Não gostaria que meus escritos poupassem os outros de pensar, mas sim, se possível, incitá-los aos seus próprios pensamentos (PI, p. x)1.
Introdução
Comparado com alguns dos demais contribuintes, como Michael A. Peters e Richard Smith, sou relativamente novo em cena. Apresentei meu primeiro artigo sobre Wittgenstein, Teaching and Learning in Wittgenstein’s Philosophic Method [Ensino e Aprendizagem no Método Filosófico de Wittgenstein], na reunião anual da Philosophy of Education Society em São Francisco, EUA (março de 2005)2. Fiquei muito feliz por ter James Marshall e Paul Smeyers na plateia, além de Nicholas Burbules como debatedor do meu artigo. Burbules (2005) deu-me uma resposta muito favorável e terminou por me convidar para me juntar a este círculo de filósofos da educação que incluía, é claro, Michael Peters, que coletivamente reintroduziu Wittgenstein no campo a partir de uma leitura mais continental, pós-analítica de seu trabalho3. Este grupo de estudiosos tinha se reunido na Nova Zelândia na década de 1990 para formar um grupo de leitura sobre Wittgenstein ao qual mais tarde me referi em uma entrevista com Peters e Burbules como The Fellowship of the Ring [A Sociedade do Anel] (Stickney, 2014a).
Naturalmente, a brincadeira expressa o quão ‘Precioso’ Wittgenstein tinha se tornado para nós, e reconhece o ônus de carregar esta carga, compartilhada com colegas notáveis no Reino Unido como Richard Smith (2011; Smith; Burbules, 2005) e Paul Standish (1995, 2012, 2017). Fiquei muito feliz quando Paul me convidou para falar na conferência Gregynog no País de Gales (Philosophy of Education Society of Great Britain, julho de 2015), e mais tarde, na conferência conjunta da British Wittgenstein Society/PESGB [Philosophy of Education Society of Great Britain] sobre Wittgenstein e Educação no University College London (julho de 2018). Richard Smith também foi orador principal na BWS, então gostei muito de ter me apresentado com ele, que tinha sido coordenador da sessão de apresentação de meu primeiro artigo na PESGB (2009).
Por que Wittgenstein?
Ao lecionar filosofia da educação (como fiz uma década atrás, antes que tantos departamentos de humanidades entrassem em declínio), seria sensato incluir na ementa obras como A República de Platão, Emile de Rousseau, o ensaio de Locke sobre educação, Pedagogia de Kant e Pedagogia do Oprimido de Freire, assim como teoria crítica, educação moral e feminismo pré- e pós-crítico etc. Não faria muito sentido listar um único texto do corpus de Wittgenstein,4 mas seria omissão não falar sobre Filosofia Analítica da Educação a partir das décadas de 1960-1990 (se é que já terminou) e sua tentativa de usar as filosofias da linguagem comuns de Ludwig Wittgenstein, John Austin e Gilbert Ryle para examinar o significado de termos como ensinar e aprender (Archambault, 1965). Thomas Green (1968) era um dos pensadores analíticos mais wittgensteinianos ao perceber limites borrados em torno destas palavras, ao invés de interpretações artificiais estreitas explicativas. No Reino Unido, existia a London School sob R. S. Peters, com Paul Hirst, Robert Dearden e outros. Nos Estados Unidos, Israel Scheffler trabalhava em Harvard a partir de uma abordagem mais pragmatista. Questões semelhantes surgiram em ambos os lados do Atlântico, o que seria interessante caso alguém tivesse um bom plano de fuga: “O ensinar é parasita do aprender?” (Komisar, 1968); “Ensinar é como vender - quando se ninguém está comprando você realmente está ensinando?” (Scheffler, 1960); “Em que sentido ensinar é diferente de dizer?” (Bakhurst, 2020). Wittgenstein realmente chamou ao exame da linguagem-em-uso com base em terrenos acidentados em oposição a píncaros teóricos (PI §108), mas esta literatura raramente respondia a documentos concretos da política em educação (uma exceção é Hirst, 1974); tampouco fazia descrições etnográficas (conforme Clifford Geertz ou Pierre Bourdieu) das viradas do discurso no uso cotidiano em estabelecimentos educacionais. Michael Peters tem sido o mais notável crítico deste movimento analítico-liberal na filosofia da educação, considerando-a como uma redução da filosofia de Wittgenstein para uma técnica que garanta (fiscalize) a higiene conceitual (Peters; Marshall, 1999; Peters; Stickney, 2018; 2019a).
Você pensa, “Por que não existe nenhum texto de Wittgenstein em uma ementa de disciplina sobre filosofia da educação?”. A maior parte da obra do último Wittgenstein foi publicada postumamente, compreendendo inúmeros aforismos, cadernos e, ocasionalmente, fragmentos que deixou para seus inventariantes. Nestas compilações, é frequente o uso de termos educacionais como ensinar, treinar, aprender, instruir etc., mas quase sempre com a finalidade de ilustrar uma questão filosófica. Cavell (1979) acertadamente se refere a eles como ‘cenas de instrução’, mas há concordância geral entre filósofos de que não abrangem uma teoria genética da aprendizagem (Glock, 1996) nem um guia à pedagogia como Kant (1904) nos legou. De fato, Wittgenstein disse muito pouco a respeito da condução da educação. Em meu artigo de 2005, deixei isto explícito ao me referir à abertura de Investigations, em que Wittgenstein explica que estes “elos intermediários” (PI §122), exemplos simplificados de ensino e treino juntamente com pensamento-experiências antropológicas (por exemplo, pessoas que não demostram nenhuma emoção, medem pilhas de madeira pelo trabalho envolvido ao invés do volume, ou aquelas não têm braços para gesticular), ajudam a “dispersar a bruma” (PI §5) em torno de nosso uso e encantamento em potencial pela linguagem (PI §109).
A maior parte do trabalho filosófico de Wittgenstein em Investigations é orientada para desfazer sua filosofia da linguagem anterior no Tractatus (Peters; Stickney 2018, Cap. 1), com a compreensão de que uma teoria de correspondência positivista lógica da verdade estava entranhada em como pensamos: “Uma imagem nos mantinha presos” (PI §115). Eis um exemplo do que desejo dizer, em que a referência de Wittgenstein à aprendizagem do uso das palavras não nos aponta apenas uma única definição de um conceito (como na busca de Sócrates por uma essência) ou uma conexão verificável entre palavras e estado-das-coisas no mundo externo, mas ao contrário, múltiplos usos (jogos de linguagem) que dão contexto, nuance e pluralidade ao sentido.
Pergunte-se sempre nessa dificuldade: como aprendemos o significado desta palavra (‘bom’, por exemplo)? Em que exemplos? Em que jogos de linguagem? Verá então com mais facilidade que a palavra tem que ter uma família de significados (PI §77).
De fato, muitas vezes Wittgenstein é rápido em observar que está trabalhando filosoficamente com questões ontológicas do sentido, em que a “essência é proferida na gramática” (PI §371), e não ao abordar tópicos de educação per se (Stickney 2017a e, de maneira mais completa, em 2020a).
Estou fazendo psicologia infantil? - Estou fazendo uma conexão entre o conceito de ensinar e o conceito de sentido (Z §412)5.
Como se ensina uma criança (digamos, em aritmética) ‘Agora some estes!’ ou ‘Agora isto forma um conjunto’? É claro que, originalmente, ‘somar’ e ‘formar um conjunto’ devem ter tido outro sentido para ela além de ver desta ou daquela maneira. - E esta é uma observação sobre conceitos, não sobre métodos de ensino (PI, p. 208, ênfase nossa; RFM VII.4).
‘Todos aprendemos a mesma tabuada’. Isto bem poderia ser uma observação sobre o ensino de matemática em nossas escolas, mas também uma constatação sobre o conceito de tabuada (PI, p. 227)
Além de algumas observações autobiográficas nas quais lastima que o sofrimento na educação estava saindo de moda, e que a habilidade de seus próprios alunos pode ter escapado depois que ficaram fora de seu alcance como educador (CV, p. 38; 71e), existem apenas alguns parágrafos diretamente relevantes que posso apontar em seu Preface to a Dictionary for Elementary Schools não-filosófico: sobre a promoção da habilidade do estudante para autocorreção (PO: DES, p. 15) e aperfeiçoamento da aprendizagem a partir da ruptura da ordem alfabética convencional (Stickney 2017a; Savicky, 1999, 2017). O fato de ter se formado e depois lecionado no ensino fundamental na região rural da Áustria ajuda a explicar de onde vêm suas muitas referências à aprendizagem, mas oferece pouco para compreender seu propósito filosófico. Assim, por que todo este alarido com relação a Wittgenstein e educação?
Sobre o Treino: Evitando a leitura negativa, Abrichtung de Wittgenstein
Não consigo descrever como (em geral) empregar as regras, a não ser ensinando, treinando vocês para utilizá-las (Z§318).
Pensando que eu tinha esclarecido as coisas no meu artigo de 2005, então li o de Michael Luntley (2007) sobre treino, o que me levou a elaborar uma longa e polêmica resposta. A título de cortesia, compartilhei meu artigo Training and Mastery of Techniques in Wittgenstein’s Later Philosophy: A response to Michael Luntley com Luntley e ele rapidamente replicou (Luntley, 2008). Ambas foram publicadas em uma Edição Especial sobre Wittgenstein, editada por Nicholas Burbules e Paul Smeyers para o periódico de Michael Peter, Educational Philosopht and Theory (Stickney 2008a). Provavelmente é meu artigo mais “buscado”, conforme consta em Academia.edu. Na mesma edição também tive um artigo mais extravagante, mas obscuro que atraiu pouca atenção: abordava as referências de Wittgenstein à teoria da relatividade (Stickney, 2008b), usando a forma de uma bala ou canhão para examinar a questão em três níveis diferentes: reações animalistas, treino de crianças e referências de Wittgenstein a Einstein. Em retrospecto, agora acho que esta indagação em multinível estabeleceu o padrão para minha pesquisa sobre o uso da palavra aprendizagem por Wittgenstein em On Certainty [Da Certeza] (Stickney, 2020a, minha palestra BWS de 2018), assim como um artigo recente (2020b) sobre Seeing trees [Enxergar árvores], discutido na seção final deste artigo.
De que maneira os autores medem nosso sucesso e justificam para nossa família o tempo despendido quando escrevemos para públicos relativamente pequenos? O debate Stickney-Luntley se transformou em uma nota de rodapé no livro de Andrea Kern, Sources of Knowledge (2017, p. 666)6, e até mesmo apareceu em sua apresentação na Queens University em Kingston, Ontário, onde David Bakhurst estava organizando uma série de palestras sobre filosofia da educação em seu Departamento de Filosofia - um tópico que raramente surgia na filosofia acadêmica, para a qual este periódico também é agora uma exceção. Bakhurst (2017) gentilmente escreveu o prólogo para o volume editado por nós, A Companion to Wittgenstein on Education (Peters; Stickney, 2017), felizmente confirmando nossa afirmativa à relevância de Wittgenstein em nosso campo. Teria sido difícil lançar aquela coletânea de 50 capítulos de 45 autores oriundos de 14 países, caso tivesse recebido uma resenha negativa.
Às vezes, Wittgenstein é criticado por não reconhecer ser devedor, pois não fez referências ao trabalho do seu predecessor. Muitos de meus escritos sobre treino se embasaram em José Medina (2002, 2004, 2006), que se baseou no trabalho de Meredith Williams (1989, 1991, 2010). Medina (2002) abordou a questão do treino de maneira muito clara ao mostrar que, para Wittgenstein, é uma via rumo ao domínio das regras, em que o novato gradativamente passa por orientação do professor para ter autonomia dentro delas: uma facilidade ou fluência que apenas outros com experiência conseguem reconhecer. Wittgenstein dá o exemplo de como sabemos quando alguém está tocando piano de maneira expressiva, ao contrário de mecanicamente, e conclui que para explicar esta qualidade de performance, teríamos que explicar uma cultura inteira (Z §164; CV, p. 7, 69). Também me aproximei bastante de Stephen Mulhall (1990, 2001) e Charles Taylor (1995). O que une estes estudiosos de Wittgenstein é a leitura social do seguimento de regras, em oposição à abordagem mais racionalista e individual de Luntley (uma criativa mescla de Wittgenstein e o res cogitans de Descartes). O trabalho de Paul Smeyer sobre a iniciação em uma forma de vida comum por meio da aculturação teve profunda influência em meu próprio pensamento (Smeyers, 1995). Em nosso painel e simpósio (2016), Luntley foi a voz solitária por trás da leitura individual: um contraste manifesto de novo na British Wittgenstein Society (University College London, 2018), que Luntley abriu com uma fala criticando a visão social-normativa do seguimento de regras e que, no último dia, encerrei dizendo que é social e normativa ‘ao longo do caminho todo.’ Conforme Wittgenstein observa, até mesmo a matemática é normativa,
As crianças não fariam exercícios de cálculo apenas, mas também para uma tomada de posição bem determinada contra erros de cálculo.
O que digo provém do fato de que a matemática é normativa. Mas “norma” não significa o mesmo que “ideal” (RFM, VII.61).
Apesar destas diferenças de interpretação, respeito a originalidade e a tenacidade de Luntley, pois foram observadas por mim quando o incluí em painéis de discussão nas conferências de Toronto e de Oxford,7 bem como em nosso volume coeditado e na seção da enciclopédia sobre Wittgenstein (Peters; Stickney, 2017; Stickney; Burbules, 2017). Talvez eu esteja em dívida com este homem de espírito livre no campo por ter me dado a oportunidade de articular uma versão da visão social mais comum.
A leitura Abrichtung das referências de Wittgenstein ao treino, enfocada fundamentalmente em seus cadernos preliminares (1958) como duras formas de adestramento animal e condicionamento estímulo-resposta, foi o aspecto mais preocupante desta história.
A criança aprende esta linguagem … ao ser treinada para seu uso. Utilizo a palavra “treinada” de uma maneira estritamente análoga àquela como falamos de um animal sendo adestrado para fazer determinadas coisas. Dá-se por meio de exemplos, recompensa, castigo e coisas deste tipo (BB, p. 77).
Em Investigations, isto é suavizado como:
Uma criança emprega essas formas primitivas da linguagem quando aprende a falar. O ensino da língua não é aqui nenhuma explicação, mas um treinamento (PI §5).
“Como uma erva daninha, Abrichtung continua retornando depois que pensamos que tinha sido arrancada” (Freisen, 2016; ao comparar Abrichtung e Freisen, ver Bakhurst, 2015; Peters; Stickney, 2018, Cap. 2; Winch, 2019). A narrativa de adestramento animal é alimentada por relatos de Wittgenstein batendo em estudantes quando trabalhava como professor do ensino fundamental nos remotos vilarejos da Áustria (Bartley, 1985), um emprego do qual foi demitido (Peters; Stickney, 2018, Cap. 3), e apela a relatos codificados em diários de suas ligações com homens jovens em um ponto de encontro bem conhecido no parque local.8 Na ausência de qualquer evidência concreta que conecte estes eventos em sua vida, estas notícias de tabloide não são muito úteis para compreender pensadores como Wittgenstein ou Nietzsche. Estas insinuações nos distanciam de uma apreciação mais sensível da luta de Wittgenstein contra uma condição de autismo de alta performance (possivelmente síndrome de Tourette), um ambiente heteronormativo que o forçava a mascarar sua orientação (Rejali, 2017), e sua batalha contra tendências suicidas que tiraram a vida de seus irmãos. O desinteresse de Wittgenstein pelas mulheres é, sem dúvida, um constrangimento (por exemplo, chamar Elizabeth Anscombe de homem honorário), mas conforme Alessandra Tanesini (2004) nos lembra, mesmo as feministas podem fazer bom uso de filósofos misóginos como Wittgenstein e Nietzsche (Zerilli, 2005). Provavelmente a rejeição segue dois caminhos: se fosse vivo hoje, com certeza Wittgenstein desaprovaria a maior parte do que está escrito sobre seu trabalho e suas conexões com a educação. Em geral, fazemos bem em evitar relatos hagiográficos de nossos filósofos favoritos (Sluga, 1996). Biografias filosóficas como as de Ray Monk (1990; 2001) e Beth Savickey (1999; 2017; Gasking; Jackson, 1967) podem ser muito esclarecedoras, mas encontrarmos melhor a filosofia de Wittgenstein em seus textos, embora sejam reconstruções de suas anotações. Em um esforço sincero para compreender a filosofia de Wittgenstein, é necessário examinar minuciosamente várias centenas de passagens muitas vezes não sequenciais, até que “gradualmente se faça luz sobre o conjunto” (OC §141). O que encontramos mais comumente em observações do último Wittgenstein são reflexões mais suaves sobre aprendizagem por meio de exemplos:
Uma das coisas que fazemos ao discutir uma palavra é perguntar como nos foi ensinada [...] Como aprendemos a ‘sonhar assim e assim’? O ponto interessante é que não aprendemos porque alguém nos mostrou um sonho. Se você se perguntar como uma criança aprende ‘bonito’, ‘ótimo’ etc., descobrirá que que as aprende quase como interjeições (LC 1-2).
Imagine que você precise ensinar o conceito à criança. Você precisa ensinar evidências (digamos, lei das evidências). […] É notável o conceito ao qual este jogo de evidências pertence (LW I, p. 55e).
Usos construtivos da filosofia do último Wittgenstein na educação
A leitura social de Wittgenstein, defendo eu, torna o trabalho do último Wittgenstein significativo em esforços para produzir mudança política e fazer o trabalho de justiça social, o que vemos mais fortemente no feminismo filosófico com Naomi Scheman, Linda Zerilli, Loraine Code, Susan Hekman e outras, bem como na filosofia ética com Iris Marion Young, Alice Crary, Raimond Gaita etc., e na filosofia política com Charles Taylor, James Tully, David Owens, Michael Temelini, Chantal Mouffe, Hannah Pitkin e outros. Na filosofia da ciência também, se considerarmos Ian Hacking e Stephen Toulmin. Ao escrever o capítulo de epistemologia para um livro didático do ensino médio (Stickney et al., 2011), recorri a Hekman (1995) para ajudar a apresentar Wittgenstein a estudantes adolescentes do último ano da educação básica prestes a ingressar na universidade: examinando como os estereótipos e o discurso pejorativo se sedimentaram no alicerce de nossa cultura, contribuindo para o racismo sistêmico em termos de como ver e considerar as pessoas que são diferentes. No capítulo sobre filosofia da ciência, incluí o trabalho de Hacking (2002) sobre a invenção de pessoas ao examinar conceitos de superdotação e TDAH como constructos sociais que pertencem a nossas taxonomias educacionais, com circuitos de feedback na maneira como diagnosticamos casos e depois procuramos oferecer programas ou soluções para estas excepcionalidades. Este é o tipo de conversa que precisamos ter em educação e, é claro, em ambos os casos estes pensadores mesclam Wittgenstein com Foucault para responder a questões de nominalismo e realismo, considerando a arbitrariedade de alguns de nossos constructos educacionais para pensar em como poderiam ser governados de outra maneira (Foucault, 1985, 1994a, 1994b).
Farei uma pausa antes de retornar à importância de Foucault. Depois que o livro didático foi publicado e estava no sistema escolar há vários anos, recebi comentários consideráveis de colegas docentes de filosofia no ensino médio: por meio da Ontario Philosophy Teachers Association, na qual eu era e sou um palestrante frequente, e quando eu lecionava disciplinas tanto para docentes de filosofia contratados como candidatos a professor (e ainda o faço; ver Stickney, 2019). Também fui copesquisador no High School Philosophy Project (bolsa SSHRC sob orientação de Trevor Norris, pesquisador principal). Duas de minhas publicações são oriundas desta experiência. A primeira foi um artigo sobre ensino de Wittgenstein com adolescentes, que foi recusado por revisores da PESGB por ser descritivo demais e carente de um argumento claro. Felizmente, Richard Smith e Paul Smeyers o resgataram rapidamente como editores de Ethics and Education (Stickney, 2014c), observando mérito na filosofia da educação para discutir o tema de como abordar uma tarefa tão intransponível: a resposta é discutir nossa relação com os primatas, falar sobre arte e juízo estético, pensar por que a linguagem abusiva muitas vezes vem como uma resposta quase natural, e se as notações de matemática e de música nos ajudam a alcançar articulações daquilo que seria, de outra maneira, inefável. Estas conversas são envolventes para os adolescentes, mas as evidências são, em grande medida, empíricas e qualitativas, quando muito. Acatando Wittgenstein, parecia uma coisa boa oferecer uma descrição apropriada desta pedagogia, ao invés de proferir uma explicação (causal ou outra) ou oferecer uma teoria pedagógica. Não foi esta a advertência de Wittgenstein? A filosofia “deixa tudo como está” (PI §124); a filosofia “apresenta, simplesmente, tudo, e não explica e nem conclui nada. - Tudo está ali em aberto, não há nada para explicar. Pois o que porventura estiver oculto, não nos interessa.” (PI §126). Conforme observei (Stickney, 2017a), muitas vezes nos falta a passagem intermediária que conversa com tantos problemas em todos os níveis de educação e governança: “O estado civil da contradição, ou o seu estado no mundo civil: esse é o problema filosófico” (PI §125). Experimentei novamente esta abordagem descritiva em minha palestra na conferência Gregynog da PESGB (2015) ao discutir regimes opostos de treino em matemática, fortemente contestados no currículo de Ontário (Stickney, 2017b). Ilustrei a questão trazida por Wittgenstein de que as justificações se dão e, no fim, agimos (PI §§211, 217). Ao concluir minha fala, um dos professores me perguntou qual era meu argumento, e pensei quão profundamente entranhada esta forma se tornou nos círculos filosóficos (especialmente no Reino Unido). Há uma razão pela qual a paródia satírica do grupo Monty Python The Argument Clinic9 é tão imediatamente reconhecível como caricatura de tendências reais. Conforme Frank Cioffi (1998) observa ao discutir formas pretensiosas de coleta de evidências nas ciências sociais (por exemplo, anotações de campo), como na pesquisa de Irving Goffman sobre persona, muitas vezes não precisamos de uma explicação; como ao assistir uma peça de teatro, reconhecemos a moral da história sem ler o programa.
Com esta reclamação agora fora do caminho, vamos examinar a segunda publicação. Norris convidou-me para apresentarmos juntos o High School Philosophy Project em um simpósio da PESGB (2018). Decidi compartilhar minha experiência de ter passado por reformas curriculares, nas quais documentos saem do Ministério da Educação ou da Coordenação do Distrito Escolar com a intenção de produzir uma mudança coordenada e uniforme do sistema - quase sempre embalada na linguagem de Thomas Kuhn referente a mudanças de paradigma (Stickney, 2006). O que quase invariavelmente ocorre é que, ao invés de um consenso, existe uma infinidade de interpretações das novas regras (Stickney, 2015), algo que aconteceu no caso dos professores secundários ao interpretarem o novo (2013) currículo de filosofia. Sem entrar na leitura da subdeterminação de Saul Kripke do argumento de seguimento de regras de Wittgenstein, é possível perceber para onde isto está indo: a cena de Wittgenstein de um educador que reage em choque quando um aluno se desvia da regra, e o infinito retrocesso estabelecido por isto quando então tenta-se fortalecer as razões para a regra nos levar de uma maneira e não de outra (Temelini, 2015).
Nosso paradoxo era este: uma regra não podia determinar nenhum modo de agir, pois todo modo de agir deve estar em conformidade com a regra. A resposta era: tudo o que pode estar em conformidade com a regra também pode ser posto em contradição (PI §201).
Incluí isto em nossa monografia (Peters; Stickney, 2018, p. 100-102) como um exemplo de que, em vez da padronização na educação, o que vemos com frequência são arquipélagos de diversidade (como Galápagos): inúmeros desvios nas regras mesmo dentro de escolas e departamentos, na medida em que os educadores improvisam e respondem iterativamente a seus estudantes.
Isto me leva a de novo a combinar Foucault com Wittgenstein, o que, em filosofia da educação, foi mais desenvolvido por Michael Peters (1995; Olssen, 1995; Stickney 2009a). Outra influência sobre mim, entretanto, foi James Tully (orientador da minha tese) que também utilizava Wittgenstein e Foucault em filosofia política, referindo-se à iluminação recíproca destes pensadores (Tully, 2003). Em seu marcante livro Strange Multiplicity, Tully (1995) investigou as muitas formas de constituição política que podem existir se permitirmos a diversidade. Esta é uma questão muito importante no Canadá, assim como no Brasil, devido à necessidade de confrontar nosso legado colonial e, em nosso campo, participar de um processo prolongado de decolonizar a educação. As reivindicações de Reconhecimento de Terras Indígenas são um problema importante em nosso país, aparecendo em nosso currículo de história e geografia. Em fevereiro passado (2020), antes do coronavírus e da paralisação econômica subsequente, a controvérsia sobre um gasoduto de gás natural atravessando as terras tradicionais da Nação Indígena Wet’suwe’tan na Colúmbia Britânica levou a um protesto nacional que impediu que os trens cruzassem o território Mohawk em Quebec e até mesmo que trens de passageiros partissem da Union Station em Toronto. O que o trabalho de Tully mostrou é como um imaginário social (Taylor, 2004), na forma do conceito de propriedade de Locke em seu Dois Tratados sobre o Governo, é outra imagem que nos mantém presos (PI §115) - impedindo o reconhecimento das formas pré-existentes de constituição política e desenvolvimento de terras entre povos indígenas e, portanto, impedindo a resolução legal de suas reivindicações por soberania. Desenvolver a terra é encarado por definição como seu uso otimizado e legítimo, justificando a exclusão de habitantes indígenas de sua governança: como se vivessem em um plano inferior, fora do contrato social. Como educadores vivendo de acordo com as recomendações de nossa Comissão da Verdade e da Reconciliação (Tully orientou a Royal Commission on Aboriginal Affairs [Comissão Real de Assuntos Indígenas] depois do confronto armado em Oka em 1989), temos o dever de decolonizar a educação. Para realizar este tipo de trabalho sobre nós mesmos, precisamos examinar casos de nossa docência concreta e também compreender como as coisas são ou poderiam ser feitas de outra maneira - trabalhar genealogicamente, como Wittgenstein e Foucault fariam, ao comparar muitos exemplos. Precisamos examinar com cuidado como viemos a formar costumes, instituições, reações e até mesmo desejos com base em substratos profundamente incorporados, porém passíveis de erosão, como o imaginário lockeano acerca da propriedade.
Se examinarmos as coisas de um ponto de vista etnológico, isto significa que estamos dizendo que filosofia é etnologia? Não, significa apenas que estamos assumindo uma posição de fora para conseguir ver as coisas de maneira mais objetiva (CV, p. 37e)10.
Ao fazer este trabalho, modificamos gradativamente nossa história natural ao alterar nossa linguagem e forma de vida. Considero que os filósofos da educação têm um papel neste processo de mudança, levando o movimento analítico adiante ao fazer o trabalho genealógico e dialógico necessário para compreender melhor e respeitar pessoas diferentes. É possível que aqui eu caia em contradição, pois meu uso da filosofia de Wittgenstein não deixa tudo como está, mas se alinha mais com Marx ao buscar não apenas descrever, mas mudar o mundo. Este trabalho é bastante antropológico, mas de maneira não-invasiva: dar voz e agenciamento àqueles excluídos de processos de governança, como professores e estudantes nas escolas.
Isto é, uma educação bastante diferente da nossa poderia também ser o fundamento de conceitos muito distintos, pois aqui a vida funcionaria de outra maneira.
- O que nos interessa não interessaria mais a eles (isto é, as outras pessoas envolvidas). Aqui, conceitos diferentes não seriam mais inimagináveis. Na verdade, esta é a única maneira em que conceitos essencialmente diferentes são imagináveis. (Z §§387-88; PI, p. 230).
Muito do meu trabalho recente enfoca a educação baseada no lugar dentro no campo maior da Educação para a Sustentabilidade Ambiental. Atualmente sou coeditor de um Número Especial do Journal of Philosophy of Education (Wiley, v. 54, n. 4), um braço da PESGB, para envolver pesquisadores e filósofos da educação na problematização do conceito de educação ambiental transformacional. Utilizei o trabalho de Tully em meu próprio artigo, mas também tenho um artigo mais longo em revisão agora (Stickney, 2020b) sobre Enxergar árvores, embasado no trabalho de Stephen Muhall em combinar Heidegger e Wittgenstein em torno do tópico veja-como (PI, p. 194-5). Ao usar uma árvore famosa como meu eixo central de investigação, este artigo se originou de minha palestra-caminhada PESGB 2019, quando levei um grupo de professores para fora da sala de conferências para visitar uma azinheira no claustro medieval do New College, Oxford. Fiel a Wittgenstein, espero, eu não queria falar sobre educação baseada no lugar, mas sim fazê-la ou mostrá-la (Peters; Burbules; Smeyers, 2008). Wittgenstein adverte: “Não imagine uma descrição do que nunca ouviu falar, [...] uma descrição imaginária da qual você não tem a menor ideia” (CV, p. 35e; PI §66, “não pense, veja!”). Agora avô de três meninos, quero ver mudanças significativas que nos ajudem a impedir a crise climática que ameaça a própria existência de nossa civilização global. Salvar árvores no Canadá e no Brasil é fundamental para nossa sobrevivência coletiva. Precisamos considerar as árvores com maior reverência (RFGB, em PO, p. 139). A última seção de minha fala para a Wittgenstein British Society (Stickney, 2020a) enfocou os negacionistas da ciência do clima, com base na discussão de Wittgenstein em On Certainty sobre as pessoas que consultam um oráculo ou um fazedor de chuva em vez de um físico. A questão aqui é por que as pessoas não reagem com o mesmo senso de urgência ao verem a mesma evidência científica irrefutável para a crise do clima, ao que eu respondo com Wittgenstein que algumas proposições em charneira e reações de aprendentes enraizadas podem variar entre populações (e especialmente entre alguns líderes mundiais). Mas também quero advertir meus colegas que contribuem com a literatura em educação para a sustentabilidade ambiental que é improvável que dizer a nossos estudantes para olharem diferentemente a natureza, seja por intermédio de perspectivas indígenas ou zen budistas etc., realmente modifique a maneira como as pessoas olham e consideram as coisas. A mudança precisa ser incorporada e integrada a práticas e rituais cotidianos para que altere de maneira significativa os modos habituais de reagir e seguir em frente.
Um filósofo diz ‘Olhe as coisas desta maneira!’ - mas em primeiro lugar nada garante que as pessoas olharão as coisas deste modo e, em segundo, seu conselho pode chegar tarde demais. É possível, além disso, que este conselho não tenha resultado algum, e que o ímpeto por uma mudança como esta, na maneira como as coisas são percebidas, deve ser oriundo de outro lugar. […] Nunca devo esperar mais do que influência indireta (Wittgenstein, CV, p. 61-62).
Sem desistir de nosso futuro, assumo uma posição de esperança em educação ambiental transformadora ao ver, como Wittgenstein claramente fez, que “a pessoa que tem juízo se desenvolve naquilo que denominamos Arte” (LC, §17, p. 6; Peters; Stickney, 2018a, p. 53-55; Stickney, 2002c). A analogia nos lembra que a aculturação (um rico meio), treino (escalas) e educação (teoria e história musical) podem resultar em marcantes desenvolvimentos, especialmente quando todos trabalham em harmonia.
Se ensinarmos esta ou aquela técnica a um ser humano por meio de exemplos - que proceda desta maneira e não daquela a cada situação nova, ou que fique preso neste caso e assim faça isto e não aquilo, é a continuidade ‘natural’ para ele: isto é um fato de natureza extremamente importante (Z §355).
Uma pergunta central em meu trabalho com Wittgenstein é se estas ecopedagogias serão eficazes. Fiquei impressionado com a pergunta de Paul Hirst (1971), “De que maneira, ao entrar em sala de aula, um inspetor escolar sabe que está ocorrendo ensino e não coisas loucas e vagas em nome dele?” Ao escrever um artigo para uma conferência Agency After Foucault que ficou longo demais para ser publicado (mas ficar feliz por ter compartilhado minha sessão com James Marshall), dividi o artigo em dois: um respondendo à questão de como usamos critérios explícitos e tácitos para avaliar professores, primeiro com Wittgenstein (Stickney, 2009b) e depois ao examinar genealogicamente o juízo de professores por meio de Foucault (Stickney, 2012). A pergunta em torno de como adquirimos o juízo especializado, feita por Wittgenstein como uma questão de escolha de sugestões, mas não formalmente ao fazer um curso ou ser ensinado (PI, p. 227), permaneceu comigo durante toda minha carreira. É a aplicação mais clara do pós-fundacionalismo do último Wittgenstein à educação, embasada em um tema recorrente em seu trabalho filosófico.
Naturalmente, existe justificação; mas ela tem um fim. (OC §191-92)
Reconhecer limites para justificar nossos juízos especializados de performance e domínio de técnicas oportunas, além de embasar estas avaliações em um contextualismo profundo (discernindo origem e circunstâncias relevantes que emprestam sentido ou significado; Medina, 2006) como uma concordância em nossa forma de vida (PI §§241-2), tem ocupado meus pensamentos nas últimas duas décadas,11 servindo como ocasião para meu artigo sobre coreografias de juízo (em festschrift de Michael Peter; Stickney, 2014b); para abordar como os educadores leem o silêncio em sala de aula (Stickney, 2014c); e ao julgamento na guerra entre a descoberta matemática e seus fundamentos (Stickney, 2017b).12 É também o ponto de partida para discutir a insistência de Wittgenstein de que algumas coisas não são ensinadas formalmente ou nem mesmo aprendidas, distinguindo entre aprendizagem interdisciplinar e a iniciação prévia ou aculturação na linguagem (Stickney, 2020a, b). Espero que os leitores vejam neste trabalho um uso apropriado do pós-fundacionalismo de Wittgenstein na filosofia educacional, inspirando seus próprios pensamentos ao longo destas linhas.