EM UM TEMPO RECENTE, NO BRASIL, (RE)PENSAR A ARTE-EDUCAçãO E A EDUCAçãO DEMO- crática, as relações entre elas e o que isso tem de produtivo no âmbito da histórica luta pelo direito à educação pública, gratuita, de qualidade e democrática para todos e todas passou a ser urgente. Isso porque esse tempo recente pode ser demarcado, conforme Tommaselli (2018, p. 58), a partir do “ciclo do Golpe de Estado de 2016”, iniciado com as chamadas “jornadas de junho de 2013” e que se caracterizou por uma forte onda conservadora que tomou vulto no Brasil e conduziu a narrativa que levou ao Golpe de Estado de 2016. E, segundo afirmaram Proner e Strozake (2017, p. 14), o “golpe de Estado perpetrado contra a Constituição Federal e a democracia no Brasil em 2016 . . . deu início a um gigante processo de retrocesso dos direitos econômicos e sociais do povo brasileiro”.
Tal retrocesso pode ser evidenciado quando da imposição de reformas, normatizações e alterações constitucionais e educacionais que atacaram a educação brasileira. Dessas imposições, três foram amplamente criticadas por pesquisadores (Cunha, 2017; Ferreti & Silva, 2017; Motta & Frigotto, 2017; Peroni et al., 2019) e pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) (2018), dadas as graves consequências que representam para a educação brasileira, a saber: a Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016; a Lei n. 13.365, de 29 de novembro de 2016; a Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017; e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Ministério da Educação, 2018).
Para além da imposição de reformas, normatizações e alterações constitucionais e educacionais, ataques sistemáticos a professores e professoras nos diversos níveis e redes de ensino e às perspectivas críticas em educação foram protagonizados pela organização Escola “sem” Partido e por seus apoiadores e apoiadoras.
O autodenominado “movimento” “Escola sem Partido”, criado em 2004 pelo advogado paulistano Miguel Nagib, sempre se apresentou como uma iniciativa apartidária e sem ideologia de alguns pais e estudantes preocupados com uma suposta contaminação político-ideológica nas escolas e universidades brasileiras.1 E, sob essa suposição, a organização se utilizou principalmente de seu site Escola sem Partido (escolasempartido.org) para a veiculação sistemática dessa ideia e instrumentalização de denúncias e de disseminação de práticas de vigilância, controle e criminalização dos professores e das professoras (Algebaile, 2017).
Embora a Escola “sem” Partido se autodenomine “movimento”, compreende-se com base em Algebaile (2017) que ela é adequadamente categorizada como “organização”, uma vez que não se constitui enquanto um movimento, no sentido de agir e de organizar seus adeptos orgânica e fisicamente, e porque há relevantes indicações de se tratar de um organismo tipicamente especializado, internamente centralizado e por congregar, na sua composição, uma vertente político- -partidária mais diversificada.
Nesse sentido, o que se compreende dos estudos de diversos pesquisadores (Frigotto, 2017; Penna, 2017; Roseno, 2017; Moura, 2016; Ramos, 2017) é que, para além do que a organização apregoa com seu discurso, o que ela busca é uma concepção de escolarização que se aproxima de um neotecnicismo, conforme sintetizou Penna (2017); e isso, em parte, ajuda a explicar por que as ideias da organização se demonstraram, desde o início, teórica e juridicamente insustentáveis.
Nesse contexto, conviveu-se com inúmeros episódios de perseguição e de censura aos professores e às professoras veiculados tanto no site da Escola “sem” Partido quanto nas redes sociais de apoiadores e de apoiadoras da organização, incentivando estudantes a filmarem professores em supostas práticas de doutrinação; também houve ataque sistemático da organização à figura do patrono da educação brasileira, Paulo Freire, especialmente por sua perspectiva crítica de educação.2
Diante desses fatos se reconhece que esse período é marcado pela proliferação do que Penna (2018d, p. 568) chamou de “discurso reacionário” da organização Escola “sem” Partido, caracterizado por seu caráter antipolítico e antidemocrático.
Considerando o exposto, entende-se por que Penna (2018a) destaca que o discurso reacionário da Escola “sem” Partido se constituiu sob a articulação contingente de apropriações do (neo)liberalismo e de um (ultra)conservadorismo. E isso contribui para explicitar que a iniciativa não é isolada e nem localizada, mas uma expressão daquilo que Apple (2002, p. 108) chama de “modernização conservadora”, a qual, há décadas, vem impactando a política educacional de muitos países. Compreende-se então que o discurso reacionário da Escola “sem” Partido amalgama um projeto político-ideológico mais amplo, protagonizado por grupos que, por vezes, têm ideias contraditórias, mas buscam alianças para terem êxito na intervenção na pauta da política educacional no Brasil; e que, em “tempos de Golpe”, esses grupos têm se beneficiado desse objetivo.
Diante desse contexto reacionário, a educação democrática tornou-se, para Frigotto (2018), o antídoto à Escola “sem” Partido, e, para Penna (2018b), a bandeira apropriada para articular as diferentes lutas pela escola pública, dado o seu potencial hegemônico na articulação política, pois: quem se insurgiria contra a educação democrática?
Assim, esse tempo recente, no Brasil, que explicita um contexto reacionário que se manifesta pelo ataque aos professores e professoras, à educação e à própria democracia, fez perceber a exigência de se (re)discutir os propósitos também da arte-educação no âmbito da educação democrática como urgência, uma vez que princípios democráticos e educacionais basilares, em “tempos de Golpe” e proliferação do discurso reacionário, foram colocados em suspensão, com implicações para o campo da educação e também da arte-educação.
Viu-se na pesquisa documental uma oportunidade para investigar essa relação com base nas publicações dos Anais do Encontro Nacional de Professores de Arte dos Institutos Federais (Enpaif). O Enpaif é um evento institucional que tem como objetivo promover a partilha de pesquisas, de ações pedagógicas e de extensão relacionadas à área de arte no âmbito dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). Os Anais do Enpaif, então, configuram-se como um acervo de textos que documentam a arte na educação profissional e tecnológica (EPT) nos IFs e, por isso, foram percebidos como um material empírico oportuno para se investigar a relação entre a arte-educação e a educação democrática. Eis o objetivo deste texto e por qual caminho segue: relatar uma pesquisa sobre arte-educação e educação democrática, em contexto reacionário, no âmbito da EPT e IFs.
A educação “por meio da” democracia e a arte-educação
Embora as questões entre educação e democracia estivessem intimamente entrelaçadas desde a pólis ateniense, momento em que tanto os pensadores políticos quanto os educacionais se perguntaram sobre o tipo de educação que melhor prepararia o povo (demos) para a participação no governo (kratos) da sociedade, a implícita relação entre elas torna-se explícita com a ascensão da escola burguesa (Biesta, 2013).
A escola, então, foi o palco onde se expressou essa íntima relação entre educação e democracia nas sociedades modernas. A sociedade burguesa legou às modernas sociedades democráticas, por meio do modelo de escola burguesa, princípios democráticos e educacionais basilares que interfeririam na forma mais geral em que hoje se concebe a educação e a escola. Entre esses princípios, estão: a educação para todos como um direito social a ser assegurado pela sociedade e pelo Estado; a educação escolar como forma principal e dominante de educação; e o papel da sociedade e do Estado na garantia, por meio da escola, de um conjunto essencial de conhecimentos e de valores às novas gerações que se sobrepõe aos valores particulares.
No âmbito da teorização sobre educação democrática, Biesta (2013, p. 166, grifo do autor) chamou de uma perspectiva de “educação para a democracia” essa forma de relacionar educação e democracia que deriva da sociedade burguesa. Sobre essa acepção, a escola existe para desenvolver a importante tarefa de transmitir um conjunto de conhecimentos, de habilidades e de disposição ou valores que qualificará os indivíduos para a futura vida em sociedade, assegurando a democracia (Biesta, 2013). No entanto, o autor compreende que há limites no que pode ser alcançado por meio dessa tentativa deliberada de ensinar democracia, uma vez que as pesquisas sobre socialização política têm revelado que não se aprende apenas com o que foi sistematizado para ser ensinado, mas também com muitas outras situações que atravessam o processo de escolarização. Isso quer dizer que os currículos das escolas podem ser exemplares em termos da organização de conhecimentos para a democracia, mas, se a organização interna dessas escolas não estiver orientada por princípios democráticos, haverá impacto negativo sobre o componente valor para com a democracia.
Diante dos limites da educação para a democracia, as “escolas democráticas”, estudadas e propostas por Apple e Beane (1997), são vistas por Biesta (2013) como alternativa à perspectiva da educação para a democracia, ou seja, um modo de relacionar educação e democracia de maior densidade; perspectiva esta que o autor chamou de uma “educação por meio da democracia” (Biesta, 2013, p. 166, grifo do autor).
Biesta (2013) destaca que as escolas democráticas são um reconhecido exemplo de educação por meio da democracia, pois colocaram ênfase na importância das estruturas e dos processos democráticos e do currículo democrático no processo de escolarização. De modo geral, Apple e Beane (1997) estimulam uma forma de relacionar educação e democracia que não se restrinja ao desenvolvimento de conteúdos, habilidades e valores democráticos, mas que coloque um olhar sobre as relações educacionais, uma vez que a qualidade dessas relações também implica a qualidade democrática do ambiente escolar.
Os fundamentos do modo de vida democrático dos quais depende a democracia e a ampliação desses, na escola, por meio da educação, constituem-se as preocupações centrais das escolas democráticas. Nesse sentido, criar estruturas e processos democráticos nas escolas é uma ação central para se colocar em prática os acordos e as oportunidades que dão sentido à democracia nessas instituições; e essas estruturas e processos se desdobram, por exemplo, em práticas que possibilitam uma participação ampla na tomada de decisão, uma decisão cooperativa sobre as mais diversas questões presentes no ambiente escolar, das administrativas às da sala de aula (Apple & Beane, 1997). Em decorrência disso,
. . . as escolas democráticas são marcadas pela participação geral nas questões administrativas e de elaboração de políticas. Comitês, conselhos e outros grupos que tomam decisões no âmbito da escola incluem não apenas os educadores profissionais, mas também os jovens, seus pais e outros membros da comunidade escolar. Nas salas de aula, os jovens e os professores envolvem-se no planejamento cooperativo, chegando a decisões que respondem às preocupações, aspirações e interesses de ambas as partes. (Apple & Beane, 1997, pp. 20-21).
Quanto à ampla participação nas decisões escolares, Apple e Beane (1997) destacam que esses processos decisórios definem a qualidade da vida cotidiana das escolas democráticas e podem ser entendidos como uma espécie de “currículo oculto”, que ensina lições fundamentais sobre justiça, poder, dignidade e autoestima. Contudo não restringir o conhecimento a ser transmitido na escola ao conhecimento “oficial”, aquele produzido ou endossado pela cultura dominante, indica uma versão mais completa do trabalho dessas escolas. E por quê? O problema é que se o conhecimento oficial é transmitido como se fosse a “verdade”, nascida de uma fonte imutável e infalível, nesse processo, o currículo oficial acaba silenciando as vozes dos que não pertencem à cultura dominante, como as pessoas não brancas, as mulheres e os jovens (Apple & Beane, 1997).
A predominância do conhecimento dominante no currículo escolar afasta-se da ideia de um currículo democrático, pois o currículo democrático “enfatiza o acesso a um amplo leque de informações e o direito dos que têm opiniões diferentes se fazerem ouvir” (Apple & Beane, 1997, p. 26). Nessa perspectiva, um currículo democrático ensina jovens a serem leitores críticos da realidade, da sociedade, porque essa postura indagadora revelará o quanto o currículo e o conhecimento que a ele pertencem não são neutros, mas o lugar em que determinados valores são apresentados ou omitidos, explicitamente ou não.
Não se pode ignorar o conhecimento dominante, correndo-se o risco de impedir que as classes menos favorecidas não se beneficiem dele, mas deve-se entendê-lo como conhecimento do qual se pode se apropriar como oportunidade para explorar os problemas da vida cotidiana a fim de transformá-la. Cabe aos professores e às professoras das escolas democráticas viverem, segundo Apple e Beane (1997, p. 31), “a tensão constante de proporcionar um ensino significativo para os jovens, ao mesmo tempo em que transmitem os conhecimentos e habilidades esperados pelas poderosas forças educacionais cujos interesses são tudo, menos democráticos”.
Nesse sentido, a “educação problematizadora” desenvolvida por Freire (1987) é uma referência expressiva que significa, na prática, educar por meio da democracia, uma vez que a educação problematizadora dá ênfase às estruturas, aos processos e ao currículo democráticos no processo de escolarização. Isso porque a educação problematizadora está fundamentada numa relação dialógica entre educador e educando. Na perspectiva da educação problematizadora, a contradição educador-educandos (sujeito-objeto), típica de uma “educação bancária”, a qual é caracterizada como uma educação em que o saber aparece como algo a ser doado pelos que se julgam sábios àqueles que julgam nada saber, dá lugar a uma relação entre sujeitos, em que o educador ao educar também é educado (Freire, 1987).
A educação problematizadora visa à conscientização, à emancipação, à democracia, por isso a liberdade é um conceito central. A concepção de liberdade, em Freire (1979, p. 27), “é a matriz que dá sentido a uma educação que não pode ser efetiva e eficaz senão na medida em que os educandos nela tomem parte de maneira livre e crítica”. Nesse sentido, os “argumentos de autoridade” perdem seu valor e não se sustentam, pois para ser, funcionalmente, autoridade, é preciso estar sendo com os outros, ou seja, com as liberdades dos outros e não contra elas (Freire, 1987, p. 44).
Freire (1974) explicitou que a liberdade e a relação dialógica são elementos fundamentais na transitividade de consciência no comportamento do homem, e que esta, por sua vez, é essencial à democracia. A democracia é compreendida aqui enquanto uma forma de vida e não restritamente como forma de governo. Nas palavras do autor: “a democracia que, antes de ser forma política, é forma de vida, se caracteriza sobretudo por forte dose de transitividade de consciência no comportamento do homem” (Freire, 1974, p. 80).
A transitividade de consciência é análoga a uma maior flexibilidade de consciência; flexibilidade que, segundo Freire (1974), envolve um aspecto que é intrínseco à própria essência da democracia - a mudança. Explica o autor: “Os regimes democráticos se nutrem na verdade de termos em mudança constante. São flexíveis, inquietos, devido a isso mesmo, deve corresponder ao homem desses regimes, maior flexibilidade de consciência” (Freire, 1974, p. 90). À educação então se reserva um papel fundamental nesse processo de mudança no qual opera a transitividade e a flexibilidade.
Considerando as questões expostas, é reconhecível que as escolas democráticas e a educação problematizadora são propostas de educação democrática que fazem frente a abordagens que têm, conforme afirmaram Apple e Beane (1997), alimentado a competição (por notas, por status, por recursos, por programas); enfatizado a ideia de individualismo; ignorado os interesses e as aspirações dos grupos menos poderosos para incorporar grande parte dos interesses e das aspirações dos grupos mais poderosos; e reforçado a formação de grupos com base na capacidade dos alunos, gerando guetos de oportunidades aos pobres, aos negros e às mulheres. Ao confrontarem essas abordagens, as escolas democráticas e a educação problematizadora, por defenderem que o modo de vida democrático seja reverberado nas escolas, apresentam-se, enquanto uma perspectiva de educação por meio da democracia, como alternativa à educação para a democracia.
No âmbito da discussão sobre as perspectivas de educação democrática, Biesta (2013, p. 167) destaca que, essencialmente, compreender a relação entre educação e democracia e o papel das escolas em uma sociedade democrática depende da visão que se tem sobre a “pessoa democrática” ou “sujeito democrático” que, em termos filosóficos, corresponde a dizer que depende fundamentalmente das ideias que se tem sobre o tipo de subjetividade desejável ou necessária para uma sociedade democrática. Nesse ponto, uma concepção “social” da pessoa democrática é que fundamenta a perspectiva da educação por meio da democracia em contraposição à concepção individualista da pessoa democrática que fundamenta a perspectiva da educação para a democracia.
Em Dewey (1979) encontra-se uma importante e útil crítica à concepção individualista da pessoa democrática, porque para o autor a mente não é um dado original, mas algo adquirido; desse modo, é, antes de tudo, o fruto de uma vida de associação, de comunicação, de transmissão e de acumulação; ou seja, os seres humanos são “organismos aculturados” - organismos vivos que formam seus hábitos por meio da interação com determinado ambiente social, inclusive hábitos de pensamento e de reflexão. É nesse sentido que a capacidade de pensar e de refletir, quer dizer, a inteligência, não é um dote inato, mas depende de interações e das condições sociais - não se trata, por conseguinte, de “inteligência racional”, mas de “inteligência social”. Em síntese, a centralidade dada à mente na concepção individualista dá lugar, em Dewey, às interações indefinidas com o ambiente social na construção da subjetividade, por isso uma concepção “social” da pessoa democrática.
Biesta (2013) destaca que a relação entre educação e democracia para Dewey se dá: em primeiro lugar, porque se reconhece que a democracia é a forma de interação social que mais oportuniza e apoia a liberação das capacidades humanas para o seu desenvolvimento pleno e, em segundo lugar, porque uma pessoa adquire inteligência social por meio da participação na vida democrática. Nesse ponto, fica bastante explícito que Dewey supera o individualismo da abordagem kantiana da pessoa democrática e o quanto sua visão reflete a perspectiva da educação por meio da democracia.
Diante do exposto, a relação entre a arte-educação e a educação democrática, no âmbito de uma perspectiva de educação por meio da democracia, é marcada por uma abordagem instrumentalista da educação e da arte-educação. Esse instrumentalismo está, antes de tudo, associado à concepção de educação vinculada a uma abordagem que propõe educar “por meio da” democracia, que por sua vez objetiva a produção do sujeito democrático; nessa acepção, o objetivo fim da arte-educação se concentra na melhor maneira de ajudar a preparar as crianças e os jovens para que eles possam atuar futuramente na democracia. Nesse sentido, a relação entre a arte-educação e a educação democrática que se estabelece no âmbito da educação por meio da democracia manifesta esse caráter instrumental. Quanto a isso, as ações, as práticas ou as experiências vivenciadas no âmbito da arte e da educação sob essa perspectiva devem responder ao objetivo de contribuir para criar ou engendrar o chamado sujeito democrático que atuará, futuramente, na sociedade democrática. Assim, uma arte-educação voltada para a educação democrática problematiza tanto a política do currículo oficial quanto as estruturas e o processo de tomada decisão no interior dessas escolas, expressando uma forma mais completa do trabalho das “escolas democráticas”. Nesse ponto o papel da arte-educação é também importante por ser também uma oportunidade de tornar as escolas mais democráticas, fazendo reverberar nessas instituições o modo de vida democrático.
No âmbito da arte-educação destaca-se a abordagem triangular, desenvolvida por Ana Mae Barbosa, como exemplo que expressa uma perspectiva de arte-educação democrática, pois a abordagem triangular guarda a ideia da pedagogia problematizadora de Paulo Freire. Ao inserir a leitura da obra de arte nas aulas de arte, aliada à contextualização, de modo que esta seja entendida como questionamento, como busca e como descoberta e não como preleção discursiva, a abordagem triangular expressa uma dimensão dialógica do saber.
Ao inserir a leitura de imagem e a contextualização no ensino de arte junto ao fazer artístico, de forma que os saberes não sejam hierarquizados e todas as vozes sejam consideradas, a abordagem triangular dá ênfase aos processos e ao currículo democráticos na arte-educação. Conforme afirma Barbosa (2014, p. XXXII):
Para uma triangulação cognoscente que impulsione a percepção da nossa cultura, da cultura do outro e relativize as normas e valores da cultura de cada um, teríamos que considerar o fazer, a leitura das obras de arte ou do campo de sentido da arte e a contextualização, quer seja histórica, cultural, social etc.
Nesse sentido, uma arte-educação verdadeiramente democrática não poderá prescindir de uma prática em que o fazer arte e a leitura da obra de arte estejam aliados à contextualização, entendida aqui como questionamento, como busca e como descoberta, e não como preleção discursiva.
Investigando a educação “por meio da” democracia nos Anais do Enpaif
Viu-se na pesquisa documental a oportunidade para se investigar a relação entre arte e educação democrática no âmbito das práticas em arte nos IFs, por meio dos Anais do Enpaif. Esses Anais são resultado do Enpaif, evento institucional criado em 2016 pela articulação de professores de Arte dos IFs, visando ao compartilhamento de experiências pedagógicas, ações de extensão e pesquisa na área de arte desenvolvidas no âmbito da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT). O evento é promovido pela RFEPCT e organizado pelos professores de Arte dos IFs. O compartilhamento das experiências pedagógicas, ações de extensão e pesquisa acontece por meio de comunicações orais e publicação nos Anais do evento nas modalidades: Resumo, Resumo expandido, Trabalho completo e Texto completo, Oficina(s) (incluída na edição de 2019), Produção Audiovisual/Videoperformance e Produção Visual (ambas incluídas na edição de 2021).
Considerando que a primeira edição do Enpaif, que ocorreu em 2016, não contou com a publicação de Anais, que, em 2020, o evento não aconteceu, e que os Anais das demais edições do evento foram publicados posteriormente ao processo de seleção do corpus de análise, a materialidade da investigação constituiu-se por publicações na modalidade “textos completos” dos Anais do Enpaif das edições de 2017, 2018 e 2019.3
Uma vez que o evento congrega especificamente publicações sobre ações de ensino/pesquisa/extensão em Arte nos IFs, focalizou-se nas publicações do Enpaif como materialidade da investigação para compreender a relação entre a arte-educação e a perspectiva da educação por meio da democracia no âmbito do debate sobre educação democrática. Outras características desses documentos ajudaram no reconhecimento da viabilidade em explorar esse material empírico. Como a primeira edição do Enpaif aconteceu em 2016 e os primeiros Anais do evento foram publicados a partir da segunda edição (2017), o contexto de produção deles é o do Golpe de Estado de 2016 e do crescimento do discurso reacionário no Brasil. Viu-se, dessa maneira, possibilidade de essas publicações refletirem esse contexto (seja resistindo a ele, seja expressando o seu impacto e o seu prejuízo). Ainda, identificou-se que os temas das edições de 2017, 2018 e 2019 mostraram-se consoantes às questões desse contexto. Também, por tratar-se de textos que são elaborados dentro de modalidades características de eventos acadêmico-científicos, como resumos (expandidos) e trabalhos completos ou textos completos, e submetidos a processo de avaliação, essas publicações deveriam conservar e conter os elementos mínimos de um texto acadêmico-científico. Ainda, por serem textos publicados em Anais, esses documentos estão disponíveis para outros pesquisadores; desse modo, o que se formula com base neles em termos de conhecimento está à prova de outras pesquisas e de novas interpretações e validações.
Quanto ao procedimento de seleção dos “textos completos”, em um primeiro momento, consultou-se os repositórios dos Anais (on-line) do Enpaif dos anos 2017, 2018 e 2019, buscando pelos textos publicados na modalidade “textos completos”. A opção por selecionar apenas publicações no formato “texto completo” foi devido ao entendimento de que as características estruturais delas possibilitam, entre outros elementos, espaço para o aprofundamento de conteúdo e das temáticas abordadas e que, possivelmente, podem melhor expressar as ações de ensino/pesquisa/extensão em Arte nos IFs. Nessa consulta inicial foram identificados, considerando as três edições do Enpaif, 106 “textos completos”.
Seguiu-se com a leitura dos resumos dos 106 textos, em busca de palavras-chave ou expressões-chave que expressassem o quadro teórico da pesquisa. Com esse procedimento, foi identificado um conjunto de 11 palavras-chave ou expressões-chave relacionado ao quadro teórico da pesquisa e que estava distribuído em um conjunto de 24 textos, sendo 8 nos Anais do II Encontro Nacional de Professores de Arte dos Institutos Federais (2017), 6 nos Anais do III Encontro Nacional de Professores de Arte dos Institutos Federais (2018) e 10 nos Anais do IV Encontro Nacional de Professores de Arte dos Institutos Federais (2019). O conjunto de palavras-chave ou expressões-chave identificado foi: arte e resistência; diversidade; processos cooperativos e colaborativos; olhar para o contexto dos estudantes; pluralidade; relação com a arte e/ou cultura locais; relação dentro/fora da escola; diferença; coletividade; identidade; formação crítica.
Com uma segunda leitura dos resumos dos “textos completos” e a observação da identificação dos autores dos textos, buscou-se identificar a afiliação institucional e a formação dos autores e classificar as práticas relatadas e documentadas em cada um dos 24 textos quanto às linguagens artísticas (artes visuais, dança, música, teatro, outras) e ao tipo de prática (ensino, pesquisa ou extensão).
Entende-se que essas etapas corresponderam ao que Cellard (2012) chama, na pesquisa documental, de pré-análise; e, nesse sentido, seguiram-se as recomendações desse autor, que orienta que, ao se trabalhar com documentos, é indispensável localizar os textos pertinentes, avaliar a sua credibilidade e a sua representatividade.
O tratamento analítico dos 24 “textos completos” foi realizado por meio da perspectiva da análise de conteúdo que, segundo Lüdke e André (2013), é o método geralmente utilizado no campo da pesquisa documental. Iniciou-se essa etapa com a determinação da unidade de análise, definida enquanto unidade de contexto; e, com base nas leituras de cada um dos 24 textos na íntegra, essas unidades de contexto foram categorizadas conforme as duas categorias definidas pelo quadro teórico da pesquisa, a saber: “Incorporação de conhecimentos não oficiais ao currículo” e “Cooperação e colaboração com ênfase na coletividade”.
Nessa etapa de categorização temática, como forma de organização e de sistematização dos dados, foram construídos 24 quadros, um para cada “texto completo” que integra o conjunto de Anais do Enpaif analisado. Cada quadro foi identificado com uma numeração, com o título do texto publicado nos Anais do Enpaif e com uma breve descrição do conteúdo do texto, em forma de um sucinto parágrafo; ainda, cada quadro foi elaborado com duas colunas, uma contendo as categorias temáticas e a outra, as unidades de contextos extraídas em forma de excerto de cada um dos “textos completos”.4
A arte-educação por meio da democracia nas publicações dos Anais do Enpaif
Considerando os dados da pré-análise dos 24 “textos completos” dos Anais do Enpaif analisados, é possível explicitar a pertinência, a credibilidade e a representatividade do material selecionado para a investigação. Isso porque, ao se identificar que pelo menos um dos autores de cada um dos 24 textos é professor de um dos IFs, reafirma-se o objetivo do Enpaif de socializar ações de ensino/pesquisa/extensão em Arte nos IFs, uma vez que os próprios docentes documentam as ações. Já a identificação acadêmica dos autores reforça a credibilidade dos textos, pois, além de serem submetidos a uma comissão de avaliação, foram elaborados por professores que também possuem formação no campo da pesquisa; isso indica que, possivelmente, eles apresentam elementos estruturais de um texto acadêmico-científico e discussões baseadas também nesses critérios.
Quanto aos tipos de práticas documentadas nos “textos completos” e à subárea, a pré- -análise permite reafirmar que o conteúdo do conjunto de documentos selecionados reflete as ações de ensino/pesquisa/extensão em Arte nos IFs e que essas ações contemplam as diversas subáreas ou linguagens da arte. Essa presença das diversas linguagens ou subáreas da Arte nesses textos é reflexo da formação dos docentes que atuam nos IFs, pois, conforme o mapeamento atualizado até 2021 por Amaral (2021, p. 83), “existem 806 docentes de arte em atuação nos IFs do Brasil, 333 são de Artes Visuais, 322 de Música, 39 de Dança e 112 de Teatro”.
Quanto à relação entre arte-educação e educação democrática nos 24 “textos completos” dos Anais do Enpaif das edições dos anos de 2017, 2018 e 2019, a análise demonstrou que essa relação reverbera uma perspectiva de educação por meio da democracia, que se expressa por meio de ações em arte que atentam para a incorporação de conhecimentos não oficiais ao currículo e para a cooperação e colaboração com ênfase na coletividade.
Quanto à incorporação dos conhecimentos não oficiais ao currículo, 20 dos 24 “textos completos” analisados indicam ações de ensino/pesquisa/extensão em Arte nos IFs em que há atenção a essa incorporação. E essa incorporação se expressa, pelo menos, de três formas: pelo acolhimento do conhecimento não oficial em diálogo com o conhecimento oficial; pela investigação e pela documentação do conhecimento não oficial; pela ampliação do acesso ao conhecimento não oficial. Embora se tenha observado a presença dessas três formas separadamente, essa separação nem sempre é tão nítida nos textos analisados. Nos textos, as três formas manifestaram-se, por vezes, de modo interligado.
Uma das formas de incorporação de conhecimentos não oficiais ao currículo identificada na análise são aquelas ações de ensino/pesquisa/extensão em Arte que acolhem formas de expressão e de expressões culturais e da realidade dos estudantes. O acolhimento que se manifesta como uma abertura é a constatação de que o conhecimento oficial não é o único válido e nem uma fonte imutável e infalível da verdade. Há, dessa forma, a intenção em aproximar e estimular o diálogo entre conhecimentos não oficiais que pertencem à realidade cultural e social dos estudantes e o conhecimento oficial ou da cultura dominante.
A promoção desse diálogo expressa que, nessas ações, se dá atenção a um currículo que “procura ir além da ‘tradição seletiva’ do conhecimento e dos significados endossados pela cultura dominante, rumo a um leque mais abrangente de pontos de vista e formas de expressão” (Apple & Beane, 1997, p. 29, grifo do autor). Assim, essas ações, ao acolherem o diálogo entre conhecimentos, estimulam o modo de vida democrático no âmbito de uma educação por meio da democracia, especialmente porque fazem ecoar a ideia de que, em uma “sociedade democrática, nenhum indivíduo ou grupo de interesse pode reivindicar a propriedade exclusiva do saber e dos significados possíveis” (Apple & Beane, 1997, p. 29). É exemplo dessa forma de incorporar conhecimentos não oficiais ao currículo o projeto de extensão “Dançando para Educar”, desenvolvido no Instituto Federal de Tocantins (IFTO, campus Paraíso). Essa identificação é demonstrada no excerto abaixo, retirado do texto “Projeto de extensão dançando para educar: Dialogando com a arte, a dança e a educação” (TC7/2017):
Vivenciam várias formas de dançar e ressignificam movimentos, transformando-os em novas criações. E assim torna-se possível mesclar estilos específicos de dança com as experiências em dança já trazidas do repertório cultural de cada sujeito. Bem como torna-se possível promover um diálogo entre os saberes de dança do professor e os saberes dos Estudantes. (TC7/2017, p. 5).
Outro exemplo é um trabalho com dança e literatura que estava em desenvolvimento, quando relatado e submetido ao Enpaif, no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) do curso de Licenciatura em Dança do Instituto Federal de Goiás (IFG, campus Aparecida de Goiânia), e demonstrou a incorporação de literaturas afro-brasileira e indígena, em busca de maior aproximação com a realidade e o contexto brasileiro, abrindo espaço para a problematização da dominação de determinados conteúdos e literaturas no currículo. Excertos de dois “textos completos” - “Dança e literatura: Outro olhar para o tema gerador da Emei Monteiro Lobato” (TC4/2017) e “Dança e literatura: Diálogos e saberes possíveis na escola” (TC5/2017) - publicados nos Anais do Enpaif sobre essa ação nos permitem aferir isso:5
Contudo os livros escolhidos para essa segunda etapa foram A África, meu pequeno chaka..., de Marie Seller (2006), que estamos desenvolvendo a partir de sons musicais da própria cultura africana, recortes da história, lendo junto com os alunos, conversar sobre o trecho trabalhado, e a relação junto com a dança. Já em Naná descobre o céu, de Marcus Aurelius Pimenta e José Roberto Torero (2005), iremos trabalhá-la no segundo semestre de 2017, aulas que ainda estão sendo pensadas de acordo com o entendimento da história e andamento do projeto. (TC4/2017, p. 5).
. . . tendo em vista que esse trabalho nos possibilita mostrar aos alunos a existência de outras culturas literárias, fugindo do contexto proposto na sala de aula com literaturas europeizadas e apresentando uma cultura mais próxima a nossa realidade cujo é muito pouco debatida no âmbito Escolar. (TC4/2017, p. 7).
Neste contexto, o grupo do Pibid optou por trabalhar obras literárias afro-brasileira e indígena por entender que a literatura possui uma diversidade de narrativas a serem conhecidas e apreciadas, assim é importante introduzir essa variedade de narrativas para os alunos. E por entender como fundamental também a inclusão das culturas afro-brasileiras e indígenas. (TC5/2017, p. 3).
Uma segunda forma de relacionar conhecimentos não oficiais ao currículo, identificada na análise dos “textos completos”, é a investigação e da documentação de conhecimentos, obras e profissionais locais (no âmbito geográfico de inserção dos campi). Essa relação pode manifestar-se por dois meios: pelo diálogo entre conhecimento local (o conteúdo das investigações) e o conhecimento “oficial” (relacionados às práticas de investigação e documentação); e pelos produtos gerados pelas investigações que expressam conhecimentos que podem ser apropriados pela comunidade escolar. Exemplo dessa forma de incorporação se expressa no projeto de extensão “ExisTeatro? - História do Teatro em Gurupi” desenvolvido no IFTO (campus Gurupi) junto aos alunos do Curso de Graduação de Licenciatura em Artes Cênicas e Licenciatura em Teatro. O projeto teve o intuito de construir acervos documentais sobre a história das artes cênicas na cidade de Gurupi. Excertos extraídos do texto “Existeatro? A problemática do se contar a história de uma arte efêmera e do se fazer pesquisador” (TC12/2018) permitem perceber a intenção de valorizar a produção artística e os artistas locais e as possibilidades geradas com os produtos que derivam dessa ação.
O projeto “ExisTeatro? - História do Teatro em Gurupi”, surgiu com o intuito de historiografar a memória de manifestações das Artes do município supracitado. Está sendo realizado através do processo de encontrar, reunir e organizar acervos particulares e públicos de artistas e órgãos do município. . . . A ideia do projeto surge da necessidade da disciplina História do Teatro Brasileiro, pois esta, na grade do citado curso, ocupa todo seu leque de conteúdos abarcando o máximo da história do teatro no nosso país, entretanto, não possui nada voltado para a história do próprio estado. A impressão que nos passa é de um completo apagamento da história do estado do Tocantins, ou menos ainda, uma inexistência de artes teatrais no estado, o que em suma não é o caso. (TC12/2018, p. 1).
Após a etapa de escolha dos artistas que podem servir de fonte material para o projeto, os alunos extensionistas começaram a organizar e digitalizar os acervos, catalogando-os e fichando-os para a identificação dos seus conteúdos. . . . Adiante, estas digitalizações ficarão disponíveis no IFTO para futuras pesquisas ou acesso a documentos que contem parte da história das experiências teatrais realizadas na cidade. . . . Almeja-se a disponibilização destas memórias para a comunidade, criando-se uma série de vídeo-documentários, onde os artistas colaboradores poderão falar sobre a história do teatro na cidade, bem como da sua própria trajetória como artista. Desta forma esses vídeos resguardarão parte da história dos artistas e do movimento artístico na cidade de Gurupi. (TC12/2018, p. 3).
Conforme pode-se observar, essas ações em arte no âmbito da pesquisa e da extensão evidenciam que investigar e documentar o conhecimento não oficial é uma oportunidade de incorporar esse conhecimento ao currículo e que, nos IFs, essa oportunidade existe para além do campo do ensino ou da presença dos cursos de EMI. Nessa acepção, afere-se que a pesquisa e a extensão não substituem a importância e as oportunidades do campo do ensino de Arte nos IFs, mas estão ampliando as possibilidades de educar por meio da democracia nessas instituições.
Há, ainda, ações em arte registradas nos “textos completos” analisados que expressam a incorporação de conhecimentos não oficiais ao currículo ao expandirem o espaço escolar (seja da sala de aula para outros espaços da escola, seja da escola para os espaços externos) e ampliarem o acesso ao conhecimento não oficial. É o que se analisa do projeto de extensão “Ceramicando”, desenvolvido com alunos de cursos de ensino médio integrado (EMI) do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS, campus Feliz). A proposta do projeto foi trazer à tona os modos de ver e de pensar a cerâmica e sua potencialidade no ensino da Arte, considerando a localização da instituição de ensino e o arranjo produtivo local. Para tanto, o projeto expandiu o espaço escolar por meio do ateliê e de visita técnica, ampliando e diversificando o acesso ao conhecimento não oficial. Os dois excertos que seguem, extraídos do texto “Ceramicando com a cultura Guarani no ensino médio tecnológico” (TC18/2019), evidenciam isso:
As oficinas contemplam processos que permitem aos estudantes experimentar a produção da cerâmica inspirada nos artefatos da cultura Mbyá guarani, com diferentes técnicas, estudos e experimentações de processos de modelagem e queima em fornos elétricos e alternativos, bem como a apresentação de uma exposição de cerâmicas. (TC18/2019, p. 9).
A visita técnica é realizada no mês de maio, em Morro Reuter/RS, para a comemoração do Dia do artista Ceramista. Os alunos conhecem diferentes ateliês como de Anelise Bredow, Flávio Scholles, Ricardo Steffen e Claudia Sperb - Caminho das Serpentes Encantadas que fazem parte do “Caminho das Artes”. A conversa com os artistas, o processo criativo e as obras conhecidas durante a visita integram o contexto dos referenciais. (TC18/2019, p. 9).
Diante dessa análise realizada com base em excertos extraídos dos “textos completos” do Enpaif sobre ações de ensino/pesquisa/extensão em Arte no IFs, pode-se aferir que, em sua maioria, a incorporação dos conhecimentos não oficiais ao currículo no âmbito dessas ações acontece pelo acolhimento do conhecimento não oficial em diálogo com o conhecimento oficial. Fica também explícito que, ao “acolherem-se” essas ações, busca-se promover um intercâmbio ou diálogo entre conhecimentos - entre aqueles conhecimentos oficialmente inseridos no currículo e aqueles que se manifestam da realidade e do cotidiano dos estudantes, em um diálogo que dá vez às vozes que podem estar silenciadas no currículo oficial. As outras duas formas de incorporar os conhecimentos não oficiais ao currículo identificadas - a investigação e a documentação do conhecimento não oficial e a ampliação do acesso ao conhecimento não oficial - se manifestam com menor expressividade no conjunto dos “textos completos” analisados. Todavia elas são relevantes porque nos levam a perceber que incorporar ao currículo conhecimentos não oficiais não está centrado necessariamente no acolher diferentes conhecimentos e estabelecer diálogos entre eles, mas também nas formas de acessar e de fazer visível o conhecimento não “oficial”.
Em síntese, a incorporação de conhecimentos não oficiais ao currículo evidenciada nos “textos completos” do Enpaif sobre ensino/pesquisa/extensão mostra que os professores protagonistas dessas práticas e dessas ações em arte no âmbito dos IFs parecem atentos à dinamicidade do currículo e das possibilidades que ela permite no desenvolvimento de um currículo democrático.
Quanto à outra categoria temática, identificou-se que nove “textos completos” expressam ações de ensino/pesquisa/extensão em Arte nos IFs que ampliam o espaço democrático na escola por meio de processos cooperativos e colaborativos com ênfase na coletividade; e cinco também expressam a categoria temática analisada anteriormente - “Incorporação de conhecimentos não oficiais ao currículo”.
Uma metodologia cooperativa e colaborativa aparece como elemento central em uma experiência de ensino relatada no texto “Diálogos bem-vindos entre práticas artísticas e educação do campo” (TC19/2019). Segundo o texto que relata a experiência, esta foi desenvolvida a partir da disciplina Arte, Cultura e Diversidade, envolvendo duas turmas de estudantes com habilitação em Matemática e Ciências Humanas do curso de Licenciatura em Educação do Campo, ofertado pelo Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN, campus Canguaretama). Um excerto extraído do texto mostra que a experiência conduzida na disciplina buscou ampliar os espaços de decisão no âmbito da produção e da exposição de trabalhos artísticos, isso por meio de grupos de trabalho e de reuniões de planejamento que levam em conta os interesses e a disponibilidade dos envolvidos, favorecendo o conhecimento em arte, as práticas em arte e seus significados. O excerto aponta que:
Exposições que envolvem trabalhos artísticos criados pelos alunos têm cada aspecto da produção desenvolvida por eles. Costumamos conduzir essa experiência através da organização de grupos de trabalho responsáveis por desenvolver várias ações, do conceito à avaliação. . . . Tão logo os projetos são definidos, envolvemos alunos que atuam como protagonistas do processo, um número significativo de servidores e também funcionários terceirizados. Na sequência, são organizadas reuniões de planejamento nas quais são definidos grupos de trabalho e ações interdisciplinares ou que estejam de acordo com o interesse e a disponibilidade de cada participante. Contribuir conjuntamente permite que todos se envolvam na construção do projeto, cria-se um laço afetivo muito bem-vindo, um caminho diferenciado para favorecer o aprofundamento sobre os conhecimentos artísticos, suas práticas, seus significados, sobre artistas e suas relações socioculturais. (TC19/2019, p. 4).
Esse tipo de ação baseada no planejamento compartilhado é bem representativa do trabalho das escolas democráticas, pois, conforme afirmam Apple e Beane (1997), nas salas de aula das escolas democráticas, os jovens e os professores envolvem-se no planejamento cooperativo, que leva a decisões que respondem às preocupações, às aspirações e aos interesses de ambos.
Cooperação e colaboração também são evidenciadas no processo de criação compartilhada desenvolvido em aulas/oficinas de teatro no Instituto Federal da Bahia (IFBA, campus Eunápolis), no âmbito de uma pesquisa em teatro-educação. O texto “Identidade - Processo criativo teatral em arte-educação no IFBA - Eunápolis” (TC22/2019) destaca a importância dessa forma colaborativa, não só para a aprendizagem no campo de teatro, mas também para a formação cidadã. O texto chega a explicitar que tal processo busca a formação do ser social - o ser social de Dewey - e que, conforme já discutido, está na base de uma abordagem da educação por meio da democracia, uma vez que se baseia em uma concepção social da subjetividade humana. Dois excertos do texto indicam isso:
Mesmo existindo a figura do diretor/encenador, orientador pedagógico e professor de teatro, o processo criativo deu-se de forma colaborativa, de modo a enfatizar a horizontalidade no momento da criação com os alunos e alunas. Trabalhar de forma coletiva “coloca em destaque todas as questões concernentes à criação compartilhada” (Lima, 2014, p. 93). Toda a proposta passou por momentos de discussão para se chegar à compreensão e aceitação, nada foi decidido somente pelo encenador, por esse motivo, até mesmo o texto foi criado com a participação direta de todos envolvidos no percurso artístico. (TC22/2019, p. 9).
Com o trabalho coletivo em teatro, os estudantes passam a fazer links e aprimoram vivências, além de praticarem inúmeras outras funções que servirão para a formação deles enquanto cidadãs e cidadãos criativos e sensíveis. Nesse tipo de trabalho não somente as habilidades artísticas são desenvolvidas e formadas, mas, também, resulta-se na formação do ser social. (TC22/2019, p. 10).
Embora em menor quantidade e com menor expressão, os processos cooperativos e colaborativos identificados nas ações em Arte documentadas nos Anais do Enpaif (2017, 2018, 2019) também são observados no âmbito das ações de ensino/pesquisa/extensão e em diferentes níveis de formação, do EMI à graduação e à licenciatura, assim como observou-se nos dados referentes à primeira categoria temática analisada. Com isso, afirma-se que há uma transversalização das ações em arte nos IFs pelo ensino, pela pesquisa e pela extensão e uma verticalização pelos níveis de formação. E, sob essas condições, entende-se que as oportunidades de promoção da educação por meio da democracia se ampliam na EPT dos IFs.
Considerações finais
Diante da análise realizada se afere que os Anais do Enpaif de 2017, 2018 e 2019 reverberam uma perspectiva de arte-educação democrática nos IFs, uma vez que as ações de ensino/pesquisa/extensão em arte documentadas nos “textos completos” publicados nos Anais expressam a problematização do conhecimento oficial e dos processos e estruturas de tomada de decisão. Observou-se que em cinco textos reverbera tanto a categoria temática “Incorporação de conhecimentos não oficiais ao currículo” quanto a categoria “Cooperação e colaboração com ênfase na coletividade”, ganhando mais expressão do que quando são consideradas de forma isolada; e, nesse sentido, podem expressar um trabalho mais completo no âmbito da arte-educação democrática.
Um currículo que não se reduza ao conhecimento oficial e a processos cooperativos e colaborativos amplia o modo de vida democrático nas escolas, educando por meio da democracia, visto que busca responder às preocupações, às aspirações e aos interesses de um número cada vez mais amplo dos que estão envolvidos no e com o processo educacional. A preocupação, então, já não é mais apenas com a aprendizagem de conteúdos ou com o desenvolvimento de habilidades e de valores democráticos, mas com a qualidade democrática das relações educacionais, dado que essas relações (como uma espécie de currículo oculto) também ensinam sobre democracia e sobre como viver na democracia.
Assim, se imposições como a reforma do ensino médio e documentos normatizadores, como a BNCC do ensino médio e as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica - Resolução CNE/CP n. 1 (2021) -, foram impostos em “tempos de Golpe”, reafirmando um modelo dual de educação para a juventude brasileira, no âmbito da arte-educação na EPT nos IFs houve resistência. A incorporação de conhecimentos não oficiais ao currículo e os processos cooperativos e colaborativos com ênfase na coletividade, que reverberam nas ações de ensino/pesquisa/extensão em Arte documentadas nos textos dos Anais do Enpaif analisados, indicam que a Arte nos IFs tem possibilitado o desenvolvimento de modos de vida democrática nessas instituições, ocasionando a educação por meio da democracia. Assim, ensinar arte “por meio da” democracia mostra uma forma de relacionar arte-educação e educação democrática nos IFs, fazendo a arte-educação resistir aos “tempos de Golpe”.
Nesse sentido, destaca-se que a importância do debate e da defesa de uma educação democrática continua premente considerando que as reformas e alterações constitucionais e educacionais impostas no contexto do Golpe e do discurso reacionário da Escola “sem” Partido continuam imprimindo seus efeitos sobre a educação brasileira. É nesse sentido que se tem utilizado a expressão “tempos de Golpe”, para fazer referência não apenas a um período específico, mas aos efeitos desse período, que se iniciou com o ciclo do Golpe de Estado de 2016 e perpassou sua efetivação, as eleições de 2016 e 2018 e se perpetua nas múltiplas manifestações e expressões antidemocráticas e autoritárias que, dia e noite, são praticadas e estimuladas no Brasil por uma vertente político-partidária ultraconservadora, que teve na figura do ex-presidente da república, Jair Messias Bolsonaro, durante o seu mandato entre 2018 e 2022, a sua maior expressão e que pode ser traduzida naquilo que se denominou de “bolsonarismo”. Também porque, embora se perceba o enfraquecimento e a desarticulação da organização Escola “sem” Partido a partir de 2020, os efeitos desse discurso permanecem, pois conforme alertou Penna (2018c), os efeitos do discurso da organização independem da aprovação ou não do programa Escola “sem” Partido ou da sua já declarada inconstitucionalidade. Comprovação disso é a recente aprovação da Lei n. 18.637, do estado de Santa Catarina, de 8 de fevereiro de 2023, que institui a Semana Escolar Estadual de Combate à Violência Institucional Contra a Criança e o Adolescente.