produções imagéticas: uma pesquisa no modo criança
Fui andando… Meus passos não eram para chegar porque não havia chegada Nem desejos de ficar parado no meio do caminho. Fui andando… (Manoel de Barros, 2010, p. 50)
caminhos, rastros, rizomas...
Os primeiros rastros de uma pesquisa com imagens, nos caminhos de uma pesquisa experiência com crianças1, experimentando com imagens nos meandros do cotidiano, abre os campos da invenção, os campos dos eventos inexatos, daquilo que corta, recorta, daquilo que passa, nos passa, acontece. Experiência então é o campo da infância (Leite, 2011).
Ainda nos diz Leite (2014, p. 84), “Pesquisar com crianças e imagens é não ter um caminho dado, um caminho a priori, mas é se colocar em um caminho porvir”. Um caminho que vai se fazendo no percurso. Um caminhar com crianças e imagens que nos provocaram a pensar nas afetações, nos atravessamentos e nas invenções que elas nos apresentam em suas experiências. Entre essas inquietações, surgem os questionamentos: Por onde começo? Como pesquisar compondo com as produções de imagens das crianças, com as crianças e com infâncias? O que dizer com as imagens feitas por crianças e das crianças em suas experiências? Em um começo de pesquisa, como se movimentar com as crianças por meio das imagens e filmagens que elas produzem em casa? Como escrever um texto acadêmico científico com esses movimentos que as crianças nos levam a pensar?
Cartografias de imagens vão se fazendo diante dos nossos olhos, aos poucos ganharam vida com as crianças, saltaram das câmeras, das lentes dos papéis para ir mais além, criaram rizomas ramificaram, alastraram, imagens que nos apresentaram caminhos a serem percorridos, trilhados com as crianças. As crianças foram nos apresentando a direção, nos levando e apontando os caminhos a serem percorridos, caminhos que trilhamos juntos, no entre da pesquisa, com as produções de e por crianças que movimentaram, habitaram a pesquisa com suas vivências.
Podemos dizer que vivenciamos juntos com as crianças uma pesquisa experiência no modo criança, foram elas que nos apresentaram seus mundos, outros mundos, foram as crianças nossas condutoras que descortinam modos, formas, normas foram desconstituídas no caminho, amarras foram quebradas abrindo caminho para os devires, para o inventar.
Diante de tudo isso, temos nos arriscado a chamar a própria pesquisa como pesquisa-experiência. A ideia é a de que as pesquisas sempre ocupem com as experiências e, bem por isso, se distanciam da noção de que as investigações são compostas por experimentos, coleta de dados e análises (Leite; Oliveira, 2019, p. 161).
Experiências com crianças e com imagens que nos apresentam múltiplas saídas, crianças e imagens que escorrem pelas fendas, fissuras nos levando a adentrar nos caminhos da pesquisa como possibilidade pensar a criança como abertura.
Crianças cartografando o mundo em suas imagens, percorrendo trajetos escapando daquilo que as aprisionam; saindo com as câmeras nas mãos criando mapas disformes, sem ponta, traços sem um modo certo de ser. Traços de uma experiência como um modo outro de operar no mundo, de apresentar seus mundos. Caminhos de uma pesquisa com crianças e com imagens como outro modo de olhar para as crianças e de estar com elas, com seus fazeres, dizeres e víveres nessa travessia.
Caminhos de uma pesquisa que se desloca com as crianças, imagens que ganham força, vida, extensão das vivências infantis. Uma pesquisa que adentra por caminhos incertos, por caminhos rizomáticos e nos mostram saídas, entradas e nos convida a um movimento de invenção durante a caminhada.
Uma pesquisa produzida, desenvolvida, vivida e experienciada em tempos de pandemia. Uma questão nos inquietava, um desafio metodológico se apresentava: como pesquisar com crianças em tempos de isolamento social, devido a pandemia de Covid-19? Tendo em vista que, a produção de imagens por crianças, sem orientação prévia, em ambiente escolar, compõem as pesquisas desenvolvidas por outros pesquisadores (Leite, 2011; Chisté, 2015; Leite e Oliveira, 2019; Fernandes, 2021), tendo em vista que, a produção de imagens por crianças, de vídeos caseiros, tem permeado investigações em outros países, como por exemplo, a Alemã (Schneider; Strauven, 2021), optamos por propor às crianças, em concordância com os pais, que produzissem imagens (fílmicas e fotográficas) no espaço do cotidiano familiar. Uma aproximação com as crianças disparada e intermediada pela tecnologia (devido ao distanciamento social) e, ao mesmo tempo, com suas produções imagéticas, uma necessidade instaurada: a participação da família neste processo. Desse modo, as imagens produzidas pelas crianças foram enviadas pelos pais via WhatsApp e e-mail.
Assim, escolhemos trazer para essa escrita parte do estudo “Falas, estranhamentos, imagens e encantamentos: uma pesquisa no modo criança” (Oliveira, 2022), desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação Mestrado em Ensino de Ciências da Natureza, o qual possibilitou encontros com a infância, com a educação e com a natureza pelos olhos das crianças. A pesquisa2 que dispara o estudo foi desenvolvida com crianças de 02 a 06 anos, de maio de 2021 a junho de 2022, na qual, crianças próximas e distantes, foram convidadas, sem orientação prévia, a produzirem imagens (fílmicas e fotográficas) em seus espaços familiares (casa, quintal, terreiro, jardim, pomar, calçada etc.). Fomos movidas pelos dizeres, fazeres e viveres de 15 (quinze) crianças, residentes nas áreas urbana e rural em municípios da Zona da Mata do Estado de Rondônia. Foram meses olhando para as produções das crianças que nos apresentaram cerca de 100 filmagens, 400 imagens fotográficas, 50 áudios e 30 frases ditas pelas crianças e registradas por escrito pelos pais.
O texto que segue, primeiramente, discute o modo de pesquisa na qual nos lançamos: uma pesquisa com movimentos cartográficos, guiada pelas crianças e suas produções imagéticas, uma pesquisa como experiência, em que o percurso foi configurando-se no próprio deslocamento. Segundamente, somos guiadas por inquietações: O que pode produzir falas e imagens produzidas por crianças? O que podem produções imagéticas infantis em uma pesquisa? As crianças pela infância o que nos apresentam? No terceiro momento as crianças lançam-se em cena, como mergulho de águia, como salto de baleia. A câmera em movimento, os corposcâmeras, nos indicam outro tempo, outro modo de ser e estar no mundo, nos indicam invenções e achadouros de infância. Propormos aqui então, pensar a partir do exercício do olhar das crianças e suas produções imagéticas, nas travessias de uma pesquisa, na potência do encontro entre crianças e câmera e mundo, na coexistência das crianças no mundo com suas experiências, desejos, pensamentos e invenções que potencializam a vida.
Pesquisa começo, pesquisa experiência, pesquisa cartográfica e pesquisa no modo criança
As imagens produzidas pelas crianças e das crianças nos levaram a encontrar um modo outro de escrita acadêmica, de fazer pesquisa e de estar com as crianças. Produções que nos atravessaram e nos colocaram a pensar na estética de uma pesquisa acadêmica movida pelas produções imagéticas que as crianças nos apresentam. Como nos diz Deleuze e Guattari (1995, p. 15), “É no movimento, nos deslocamentos, nas desterritorializações que os agenciamentos se produzem, se transformam, dando forma a uma pesquisa”.
Assim, a pesquisa experiência se movimentou com as experiências das crianças, e a cartografia operou com a ideia de rizomas junto às afetações encontradas no caminho da pesquisa, onde “um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio [...]” (Deleuze; Guatarri, 1995, p. 36). Um rizoma é uma pesquisa no caminho em movimento que se entrelaça, ramifica e que atravessa.
Desse modo a cartografia se constituiu paralelamente ao momento em que as produções das crianças foram olhadas. E nesse movimento os lugares habitados pelas crianças se desterritorializou3 e deixou de ser um lugar concreto para ser um lugar outro de experiência, um lugar com um emaranhado de vivências que como um rizoma adentraram mundos.
A cartografia não apresenta compatibilidade com as certezas prontas, ela estimula e nos movimenta a adentrar caminhos em busca de inaugurar eventos com as crianças. Nos leva a prática do olhar, da escuta, da ausculta, do observar durante a pesquisa. Nesse caminhar, o conhecimento científico é produzido nas conexões dos fatos vivenciados pelas pessoas envolvidas na pesquisa.
Pesquisar cartografando é transgredir as formas, é um possibilitar a acontecer, a ser, é um olhar para si mesmo, é um estar na pesquisa, como parte dela. Então, podemos dizer que assumir a cartografia como um modo de fazer pesquisa com crianças, pôde nos levar a repensar, voltar, retomar e entrar por outros caminhos... caminhos possíveis durante a travessia. Pesquisar com crianças pequenas requer um trabalho de cultivo e atenção.
Nesse movimento cartográfico a pesquisa como experiência se constituiu com estratégias cartográficas ao mesmo tempo em que as experiências foram vivenciadas pelas crianças e as escritas da dissertação ganharam corpo com as produções das crianças. Assim, a pesquisa se compôs nos caminhos tecidos pelos movimentos cartográficos que apontaram para uma pesquisa experiência no modo criança. Como nos diz Cammarota (2021, p. 27) “é com e a partir de discussões em torno da cartografia e da experiência que essa pesquisa vem tomando corpo”. Nesse cartografar, adentramos caminhos movidos pelos rastros deixados nas experiências vivenciadas pelas crianças em suas linhas de fuga, enquanto inauguravam mundos ou nos apresentavam seus mundos experimentando com uma câmera nas mãos.
Ainda, Leite (2011, p. 157) nos instiga a pensar “na pesquisa como experiência, na pesquisa-experiência, na pesquisa como campo aberto, como campo de experimentação, como campo de afetação [...].” Assim, a pesquisa nos possibilita sentir, vivenciar a experiência no tatear daquilo que acontece no trajeto de uma pesquisa com crianças, suas produções imagéticas apontaram os caminhos a serem trilhados, percorridos, sentidos.
A pesquisa experiência foi movida por crianças, por imagens e pelas miudezas encontradas no caminho. Imagens e filmagens como possibilidade de acontecimentos. Produções de crianças que nos movimentaram pelos caminhos de uma pesquisa experiência com traços cartográficos que nos possibilitou mergulharmos naquilo que as crianças nos apontaram na travessia. Movimentos que nos levam a muitas entradas, a participar de todo o processo como uma outra forma de fazer pesquisa e de estar com as crianças na travessia.
a criança pela infância, cores, rabiscos, falas...
[...] O olho vê, a lembrança revê, e o pensamento4 transvê. Isto seja: homem deu a forma. As crianças deformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo [...]. (Manoel de Barros, 2010, pp. 349 e 350).
Imagens: Criança Guardador de Águas, 22/07/2021.
Crianças que povoaram a pesquisa e as escritas com o seu modo de ver e transver as coisas, o mundo. Compuseram e habitaram uma experiência-vida, uma experiência no modo criança e com crianças na travessia. Um encontro com crianças e imagens que busca desterritorializar nossos pensamentos, um caminhar que se engendra com as crianças em suas inventividades de fazer gato colorido, sol azul, chuva amarela... uma escrita que se (des) encontre como um “fazer cavalo verde, por exemplo”, que convide a pensar a infância e a criança como potência de vida, força, abertura e intensidade.
A infância como experiência e movimento. Leite (2011, p. 116) diz que a “infância pela criança nos apresenta um mundo de reticências, um mundo pontilhado de possibilidades pelo ritmo cortado, sem sentido fixo, sem sentido dado, sem sentido previsto, sem sentido.” Assim, as imagens que as crianças nos apresentaram durante a travessia foram como iluminuras que inauguraram mundos e nos colocaram a pensar em suas vivências pelos locais que percorreram pelo caminho, com as coisas que as movimentaram, que as tocaram e as afetaram.
Nessa pesquisa a infância não foi vista como uma fase de vida que passa, as crianças não foram olhadas como seres que devem estar sempre sob o olhar dos adultos, recebendo comandos. Não olhamos para a criança como se buscássemos desvendar ou descobrir coisas ocultas a serem descoberta sobre elas ou delas, mas sim olhamos com elas, pesquisamos com elas, foi como estar, ir, com, entre, juntas... buscamos pesquisar com suas produções de imagens, olhar para as coisas que nos apresentam que nos mostraram os detalhes não percebidos antes no caminho. Nessas imagens que olhamos percebemos muito das crianças e de suas infâncias nelas. Kohan (2005) fala que a infância,
[...] já não mais é medida pela categoria de progresso, numa temporalidade contínua; ela é descontinuidade, irrupção do pensamento, do possível, do povir. [...] Por um lado, ela deixa de estar necessariamente associada a crianças, e sua visão concomitante com seres humanos pequenos, frágeis, tímidos. Por outro lado, ela passa a ser condição de rupturas, experiência de transformações e sentido das metamorfoses de qualquer ser humano, sem se importar sua idade (Kohan, 2005, p. 246).
Dessa forma olhamos para a criança, para as imagens que produziram, para suas múltiplas falas, olhamos para além dos enunciados, das ideias pré-estabelecidas. Olhamos para as crianças como potência, para além da sua identidade e não pelas faltas e necessidades que apresentam.
Assim, buscamos nos livrar das amarras que às vezes nos levam a pensar a infância e a criança como um ser menor, como um ser incompleto. Pensamos aqui a infância e a criança permeada pela ideia carregada de existência, de intensidade que pulsa vida.
Pensamos na infância que inaugura a vida, o nascimento das coisas em suas experiências, que está em constante devir; é vida que movimenta e experimenta. Para Kohan (2005), a infância é “diferença em si mesma; diferença livre de pressupostos. Vida experimentada; expressão de vida; vida em movimento; vida em experiência”.
Crianças em suas vivências, experiências e imagens que nos apresentaram vida que pulsa por dentro e por fora de sua existência, falas de crianças que nos convidam e nos movimentam a vê-las como experiência no acontecimento, nas novidades, como resistência e inauguração. Olhamos para as produções das crianças em um constante devir, imagens como vida que experimenta e falas de crianças como potência que pulsa vida. Falas que entrelaçam com vozes, com ruídos, com imagens, falas...
Mamãe tem um coração no céu. O coração do mundo está no céu? (5Criança Delírios do Verbo, 2021). Tem dia que o céu fica azul, tem dia que fica branco. Será que as nuvens escondem o céu? (Criança Assobio, 2021). Vou virar cambalhota para ver o céu do outro jeito, quando girar. (Criança Pedrinhas do Nosso Quintal, 2021). Hoje vai chover, porque o céu está parado, branco-escuro. (Criança Achadouros da Infância, 2021). As pedras são terra dura. (Criança Água que Corre entre as Pedras, 2021). A areia são pedacinhos de pedras. (Criança Achadouros da Infância, 2021). A água da chuva bate no rio e vira rio. (Criança Achadouros da Infância, 2021). O vento esconde dos nossos olhos, mas as folhas mostram onde ele está (Criança Fazedor de Amanhecer, 2021).
Falas de crianças que nos levaram para outros lugares, nos levaram a questionar: pode as falas das crianças nos emudecer, nos calar? Que infância surge com as crianças quando produzem imagens com uma câmera nas mãos?
São muitos os questionamentos que nos envolvem, podemos pensar que as crianças estão sempre desprovidas de representações, de interpretações e nos parece que é nesse movimento de entrega, de olhar atento que as crianças nos apresentam seus mundos desnudados de sentidos, de normas.
Chisté (2015) nos provoca quando diz que as crianças,
[...] fogem das representações, não porque elas as conhecem, mas porque as ignoram. A representação está no lugar de, no lugar da coisa, e revela uma única verdade, dita palavras de ordem, e toda palavra de ordem, aprisiona, ou seja, a representação homogeneiza o pensamento, dita condutas e saberes; cria um perfil, uma identidade, um papel e isso faz reproduzir um modelo (Chisté, 2015, p. 91).
Estamos falando de crianças e infâncias que não se igualam às normas, a formas linear, de uma infância que não é movida por uma faixa etária; estamos pensando aqui em uma infância onde as coisas acontecem, onde o pensamento transforma mundos, coisas. Estamos falando de uma infância que vive no tempo das intensidades, crianças e infâncias que atravessam o tempo, as regras, que vive o acontecimento...
Ao olharmos para as produções das crianças nos parece que suas experiências potencializaram seu modo de pensar, de ver o mundo e de falar de si. Para Kohan (2007), a experiência é um tipo de viagem que acontece no pensamento e que não se pode traçar previamente um percurso. Vida, experiência e pesquisa se fundem em uma só.
Assim, podemos dizer que as experiências vivenciadas na travessia, no caminhar, no percurso... se fazem naquilo que nos atravessam. As experiências vivenciadas pelas crianças sempre as transformam de algum jeito, pois nos parece que elas estão sempre abertas a ouvir o silêncio, a auscultar com os olhos, com os ouvidos, com a pele e com o corpo todo. As crianças estão sempre atentas e esse estado de atenção as atrai para as miudezas encontradas no caminho percorrido.
As imagens são registros que formam rizomas, as falas das crianças criam vidas, vidas em movimento que nos trouxe afetações e questionamentos que nos fez pensar: Como os espaços do convívio da criança e a experiência vivenciada conversam nessas imagens produzidas por elas? O quanto das crianças há nas coisas que elas produzem? Será que a experiência e a infância estão carregadas de novidades? Agamben (2005, p. 27) destaca que “a infância está colocada como o lugar da experiência, que por sua vez consiste na experiência do pensar, entre aquilo que é, portanto, o próprio pensamento”.
Em suas vivências as crianças, de alguma maneira, nos indicam modos de relacionar com o mundo, com suas invenções e nos apresentam seus muitos modos de ver, sentir e perceber as coisas ao seu redor.
Experimentamos com crianças, que pulsam em si a infância, que são habitadas por infâncias. Na criança que é vista como criança nos espaços de suas afetações, pensamos aqui: O que podem as crianças e as infâncias enquanto experiência? As crianças estão sempre em movimento nos tirando do lugar, nos movendo também a pensar com elas. A vida, e o mundo são pensados com e pelas crianças nas suas invenções com a câmera nas mãos, com suas falas, com o pensamento em movimento.
As afetações nos atravessam pelos caminhos da pesquisa, as crianças nos apresentam suas invenções com as câmeras nas mãos, nos colocam a pensar em uma pesquisa que acontece, flui, escorre, adentra no modo criança de ser. Nos provocam e nos levam a pensar em uma pesquisa outra, em uma pesquisa com crianças que se inventam no caminho, que se constrói, se compõe, em um movimento de imagens, falas, desenhos e filmagens.
crianças com as câmeras nas mãos...
Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra. Fotografei a existência dela. Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça. Representou para mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski - seu criador. Fotografei a Nuvem de calça e o poeta. (Manoel de Barros, 2013, p. 351-352)
Uma criança com uma câmera nas mãos no caminho da pesquisa. O que pode um poeta com uma câmera nas mãos! Pensamos, o que pode uma criança com uma câmera nas mãos? Difícil dizer o que não pode uma criança com uma câmera nas mãos.
Na intenção de compor com as afetações, a escrita acontece, as produções das crianças nos convidam para a composição de uma escrita no acontecimento, de uma pesquisa experiência, uma escrita outra, afetações em movimentos com crianças e infâncias, desenhando as cenas nos cursos dos corpos ao produzirem imagens dentro do seu cotidiano familiar. Movimentos que compõem a pesquisa: falas, desenhos, fotografias, vídeos e áudios, são fragmentos dessa escrita em busca de um outro olhar para colocarmos o pensamento em movimento.
Quando as crianças se colocam em movimento, arriscando, transformando, modificando modelos, quebrando regras, criando linhas de fuga, elas estão em devir, um devir-criança que brinca, que faz pensar, que produz imagens, que inventa mundos, coisas...
Mamãe eu sou um pássaro que voa bem alto, vou dormir naquela árvore perto do rio. Vou abrir minhas asas e voar mais alto até alcançar o céu. Depois vou pular do alambrado e pegar as estrelas lá bem alto (Criança Assobio, 2021).
Estariam as crianças inventando mundos, afirmando devires? Devir-criança-pássaro. A criança Assobio não quer ser igual ao pássaro, imitar o pássaro, seu cantar, seu voar e seu pouso. A criança acha de fato ser o pássaro que voa bem alto e que dorme na árvore perto do rio.
Como nos dizem os autores (Deleuze; Guattari, 1997, p. 16), “Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a "parecer", nem "ser", nem "equivaler", nem "produzir" Assim pensamos, um devir é uma outra coisa e são muitas coisas, aquilo que não se imita. Uma criança em devir adentra atalhos, lugares, coisas, objetos, criam modos, histórias, brincadeiras, inventam... Assim, as crianças em devires nos trazem a ideia de um escapar das coisas prontas, de um escapar por linhas de fuga, de um inventar outros mundos dentro do seu próprio mundo. Em devir as coisas virtuais que as crianças vivenciam viram realidades para elas. As crianças nos mostram viver cada momento com a intensidade que elas veem e sentem as coisas.
A criança Achadouro da Infância que experimenta com uma câmera nas mãos, filma a sombra de um gato brincando pelo quintal. Esta filmagem nos movimenta a pensar: como as crianças vivenciam suas experiências e como fazem suas conexões entre aquilo que é virtual e atual. Assim, Deleuze (2020, p. 202) nos diz que, [...] “no virtual, a diferença e a repetição fundam o movimento da atualização, da diferenciação como criação, substituindo, assim, a identidade e a semelhança do possível”. Desse modo, pensando na filosofia da diferença, o atual é feito de formas provisórias, já o virtual se atualiza de um jeito diferente do atual, ele se apresenta em devir. Então, pensamos em experiências como deslocamento, como afetos, em movimentos.
Uma sombra estava caminhando, caminhando, caminhando. Ela achou uma árvore, um gato e um cachorro brincando. O gato caiu no buraco, o cachorro usou um pau, um galho, uma corda de pular, uma corda de puxar, uma corda. O gato ficou sujo de lama, então a sombra resolveu dar um banho nele (Criança Achadouros da Infância, 2021).
A sombra da criança em movimento operando a câmera, sombra da câmera nas mãos da criança que registra a cena, sombra dos animais brincando no chão do quintal. Desse modo, nesse jogo de força que envolve as crianças e suas invenções, nos parece que a experiência movimenta a virtualidade e a realidade e que elas não se separam uma da outra, pois quando a experiência do virtual está sendo explorada pelas crianças por meio de suas câmeras, paralelamente, elas estão vivendo a realidade, sendo possível sentir para cada agenciamento que atravessa suas experiências no momento em que as vivenciam.
Para Deleuze (2006, p. 199), “O virtual não se opõe ao real, mas somente ao atual. O virtual possui uma plena realidade enquanto virtual”. Assim, é nessa virtualidade que se encontra a desterritorialização, as linhas de fuga, a singularidade, a individuação, lugares estes onde se dá a experiência do fora, onde a diferença se faz nesse lugar de experiência das crianças.
Desta forma andamos, arriscamos para encontrar o caminho, para encontrar-nos, criando estratégias para sintonizarmos com as crianças, com a pesquisa, com as produções de imagens e filmagens feitas pelas crianças e filmagens de crianças feitas pelos pais.
Produções de crianças, invenções, respiro de crianças, imagens em movimento de uma criança e suas bolinhas de gude explorando o espaço dos seus quintais, experiências que produziu em nós afetos, a criança se torna um cientista construindo barreiras com restos de madeira e blocos de tijolos, inventa caminhos, constrói máquinas de fazer bolinhas de gude rolar. Assim, as crianças constroem sua visão de mundo de acordo com aquilo que elas têm contato, e acordo com Deleuze (1997, p. 83) “A criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer: explora os meios por trajetos dinâmicos, e traça o mapa correspondente”. Somos atravessadas por suas experiências, brincadeiras, questionamentos, desenhos e vídeos. As crianças povoam a pesquisa com suas falas e imagens.
Aqui tem muita caída, as bolinhas vão passar por aqui, então eu vou colocar uma barreira aqui. Agora vou soltar as bolinhas juntas, vamos ver qual vai chegar primeiro, as maiores ou as menores. Vou colocar a madeira no chão, testar com uma bolinha e se não der certo vou testar de novo. (Criança Fazedor de Amanhecer, 2021).
https://www.youtube.com/watch?v=47tQ6FkM8yw
É a criança Fazedor de Amanhecer e as bolinhas de gude; é a criança e a máquina de fazer bolinhas de gudes rolar, é a criança e o espaço de suas experiências... Assim pensamos se houve comunhão entre a criança e o espaço de sua investigação. O que as crianças nos indicam quando exploram os espaços por meio de suas experiências? O que podem olhares de crianças nos dizer sobre modos de ver e viver no mundo?
O caminho com as crianças e imagens se inventa no percurso dessa travessia, as produções das crianças povoam nossos pensares, como um modo outro de ver as miudezas. As crianças habitam e povoam a experiência, elas nos colocam à escuta, causam em nós afetos e encantamentos que nos atravessam. Será que as crianças nos possibilitam ver o mundo de um outro jeito quando nos relacionamos com elas? Pensamos também nas potências de vida, que as imagens produzidas por crianças nos convidam a vivenciar.
Brito e Neto (2012, p. 01) nos provocam ao dizer que, “a imagem fotográfica são um convite ao exercício do olhar [...] parece ser uma linha de fuga para outros modos de vida e existência, capazes de pensar, de sentir a alegria em sua potência vital, ou seja, de afirmar a vida”.
Dessa maneira, as crianças com as câmeras nas mãos produzem em nós outros sentidos, as crianças nos instigam a dar visibilidade para suas invenções.
Crianças com as câmeras nas mãos explorando o espaço, o solo, o quintal de suas vivências cotidianas, quintais que abriram caminhos para a invenção de mundo, para imagens feitas por crianças como possibilidade para engendrarmos na pesquisa e caminhar com crianças e suas infâncias.
Nos vídeos que as crianças nos enviaram, percebemos a atração que elas têm pelo céu, observamos que enquanto elas olham para o céu através das lentes das câmeras elas inventam...
Olha já vai ser outro dia, o sol está morrendo. No céu tem muitas luas, uma redonda, uma cortada e umas pequenas. Aquela nuvem é uma bolha de água, aquela outra é uma bolha de jacaré e essa nuvem é uma bolha de crocodilo. (Criança Assobio, 2021).
Nos parece que para as crianças o céu é achadouros de invenções, é alvo de brinquedo que incita a inventividade, podemos perceber isso através das inúmeras imagens que nos apresentam em suas produções imagéticas; o sol se pondo, um raio do sol mudando a cor do lugar, alguns formatos de nuvem, luas em diferentes fases, imagens de desenho no céu, imagens de céu...
As crianças fotografaram o céu tentando capturar as imagens formadas pelas nuvens que encontrou. Assim, como o fotógrafo de Manoel de Barros olhava para o céu quando fotografou “a nuvem de calça”, isso acontece muito com as crianças, encontraram imagens quando olharam para as nuvens e registram essas imagens que se desfazem com o vento e se torna outras imagens, outras coisas para elas.
Em suas inúmeras capturas de imagem com a câmera nas mãos, há também imagens em movimento, retorcidas, confusas, enviesadas, borradas, imagens que ganharam vidas com as crianças, com seus movimentos, com suas afetações. Imagens que nos convidaram a um deslocamento, que nos levam para um outro tempo, para lugares outros.
Imagem em festejos que dançam diante de nossos olhos. Segundo Chisté (2015, p. 40), são “imagens que nada dizem ou dizem muito, imagens incômodas, vertiginosas, enjoativas, desfocadas, embaçadas, vazias, escuras, cansativas, trêmulas, paradas, corridas, rápidas, lampejos de imagens, mas que nos convidam a pensar com elas, para além delas”. Imagens como intensidade para pensarmos na experiência com crianças e imagens, para pensarmos com as crianças e com as imagens.
Talvez seja isso que tentamos fazer, testamos possibilidades, tentamos compor com as imagens infantis como peças soltas, que se encaixam, se completam, ou que não se completam e não se encaixam. Somente imagens produzidas por crianças, que nos inquietam e que nos transportam para lugares onde habitam a infância, a criança que move a pesquisa, a experiência, a vida.
Pesquisar com crianças e com imagens é viver o tempo da experiência, da inventividade que invoca um outro tempo, um tempo infância, uma intensidade rizomática por todos os órgãos ou por corpos sem órgãos. Como diz Deleuze e Guattari (2015, p. 140), a infância “desloca-se do tempo, com o tempo, para reativar o desejo e fazer suas conexões proliferarem”.
Assim, olhando para as imagens que as crianças produzem nos parece que elas são movidas pelo tempo Aión, (Kohan, 2019) o tempo dos devires, do viver intensamente, do acontecimento, o tempo das crianças que exploram o espaço, inventam... Tempo em que as crianças escapam pelas brechas. Já o tempo khrónos é o tempo da progressão sequencial, sucessivo, tempo contado pelos ponteiros do relógio, pelo calendário. Um tempo que nos parece, não agradar as crianças.
Kohan (2019, p. 13), nos diz que khrónos [...] “não é o tempo da vida e muito menos o tempo da infância. Como afirma Heráclito, o tempo da infância é o aión que, segundo o dicionário, significa a intensidade do tempo na vida humana, um destino, uma duração”.
Pensamos assim, no tempo das invenções, no tempo como potência de pensamento, como força de vida.
Mãe deixa eu brincar só mais um pouquinho. Porque que agora não é hora de brincar? Ah! O tempo de brincar acabou? (Criança Guardador de Águas, 2021).
Pesquisar com crianças é esquecer o presente que existe no tempo, no tempo das efetivações, onde os ponteiros do relógio anunciam que o tempo acabou ou que um outro momento se inicia. Estar com as crianças exige-nos estar em outro tempo, onde as coisas acontecem fora do previsto.
As produções imagéticas das crianças nos apresentam um espaço sem fronteiras, onde elas criam seus mundos, suas histórias e se colocam nelas, demonstram que seu pensamento está carregado de potência.
As crianças expressam seus modos de ver o mundo por meio das histórias que contam e recontam... Nesse movimento uma criança nos apresenta a história de uma tartaruga que foi ao encontro de sua mãe e pegou um resfriado.
A tartaruga passou por aqui, aqui, aqui, aqui. Ela andou todo esse lugar para chegar na mãe dela. Aí, ela tomou um resfriado e quase morreu com o resfriado dela. E ainda tá no resfriado, andando aqui, aqui, aqui(Criança, Gota de Orvalho, 2021).
Assim como o tempo das intensidades, dos acontecimentos, as crianças não seguem regras lineares para contar uma história, começam ou terminam uma história pela parte que foram afetadas, iniciam suas falas pelo meio; algumas vezes os fins são os começos. Iniciam pelas partes que mais as marcaram, que as atravessaram. Quando as crianças produzem uma história, o quanto de afetos essa história tem para elas?
Nos parece que as produções das crianças soltam as amarras dos nossos pensamentos e nos provocam a pensar com imagens. Deleuze e Guattari (2010, p. 202), nos movimentam a pensar em um “libertar a vida lá onde ela é prisioneira”. São imagens de vida, de paisagem, de corpos, de crianças, corpos/imagens que se misturam, corpos que vibram, correm, imagens que pulsam vida.
As imagens dos corpos nessa pesquisa passam como flash: crianças correndo, criançando, crianças/imagens, criançascorpos, crianças com as câmeras nas mãos, corpos em movimentos, corpos sem órgãos6 que pulsam vidas.
Um corpo sem fronteira, de um corpo em experiência, um corpo sem órgãos, que encontra formas de nos fazer pensar: O que pode um corpo de criança em suas experiências, invenções e produções? Schérer (2009, p. 162) provoca-nos ao afirmar que, “A criança, e não somente em ideia, mas no nível mesmo de sua sensibilidade, de seu corpo, está aberta para o mundo”.
Desta forma, pensamos o corpo da criança como potência em suas experiências, como forma de amizade, sensibilidade, intensidade e pela possibilidade que o corpo é capaz.
As imagens de corpos como intensidade que move a vida, o encontro, o acontecimento a novidade, a amizade que inaugura mundos, Corpos que se misturavam com as imagens, corpos-vidas, imagens de vida, de paisagem, corpos de crianças, corpos/imagens que se misturam com cores, movimento, imagens... corpos que vibram, correm, imagens que pulsam vida.
As imagens dos corpos passam como flash: crianças correndo, paradas, brincando, criançando, crianças/imagens, imagens/arte, criançascorpos, crianças com as câmeras nas mãos, corpos em movimentos, corpos sem órgãos7 que pulsam vidas.
Quando falamos em corpo sem órgãos, trata-se de um corpo em intensidade, de decodificar o valor que o corpo deve ter ou seguir; de esvaziar-se da ideia de um corpo composto por tronco, cabeça, membros superiores e inferiores, um corpo com seus sentidos, com uma visão de desvaziamento da organização do corpo que, para Deleuze e Parnet (1998, p. 51), nos colocam a pensar o corpo como “[...] uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência.” Corpos-imagem, que causa amizade como potência de vida, de força de intensidade, Uma amizade que movimenta a vida, as experiências compartilhadas e o pensamento que, segundo Kohan (2007, p. 128), “só é possível quando a amizade está no início do encontro com o outro, no pensamento que os atravessará. ” Uma amizade como potência de força, que leva o pensamento a transgredir, de uma amizade como resistência, potência de vida.
Agamben (2009) nos faz pensar na amizade do acontecimento, na amizade como outras possibilidades de experiência, de encontro, experiência que nos convida para inaugurar outras possibilidades de vida.
E é nesse movimento de amizade com as coisas que a criança Achadouro de Infância, operando a câmera na beira de um lago, filmando o gramado, a água, os insetos, as árvores refletidas no lago e a natureza ao seu redor, onde ela sobe a lente da câmera pelo tronco corroído de uma árvore e é atraída por uma poça de água acumulada em uma fissura na forquilha da árvore. A criança aproxima o zoom e descobre um inseto se movendo na água; aproxima o zoom novamente.
Olha! Um rio de árvore. Tem uma formiga lá dentro. Eu não sabia que formiga sabia nadar. Vou resgatar ela, vai que ela morre. (Criança Achadouros da Infância, 2021).
Desse modo, podemos pensar como foi realizada a captura da formiga pela criança. O vídeo não nos permitiu ver a ação da criança, nesse momento a sua câmera descansava no chão, mas nos possibilitou sentir a ação. A sensação foi de enxergar com os ouvidos. Foi um momento que nos movimentou a pensar em outros modos de olhar as coisas.
Com as câmeras nas mãos as crianças nos convidam a experimentar a todo o momento, as câmeras potencializam suas experiências, possibilitam registrar os acontecimentos, eternizam os momentos, dá vida aos encontros da amizade pelas coisas no caminho, da sensibilidade pela vida e a atração pelas miudezas.
Experiências vivenciadas por crianças que nos movimentam a pensar nos muitos modos de ouvir os pássaros. A criança Achadouro de Infância com a câmera nas mãos observa seu pássaro na gaiola. Ela fotografa o pássaro e inicia uma pequena filmagem, ela conversa com o pássaro e nesse momento ele canta e esse canto do pássaro é um disparador para a criança movimentar o seu pensamento.
Mamãe todas as vezes que falo com o pássaro ele responde com “Piu”. Ele respondeu na língua dos pássaros, é só piu;, mas os pássaros têm muitas vozes. Olha para ele, olha, ele mexe o olhinho, balança o rabinho e sacode as peninhas quando fala. Só é uma língua, o piu, mas são muitas vozes, muitas...entende? (Criança Achadouros da Infância, 2021).
Essa experiência nos coloca ao encontro do ser do sensível, o que nos faz pensar nas experiências vivenciadas pelas crianças como potência como força, resistência.
Na obra Diferença e Repetição (Deleuze, 2006), Deleuze nos apresenta o ser do sensível como intensidade, como diferença na diferença, experiência como força em devir e possibilidade de pensamento. Deleuze (2006, p. 225) diz que, “É a diferença na intensidade, não a contrariedade na qualidade, que constitui o ser "do" sensível”. Assim, podemos dizer que a intensidade é o próprio ser do sensível e que a intensidade move a pesquisa, as crianças e suas experiências.
Uma intensidade que nos traz as imagens e filmagens das crianças como possibilidade de vermos e olharmos para as coisas que acontecem e nos acontecem na pesquisa por repetidas vezes em um movimento de inauguração, de atenção. Para Reyna (1996), esse instrumento permite levantar indícios sobre a questão observada, pois podemos fazer uma leitura mais aprofundada das imagens que estão sendo analisadas, pois esse modo nos permite ver quantas vezes for necessário, o que não acontece somente com a observação. De acordo com Mauad (2004), com a vídeo gravação pode-se observar pontos que não foram percebidos antes pela observação, ainda podemos ampliar e transformar as situações observadas, além de ampliar a prática do olhar.
A pesquisa se deu na experiência, no acontecimento vivenciado, no encontro entre pesquisadora, crianças, autores e as produções imagéticas, onde as coisas se desterritorializam e formam outras coisas, outros lugares, outros pensamentos, dando espaço às invenções e as repetições das crianças: vamos de novo; conta de novo; de novo, de novo, não como uma forma de falar da mesma coisa, do mesmo jeito, não como repetição do mesmo ou negação, mas sim como transgressão, onde está acontecendo a novidade.
Nos parece que todas as vezes que há repetição, há também inauguração, porque todo o ato de repetir já se introduz a diferença, como nos diz (Deleuze, 2018, p. 94) “ [...] a repetição é a condição histórica sob a qual alguma coisa de novo é efetivamente produzida”. Ainda segundo Deleuze (2020, p. 19), “Sob todos os aspectos, a repetição é a transgressão. Ela põe a lei em questão, denuncia seu caráter nominal ou geral em proveito de uma realidade mais profunda e mais artística”.
E é nesse movimento de atenção, de repetição, de escuta, que buscamos olhar para os materiais produzidos pelas crianças por diversas vezes e, cada vez que olhamos nos deparamos com novidades, encontramos coisas antes não percebidas, não vistas, coisas se inaugurando em nós e para nós.
As crianças provocam nossa escrita e compõe com suas produções, criam fluxos e linhas de fuga e aos poucos colocam-nos em uma aventura ao encontro com os mundos possíveis que elas constroem ao produzirem imagens mergulhadas em suas experiências.
Imagens e crianças em movimento que nos tiraram do lugar, que nos moveram a pensar suas produções, com olhar atento para os detalhes. Crianças e imagens que nos provocaram, nos instigaram a escrita de uma pesquisa acadêmica outra, uma escrita movida pelos respiros de crianças, pelas miudezas encontradas no caminho, de infâncias apontando o caminho a ser seguido, a ser trilhado, a ser desenhado no percurso.
somente considerações...
As crianças dessa escrita povoaram todos os lugares em que passearam filosofantes, habitando a pesquisas, formando uma teia, um rizoma que nos tirou da centralidade do nosso pensamento, crianças que: desenhou, filmou, fotografou, questionou, desvendou e provocou. Íntimo a intimidade, a proximidade com o criar com a ideia nova. Uma estética nova, fora das caixas, das formas.
Uma pesquisa com crianças que se fez em uma escrita acadêmica sensível e imagem com cor, som e vídeo. Falas de crianças que saltam da folha para as telas e das telas para o texto uma brincadeira de sentidos, com todos os sentidos corpóreos.
Um pensamento novo, um modo criança de ver o mundo. Uma experiência que vai para fora, por dentro, alinhavando, encontrando águas, formigas, tartarugas, pios, sois azuis, animais coloridos, naturezas e suas falas, suas múltiplas vozes, suas diversas cores. As crianças escreveram, desenharam, fotografaram, filmaram um mundo que se apresenta em rastros de vertigens poéticas, um jeito original a saber, a investigar, compreender, uma experiência com sensibilidade por dentro e para fora.
Produções imagéticas, do cotidiano, das linguagens e expressões que são iluminuras de quem ausculta com as imagens. Uma pesquisa transcendente, que teve de superar os desafios impostos por uma pandemia, pelo isolamento e se fez movimento, aproximação com as crianças, com as imagens, com as famílias. Imagens que nos levam a pensar na natureza que nos habitam, que nos provocam a necessidade de ouvir os sons que a natureza nos transmite.
Durante essa caminhada pensamos: será que temos o tempo, os saberes e a intensidade que as crianças nos mostram necessárias em seus viveres? Temos a sensibilidade das crianças nas suas relações e encontros? Somos tomadas por um tempo que nos consome e nos devora? Será que somos tomados por um saber que nos encarcera e uma intensidade que nos enfraquece? “Esses olhares essas afetações nos mobilizam, nos inquietam e nos provocam anos comportamos, nos revestimos de outras peles, de outros modos ou de outras naturezas que as crianças desconhecem ou nos apresentam nessa experiência8” (Mizusak, 2022).
Uma pesquisa que se movimenta com as crianças por meio de falas, imagens e filmagens que são disparadoras de pensamento. As crianças com seus olhares por meio das lentes das câmeras nas mãos inventam mundos, indicam caminhos e potencializam a pesquisa. Segundo Masschelein (2008, p. 37) “[...] caminhar significa: um deslocamento do olhar que propicia a experiência, não apenas como vivência passiva (de ser comandada), mas também como uma espécie de trilha na passagem pela estrada”.
Assim, na pesquisa com as crianças, mundos são inaugurados, as crianças inventam, brincam, criam e produzem imagens e filmagens incríveis. Imagens em movimento que nos apresentam, através da inventividade, que existe outro jeito de olhar as coisas, que é possível, sim, uma sombra falar com gato, que é possível gatos serem coloridos, chuvas amarelas, sóis azuis, rio de árvore, máquina de fazer bolinhas de gude rolarem. Que é possível uma criança ser tartaruga ou pássaro em todos os seus sentidos. Crianças em um devir-criança que inventa seus modos de mundo, sem fronteiras, sem limites, caminham, buscam começos, movimentam a pesquisa com suas falas e questionamentos. Crianças que mapeiam e cartografam a pesquisa com suas marcas, com seus fazeres, com suas produções, com seus viveres.
Na travessia, libertamos a infância que vive em nós, nos afetamos com o modo criança, vivenciamos a experiência no acontecimento, olhamos para as crianças com o estado de atenção e de alerta com que ela tem pelo mundo e que sente o mundo. As crianças engendram um caminhar constante, de começos e de inauguração a cada experiência vivenciada no trilhar do caminho, operamos com crianças através do seu olhar de mundo, em suas filmagens e fotografias, inventando, criando e compondo com suas experiências inusitadas.
São todas partes dos rastros que se formam no caminho. Marcas deixadas e cravadas de uma história vivenciada, experienciada. Marcas de uma travessia que conduz o caminhar, o novo olhar para as crianças e suas afetações.