O conhecimento escolariza-se quando são selecionados conteúdos, pertencentes a determinadas áreas do saber, em detrimento de outros, e cuja institucionalização educacional lhe confere um significado histórico-social, pois cada sociedade estabelece parâmetros para a integração dos indivíduos nas organizações formais. Subsequentemente, a escola valoriza o conhecimento quando este se torna sinónimo de currículo, de ensino e de aprendizagem, dando origem a um conhecimento organizado em disciplinas, face a outros conhecimentos, ligados a contextos específicos e orientados para uma educação como projeto amplo de conscientização. Desse modo, o debate neste artigo é centrado em três pontos: currículo e conhecimento; conhecimento escolar: transformação curricular e transformação didática; conhecimento disciplinarizado.
Currículo e conhecimento
A questão canónica dos Estudos Curriculares prende-se com esta questão, colocada ao longo de sucessivas gerações, depois de ter sido formulada por Spencer em 1859: Qual é o conhecimento valioso?
Se tal interrogação tem sido persistente (PINAR, 2007; MOREIRA; SILVA, 1997) no processo de construção do currículo em contextos formais, com ênfase na organização escolar, as respostas são necessariamente diferentes, sobretudo pela diversidade de abordagens teóricas em torno do conhecimento (PACHECO, 2014).
Desse modo, currículo é um itinerário de educação e formação, com uma identidade cultural, histórica e socialmente contextualizada, mesmo que as abordagens curriculares sejam muito diferentes no objeto que definem como conhecimento, mais ainda se forem tidas em conta quer as perspetivas estruturalistas e pós-estruturalistas, ou pós-modernas (DOSSE, 2007), quer as abordagens tradicionalistas e multiculturais (MOREIRA; CANDAU, 2008), intersetadas pela diferença (PARAÍSO, 2010) e pelo género (SALIH, 2012), entre outras noções.
Se na história da sua afirmação epistemológica, os Estudos Curriculares foram marcados pela racionalidade burocrática e técnica, em que "a instrução foi compreendida pelos primeiros teóricos do currículo e pelos que vieram posteriormente como Tyler e Taba, de uma forma altamente prescritiva" (YOUNG, 2013, p. 14), com o movimento da Reconceptualização (PINAR, 2007), ligado às teorias críticas e pós-críticas, o campo potencializou abordagens marcadas pelo social e pessoal, se bem que a pós-modernidade tenha contribuído para fazer do currículo um projeto de discussão inacabada e de uma contestação do conhecimento alicerçado em referenciais universais (BOGHOSSIAN, 2015). Por conseguinte, qualquer noção sobre currículo é sempre um modo concreto de referenciar uma dada abordagem do conhecimento, constituindo-se este numa asserção substantiva daquele, sendo a aprendizagem a face inclusa do conhecimento, como se observa na teorização de Bernstein (1996).
De um modo mais concreto, Young (2013, p. 13) lança a seguinte pergunta: Qual é o conhecimento importante que os alunos deveriam ser capazes de adquirir na escola?
Partindo do pressuposto de que qualquer teoria curricular deve ter por base a questão do conhecimento, Young (2010) estabelece linhas fortes de uma razoabilidade argumentativa em defesa de um conhecimento poderoso, isto é, especializado pelas fronteiras entre disciplinas e conteúdos que definem o objeto de construção do currículo em termos escolares. Respondendo à anterior questão, Young (2013, p. 13) afirma: "Se, enquanto especialistas em currículo, não podemos responder a esta pergunta, fica indefinido quem pode e é mais provável que tal indagação seja deixada para as decisões pragmáticas e ideológicas de administradores e políticos".
Se a indefinição se mantiver, tal posição fica refém de uma abordagem essencialmente epistemológica e aparentemente neutra, pretendendo-se que o currículo seja construído na base da prescrição e do controlo, dando origem a uma linguagem da aprendizagem, e não a uma linguagem da educação, contrariamente ao que defende Biesta (2013, p. 30), argumentando que "há uma necessidade de recuperar uma linguagem da educação para a educação", no contexto de uma era de aprendizagem individualista, cognitivista e tecnicista, e no seguimento do pensamento perfilhado por Adorno (2011) sobre educação e conscientização.
Por mais lógicas que existam quanto à contestação da essência do campo curricular, o conhecimento especializado, para Moreira (2013, p. 41), é um conhecimento científico e sobre este pode-se afirmar que, sendo uma "fonte central do conhecimento poderoso, constitui uma forma privilegiada de conhecimento e que a sua importância para a vida nas sociedades contemporâneas não levanta contestações", devendo, no entanto, existir uma discussão quer sobre as fronteiras entre os conhecimentos, quer sobre os limites de um conhecimento poderoso, que não pode ficar confinado a uma lógica performativa.
Se o currículo é um espaço de cultura em torno do conhecimento, que contribui de forma decisiva para corporizar as finalidades da escolarização (LOPES; MACEDO, 2011), qualquer abordagem baseada no conhecimento requer uma discussão sobre quem define esse conhecimento e qual o papel do professor nesse processo de construção, que jamais pode ficar dissociado das questões pessoais, como tem defendido Pinar (2015) em muitos dos seus escritos acerca da subjetivação do currículo.
No processo de construção do currículo, e reconhecendo-se que há muitos e diferentes autores neste processo, há a questão central do conhecimento que Levin (2008, p. 7) expressa numa interrogação - "O que deveria ser aprendido nas escolas?" - e que explora a partir não só da controvérsia que o conhecimento gera, mas também das suas implicações sociais. O conteúdo particular das disciplinas, do tal conhecimento especializado, ou poderoso, de Young (2010) é um dos temas de debate nas questões curriculares, devendo discutir-se quem está realmente envolvido nesse processo de definição do conhecimento escolar.
De acordo com a perspetiva de Young (2013), o processo de conversão do conhecimento em conhecimento escolar é algo que fica circunscrito a administradores e políticos, atores que, para Westbury (2008, p. 47), têm uma efetiva autoridade na construção do currículo formal como "uma resolução institucional de um problema".
Essa abordagem tem contribuído para uma prescrição formal do conhecimento a partir de decisões que expressam uma dada perspetiva curricular em torno do conhecimento, desde o racionalismo académico e eficiência social até ao humanismo e reconstrução social (EISNER; VALLANCE, 1974; PACHECO, 2014), acentuando consensos e divergências em torno das disciplinas, entendidas como estruturas de organização do conhecimento (SCHWAB, 1969), e do conhecimento escolar, com discussões que não são apenas epistemológicas, mas também políticas, económicas, ideológicas, estéticas e históricas (APPLE, 2013). Há, consequentemente, uma abrangência entre currículo, conhecimento e disciplinas escolares (MOREIRA; CANDAU, 2014), no quadro de uma cultura-mundo, tal como propõem Lipovetsky e Serroy (2010, p. 23), "mas isso não significa de modo algum cultura-mundo una nem unificada".
Conhecimento escolar: transformação curricular e transformação didática
Se o currículo for entendido como um projeto de educação em torno do conhecimento, no sentido de uma formação ampla, tal como é expresso pelo termo Bildung (PINAR, 2015; FREIRE, 2006; SUAREZ, 2005 1; BIESTA, 2013; ADORNO, 2011 [1971]), num processo que inclui a discussão da aprendizagem (BEDIN; FOURNIER, 2015; MEIRIEU, 1998; BRUNER, 1966), a sua relevância é traduzida por um código de seleção, organização e transformação do conhecimento (LUNDGREN, 1997; BERNSTEIN, 1971), estabelecendo a mediação entre as estruturas sociais e as estruturas educativas, como é o caso das escolas.
Assim, a relevância cultural do currículo é adquirida pelo modo como este se torna num projeto de conhecimento socialmente organizado, no quadro de uma problematização mais alargada de fatores que contribuem para a sua fundamentação, transformando-se qualquer proposta curricular numa representação específica de um universo do conhecimento, sendo impossível de cumprir a máxima de ensinar tudo a todos, como propôs Coménio (1985 [1657]). Por conseguinte, o currículo como código de seleção e organização do conhecimento exige um processo de transformação do conhecimento em conhecimento escolar, grosso modo, em disciplinas, que denominamos de processo de transformação curricular, em cuja caracterização situamos tanto as finalidades educativas, expressas nas políticas educativas, como as práticas de design curricular, assumidas no momento do planejamento.
É nesse processo que a adjetivação escolar adquire pleno sentido, tornando a escola num espaço geográfico de conhecimento e de produção de conflitos. Uma escola é como um mapa de diferentes espaços culturais determinados pelo peso curricular das disciplinas e seus conteúdos. Tal conceito tem recebido, na literatura educacional, o nome de transposição didática, ou seja, de mediação entre um conhecimento científico (erudito) e um conhecimento escolar (geralmente disciplinar), revelando sobretudo que o currículo é perspetivado numa dimensão instrucional, ligada ao processo de ensino/aprendizagem.
O conceito de transposição didática traduz, decerto, a divisão tradicional entre currículo e instrução - sendo a sua análise feita por diversos autores, por exemplo, Chevellard (1985), Forquin (1996), Lopes (1999), Saviani (2003) e Libâneo (2002) -, que não traduz quer as diversas abordagens teóricas curriculares, quer a relação entre currículo e didática (LIBÂNEO; ALVES, 2012; OLIVEIRA; PACHECO, 2013).
Trata-se de um processo de distanciação entre o conhecimento (savoir savant) e o conhecimento escolar (savoir enseigné), que estabelece a ligação entre um código científico (próprio de um campo epistemológico) e um código disciplinar (incluído num plano curricular em função de um percurso de escolarização). Porém, o savoir enseigné não é linear num processo de transformação curricular, dado que o conhecimento escolar é, numa primeira fase, "transformado" em disciplinas e programas e, numa segunda, é didaticamente planificado e "transformado" num currículo em ação, isto é, a transformação didática. É nesse sentido que o conhecimento tem uma dimensão curricular, sendo pensada tanto na sua organização formal, quanto nos aspetos processuais ligados ao ensino e à aprendizagem.
Independentemente dos termos a utilizar, a escola torna-se no centro de diversos conhecimentos e culturas escolares: de um lado, a cultura ligada aos campos epistemológicos e disciplinares e aos contextos sociais; do outro, a cultura referente às organizações educativas, aos professores e aos alunos. Desse modo, a transformação curricular é uma noção mais ampla que a de transposição didática, geralmente utilizada para designar o espaço de conversão da transformação curricular num processo de ensino/aprendizagem, capaz de tornar o currículo prescrito, ou escrito, (pela administração) e o currículo programado (pela escola) num projeto-em-ação.
A centralidade do currículo é o conhecimento. Um quadro concetual, dentro de parâmetros sociológicos, para a seleção, a organização e a avaliação do conhecimento nas instituições escolares é apresentado por Young (1971) no âmbito de uma metateoria ou de uma doutrina do controlo.
Tendo a sua origem num processo de seleção, fortemente controlado, o conhecimento escolar faz parte da cultura social ampla, sendo o resultado de diversas escolhas, já que "aquilo que é definido como sendo conhecimento escolar constitui uma seleção particular e arbitrária de um universo muito mais amplo de possibilidades" (SILVA, 1999, p. 79).
A esse propósito, Young (1971, p. 24) adverte que os sociólogos, e seria de acrescentar outros, incluindo os conceptualizadores de políticas educativas, "esqueceram-se, parafraseando-se Raymond Williams (1921-1988), que a educação não é um produto tal como carros e pão, mas uma seleção e organização de um conhecimento válido num tempo particular que envolve escolhas conscientes ou inconscientes".
Por isso, o que conta como conhecimento escolar é problemático, pois, no âmbito da estrutura chamada escola, todo o processo de transformação curricular é socialmente construído, inerente a questões de poder e formas de discutir os critérios de verdade epistemológicos, como é reconhecido por Kelly (1981, p. 41):
Tem havido muito desacordo, porém, sobre a questão do que se deva incluir no currículo sem precisar justificação. Na verdade, essa questão tem sido o ponto focal do debate educacional desde o início. Continua sendo questão altamente controversa pois não é, de modo algum, coisa simples identificar as áreas de conhecimento que têm valor intrínseco próprio, nem demonstrar que haja áreas de conhecimento desse tipo.
Porque as respostas não são convergentes sobre Qual é o conhecimento mais valioso? e porque "o currículo escolar é um dos diversos mecanismos pelos quais o conhecimento é socialmente distribuído" (YOUNG, 1971, p. 27), tais questionamentos, inscritos desde há muito nas agendas de discussão educacional, são essenciais para compreender que no processo de transformação curricular há diversos critérios a adotar, já que traduzir uma área de conhecimento numa disciplina escolar exige a ponderação de fatores de diversa ordem, relacionados com os contextos escolares, com a estrutura dos campos epistemológicos e com a estrutura psicológica dos aprendentes, sublinhando Bernstein (1971, p. 47):
O modo como uma sociedade seleciona, classifica, distribui, transmite e avalia o conhecimento educacional que considera ser público, reflete, simultaneamente, a distribuição do poder e os princípios do controlo social. Deste ponto de vista, as diferenças na organização, transmissão e avaliação do conhecimento educacional e as mudanças verificadas a estes níveis deveriam ser uma área de interesse sociológico fundamental.
A partir dos contributos teóricos de Chervel (1990), a validade do conhecimento escolar depende, acima de tudo, de uma matriz interativamente dinâmica entre o pessoal (quem aprende), o social (onde se situa a escola) e a cultura (a seiva que corre no interior da escola), ou seja, de uma matriz que é construída ao nível das fontes do conhecimento, tal como preconizou Tyler (1949) na escrita de uma das obras fundacionais do campo curricular. Porque "as escolas sempre têm estado relacionadas com o conhecimento" (HUEBNER, 1999 [1962], p. 44), a sua valorização exige a clarificação das fontes que o legitimam e que tornam possível tanto o processo de transformação curricular quanto o processo de transformação didática.
Sendo a escola uma instituição de socialização, o conhecimento pode ser visto como formação que enriquece a vida de um educando, fornecendo-lhe poder na exploração do mundo. Por isso, tem constituído preocupação dos investigadores analisar as diversas maneiras pelas quais o conhecimento e o poder estão associados, procurando-se "entender como a escola recebe, legitima ou rejeita as experiências e os saberes dos alunos/as e como estes/as se submetem ou resistem às determinações e normas escolares" (MOREIRA, 1999, p. 10).
Como todo e qualquer conhecimento, o conhecimento escolar é intersetado pela noção de cultura, querendo, então, significar não só a legitimação de "verdades" social e historicamente construídas, mas também a institucionalização, pela escola, de uma cultura letrada, dinamizada pelo Estado como um valor universal. Nesse caso, "o currículo é tanto um produtor quanto um produto de cultura" (GRUMET, 1999, p. 233), contribuindo para o debate em torno do conhecimento oficial veiculado pela escola, debate este que assume inevitavelmente contornos políticos e ideológicos.
Mas o currículo não representa unicamente a perspetiva oficial do conhecimento, sobretudo no lado mais substantivo da sua politização, estando também associado a um processo de interpretação, pois se compreendemos a cultura como sendo um sistema de significados, viável para atores situados num mesmo espaço e tempo, então é razoável que se pense no desenvolvimento do currículo como uma atividade hermenêutica (PINAR, 2015). Por isso, há posições divergentes sobre o que é o conhecimento escolar e sobre quais são os seus significados sociais, políticos e culturais, independentemente das estruturas escolares que o configuram, reconhecendo-se a existência de continuidades e ruturas entre a cultura dos alunos e a cultura escolar (FABRE, 2003) e questionando-se as disciplinas como estruturas para a sua organização.
Conhecimento disciplinarizado
Apesar da sua identidade própria, o Currículo e a Didática são campos de conhecimento que se intersetam (PACHECO; OLIVEIRA, 2013) e uma das suas relações mais fortes é precisamente com o conhecimento escolar, mais concretamente com os conteúdos. Nesse caso, o estudo predominante do Currículo tem sido a seleção, a organização e a transformação do conhecimento, ao passo que a Didática tem uma ligação específica com a organização do processo de ensino e aprendizagem. Citando-se a pergunta de Antonio Flavio Moreira (2005): Por que ter medo dos conteúdos?
Se o campo do Currículo é mais amplo do que o da Didática, a discussão em torno dos conteúdos, que são decididos no processo de transformação didática, aproxima-os de forma evidente, permitindo abordagens conjuntas que contribuem para a clarificação das aprendizagens em contextos que são sempre referenciados pelo tempo e pelo espaço, pois nenhum projeto de formação pode ser entendido fora das perspetivas diacrónica e sincrónica.
Constituindo a essência do conhecimento escolar, os conteúdos estabelecem fronteiras de aprendizagem e delimitam formas de conhecimento, tal como tem argumentado Young (2010, 2013, 2014). Se a escola tem espaço para o conhecimento poderoso, que é especializado e organizado em disciplinas, o que fazer com o conhecimento do quotidiano, circunscrito a contextos locais e a vozes e discursos quase sempre silenciados?
Em qualquer debate sobre o conhecimento escolar, e sobretudo sobre a pluralidade de conhecimentos que a escola tem de integrar no seu projeto de formação ampla, surge o conflito entre conhecimento orientado para a formação social e pessoal dos alunos, com ênfase na dimensão da educação para a cidadania, e conhecimento instrucional, circunscrito a uma dimensão cognitiva, de domínio de saberes específicos, organizados em disciplinas.
Em possíveis respostas, Veiga-Neto e Nogueira (2010, p. 82) perfilham um deslocamento dos conhecimentos para os saberes, explorando o conceito de sujeito da experiência, isto é, "um sujeito que faz do acontecimento uma experiência para si mesmo". Outra resposta é dada por Moreira (2013). Recuperando os conceitos de currículo tipo coleção e currículo integrado, propostos por Bernstein (1996), Moreira (2013, p. 43-44) sustenta:
Na escola, a opção por currículo do tipo coleção ou por currículo integrado envolve tensões referentes não apenas a decisões concernentes ao conhecimento a ser ensinado, mas também a questões de ordem e controle. A adoção de um currículo integrado demanda uma nova modalidade de ordem, que precisa, então, ser concebida, planejada e aceita. O status e o âmbito dos diferentes conhecimentos também se alteram, assim como se modificam as relações entre professores e alunos. Nesse panorama, conflitos mostram-se passíveis de eclodir.
E porque qualquer forma de exploração de conteúdos em contexto escolar exige um processo de seleção, organização e transformação do conhecimento, Gabriel e Ferreira (2012) respondem com o conceito de conhecimento disciplinarizado. Partindo da premissa de que os conceitos de conhecimento escolar e de disciplina escolar ainda são bons para pensar politicamente o campo académico e a democratização da escola brasileira, revelando por isso uma elevada potencialidade analítica, as autoras esclarecem:
Nesse movimento, as críticas a uma pretensa representação universal do conhecimento científico e ao papel da escola como transmissora desse conhecimento têm sido transferidas para os conceitos de disciplina escolar e de conhecimento escolar, que passam a ser identificados como momentos de discursos universalistas. Não é por acaso que, nesses discursos, o conhecimento disciplinarizado tende a se situar no exterior da fronteira que fixa os sentidos de outros conhecimentos - tais como "conhecimento popular", "conhecimento comunitário", "conhecimento do aluno", "conhecimento contextualizado" - como componentes dos currículos de uma escola democrática. (GABRIEL; FERREIRA, 2012, p. 235-236)
O significado curricular do conhecimento disciplinarizado não está na rejeição da disciplina e dos conteúdos, mas na valorização dos diferentes sentidos políticos e sociais que configuram a construção do conhecimento escolar. A propósito das disciplinas na configuração do conhecimento escolar, Charlot (2013, p. 110) escreve que "é rotulado como tradicional o professor que confere uma grande importância à disciplina" e que o debate entre o universal e o particular é algo ultrapassado, uma vez que "não há universal fora da diversidade, mas sim através da diversidade" (CHARLOT, 2013, p. 174).
Sendo a educação um processo de socialização, humanização e subjetivação, "o essencial é pensar a sociedade e a educação em seu devir" (ADORNO, 2011 , p. 12), seguindo de igual modo o potencial subversivo da educação crítica, como alerta o filósofo da Escola de Frankfurt: "É preciso romper com a educação enquanto mera apropriação do instrumental técnico e receituário para a eficiência, insistindo no aprendizado aberto à elaboração da história e ao contacto com o outro não-idêntico, o diferenciado" (ADORNO, 2011 [1971], p. 27).
A formação cultural (bildung), ainda para Adorno (2011, p. 141), é necessária para a reelaboração do passado, sobretudo pela autorreflexão e pelo esforço crítico, para que a barbárie jamais se volte a repetir, sendo a educação "a produção de uma consciência verdadeira".
Para que tal se verifique, é fundamental não só que o currículo valorize um conhecimento que é produzido em contextos diferenciados, respondendo a situações específicas e preparando os alunos para situações complexas que requerem a discussão acerca do modo como os referenciais universais são produzidos na seleção, organização e transformação do conhecimento, mas também que se produza uma mudança substantiva em quem representa a autoridade do conhecimento, pois os professores são "exageradamente professores de respostas e pouco professores de questionamentos" (CHARLOT, 2013, p. 178).
Conclusão
É através das diversas áreas ou disciplinas em que se encontra organizado que o conhecimento se torna num instrumento poderoso de experiência humana. Apesar das diferentes fontes ou lógicas que o fundamentam, o conhecimento escolar é um conhecimento educativo e a sua fundamentação é uma questão que se mantém permanentemente aberta. Partindo-se de uma relação forte entre currículo e conhecimento, este último, sobretudo na pluralidade de conhecimentos que a escola tem de integrar no seu projeto de formação ampla, é questionado como conhecimento orientado para a formação social e pessoal dos alunos, com ênfase na dimensão da educação para a cidadania, e conhecimento instrucional, circunscrito a uma dimensão cognitiva, de domínio de saberes específicos, organizados em disciplinas.
Se a questão Qual é o conhecimento mais valioso? não pode ter uma resposta definitiva, mais ainda quando o conhecimento é assumido como uma produção social, histórica e temporalmente contextualizada, a seleção, a organização e a transformação do conhecimento em conhecimento escolar são perspetivadas como um processo de transformação curricular e de transformação didática. Isso é algo que tem sido adotado na estruturação dos sistemas educativos, dando sentido às formas curriculares, ou seja, aos processos e práticas de inclusão do conhecimento em disciplinas e a sua materialização em programas que especificam conteúdos. É sobre esses conteúdos que têm recaído análises muito diferentes, não sendo consensual a determinação dos conteúdos a partir de um conhecimento poderoso, tornando-se útil, entre outros, a noção de conhecimento disciplinarizado.
No entanto, nos debates sobre conhecimento escolar, a responsabilidade é quase exclusivamente colocada nos especialistas e nos decisores administrativos, ignorando-se o papel crucial que o professor tem no contexto da sala de aula. E como na questão do conhecimento não há respostas fechadas, será interessante discuti-la a partir desta interrogação: O que poderia ser o currículo se o professor tivesse o poder da sua definição?