O Departamento de Educação Física do Estado de São Paulo (DEF-SP) foi instituído pelo Decreto n. 4.855, de 27 de janeiro de 1931 (SÃO PAULO, 1931a). Trata-se do primeiro órgão público estabelecido no Brasil, em nível estadual, para a gestão da educação física e do esporte. Sua criação, no entanto, não se resume tão somente às linhas do Decreto em questão ou ao momento político pelo qual passava o país com a ascensão de Getúlio Vargas (1882-1954) ao poder, estando relacionada, também, com uma série de debates, realizados em níveis estadual e nacional, sobre a necessidade de se organizar e controlar a prática esportiva no país. Tais debates contaram com a participação de cronistas esportivos e intelectuais brasileiros e ficaram registrados em matérias de jornais da época, artigos de revistas especializadas em educação física, livros e teses de médicos e professores (DALBEN; GÓIS JUNIOR, 2018; GÓIS JUNIOR; MELO; SOARES, 2015).
Em São Paulo, uma série de escritos do médico sanitarista Arthur Neiva (1880-1943),1 do educador Fernando de Azevedo (1894-1974),2 do professor Mário Sérgio Cardim (1888-1953)3 e do cronista Américo Rego Netto (1892-1974)4 alertava para a importância de se organizar um órgão especialmente dedicado ao controle da prática esportiva e à formação de profissionais especializados em educação física. Azevedo, Cardim e Américo Netto estiveram bastante próximos durante a organização do I Congresso Brasileiro de Educação Física, previsto para ocorrer em São Paulo em 1925. Com a realização do evento, pretendia-se reunir os principais temas debatidos na época, sendo uma sessão reservada especialmente para discutir a criação de repartições estaduais e nacionais de educação física. Coube a Neiva, no entanto, organizar as bases para a criação do DEF-SP ao assumir o cargo de Secretário do Interior em dezembro de 1930.
O DEF-SP foi objeto de pesquisa de dissertações e teses defendidas ao longo dos anos 2000. Mastrorosa (2003) investigou a interlocução estabelecida entre o DEF-SP, a Associação de Professores de Educação Física de São Paulo (Apef-SP) e a Escola Superior de Educação Física de São Paulo (Esef-SP) ao longo da década de 1930. Gnecco (2005) analisou o processo histórico de criação da Esef-SP e a sua integração à Universidade de São Paulo (USP) em 1969, tendo abordado o papel exercido pelo DEF-SP na criação da faculdade em 1934 e na sua gestão nos anos posteriores. Lourdes (2007) problematizou a função que o professor Antonio Boaventura da Silva (1915-2005) exerceu como funcionário do DEF-SP a partir de 1939. Dalben (2009) estudou as ações estabelecidas pelo DEF-SP na criação de um sistema escolar e extraescolar de educação ao ar livre, tendo conferido especial atenção a três instituições criadas depois de 1938: colônias de férias, escola ao ar livre e parques infantis em cidades do interior paulista. Cabe destacar ainda o artigo de Vimieiro-Gomes e Dalben (2011) sobre o papel desempenhado pelo DEF-SP no desenvolvimento da medicina esportiva em São Paulo nas décadas de 1930 e 1940.
As pesquisas fornecem importantes elementos para pensarmos a história da educação física em São Paulo, especialmente no que diz respeito às posições assumidas pelo DEF-SP. Em todas encontramos referências ao momento de sua criação, sendo as análises realizadas principalmente a partir do decreto assinado por Neiva em 1931. É necessário, no entanto, reforçar que a premissa de se orientar e dirigir a prática esportiva fez parte de um debate maior, travado no meio intelectual paulista ao longo das décadas de 1910 e 1920. Nesse sentido, a presente pesquisa teve por objetivos: analisar os debates no meio intelectual paulista que fomentaram a criação DEF-SP; identificar as posições assumidas pelos sujeitos que contribuíram para sua implantação; e examinar as iniciativas implementadas durante o seu primeiro ano de funcionamento.
O corpo documental da pesquisa abarcou as seguintes fontes:
correspondências e documentos datilografados preservados no Fundo Arthur Neiva do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV);
livros das Coleções Especiais e Obras Raras da Biblioteca Central Cesar Lattes da Universidade Estadual de Campinas (BC-Unicamp);
revistas especializadas em educação física conservadas nas Coleções Especiais da Biblioteca Prof. Asdrúbal Ferreira Batista, localizada na Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (FEF-Unicamp);
legislação referente ao DEF-SP existente no sítio eletrônico da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp);
anuários de ensino presentes no acervo no sítio eletrônico do Arquivo Público do Estado de São Paulo;
matérias de jornais de grande circulação consultadas na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional;
matérias do jornal O Estado de S. Paulo, consultadas por meio do seu acervo digital;
matérias dos jornais Folha da Manhã e Folha da Noite, consultadas no acervo digital da Folha de S.Paulo.
O levantamento das fontes se circunscreveu ao período entre 1925, quando foi aventada a realização de um congresso brasileiro de educação física com sede em São Paulo, e 1932, quando o DEF-SP completou um ano de suas atividades.
A TRAMA DE IDEIAS E REIVINDICAÇÕES ÀS VESPERAS DA CRIAÇÃO DO DEF-SP
O debate sobre a criação de um sistema nacional de repartições de educação física era anterior ao governo Vargas, já estando presente em 1925, no plano do I Congresso Brasileiro de Educação Física, evento que Américo Netto, Azevedo e Cardim pretendiam realizar em São Paulo. Apesar de o evento não ter ocorrido, devido às disputas entre sua comissão organizadora e a Federação Paulista de Atletismo (I CONGRESSO..., 1925), entre as sessões concebidas para compor seu programa oficial havia uma especialmente destinada ao debate de um “31) Plano para a organização oficial da educação física: a) departamento nacional de educação física, como organismo coordenador e diretor b) departamento estadual subordinado ao nacional” (GRANDIOSA..., 1925, p. 3).
A presença de Cardim na comissão organizadora do congresso era especialmente expressiva. Ainda em 1918, Cardim publicou relatório a respeito da viagem oficial que realizou à Argentina e ao Uruguai para levantar dados sobre como a educação física se organizava naqueles países. Após longa descrição, ele concluiu pela necessidade da criação de uma Escola Normal Superior de Educação Física (como então existente na Argentina) e de uma Inspetoria Estadual de Educação Física (como então existente no Uruguai), com comissões regionais sediadas em cidades do interior do estado paulista (CARDIM, 1918). A partir dos exemplos argentino e uruguaio, Cardim foi provavelmente um dos primeiros a propor a criação de um órgão público destinado à gestão da educação física em São Paulo e desenhar sua possível estrutura.5 Somava força, assim, com demais intelectuais que viriam a se posicionar a favor da intervenção do Estado no âmbito da educação física e dos esportes.
A organização da educação física em um departamento estadual, no entanto, não era o único tema que se pretendia debater no I Congresso Brasileiro de Educação Física. Segundo Azevedo (1960a, p. 326), “É duplo o objetivo, que visará o Congresso de acordo com o nosso pensamento: ‘revista do que se tem feito e programa do que se deve fazer’”. Entre os assuntos a serem abordados, estavam previstos “desde o problema da formação dos professores de educação física até o projeto do grande estádio nacional” (COMMENTANDO..., 1925, p. 6). No que se refere especificamente à questão da construção de um grande estádio na capital paulista para fomentar jogos dos campeonatos de futebol, essa era uma reivindicação já antiga entre os cronistas e dirigentes esportivos (SEVCENKO, 1992). De modo geral, é plausível analisar que a construção do estádio poderia afirmar simbolicamente a liderança esportiva de São Paulo sobre as demais cidades brasileiras, especialmente sobre o Rio de Janeiro. Desde a década de 1910, havia uma grande disputa esportiva entre as equipes de futebol do Rio de Janeiro e de São Paulo, não apenas dentro de campo. Clubes e federações cariocas e paulistas travaram diversos embates a respeito dos rumos dessa modalidade esportiva (GOMES; PINHEIRO, 2015). Conforme analisado por Franzini (2003, p. 22), os atritos no futebol podem “ser interpretados como reflexo de uma luta maior, travada no terreno ideológico por grupos empenhados em conquistar a hegemonia política e cultural no país”. No cenário de disputas que atravessaram duas décadas, os dirigentes esportivos e a classe intelectual e política de São Paulo começaram a se articular, no início da década de 1930, para colocar em ação medidas que pudessem alavancar a liderança paulista nos esportes, especialmente no futebol, como a criação de um estádio modelo (S. PAULO..., 1931).
A hegemonia esportiva, contudo, era apenas uma das faces das tensões pelos simbolismos que envolviam a consolidação de uma identidade nacional. Uma identidade paulista que se colocava como responsável pela liderança do país, com manifestações de ideias e comportamentos, que se arvoravam justamente na particularidade, na autodeterminação, na modernidade, na singularidade paulista, que, concomitantemente, absorvia os símbolos nacionais (bandeira, hino, etc.). Ao tencionar uma identidade nacional centrada no Rio de Janeiro, São Paulo tentava constituir modelos de desenvolvimento da saúde e educação públicas, estabelecendo um solo fértil para a institucionalização do esporte e da educação física. Exaltava-se, no período, a necessidade de a educação física ser uma prática comum a todas as idades, defendendo-se tanto a regulamentação do esporte praticado por jovens e adultos quanto a inserção da ginástica nas escolas paulistas.
Este era o caso de médicos e professores que reivindicavam a criação de espaços especialmente projetados para a educação física infantil no interior da malha urbana de São Paulo. Entre as décadas de 1910 e 1920, arquitetos e urbanistas formularam diversos planos para a criação de parques públicos na cidade de São Paulo, com áreas especialmente concebidas para a prática de exercícios físicos. A maior parte deles, no entanto, não saiu do papel (DALBEN, 2016). Para agravar a situação, muitas escolas não contavam com espaços abertos propícios para a educação física. Foi no sentido de solucionar essa questão, por exemplo, que Amadeu Mendes,6 diretor da Instrução Pública do Estado, encaminhou ofício à Câmara Municipal de São Paulo em 1927, solicitando a concessão de terreno para a construção do “Playground escolar ou o Parque Escolar de São Paulo para a Cultura Física da mocidade” (EDUCAÇÃO..., 1927, p. 6).7 Anos antes, em 1924, iniciativa semelhante havia sido tomada pelo então prefeito municipal ao enviar correspondência a Azevedo e Cardim, solicitando a elaboração de um projeto de “praça de jogos infantis” (AZEVEDO, 1960b).
O tema das “praças e jardins de jogos para crianças” seria retomado pelos dois professores no ano seguinte, na ocasião da organização do I Congresso Brasileiro de Educação Física, sendo reservada uma sessão especialmente destinada ao seu debate (GRANDIOSA..., 1925). Durante 1929, o urbanista Luiz Ignácio de Anhaia Mello (1891-1974) também se ocupou do assunto em duas palestras que proferiu sobre os playgrounds, sugerindo sua construção em São Paulo (DALBEN, 2016; TIMÓTEO, 2008).
De modo geral, apesar das denominações distintas, as intenções partiam dos pressupostos de se criarem espaços propícios para que as crianças se recreassem ao ar livre, sob vigilância e supervisão de médicos e professores, transformando os divertimentos infantis ora espontâneos e tradicionais, realizados nas ruas e descampados da cidade, em projetos médico-pedagógicos, ou então de se criarem espaços que oferecessem as condições necessárias para o ensino da ginástica às crianças matriculadas no sistema de ensino público.
Apesar de o I Congresso Brasileiro de Educação Física não ter sido realizado, sua organização representou um momento de colaboração entre os profissionais que se dedicavam à educação física naquele momento em São Paulo e de afirmação de suas redes de sociabilidade. É possível afirmar que, nas sessões previstas para o evento, se congregavam os principais temas debatidos pela classe intelectual paulista sobre a educação física e os esportes. Embora não compusesse a comissão responsável pela organização do evento, Neiva havia se dedicado ao tema do esporte em uma série de artigos publicados em 1922 no jornal O Estado de S. Paulo (NEIVA, 1929). De modo geral, médicos, professores e críticos esportivos entoavam o coro em defesa da intervenção estatal no campo dos esportes e da educação física para que fossem concretizadas as demandas levantadas ao longo das décadas de 1910 e 1920 (DALBEN; GÓIS JUNIOR, 2018).
Em concomitância, na passagem para a década de 1930, ganhavam força, no campo político, as disputas que culminaram no golpe de Estado promovido por Getúlio Vargas (1882-1954), responsável por nomear João Alberto Lins de Barros (1897-1955) como interventor federal no estado de São Paulo no final de 1930. Em dezembro, o então interventor paulista convidou Neiva para assumir a Secretaria do Interior do Estado de São Paulo. A gestão de Neiva seria bastante curta, sendo transferido para a Bahia, em fevereiro de 1931, para assumir o cargo de interventor federal. Sua rápida passagem pela Secretaria do Interior do Estado de São Paulo, no entanto, foi suficiente para marcar sua participação nos debates referentes à educação física e ao esporte paulistas, com a criação do DEF-SP.
A CRIAÇÃO DO DEF-SP: ENTRE INCENTIVOS, RESTRIÇÕES E NEGOCIAÇÕES
O dr. Neiva ficou convencido de que a educação física carecia ser racionalmente orientada, dirigida e fiscalizada em que, ainda, só ao Governo poderiam, deveriam caber essa orientação, direção e fiscalização - que uma das principais providências, ao ser nomeado Secretário do Interior do primeiro Governo revolucionário de São Paulo, foi formar uma comissão encarregada de estudar as bases de uma repartição do Estado, exclusiva e especializada para tratar da educação física. (HISTÓRICO..., 1936, p. 40)
No final de 1930, Neiva organizou a comissão de estudos encarregada de formular as bases do DEF-SP (QUE SERIA..., 1931). A comissão foi composta por: Américo R. Netto; Francisco Figueira de Mello, médico e então chefe da Inspetoria de Educação Sanitária e dos Centros de Saúde de São Paulo; Benjamin Alves Ribeiro, médico, professor de higiene do trabalho e inspetor técnico de educação física na Diretoria de Instrução Pública do Estado de São Paulo; Erasmo de Assumpção Junior, jogador de tênis; Jorge Martins Rodrigues, automobilista; Manuel Carlos Aranha, jogador de tênis; e Antonio Smith Bayma, engenheiro e jogador de tênis (ACERTADA..., 1931). De modo geral, os integrantes da comissão eram esportistas membros de famílias da elite econômica e política paulistana, médicos que desempenhavam funções de destaque em órgãos públicos e cronistas esportivos. Interessante observar a ausência de possíveis educadores e normalistas interessados na educação física infantil. A comissão concluiu os estudos em 10 de janeiro de 1931 e apresentou a proposta de decreto para a criação do DEF-SP (BAYMA et al., 1931).
No dia 27 de janeiro, Neiva assinou o Decreto n. 4.855, com algumas mudanças em relação à proposta formulada pela comissão. Entre as alterações, destaca-se o fato de Neiva ter acrescentado como consideração preliminar que os esportes “aperfeiçoam a raça, combatem o alcoolismo, habituam a disciplina e ao espirito de renuncia pela causa comum” (SÃO PAULO, 1931a). Em outros escritos, Neiva expressou que o esporte já vinha sendo utilizado no Chile no combate ao alcoolismo (NEIVA, 1931) e que nos Estados Unidos uma campanha obtivera sucesso ao adotar o esporte como auxiliar, “o mais decidido inimigo do álcool” (NEIVA, 1929, p. 62). A argumentação se alinhava às campanhas antialcoólicas promovidas por associações civis de caráter higienista e eugenista ao longo da década de 1920. O combate ao consumo de bebidas alcoólicas era, de fato, uma das principais bandeiras da eugenia preventiva8 no Brasil, uma vez que o alcoolismo era interpretado como um “veneno racial”, uma das grandes causas da degeneração da “raça brasileira”. Neiva acrescentou também ao decreto a consideração de que “o esporte atende aos mais altos interesses eugênicos” (SÃO PAULO, 1931a). O esporte seria pensado, nesse sentido, como uma forma de educação moral que impediria a propagação de vícios e males que supostamente poderiam prejudicar a hereditariedade da população brasileira. Para Neiva, a criação do DEF-SP atendia a um projeto de moralização dos costumes da população quanto aos seus divertimentos e estava alinhada aos debates estabelecidos pelo movimento eugenista, desde o final da década de 1910, em defesa das supostas virtudes morais da prática esportiva. Ao comentar sobre a criação do DEF-SP, em correspondência trocada com Benedito Augusto de Freitas Montenegro (1888-1979),9 então secretário da Educação e da Saúde Pública,10 Neiva (1931, p. 6) expôs de maneira detalhada sua visão do esporte enquanto fator eugênico, afirmando que:
Devemos dar a mentalidade da mulher brasileira a consciência de que no companheiro que vai escolher, deve querer além dos dotes morais e intelectuais, um de importância decisiva: que filhos o futuro marido lhe dará, isto é, a mulher deverá ter horror a homens de faces macilentas, tipos de 1830, capazes de dizer versos e orações famosas, mas também procriadores de seres informes que vão atentar contra o futuro da própria raça.
A argumentação coincide com os ideais esportivos defendidos por Neiva nos artigos que havia publicado em 1922 no jornal O Estado de S. Paulo. A elaboração dos artigos foi motivada em resposta à polêmica iniciada por Carlos Sussekind de Mendonça (1899-1968),11 ensaísta que criticou a prática esportiva por supostamente deseducar os mais jovens ao afastá-los dos livros. Seu principal opositor em São Paulo foi justamente Neiva, que argumentava que o esporte deveria se tornar um elemento a ser cultuado pela elite dirigente, por conta de sua presumida capacidade de formar personalidades fortes, viris e disciplinadas (NEIVA, 1929). Na citação destacada anteriormente, Neiva retomou a defesa do esporte, não mais ironizando a tese de Sussekind de Mendonça (1921) de que a prática esportiva afastava a juventude da formação intelectual, mas colocando aqueles que não aderiam à cultura esportiva como antiquados e responsáveis pela degeneração da raça por não desenvolverem fisicamente seus corpos. Muito embora não chegasse a expressar as bandeiras da eugenia negativa, ele advogava pela criação entre as mulheres do gosto por parceiros de aparência física atlética para o desenvolvimento de uma prole geneticamente selecionada. Tratava-se de uma estratégia adotada pelos intelectuais ligados à eugenia preventiva para promover mudanças mais profundas no âmbito da cultura, ou seja, ensinar ao desejo humano o que desejar em benefício de uma visão particular de mundo. A interpretação de Neiva sobre o artigo que estabelecia como função do DEF-SP “incentivar a educação física feminina” (SÃO PAULO, 1931a) provavelmente caminhava no mesmo sentido, ou seja, da formação de corpos femininos considerados aptos a gerarem filhos “geneticamente fortes”.12 Na correspondência com Benedito Montenegro, Neiva comentou que considerava indispensável que o DEF-SP atuasse no sentido de “levar o amor ao esporte sobretudo aos meios femininos” e acrescentou que
O Sr. poderá encontrar um grande exemplo no que fez, em poucos anos, na Alemanha, onde a mulher tomou um interesse, sem precedentes, pelo esporte e quase que estou certo ser a nação que, nesse particular, está mais adiantada de todo mundo. (NEIVA, 1931, p. 6)
Entre as alterações realizadas por Neiva na proposta formulada pela comissão de estudos, alguns artigos foram suprimidos, como o que se referia a “velar pela moralização dos torneios esportivos, intervindo, sempre que necessário, junto aos seus promotores e responsáveis” (BAYMA et al., 1931). A retirada do artigo esteve associada aos conflitos que poderiam gerar a intervenção direta de uma nova estrutura administrativa sobre as entidades esportivas privadas, as quais eram, até então, as únicas responsáveis por fomentar a prática esportiva em São Paulo. Neiva também suprimiu os dizeres que permitiriam ao DEF-SP liberar o funcionamento apenas de agremiações e federações esportivas que preenchessem um mínimo de exigências técnicas, assim como as multas inicialmente previstas para aqueles que não cumprissem as suas determinações. Também ficou de fora do decreto a elevação das taxas cobradas sobre a venda de entradas das competições esportivas, pensada inicialmente como uma forma de custear os trabalhos do DEF-SP (BAYMA et al., 1931). As alterações na proposta inicial revelam a preocupação de não impor uma ação repressora e evitar confrontos com federações e clubes (ANNIVERSÁRIO..., 1932). Rodrigues, um dos nomes que compuseram a comissão de estudos encarregada de formular o projeto para a criação do DEF-SP, afirmou que as relações entre o DEF-SP e as entidades esportivas seria um ponto delicado, tendo que ser pensada com diplomacia para que conflitos não se iniciassem (QUE SERIA..., 1931). Ao se recordar do momento de criação do DEF-SP, Neiva (1931, p. 6) afirmou que diminuiu os ordenados previstos inicialmente para subsidiar as ações da repartição estadual “pelo receio da grita que os amigos temiam iria a levantar nos meios esportivos, coisa que estou convencido até hoje eles exageraram”.
AS PRIMEIRAS AÇÕES DO DEF-SP: ORIENTAR, DIRIGIR E FISCALIZAR
Logo após a criação do DEF-SP, foram nomeados Bayma como seu diretor, Ribeiro como inspetor técnico e Américo Netto como secretário geral (NOMEAÇÕES..., 1931). Meses depois, o médico e cronista esportivo Arne Ragnar Enge13 se juntou ao grupo na função de inspetor técnico (INSPECTOR..., 1931). Para que o DEF-SP conseguisse implementar os projetos estabelecidos no seu decreto de criação, foi necessário, no entanto, estreitar suas relações com as entidades esportivas existentes em São Paulo. Os temores dos colegas de Neiva não eram de todo exagerados. Na imprensa, além das manifestações de congratulações e aplausos à iniciativa do estado, também foram veiculados alguns alardes que se levantaram entre médicos e dirigentes esportivos (ACERTADA..., 1931; PROBLEMA..., 1931; PELO REVIGORAMENTO..., 1931; AMARAL, 1931a, 1931b; SILVEIRA, 1931).
Um dos maiores receios foi justamente a possível ingerência que a nova repartição estadual poderia promover sobre as atividades desenvolvidas pelos clubes e federações. As declarações mais contundentes vieram de Elpídio de Paiva Azevedo, diretor da entidade esportiva de maior representatividade em São Paulo, a Associação Paulista de Esportes Atléticos (Apea) (NÃO SE DEVE..., 1931). Ao que tudo indica, o receio advinha principalmente do fato de não haver nenhum representante da Apea entre os nomeados para compor o quadro de funcionários do DEF-SP e por conta de disputas a respeito do nome de Américo Netto (FABBRI, 1931a, 1931b, 1931c). Os cronistas esportivos logo se articularam na defesa do DEF-SP e Bayma não tardou em realizar uma visita diplomática à Apea assim que assumiu a direção do Departamento (PRESIDENTE..., 1931).
Junto às estruturas do DEF-SP, estava prevista a formação de comissões de ginástica, escotismo, natação e polo aquático, remo, futebol, tênis e golfe, esgrima e tiro, hipismo, basquete e voleibol, pugilismo e luta, basebol e esportes mecânicos (SÃO PAULO, 1931a). As comissões poderiam agir justamente como um ponto de intersecção e comunicação entre o DEF-SP e as diferentes federações esportivas existentes em São Paulo naquele momento. Das comissões previstas, a primeira a ser criada foi a de atletismo, composta por Max de Barros Erhart,14 Plínio Botelho do Amaral e Mário Teixeira de Freitas, todos nomes ligados à Federação Paulista de Atletismo (FPA) (DEPARTAMENTO..., 1931a; INSTALOU-SE..., 1931).
A maior aproximação entre o DEF-SP e as federações esportivas começaria a se estabelecer na ocasião de um aumento dos impostos municipais que incidiam sobre os ingressos das partidas esportivas. Naquele momento, a Apea solicitou a intervenção do DEF-SP para reverter o aumento dos impostos municipais e reduzir o valor dos alvarás de licença cobrados pela polícia para o funcionamento de espaços esportivos (DR. ANTONIO..., 1931). Uma reunião foi organizada com a Apea e demais federações esportivas paulistas15 para discutir a questão. Na ocasião, o diretor do novo departamento estadual aproveitou para afirmar que “não era intenção do governo intervir repentinamente e modo minucioso na organização e no funcionamento das coletividades esportivas” (COGITANDO..., 1931, p. 8). Na imprensa foi noticiado que o DEF-SP estudava formas de reverter os impostos municipais sobre os divertimentos públicos,16 então destinados à assistência hospitalar, para a construção de um estádio modelo e para a organização de uma escola superior de educação física (DEPARTAMENTO..., 1931f). O estudo realizado pelo DEF-SP se estabeleceu no “sentido de obter redução dos impostos que oneram a educação física, e também conseguir unificá-los sob uma única entidade taxadora, que seria o Estado” (DEPARTAMENTO..., 1932, p. 5). A intenção do DEF-SP em unificar os impostos e revertê-los da administração municipal para a estadual era justamente redirecioná-los em seu proveito próprio, para que conseguisse os recursos financeiros necessários para custear seus trabalhos (QUESTÃO..., 1931).
O estabelecimento de multas às entidades esportivas que não cumprissem as determinações do DEF-SP e o aumento de impostos cobrados aos clubes e federações, como proposto inicialmente pela comissão de estudos, por certo gerariam uma repercussão bastante negativa. Em oposição, a criação de comissões esportivas e a tentativa de desonerar parte dos impostos que incidiam sobre os clubes e federações poderiam proporcionar a consolidação da união pretendida entre o Estado e as entidades esportivas, sem que houvesse grandes embates, afirmando o DEF-SP como a principal entidade reguladora do esporte em São Paulo. Ao tentar reverter os impostos para a administração estadual, o DEF-SP estabelecia também uma estratégia para obter os recursos financeiros para garantir seu pleno funcionamento. A construção de um estádio modelo e a abertura de uma escola superior de educação física com os impostos pagos constituíam importantes promessas do DEF-SP para convencer os dirigentes esportivos. Outra medida tomada para beneficiar os clubes e federações foi o contato estabelecido por Bayma com a Contadoria Central Ferroviária na tentativa de reduzir o valor das passagens dos esportistas que precisassem se deslocar para participar de campeonatos (DEPARTAMENTO..., 1931c; É MUITO..., 1931).
No entanto, nenhuma das iniciativas se efetivou em 1931. Neiva aventou a hipótese de taxar os bilhetes de aposta das corridas de cavalo para custear os trabalhos do DEF-SP, mas reconhecia a dificuldade de implementação do novo imposto devido aos “privilégios especiais que os prados de corrida tinham em São Paulo” (NEIVA, 1931, p. 5). Durante a direção de Antônio de Almeida Prado (1889-1962)17 frente à Secretaria da Educação e da Saúde Pública, foi cogitado ainda o aumento de 2% no imposto das passagens de trem para subsidiar o DEF-SP (DEPARTAMENTO..., 1932). Essas propostas também não se efetivaram e a falta de recursos financeiros acabou sendo um dos principais entraves para a concretização plena dos planos estabelecidos para o DEF-SP no seu primeiro ano de funcionamento (ANNIVERSARIO..., 1932; DEPARTAMENTO..., 1932, HISTORIANDO..., 1931).
Ainda que limitado ao seu baixo orçamento, o DEF-SP não deixou de colocar em prática algumas ações e, em maio de 1931, deu início ao recenseamento esportivo, sendo enviados cerca de 400 questionários às associações esportivas e prefeituras de todo o estado, com o objetivo de conhecer de forma pormenorizada a situação de cada clube (DEPARTAMENTO..., 1931b, 1931d; INQUERITOS..., 1931; RECENSEAMENTO..., 1931). As questões eram bastante minuciosas e abordavam diversos aspectos dos clubes, como suas estruturas físicas, modalidades esportivas praticadas, número de sócios, profissionais contratados e impostos pagos. Com o recenseamento, o DEF-SP, ao mesmo tempo que requisitava informações sobre os clubes, se colocava próximo dos mesmos, estabelecendo-se como uma entidade que poderia trazer benefícios ao trabalho desenvolvido no interior de cada um. Foi a partir das informações dos 131 clubes que responderam aos questionários, por exemplo, que o DEF-SP elaborou o estudo que solicitava a redução e a unificação dos impostos pagos pelos clubes e federações (RECENSEAMENTO..., 1931; HISTÓRICO..., 1936).
Para Neiva, entre as questões que o DEF-SP deveria se ocupar logo de início, encontrava-se “a realização de um grande estádio e procurar a todo o transe desenvolver o atletismo segundo normas modernas, sem matar o futebol que é jogado em todo o país e o único esporte que atrai a massa criando o indispensável ambiente para pugnas melhores” (1931, p. 1). Como já abordamos, a construção de um estádio modelo era uma das grandes reivindicações dos cronistas esportivos, muitos deles dirigentes de clubes e federações. Conforme analisado por Sevcenko (1992), a paixão pelo futebol cresceu rápido em São Paulo, não havendo naquele momento infraestrutura e serviços urbanos capazes de garantir sua plena vazão e desenvolvimento. Diversas partidas recebiam um número de torcedores acima do que os espaços até então existentes poderiam comportar. Os ânimos acirrados das torcidas rivais comprimidas em estreitos espaços e com instalações precárias eram, muitas vezes, refreados pela ação policial. Neiva (1931, p. 5) inquietava-se com a possibilidade de se chegar ao ponto de “se disputar o futebol protegendo os jogadores do público por três fileiras de arame farpado”. Outra questão divulgada na imprensa e para a qual se requisitava a intervenção do DEF-SP eram as brigas entre os jogadores das equipes adversárias que disputavam as partidas de futebol (SÓ O DEPARTAMENTO..., 1931). Nas ações a serem tomadas pelo DEF-SP, Neiva (1931, p. 2) considerava imprescindível que não se “matasse” o futebol simplesmente, tendo em vista que “sem esse jogo [...] nunca teremos ambiente para selecionar corpos de atletas”. Ademais, era o futebol, pelo seu poder de atrair a atenção da população, a modalidade que garantia maior retorno financeiro aos clubes e federações: “Como quase tudo depende de dinheiro, só o futebol poderá dar recursos para as sociedades manterem corpos de atletas, guarnições de remadores, turmas de nadadores, etc.” (NEIVA, 1931, p. 2). A sua esperança era de que o DEF-SP encontrasse meios adequados para que os jogos de futebol não se transformassem em “rudes pelejas em que a polícia terá que intervir cada vez em maior número e mais valentemente” (NEIVA, 1931, p. 5). Como solução, Neiva considerava necessários a construção de um estádio e o desenvolvimento do atletismo, apreciado por ele como uma das formas mais adequadas de preparação corporal, a exemplo da tradição anglo-americana de educação física.
Em julho de 1931, o DEF-SP apresentou um plano para a construção de um grande estádio no bairro do Pacaembu, em terreno doado ao município pela Companhia City (DEPARTAMENTO..., 1931e). Apesar de a construção do estádio não ter se efetivado naquele momento, o DEF-SP procurou incorporar à sua biblioteca material bibliográfico a respeito do tema e elaborou um plano de padronização dos campos de futebol existentes em São Paulo, ou seja, de uniformização de suas medidas. O plano apresentava, ainda, propostas para implementar ao redor dos campos “pistas sumárias de atletismo, a fim de favorecer a expansão dos esportes atléticos” (HISTÓRICO..., 1936, p. 40). Outra ação sugerida por Neiva (1931, p. 4) era de o DEF-SP encontrar formas de não permitir “a prática esportiva em nenhum lugar público e particular, sem prévio consentimento da repartição oficial”, como dizia ocorrer no Chile. Esta poderia ser também uma medida para criar o “ambiente para pugnas melhores” que Neiva se referia ao comentar sobre o futebol.
Se, por um lado, a prática esportiva era considerada uma forma de desenvolver corpos saudáveis, de personalidade forte e moral virtuosa, tornava-se imperativo para os intelectuais paulistas enfrentar o seu outro lado, associado à improvisação, ao vício e ao descontrole. Ao que tudo indica, a medida de proibir a prática esportiva em lugares que não tivessem o aval do DEF-SP consistia em uma forma de apaziguar “as queixas, reclamações e apelos do público e da redação [dos jornais] contra os jogos improvisados de futebol, promovidos dentre os operários, pelas ruas e praças da cidade”, conforme relatado por Sevcenko (1992, p. 61). Nesse sentido, podemos compreender, de forma mais ampla, que ao regulamentar os espaços da prática esportiva, o DEF-SP pretendia também combater o esporte informal, caracterizado, nas colunas policiais, como indisciplinado e fonte de perturbação da ordem pública e, no discurso eugenista, como moralmente pernicioso e uma extrapolação dos limites da fadiga física.
A medida aventada por Neiva poderia oferecer condições práticas para estimular a atividade esportiva considerada eugênica e coibir as demais, mantendo sob a vista dos inspetores técnicos do DEF-SP o que ocorria no cenário esportivo estadual. Ao procurar organizar os esportes praticados nos clubes e federações, a recém-criada repartição estadual conferia um status de oficial a essa prática, colocando as demais sob suspeita. Cabe ressaltar que suas ações nos clubes paulistas tinham por objetivo tanto orientar a construção dos espaços esportivos, promovendo a criação de pistas de atletismo para o treinamento físico, quanto implementar um controle médico sobre o corpo dos atletas, de modo a configurar formas específicas ao fenômeno esportivo (VIMIEIRO-GOMES; DALBEN, 2011).
Desse modo, percebe-se que não era qualquer prática esportiva que seria considerada pelo DEF-SP uma atividade benéfica ao corpo e à formação moral. Para que o esporte apresentasse o caráter eugênico requisitado, tornava-se necessário, antes de mais nada, orientá-lo segundo padrões condizentes com os parâmetros médico-higienistas. Como analisado por Gambeta (2015, p. 414), “os jovens que se apropriam do futebol nos campos informais visavam à diversão e não estavam sujeitos ao treinamento nem as orientações de qualquer entidade”. A regulamentação do esporte no estado visava, assim, à diminuição das práticas indiscriminadas das atividades “esportivas nas várzeas e terrenos baldios da cidade, fazendo com que as pessoas utilizassem lugares ‘apropriados’ a esta prática” (MASTROROSA, 2003, p. 32): o clube e o estádio providos de pistas de atletismo, sob supervisão médica e de um professor da educação física. O que estava em jogo era a criação de estratégias para se definir uma educação física e moral baseada nos esportes, por meio da regulamentação dos espaços onde ocorriam as práticas e os treinos esportivos.
Entre as reivindicações que o DEF-SP procurava atender, encontravam-se tanto a dos cronistas esportivos, pela construção do estádio, quanto a de médicos e professores pela criação de espaços ao ar livre para a prática de exercícios físicos pela população infantil. É nesse sentido que o decreto assinado por Neiva trazia como atribuição do DEF-SP “estabelecer e dirigir campos de recreio e jogos” (BAYMA et al., 1931; SÃO PAULO, 1931a). É importante observar que o primeiro playground paulistano foi inaugurado em dezembro de 1930, pelo então prefeito Anhaia Mello (INAUGURA-SE..., 1930; PRIMEIRO..., 1930), mesmo momento que se encontrava reunida a comissão de estudos para a criação do DEF-SP. Ao longo de 1931, o DEF-SP realizou:
Seleção de locais para a instalação de parques infantis em vários pontos da capital, de preferência nos bairros operários de maior população [...] Propaganda desenvolvida junto as municipalidades do interior de São Paulo, no sentido de levá-las a instalar em suas sedes parques infantis, com aparelhamento econômico indicado pelo Departamento, ou, então, a ir reservando, desde já, áreas adequadas para a futura instalação de tais parques. (DEPARTAMENTO..., 1932, p. 5; ANNIVERSARIO..., 1932, p. 12)
Apesar de o decreto de criação do DEF-SP prever como de sua responsabilidade a direção de espaços reservados ao recreio e aos jogos, sua atuação se deu no sentido de propagar a ideia dos parques infantis às cidades do interior e selecionar locais na capital para a construção de novas unidades. Em março de 1931, o prefeito Anhaia Mello passou a administração do primeiro playground, então instalado no interior do Parque Dom Pedro II, para a sociedade filantrópica Cruzada Pró-Infância (MELHOR..., 1931). A sua atuação se consolidaria anos mais tarde, a partir de 1939, quando se tornou o principal órgão de difusão dos parques infantis para cidades do interior do estado de São Paulo (KUHLMANN JR., 2017; FONSECA; FERREIRA; PRANDI, 2015; DALBEN, 2009).
É necessário destacar que, entre as atribuições previstas no decreto de criação do DEF-SP, praticamente nenhuma versava sobre a educação física no âmbito escolar. Apenas o oitavo artigo instituía que periodicamente poderia “nomear uma comissão para verificar a orientação dos exercícios de educação física nas escolas públicas e particulares, dando parecer a respeito” (SÃO PAULO, 1931a). O trabalho realizado em 1931, no entanto, se configurou no formato de um inquérito, com envio de questionários às 51 escolas públicas existentes na capital paulista, versando sobre a possível existência de locais específicos para as aulas de ginástica nos prédios escolares e a sua frequência semanal (RIBEIRO; DETTHOW, 1932). Benjamin Alves Ribeiro18 e Fritjof Detthow,19 nomes ligados à Diretoria de Instrução Pública do Estado de São Paulo (DIP-SP), foram os responsáveis pela elaboração do relatório final e por realizar visitas às escolas investigadas. O inquérito ofereceu um panorama sobre a presença da ginástica no cotidiano escolar de São Paulo daquele momento e possibilitou a realização de algumas sugestões de reformas nos edifícios escolares para que o seu ensino fosse ampliado (INICIATIVA..., 1931). Mais do que uma iniciativa própria do DEF-SP, o inquérito parece ter sido uma continuidade dos trabalhos que a DIP-SP20 já vinha desenvolvendo há algum tempo, tendo o DEF-SP prestado colaboração a partir de sua criação (SR. LOURENÇO..., 1931; INQUERITO..., 1931; CULTURA..., 1931).
O vínculo entre as duas repartições estaduais também se estreitou com os cursos para professoras normalistas promovidos em 1931. Tratava-se de “dois cursos sumários de educação física, um de caráter rápido, para professoras do interior e outro mais desenvolvido, conquanto ainda elementar, para professoras da capital paulista” (ORGANIZAÇÃO..., 1944, p. 6). O primeiro curso, realizado em maio e denominado curso de uniformização de ginástica sueca, foi dirigido por Detthow e contou com 26 alunos. Seus assistentes, Carmen de Barros e Alfredo Ebert, ficaram responsáveis por ministrar as aulas práticas; Benjamin Alves Ribeiro, pelas aulas de ginástica médica; e Bernardo Itapema Alves,21 pelas aulas de ginástica ortopédica (DESENVOLVIMENTO..., 1931). O segundo curso, realizado em outubro e novembro e denominado curso elementar de educação física, contou com 40 alunos, sendo que as aulas teóricas ocorreram na Escola Normal Caetano de Campos e as práticas no Instituto Jaguaribe. Detthow assumiu a disciplina de ginástica; Itapema Alves, a de deficiências físicas na idade escolar; Arne Enge, as de anatomia e fisiologia; Américo Netto, a de história da educação física; e Oswaldo Diniz Magalhães,22 a de jogos educativos (CURSO..., 1931a). O tenente Silvio Santa Rosa, diretor do Centro Regional de Educação Física do Exército, foi convidado pelo DEF-SP para ministrar aula de biometria (CURSO..., 1931b).
O primeiro curso contou com a presença de Benjamin Alves Ribeiro, nome que garantia a interlocução entre a DIP-SP e o DEF-SP, uma vez que ocupava concomitantemente os cargos de inspetor técnico nas duas repartições estaduais. Mas foi no segundo curso que de fato se consolidou a atuação conjunta da DIP-SP e do DEF-SP, sendo o seu corpo docente composto por funcionários de ambas repartições. As ações mais efetivas do DEF-SP no que se refere à ginástica iniciaram-se logo após a conclusão do primeiro curso, quando foi criada a sua comissão de ginástica, composta por Bernardo Itapema Alves, Oswaldo Diniz Magalhães e Alberto Reichenbac 23 (DEPARTAMENTO..., 1931a). O nome de Magalhães era especialmente relevante por ser diretor de educação física da Associação Cristã de Moços (ACM), entidade com a qual o DEF-SP vinha estabelecendo proximidade desde a sua criação (CLASSE..., 1931; REALIZA-SE..., 1931; MAGALHÃES, 1931).
A realização do segundo curso visava assegurar a ampliação da implementação da ginástica no sistema de ensino a partir da habilitação das professoras normalistas na disciplina de educação física. Configurou-se como parte da reforma do ensino normal promovida por Lourenço Filho, a qual separou os exercícios de educação física do regime de aulas do curso de normalistas (SR. LOURENÇO..., 1931; CULTURA..., 1931). O plano do DEF-SP de criar uma escola superior de educação física, instituído no seu decreto de criação, não se consolidou naquele momento. Era sobretudo por meio de uma escola superior própria que o DEF-SP almejava congregar os profissionais que deteriam o saber científico referente à educação física e que atuariam na condição de professores técnicos, levando adiante seu projeto de institucionalização do esporte e da educação física no estado de São Paulo (GÓIS JR., 2017; DALBEN, 2009; GNECCO, 2005; MASTROROSA, 2003).
Nem todas as finalidades atribuídas ao DEF-SP em seu decreto de criação puderam ser iniciadas em 1931. Observa-se que as ações tomadas pelos sujeitos que participaram do DEF-SP naquele momento foram se adaptando às forças políticas vigentes e à realidade encontrada. Apesar de não apresentar em seu decreto de criação praticamente nenhuma atribuição que versava sobre a educação física escolar, o DEF-SP estabeleceu parcerias com a DIP-SP para fomentar a prática da ginástica às crianças atendidas pelo sistema de ensino. Já a atuação do DEF-SP no campo dos esportes se estabeleceu a partir de parcerias com clubes e federações, apostando no atletismo como a forma de treinamento corporal mais benéfica para jovens e adultos (HISTORIANDO..., 1931). Tratava-se, pois, de um projeto que visava orientar, dirigir e fiscalizar a educação física ofertada tanto pelo sistema de ensino quanto pelos clubes e federações, abrangendo todas as idades. Suas ações iniciais, no entanto, foram interrompidas pelos conflitos armados da Revolução Constitucionalista de 1932. Mas este já é um outro capítulo de sua história...
CONCLUSÃO
Ao criar o DEF-SP, Neiva almejava afirmar São Paulo na vanguarda esportiva do país. Sua ideia principal era alavancar ainda mais o esporte em São Paulo, estado representado por ele pela metáfora da pujante locomotiva que carregava os demais vagões da economia brasileira.24 A partir do ufanismo paulista que lhe era próprio, ainda que baiano de nascença, Neiva (1931, p. 2) esperava que o DEF-SP se tornasse o “alto exemplo para todo o país, pois o paulista tem mais tenacidade e maior espírito de organização que o restante dos brasileiros”. Ao comentar sobre as rivalidades e os atritos existentes naquele momento entre os clubes e federações paulistas e cariocas, Neiva (1931, p. 4) acreditava que, em breve, seria “necessário impedir a possibilidade de São Paulo desligar-se do Rio de Janeiro formando uma entidade esportiva a parte, caso os dirigentes cariocas se oponham ao progresso esportivo de São Paulo”.
A criação do primeiro órgão oficial voltado à educação física, em 1931, não pode ser analisada tão somente a partir do momento político pelo qual passava o país com a ascensão de Vargas ao poder. Sua implantação esteve também relacionada aos debates próprios dos campos esportivo e intelectual paulistas, em intersecção com disputas e tensões em relação à identidade nacional. São Paulo, por parte de seus intelectuais e de suas políticas governamentais nas áreas da saúde, educação e esporte, almejava, ao constituir uma identidade paulista, se tornar o grande exemplo para o restante do país, tencionando a identidade nacional.
Para Benedict Anderson (2013, p. 32), a identidade nacional sempre está em disputa, nunca está acabada, pois no campo dinâmico da cultura ela é conflituosa, uma vez que é pautada pelo simbolismo de uma comunidade política imaginada, já que seus membros constituintes não se conhecem, “embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles”. Enquanto sentimento de pertencimento, a identidade nacional deve ser interpretada a partir das escolhas desses grupos limitados pelas fronteiras territoriais e políticas no que concerne ao que deve ser evidenciado ou silenciado na constituição da identidade. Desse modo, a comunidade não parte do zero, ela é imaginada destacando seus valores considerados positivos e criticando seus desvios, o que é bastante evidente quando identidades regionais se sobrepõem à nacional, criando tensões e disputas. Podemos perceber, a partir das fontes, que no caso de São Paulo, o seu papel estava situado nesta ideia de um “modelo a ser seguido”.
Ao fomentar a identidade paulista, intelectuais como Neiva, em grande parte ligados ao movimento eugenista, justificavam o investimento público no esporte com apelos ao desenvolvimento racial do brasileiro, pois a manifestação esportiva era interpretada como uma forma de desenvolver o vigor físico e moral da população. A partir da criação do DEF-SP, foi estabelecida a intervenção do Estado na área esportiva, até então de responsabilidade da iniciativa privada, com o objetivo de alavancar o esporte paulista no cenário nacional e transformá-lo na prática moralmente educativa requisitada por muitos intelectuais. Em seu primeiro ano de funcionamento, o DEF-SP procurou estruturar ações de regulamentação e orientação da prática esportiva, a partir de parcerias estabelecidas com clubes e federações, com o objetivo de se afirmar como a principal entidade gestora dos esportes no estado de São Paulo. Apesar de não estabelecer no seu decreto de criação a educação física escolar como sua ocupação, o DEF-SP procurou ampliar a presença da ginástica nas escolas paulistas por meio das parcerias realizadas com a DIP-SP. Ao combinar o ensino da ginástica para as crianças atendidas nas escolas com os esportes praticados na juventude e na fase adulta nos clubes, o DEF-SP dava os primeiros passos no sentido de implementar um amplo projeto de orientação, direção e fiscalização da educação física no Estado de São Paulo, ou seja, de sua institucionalização.