflitos, de trocas etc. Assim, fica evidente a necessidade de as crianças vivenciarem a língua como ela é falada na sua realidade cultural e buscar ampliá-la, contribuindo para que elas se expressem e adquiram um vocabulário ao mesmo tempo contextualizado e diversificado.

Vygotsky (2007), utilizando-se dos estudos realizados até então e dos modos de se compreender, à sua época, a educação para as crianças, já fazia indicações relevantes sobre o ensino da linguagem escrita desde o início do século XX. Segundo ele:

O ensino tem de ser organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças. A leitura e a escrita devem ser algo de que a criança necessite […]. [Assim,] uma necessidade intrínseca dever ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida. Só então poderemos estar certos de que ela se desenvolverá não como hábito de mão e dedos, mas como uma forma nova e complexa de linguagem. [...] O melhor método é aquele em que as crianças não aprendam a ler e a escrever, mas, sim, descubram essas habilidades durante as situações de brinquedo. Para isso, é necessário que as letras se tornem elementos da vida das crianças, da mesma maneira como, por exemplo, a fala. Da mesma forma que as crianças aprendem a falar, elas podem muito bem aprender a ler e a escrever. Métodos naturais de ensino da leitura e da escrita implicam operações apropriadas sobre o meio ambiente das crianças. Elas devem sentir a necessidade do ler e do escrever no seu brinquedo. [Portanto] o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita e não apenas a escrita de letras (VYGOTSKY, 2007, p. 143-144).

Nesse sentido, sugerimos que a leitura e a contação de histórias ajudam a criança no processo de inserção e apropriação da cultura escrita, pois requerem sua participação ativa e responsiva em torno do significado do que está escrito e ilustrado nos livros e o entendimento de formas e estruturas próprias do escrito.

Os recursos de construção dessas obras, tanto literários quanto de sua forma material, colaboram na tarefa da criança de apropriar-se de modos cada vez mais complexos para atuar com e sobre a escrita (SEPÚLVEDA; TEBEROSKY, 2011). Por se tratar de crianças pequenas, é imprescindível que o professor da Educação Infantil promova a confiança das meninas e dos meninos, para que se sintam capazes de aprender a ler e a escrever (ABRAMOVAY; KRAMER, 1985). Essa confiança pode ser aliada do desejo desses sujeitos em fazer uso da escrita.

Vygotsky (2007) afirma ainda que, a depender das experiências que as crianças vivenciam, a linguagem escrita pode ser um objeto de curiosidade. Para ele, como vimos na citação anterior, se elas sentem necessidade de utilizar esse instrumento, se empenharão em se apropriar da sua estrutura peculiar, dos seus usos e das suas funções sociais em diferentes contextos. Por essa razão, o trabalho pedagógico deve promover experiências de interação das crianças com a linguagem escrita e se responsabilizar por apoiá-las na construção de respostas/soluções às suas indagações sobre essa linguagem (GALVÃO, 2016).

O papel/lugar da linguagem escrita na Educação Infantil e as suas implicações para o trabalho pedagógico com crianças pequenas evidenciam a responsabilidade de professoras(es) na promoção de práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sendo elas valorizadas ou não valorizadas, locais ou globais, de modo a recobrir contextos sociais diversos (família, trabalho, mídias, escola etc.). Segundo Rojo (2009), isso ocorre dentro de uma perspectiva, ao mesmo tempo, sociológica, antropológica e sociocultural, pois, para a autora, cabe à instituição educativa potencializar o diálogo multicultural, trazendo para dentro de seus muros não somente a cultura valorizada, dominante, canônica, mas também as culturas locais e populares, para torná-las vozes de um diálogo e objetos de estudo e de crítica.

Inicialmente, as crianças vão criando suas próprias regras até compreenderem as regras convencionais do sistema de escrita, desenvolvendo hipóteses, cujo conjunto foi chamado por Ferreiro e Teberosky (1985) de psicogênese da língua escrita. Nesse sentido, a promoção da escrita deve partir do conhecimento expresso pelas crianças, sendo indispensável que elas escrevam de acordo com suas hipóteses, nas quais os “erros” são compreendidos como construtivos e reflexos de um pensamento original. Assim, o professor conhece as características do processo de construção da escrita pela criança, estando em condições de fazer intervenções e planejar atividades que possibilitem avanços nesse processo.

De acordo com Brandão e Leal (2011), nas situações de contato e produção da escrita, as crianças mobilizam conhecimentos sobre essa linguagem apropriados nas práticas de leitura, usando estratégias próprias. Com isso, elas podem começar a reconhecer regularidades nas relações entre unidades sonoras e unidades gráficas e a descobrir a lógica de funcionamento do SEA. Segundo Albuquerque, Brandão e Morais (2016), as crianças também precisam ser desafiadas a pensar sobre as palavras, o que pode ser vivido em situações de reflexão sobre as propriedades sonoras, suas partes, as semelhanças sonoras entre palavras etc., mediante materiais como: cadernos nomeados, agenda de comunicação entre professores e famílias; bilhetes com verdadeiro uso social que foram produzidos individual ou coletivamente etc.

O trabalho pedagógico voltado à apreciação e apropriação da linguagem oral e escrita pelas crianças também requer, para sua efetividade, a criação de um ambiente que estimule a leitura e a escrita, a imaginação e a criatividade das crianças. Como ressaltado nos Indicadores da Qualidade na Educação Infantil (BRASIL, 2009), é importante que haja espaços organizados para leitura, equipados com estantes, livros, revistas e outros materiais acessíveis às crianças e em quantidade e qualidade suficientes. Esses espaços devem ser organizados de tal maneira que as crianças possam ver e tocar os livros, orientando assim as suas escolhas.

É também importante que, no acervo desses espaços, haja livros e textos de diferentes tipos e gêneros: livros-brinquedo, livros interativos, contos, poemas, livros de arte, textos verbais e visuais, enciclopédias, livros de pesquisa, jornais, gibis, revistas etc. Isso se justifica porque um ambiente letrado pode, por exemplo, impulsionar as brincadeiras das crianças, que, segundo Kishimoto (2010), são cenários que as ajudam a desenvolver habilidades e estratégias de linguagem escrita em contextos imaginários articulados às situações reais por elas vividas. Os artefatos de letramento no contexto das brincadeiras, como livros, rótulos, jornais etc., podem contribuir enormemente para a emergência do comportamento leitor e produtor de textos, nos papéis que as crianças incorporam, seja de pais, vendedor, professor, cantor etc. Ao desenvolverem esses diálogos em situações imaginárias, elas estão apoiadas pelos artefatos da cultura escrita, os quais as auxiliam, portanto, na construção dos significados que serão atribuídos.

3 Metodologia

Em vista das concepções e ações defendidas até aqui, a promoção do aprendizado da linguagem escrita não se configura como uma simples escolha que as instituições de atendimento educacional às crianças podem ou não deixar de fazer, mas compõe sua função social, pedagógica e política, comprometida com a ampliação dos saberes e das experiências de meninas e meninos de diferentes regiões e classes sociais. Frente a essas concepções e referências teórico-práticas, foi desenvolvida uma investigação com professoras de uma instituição pública de Educação Infantil na cidade de Fortaleza, no Ceará, intencionando compreender como eram desenvolvidas as práticas pedagógicas de/com linguagem escrita em turmas de pré-escola no referido contexto. Para isso, foi realizada uma pesquisa de campo, orientada pela abordagem qualitativa, que empregou como procedimentos de construção de dados a observação, o registro e a vivência de grupos focais.

Duas professoras e 38 crianças entre 4 e 5 anos participaram do estudo, tendo suas ações e interações documentadas pelos pesquisadores; documentação esta que, após selecionada e organizada, foi objeto das reflexões nos grupos focais. Tais procedimentos foram realizados no segundo semestre de 2019, com a autorização da Secretaria de Educação e da gestão da instituição, além do consentimento dos profissionais e dos responsáveis pelas crianças que participaram diretamente dos turnos de pesquisa em campo (escolhas, procedimentos e instrumentos serão detalhados na seção de metodologia).

O lócus desta investigação, como mencionado, foi um Centro de Educação Infantil (CEI) da rede pública da cidade de Fortaleza, no Ceará. A escolha dessa instituição ocorreu em virtude da ampla oferta de turmas de pré-escolas na capital cearense e da participação dos seus professores em formações continuadas, da própria rede, que se baseiam em documentos de sua autoria sobre a apropriação da linguagem escrita na Educação Infantil1.

Outro fator relevante para a escolha desse contexto foi o uso do material apostilado com crianças de 4 a 5 anos e 11 meses, adoção realizada pela Secretaria de Educação do município. Tendo em vista o que estudos revelam os limites que o uso de apostilas coloca às manifestações de linguagens das crianças (SILVA, 2012), a presença desse tipo de material em turmas de pré-escola foi importante para a definição desse contexto para o estudo; sendo uma realidade que precisa ser conhecida e sobre a qual se deve refletir. Participaram da pesquisa duas turmas de pré-escola, denominadas “Infantil IV-A e Infantil IV-B”, as quais contavam, cada uma, com a presença de uma professora e 19 crianças entre 4 e 5 anos. A escolha de crianças que estivessem na faixa etária citada se dá em virtude de elas estarem iniciando suas experiências na pré-escola e, dessa forma, provavelmente, vivenciavam uma inserção ainda mais progressiva (do que na creche) em práticas pedagógicas voltadas para a apropriação da linguagem escrita.

Os nomes dos participantes da pesquisa, especificamente das duas professoras, são verídicos, o que foi permitido pela coordenação da instituição e pelas próprias docentes. Também é feito uso dos nomes reais das crianças das duas turmas, com permissão dada pelos pais mediante a assinatura de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) também assinados pela coordenadora e professoras. Para o processo de geração de dados, foi desenvolvido o procedimento de observação participante, no interior do qual foram registradas, por meio de diário de campo, fotografia e vídeo-gravação, não apenas práticas pedagógicas, mas também as falas das interações entre crianças e professoras e entre os pesquisadores e estes sujeitos. Imersos nesse contexto, os pesquisadores passaram a fazer parte do conjunto de relações ali vivenciadas.

Desde os primeiros contatos com a instituição e seus profissionais, os pesquisadores sentiram-se acolhidos e, especialmente, as professoras, participantes diretas da investigação, manifestavam interesse pelo tema a ser explorado em suas salas, a linguagem escrita; o que pode ter contribuído para o clima de colaboração vivenciado no processo investigativo, tanto nas observações, como nos grupos focais (explicitados a seguir). Nos turnos de observação, os pesquisadores entravam em sala com diário de campo e aparelho celular. O diário ficava à mão para feitura de anotações curtas, que posteriormente eram reescritas de modo mais completo e narrativo, por sua vez, o aparelho celular era deixado no bolso da roupa, sendo utilizado para fotografar ou filmar momentos e cenas que os pesquisadores consideravam relevantes para a investigação.

Essas escolhas foram pautadas em razão da natureza qualitativa do estudo e pela compreensão de que era preciso estabelecer uma relação de vínculo e de confiança com as professoras e as crianças das referidas turmas. Assim como defende Minayo (2009, p. 70), acreditamos que o pesquisador no papel de observador deve ficar:

[...] em relação direta com os seus interlocutores no espaço social da pesquisa, na medida do possível, participando da vida social deles, no seu cenário cultural, mas com a finalidade de colher dados e compreender o contexto da pesquisa.

Essa técnica se faz relevante na medida em que oportuniza aos pesquisadores perceber todas as nuances que se materializam e interferem no contexto investigado, possibilitando um processo de construção de dados mais fidedigno.

As observações foram iniciadas no mês de agosto de 2019 e perduraram até dezembro daquele ano. O período escolhido para o desenvolvimento desse procedimento compreendeu o turno vespertino, das 13:00h às 17:00h, e as observações ocorreram duas vezes por semana, sendo um dia dedicado a cada turma, totalizando 26 sessões de observação. Esse procedimento foi realizado em maior volume na sala de referência das duas turmas investigadas, mas também nos outros espaços da instituição, à medida que a rotina das crianças era acompanhada. Contudo, para este artigo nos debruçaremos apenas sobre as atividades de leitura e de escrita realizadas no interior das salas de referência.

Foram eleitos alguns aspectos para guiar as observações: as atividades propostas com foco na linguagem escrita; o desenvolvimento da sua mediação; a reação e participação das crianças; a interação entre professoras e crianças e entre as próprias crianças nessas propostas. Após a seleção, organização e análise prévia dos registros (escritos e imagéticos), os dados eram reunidos categoricamente em um instrumental que continha um campo para contextualização e descrição das práticas documentadas e outro para anotação das reflexões sobre elas.

O primeiro campo era preenchido pelos pesquisadores na preparação para os grupos focais, e o segundo era construído mediante as interações verbais entre estes e as professoras participantes da pesquisa na realização dos grupos, que eram iniciados e mediados pelos investigadores. Os grupos focais tinham a duração de uma hora a uma hora e meia, eram realizados na sala da coordenação, mas sem a presença dela, e, além de registrados no instrumental, eram gravados e, posteriormente, transcritos para que os trechos pudessem ser categorizados e analisados.

Nos grupos focais, analisamos as práticas pedagógicas voltadas à linguagem escrita desenvolvidas pelas professoras e como as crianças interagiam com tais propostas. A articulação entre os procedimentos de observação, registro e discussão (grupos focais) possibilitou a organização, apresentação e análise dessas propostas em dadas categorias, que serão mencionadas a seguir e esmiuçadas na próxima seção deste artigo: 1- nome próprio/trabalho com palavras estáveis; 2 - calendário; 3 - material apostilado; 4 - atividades com possibilidades lúdicas; 5 - leitura ou contação de histórias. Em cada categoria é feita, não necessariamente nessa ordem, uma apresentação das ideias-chave que apoiam a prática pedagógica enfocada, a descrição de situações oriundas da pesquisa de campo e uma análise do desenvolvimento e das implicações da mediação nessas práticas.

4 Resultados e Discussão

Os dados da pesquisa de campo, indícios das ações, interações e práticas vividas pelas professoras e crianças participantes da pesquisa, foram construídos nas sessões de observação nas salas de referência. Após selecionados e organizados, foram discutidos nos grupos focais, que se centraram na construção de análises sobre as práticas de/com linguagem escrita planejadas e propostas pelas docentes, colocando-as em interação com a própria ação educativa, especialmente, com as intenções nelas envolvidas e suas repercussões para as aprendizagens das crianças. Com esse percurso investigativo, perseguimos uma análise das práticas de/com linguagem escrita desenvolvidas em um contexto de pré-escola, de modo a tornar visível como essa linguagem participa da experiência educativa de dadas crianças.

O trabalho com o nome próprio, primeira categoria das práticas analisadas, era realizado diariamente e, em especial, por meio do seu reconhecimento na agenda de registro diário sobre cada criança. Em ambos os coletivos, as professoras, após preencherem as agendas, formavam uma roda de conversa que tinha, como primeiro momento, geralmente, a devolução das agendas. Essa dinâmica acontecia em dois formatos: o primeiro, em que as agendas eram dispostas no chão e duas ou três crianças, por vez, identificavam, por meio do nome próprio, a sua agenda; e o segundo, em que uma agenda por vez era apresentada pela professora e as crianças identificavam a quem aquela agenda pertencia.

O primeiro formato era o mais recorrente e nele era possível perceber melhor as crianças que estavam com dificuldades em fazer a identificação do seu próprio nome e, consequentemente, da agenda que lhe pertencia; como exemplifica o registro a seguir:

Na turma Infantil IV-B, no momento de devolutiva da agenda, Ayron parece escolher aleatoriamente uma agenda e pergunta para a professora se é a sua. A docente pergunta para todo o grupo: "Qual a letra inicial de Ayron?" A professora pede para que ele se sente, pois irá chamar outras crianças, fazendo com que o número de agendas no chão seja reduzido. Ela elogia Samuel, que dessa vez logo identifica sua agenda. A professora chama novamente o menino Ayron e ele identifica sua agenda sob os elogios da professora (NOTAS DE CAMPO, 01/10/19).

No segundo formato de trabalho com o nome próprio apoiado pela agenda, a professora mostrava apenas a letra inicial do nome de uma agenda e perguntava para as crianças qual letra estava sendo mostrada. Em seguida, ela perguntava qual criança teria o nome iniciado por essa letra, até as crianças descobrirem de quem era a agenda ou identificarem a sua própria agenda. Algumas crianças apresentavam corretamente as duas informações.

Não há como desconsiderar a importância da identificação do nome próprio para a constituição identitária das crianças (MARTINS, 1991), sendo essa uma forma de denominar-se, de ver-se, de imaginar-se. Esse elemento identitário participa da diferenciação simbólica que as crianças realizam entre elas e os demais membros dos grupos que integram. Ao mesmo tempo, esse movimento também assegura sua agregação simbólica nesses grupos (MARTINS, 1991), o que se configura, então, como uma representação simbólica da pessoa, elaborada através do outro, construída em socializações sucessivas que acontecem tanto na família como na escola, compondo o processo de construção da identidade na infância. Podemos constatar, a partir das observações, que o contato com a linguagem escrita, de forma sistemática e intencionalmente planejada, é iniciado pela apresentação para as crianças do seu nome, seja nos materiais e utensílios de uso escolar ou simplesmente na ficha que contém o nome da criança com um instrumento que marca sua presença na instituição.

A professora Camila, da turma Infantil IV-B, parecia considerar as experiências que as crianças já tinham tido com o próprio nome em vivências anteriores (incluindo as por ela proporcionadas) e, por isso, estariam em condições de desenvolver a atividade de identificação desse nome na agenda. Contudo, algumas crianças, como Ayron, apenas pareciam escolher aleatoriamente qual seria a sua agenda por meio das características que a configuravam do que identificando-a a partir da escrita do nome. Para facilitar a identificação das agendas pelas crianças que tinham dificuldade, a professora deixava-as para participarem por último, quando havia menos agendas no chão. Isso poderia facilitar o processo para que as crianças se identificassem com as agendas, caso elas realmente estivessem se apropriando do nome próprio, ou aumentar a possibilidade de, aleatoriamente, “acertarem”, coletando a agenda correta.

Aparentemente, algumas crianças eram capazes de reconhecer o próprio nome fixado na capa da agenda, fazendo a leitura de algumas letras desse nome ou lendo o nome completo. No entanto, a maioria se apoiava em outros aspectos, como o formato das letras ou as cores, o que facilitava a memorização. Isso consiste em uma leitura logográfica, conceito cunhado por Frith (1985, apudMALUF; SOUSA, 2004, p. 56), que pode ser descrito como “[...] um modo de identificação das palavras baseado no reconhecimento de um padrão visual, em que a criança aprende o significado por meio da memorização”.

Consideramos também que o reconhecimento da agenda/nome por parte das crianças poderia estar pautado em outros indicativos, por exemplo, um amassado ou risco na capa, levando-as a reconhecer a sua agenda. De todo modo, apesar desses possíveis enviesamentos no processo, podemos salientar como relevante a inserção das crianças em uma prática interativa em que a escrita é um elemento de mediação, fazendo com que possam, de algum modo, ir adentrando o processo de compreensão acerca de sua função social.

Outra estratégia para o trabalho com o nome próprio nas turmas investigadas era a solicitação de que as crianças escrevessem seus nomes nas folhas em que rascunhavam alguns desenhos. Elas poderiam fazer essa atividade do jeito que elas soubessem, inclusive quando demonstravam vontade de escrever uma determinada palavra que se articulasse ao tema/fato ilustrado pelo desenho, previamente discutido em coletivo. Algumas dessas palavras já eram conhecidas pelas crianças, tornando-se possivelmente estáveis para elas, como registrado em campo:

Na turma Infantil IV-B, após uma atividade de desenho, a professora pede para que as crianças escrevam seus nomes nas folhas, do jeito que souberem. Algumas crianças escrevem do jeito que sabem (não convencionalmente), outras escrevem de forma convencional, sem a ajuda da ficha do nome próprio, e outras pedem a ficha para a professora (NOTAS DE CAMPO, 24/10/19).

A professora Camila comentou que, ao pedir para as crianças escreverem “do jeito delas”, por exemplo, para nomearem os desenhos, essa atividade lhe permitia refletir sobre como as crianças estavam em relação ao aprendizado da escrita, pois, com o uso da ficha, algumas crianças apenas faziam a cópia. A isso se articulava à avaliação processual do aprendizado da linguagem escrita pelas crianças; procedimento indispensável para a mediação docente no processo de aquisição dessa linguagem. Como já discutido neste artigo, uma das ações do professor na promoção da escrita pela criança é observar e compreender como esse sujeito está pensando sobre esse instrumento cultural, ou seja, em que hipótese de construção da escrita a criança está. Assim, é possível direcionar sua prática de modo a promover avanços na elaboração dessa hipótese, para que a criança se aproprie das convenções que estruturam a língua escrita.

Nesse sentido, as professoras também realizavam experiências de escrita que se articulavam a outras linguagens, por exemplo, o desenho:

Após uma conversa sobre o aparelho de telefone celular, na turma Infantil IV-B, que emergiu do pedido de Artur para a turma trazer o referido objeto para a escola, Camila propõe que as crianças escrevam a palavra celular no quadro. A professora distribui folhas para as crianças desenharem livremente e algumas desenham algo relacionado ao celular. Enquanto as crianças desenhavam, ela chama uma por vez para fazer um teste no qual a criança desenha um objeto e escreve o nome desse algo. Nesse dia, ela direcionou que as crianças desenhassem um celular e escrevessem o “nome” celular. Camila diz que é “o teste da Emília Ferreiro” (NOTAS DE CAMPO, 17/10/19).

Nessa perspectiva, o trabalho com palavras estáveis, especialmente, com o próprio nome, pode decorrer da consideração de que um “modelo de escrita” se faz importante no processo de aprendizagem dessa modalidade da língua. Segundo Gallart e Teberosky (2004), palavras estáveis são palavras cuja grafia convencional pode ser memorizada pela criança e servir como fonte de experiência para escrever outras palavras. Assim sendo, além do uso do recurso da agenda, foram observadas outras situações de trabalho com o nome próprio, por exemplo, o uso de “atividades” para casa e o uso da “ficha do nome”.

O trabalho com a linguagem escrita, especificamente com as unidades da palavra, letras e sílabas, era realizado nas salas investigadas também por meio da exploração do nome do mês. Esse trabalho era apoiado pelo artefato calendário e se dava, com maior frequência, em rodas de conversa.

No momento do planejamento, as professoras construíam o esqueleto do calendário, fazendo as colunas referentes aos dias da semana e as linhas para situar os dias do mês. Em letras de forma, acrescentavam o nome do mês e os dias da semana. Esse instrumento era apresentado às crianças no início do mês, geralmente, no momento da roda de conversa, como exemplificado no relato a seguir:

Na turma Infantil IV-A, a professora conversa com as crianças sobre o dia da semana e o mês. Ela faz isso com o auxílio de um calendário produzido em uma folha de cartolina. Trabalha a linguagem escrita explorando o nome do mês, a letra inicial e as demais letras que correspondem ao mês de agosto. Também trabalha os números, tendo como auxílio os dias do mês (NOTAS DE CAMPO, 08/08/19).

O calendário é um gênero textual de nosso cotidiano que se faz imprescindível ao letramento das crianças, no sentido de que elas possam compreender a sua função. Para lograr êxito sobre esse objetivo, as práticas pedagógicas devem explorá-lo de forma sistematizada em estreita relação com a função social da linguagem escrita. A articulação entre o letramento (práticas sociais de uso da leitura e da escrita) e o letramento matemático contribui para a produção de textos e para a prática da leitura ao possibilitarem às crianças conhecimentos sobre o modo como os textos são estruturados e como a escrita é organizada em nossa sociedade e, ao mesmo tempo, como a organiza. Sendo assim, as crianças podem aprender a diferença entre horizontal e vertical, o que é segmentação, identificar posições como embaixo, em cima, à esquerda e à direita, início, meio e fim, contar parágrafos, estrofes etc.

O trabalho desenvolvido com a linguagem escrita nas turmas participantes da pesquisa também se utilizava da interação e intervenção com o material apostilado. Sobre a utilização desse material, a professora Camila fez o seguinte comentário: “ele é tão desconexo, esse material de modo geral, é tão desconexo com o que a gente faz”. A fala da professora nos remete a opinião de Smolka (2012, p.18) quando afirma que:

as atividades de leitura e escrita, baseadas no livro didático, são [...] desprovidas de sentido, e [...] alheias ao funcionamento da língua, contrastando violentamente com as condições de leitura e escrita das sociedades letradas

Nesse sentido, muitas vezes, as atividades e os textos trazidos pelos livros didáticos exploram a linguagem escrita de uma forma muito superficial, estruturando-se a partir de textos desinteressantes para a realidade das crianças e que priorizam a memorização de conteúdos. Com intuito de superar essa prática, quando possível, as docentes que participaram desta pesquisa conectavam as atividades da apostila com assuntos que estavam sendo discutidos em sala, a partir da escuta das crianças; como explicitado pela professora Camila em um dos grupos focais:

A gente tem a apostila... eles pediram pra fazer um celular [...]. Eu: “meu Deus, e agora?”. E a gente tem uma atividade na apostila, que é sobre número de telefones. Eu aproveitei dois dias antes, peguei essa atividade e fiz com eles, eles levaram para casa e os pais colocaram o número de celular que possuem. Explorei com eles o que é que eles entendiam por celular, o que é que eles sabiam... botei a palavra celular na lousa, para eles escreverem celular, essas coisas todas [...]. Em resumo, eu vinculei esse desejo deles a algo que tinha na apostila (Professora Camila, 3º Grupo Focal).

Com atividades assim, a professora atendia, ao mesmo tempo, aos interesses das crianças e, por consequência, às demandas de uso do material adquirido pela rede de ensino. Para Rinaldi (2017, p. 106), partir da escuta das crianças implica construir “[...] os entrelaçamentos e as conexões, a rede de relacionamentos, para transformá-los em experiências significantes de interação e comunicação” entre as crianças e as práticas a elas propostas. Ações dessa natureza são relevantes porque estimulam a criança a refletir sobre o texto e a compreender a sua própria realidade, assim como o contexto social amplo em que está inserida, participando ativamente de práticas e eventos de letramento diversificados.

Outra prática que buscava engajar as crianças em eventos de letramento era a proposição de jogos educativos, que, para Kishimoto (1999, p. 59), são “[...] situações lúdicas intencionalmente criadas pelo adulto com vistas a estimular certos tipos de aprendizagem”. Ao longo das observações, deparamo-nos com atividades propostas pelas professoras que tinham esse potencial lúdico:

Na turma Infantil IV-B, a professora informa para as crianças em roda a atividade que será realizada, bingo. Pede para as crianças se sentarem nas mesas, pois ela irá distribuir o material. Camila entrega para cada criança uma cartela de bingo, que no lugar de números, possuem letras. A docente sorteia letra por letra e acompanha se as crianças a identificam ou não na cartela, elogia, faz correções e confere se as crianças estão seguindo as regras do jogo. A maior parte das crianças respeita as regras do jogo e identifica as letras. Com as crianças que possuem dificuldade, a professora acompanha de perto para que elas sigam as regras do jogo e brinquem até o final. O jogo é organizado de uma forma que as crianças, em primeiro, segundo ou terceiro lugar, vencem ao final (NOTAS DE CAMPO, 24/10/2019).

A prática da professora evidencia uma percepção sobre o uso do jogo como recurso lúdico, com a intencionalidade pedagógica de promover uma experiência significativa com a linguagem escrita. A inclusão do jogo pedagógico nas práticas de leitura e escrita na Educação Infantil é vista pelas professoras como uma maneira “lúdica” de ensinar e promover nas crianças uma aprendizagem “prazerosa” (AQUINO, 2015). Leão (2015, p. 650) acrescenta que há outras finalidades pedagógicas nesse tipo de recurso, como:

[...] despertar nas crianças a motivação, a expressividade, a imaginação, a linguagem comunicativa, a atenção, a concentração, o raciocínio lógico, e podem englobar diferentes áreas do conhecimento.

Acrescentamos que as situações de jogo observadas nas turmas investigadas envolviam meninas e meninos que demonstravam ter pouca aproximação com a linguagem escrita, o que impulsionava a participação dessas crianças, contribuindo para a aprendizagem desse objeto de conhecimento e para o desenvolvimento de habilidades próprias desse instrumento psíquico e social.

A leitura ou contação de histórias também integrava a rotina das crianças e era realizada após o lanche, tendo ou não relação com a prática seguinte: desenhos, brincadeiras, jogos ou outras. A contação também se dava, em menor medida, após o jantar, aproximadamente 20 minutos antes do horário da saída. As histórias escolhidas pelas professoras às vezes se articulavam ao projeto em desenvolvimento ou eram escolhidas de modo “aleatório”. Quando ocorriam de modo articulado, ligavam-se a temas compreendidos como objetos simbólicos de interesse e envolvimento das crianças, como a morte, a violência, as festas, o trabalho etc. Esses temas geralmente emergiam na turma. Quando se dava de modo aleatório, a escolha se dava pela qualidade do material, do texto, das imagens e do design.

As professoras intencionavam que as crianças se apropriassem das especificidades desse suporte, como observado em uma sessão de contação de história na turma Infantil IV-B:

Antes de iniciar a contação de histórias, a professora apresenta o livro, pergunta se as crianças querem ver quem escreveu o livro. Ela mostra, diz o nome. Também apresenta o ilustrador. Uma criança diz que foi ela que desenhou no livro (NOTAS DE CAMPO, 29/08/2019).

As professoras manifestaram saber que a contação/leitura de história é uma importante prática para trabalho da dimensão do letramento, visto que a leitura e a fruição de histórias é uma experiência lúdica, social e pessoal significativa para a formação leitora e escritora das crianças. Essa prática é de indispensável presença no cotidiano da educação infantil, implicando na construção da realidade pela criança e da sua identidade. Sendo assim, não podemos deixar de mencionar a importância da realização de experiências sociais com o uso da linguagem que favoreçam a dimensão do lúdico [...]

[...] porque sabemos que as práticas lúdicas são também discursivas, visto que é justamente pela mediação da brincadeira, dos jogos simbólicos que a criança busca agir e compreender as relações e instrumentos que a cultura lhe apresenta, dando-lhes uma nova linguagem (QUIXADA; LINS; TAVARES, 2018, p.189).

5 Considerações finais

Este trabalho deriva de um projeto de pesquisa que investigou, no ano de 2019, práticas de/com linguagens em um Centro de Educação Infantil, localizado na cidade de Fortaleza (CE). Com base nos dados que elaboramos, podemos inferir que a linguagem escrita era concebida pelas professoras como um conhecimento com o qual as crianças deveriam interagir e do qual deveriam se apropriar. Elas também apontam para a percepção, nesse objeto/instrumento de conhecimento, de especificidades relativas ao ensino/promoção pelos educadores e à aprendizagem/desenvolvimento pelas crianças, tratando-se de um conhecimento do patrimônio sócio-histórico de importante valor social.

Apesar de estar presente nas práticas cotidianas vividas pelas crianças, a linguagem escrita precisa ser ensinada, logo, não basta com ela interagir, é preciso estratégias e recursos que promovam o seu aprendizado. É possível afirmar que havia uma valorização das crianças enquanto sujeitos atuantes e participativos, pois as professoras escutavam as demandas e interesses das crianças para propor as atividades. Nesse sentido, podemos compreender que essas práticas continham possibilidades de significação pelas crianças, sendo exemplos disso a prática de calendário, de utilização da apostila, de contação de histórias etc. Essas vivências, portanto, devem corresponder aos interesses das crianças de forma contextualizada.

Nas práticas observadas, não foi possível identificar outros momentos mais significativos em que a linguagem escrita fosse abordada dentro de uma proposta de letramento, ou seja, de uso social da escrita. Não presenciamos, por exemplo, a construção de uma história coletiva junto com as crianças ou a escrita de um bilhete para os pais. Apesar disso, ressaltamos que a valorização da escrita espontânea das crianças foi uma prática interessante, quando as crianças assinavam seus desenhos.

Assim sendo, as manifestações de uso da língua na modalidade escrita pelas crianças estavam relacionadas às experiências que elas tiveram até então com essa ferramenta cultural, no contexto da escola e fora dele. Outra compreensão possível é a de que essas manifestações, além de sinalizarem o conhecimento que as crianças já tinham sobre essa linguagem, apoiavam o desenvolvimento de outras ideias sobre ela, tornando possível às crianças elaborarem, de forma cada vez mais sofisticada, suas ideias sobre a construção e funções da escrita como ferramenta de interação e de construção de si.

1Os documentos podem ser consultados no seguinte link: https://educacao.sme.fortaleza.ce.gov.br/index.php/rede-de-ensino/educ-infantil.

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Recebido: 24 de Setembro de 2023; Aceito: 06 de Novembro de 2023; Publicado: 28 de Dezembro de 2023

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Pedro Neto Oliveira de Aquino, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4624-3860

Secretaria de Educação - Prefeitura Municipal de Fortaleza

Pedagogo e mestre pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem experiência na etapa da Educação Infantil e do Ensino Fundamental como professor e assessor pedagógico e, no Ensino Superior, como docente em cursos de Pedagogia e da Área da Educação.

Contribuição de autoria: Coleta de dados; Concepção e elaboração do manuscrito; Análise de dados; Discussão dos resultados.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/2799418103208208.

E-mail: pedrooliveiraaquino@outlook.com

ii

Larissa Naiara Souza de Almeida, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9121-2268

Secretaria de Educação - Prefeitura Municipal de Fortaleza

Pedagoga, mestra e doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará, onde também é pesquisadora do γραφή (grafí) - Laboratório de Estudos da Escrita.

Contribuição de autoria: Concepção e elaboração do manuscrito; Análise de dados; Discussão dos resultados.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0244831781036405.

E-mail: almeidalarissa2011@gmail.com

iii

Messias Holanda Dieb, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1437-791X

Faculdade de Educação - Universidade Federal do Ceará

Pedagogo pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (CE). Mestre e Doutor pela Universidade Federal do Ceará (UFC), onde também é professor e pesquisador do γραφή (grafí) - Laboratório de Estudos da Escrita. Temas de interesse: estudos da escrita e letramentos acadêmicos.

Contribuição de autoria: O terceiro autor contribuiu com reflexões teóricas sobre o ensino da escrita, bem como auxiliou na análise dos dados e na revisão/formatação final do texto.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/4729675669995125.

E-mail: mhdieb@gmail.com

Editor responsável: Lia Machado Fiuza Fialho

Parecerista Ad hoc: Fabricia Pereira Teles e Maria Danielle Araújo Mota

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