Introdução
Cidade Invisível estreou em 5 de fevereiro de 2021 pela Netflix e, nos primeiros meses, já figurou entre as 10 produções mais assistidas em mais de 40 países ao redor do mundo, segundo o jornal UOL (Castro, 2021), garantindo assim sua renovação para uma segunda temporada.
A série de fantasia criada pelo diretor Carlos Saldanha, Raphael Draccon e Carolina Munhóz busca fazer um resgate cultural das tradições populares brasileiras, entrelaçando-as com os problemas ambientais e sociais enfrentados por uma comunidade ribeirinha fictícia no estado do Rio de Janeiro.
Seu enredo é construído a partir de uma tendência crescente nas produções audiovisuais, baseada na premissa de que determinadas histórias já são conhecidas pelo seu público – no caso, o folclore brasileiro –, de modo que o roteiro da produção não pretende dar maiores explicações e detalhes sobre personagens, origens e jornadas.
Esse tipo de enredo, escolhido para Cidade Invisível, também busca atualizar o folclore no qual se baseia, incluindo elementos da cultura atual e questões modernas. Exemplos conhecidos desse modelo de enredo são as séries: American Gods1, Percy Jackson2, Penny Dreadful e Penny Dreadful: City of Angels3. Mesmo com uma abordagem contemporânea, diretores e atores experientes e visibilidade internacional, a série ainda não conseguiu evitar as críticas.
Mais do que inserir essa série no âmbito de uma crítica à própria narrativa, neste artigo procuramos analisar o potencial da série como ferramenta de debate sobre a divulgação científica, a partir do que emerge no enredo da primeira temporada da série sobre o apagamento do saber popular e a invisibilidade dos indivíduos, diante do desenvolvimento da sociedade, aliado ao conhecimento científico e validado na sociedade ocidental.
Nossa análise é baseada na análise de discurso foucaultiana e também usamos um contraponto à noção de humanidade moderna e eurocêntrica versus uma sub-humanidade relegada, juntamente com o conhecimento e as tradições de Ailton Krenak.
Iniciaremos a análise a partir dos conceitos de Divulgação Científica e suas relações com um enredo que fala de ciência e folclore, para depois analisar a própria série.
Divulgação Científica e sua Definição Plural
Em março de 2021, Paulo Andreetto de Muzio (2021), autor do Blog Natureza Crítica no projeto de divulgação científica Blogs de Ciência da Unicamp4, apresentou no texto Cidade Invisível é divulgação científica sobre o meio ambiente, sim senhor!, um debate sobre o potencial da recente série da Netflix Cidade Invisível em proporcionar divulgação científica sobre questões ambientais e folclore.
No texto, o autor traça um paralelo entre os problemas ambientais, apresentados na série, e episódios vivenciados por ele durante sua carreira profissional no Instituto Florestal5, convidando seus leitores a refletir sobre o papel de divulgação científica da série e os apagamentos que fazemos desse conhecimento popular em favor do conhecimento científico:
Por que não aceitar entidades fantásticas para falar sobre questões científicas? […] Que cidade invisível é essa que o título da série propõe? Uma comunidade de criaturas folclóricas que caminham entre nós sem nosso conhecimento? Ou pessoas de carne e osso que escolhemos ignorar?
(Muzio, 2021, p. 1).
Desde a comunicação oral, passando pelos primeiros artigos sobre ciência produzidos por jornalistas, até os canais de mídia interativa na Web 2.0, a divulgação científica foi revisada e reformulada por pesquisadores da área para adaptá-la às inovações comunicacionais, científicas e tecnológicas.
Essas reformulações são observadas e discutidas desde sua própria definição conceitual até seu uso em novas tecnologias de comunicação, mostrando que seu conceito, funções e formas de execução estão relacionados entre si.
Assim, ao conceituar o termo divulgação científica6 neste artigo, deve-se observá-lo por autores que exploraram e mantiveram alguns significados, ao mesmo tempo em que incluíram novos, consoante aos resultados de suas pesquisas.
Obviamente, neste artigo, não pretendemos explorar em profundidade todos os anos de estudos e análises sobre o conceito de divulgação científica; assim, apresentaremos uma pequena revisão com o objetivo principal de mostrar que são necessários alguns requisitos e cuidados para identificar se uma determinada produção é ou não de divulgação científica.
Bueno (1985) discutiu e definiu a divulgação científica como um processo de recodificação, que deve ter como objetivo tornar o conhecimento científico compreensível e descomplicado para o público não especialista, utilizando uma transposição de uma linguagem especializada para uma linguagem não especializada.
Calvo Hernando (1992) destacou a importância de que essa comunicação ocorra fora do âmbito da educação oficial, já que a intenção é complementar a cultura dos especialistas fora de sua especialidade. Mora (2003), por sua vez, discutiu a importância de combinar o conhecimento científico com sensibilidade e imaginação, para despertar o interesse do público.
Dias et al. (2013) e Camargo (2015) comentaram que a divulgação científica deve ir além da recodificação e da transmissão de informações de forma atraente, e que também precisa ser realizada com base em planejamento, garantindo que o divulgador científico desenvolva materiais e suportes acessíveis à sociedade como um todo.
Por outro lado, Caldas e Zanvettor (2014) acrescentaram a importância de possibilitar a apreensão do conhecimento científico para que o público não apenas compreenda seus processos, mas também participe das decisões sobre temas de interesse da sociedade.
Além disso, de acordo com Silva, Garcia e Amaral (2015), a divulgação científica também deve servir como instrumento para a formação da cultura científica e da educação não formal, dialogando com a sociedade sobre temas que antes eram de um nicho específico.
Para Bessa (2015), divulgação científica é proporcionar que a ciência e o conhecimento científico sejam de domínio público, ou seja, é um conjunto de ações, estratégias e tarefas realizadas por profissionais de comunicação e cientistas que visam informar a sociedade sobre o que é produzido pela ciência. No entanto, essa divulgação científica deve sair do ambiente acadêmico e circular em ambientes acessíveis à sociedade. Por fim, Muzio (2019) acrescenta que a divulgação científica não pode ser apenas uma transferência unidirecional de conhecimento, mas um exercício de diálogo que possibilita a troca de saberes e a transformação da realidade.
Essa breve revisão de conceitos sobre divulgação científica nos ajuda a perceber que a sua própria definição não está estagnada em um único momento. Sua pluralidade se deve justamente ao fato de ser um conceito que se adapta às inovações tecnológicas e de comunicação sofridas nos últimos anos.
Portanto, devemos considerar para este artigo que o conceito estudado e pensado em 1985 precisa se adaptar a uma divulgação científica que passa por mudanças significativas com a popularização da internet, com base em uma gama considerável de instrumentos, práticas e significados que surgiram ao longo desses quase 40 anos. Ao realizar esse exercício de revisão conceitual em uma breve linha do tempo, sustentamos uma escolha de conceito atualizada e que reúne os principais pontos abordados pelos autores.
Assim, neste artigo, utilizaremos o conceito de divulgação científica, que consiste em inserir a ciência em domínio público, a partir de uma nova produção, a partir do conhecimento científico, que permita à sociedade se interessar, compreender e dialogar sobre a ciência. Por meio de recursos e suportes que saem do ambiente acadêmico e atingem a sociedade como um todo, o divulgador científico deve incluir em seu planejamento não apenas materiais que falem sobre resultados de pesquisas, mas conceitos, etapas e problemas da ciência, contribuindo assim para que o público possa utilizar esse conhecimento científico para suas tomadas de decisão.
A Cidade Invisível pode ser considerada Divulgação Científica?
Ao trazermos essa breve revisão de conceitos sobre divulgação científica, percebemos que as críticas recebidas pela série também se configuram para determinar que Cidade Invisível não atende aos requisitos necessários para ser considerada uma produção de divulgação científica.
Primeiramente, vale ressaltar que a série não foi planejada para ser sobre divulgação científica, portanto, não houve investimento em cenas que explicassem mais detalhadamente o folclore ou as questões ambientais, não contemplando, portanto, os conceitos apresentados acima. Em outras palavras, tornar o conhecimento científico compreensível para o público ao qual a produção é dirigida. A falta de explicação, inclusive, é utilizada como um desenvolvimento artístico do roteiro da série, demarcando assim sua opção pelo entretenimento e não pela disseminação do conhecimento científico.
Mesmo assim, Cidade invisível contribui para que questões importantes sobre a ciência sejam apresentadas à sociedade. Muitas dessas questões foram inclusive apresentadas como argumentos pelos leitores da postagem de Muzio e deixadas de lado por cientistas.
Quando se entende que a série não poderia ser de divulgação científica, justamente por não ser sobre ciência, ignora-se que Ciência também é sobre cultura popular e histórias tradicionais e que discutir o apagamento de uma cultura pela imposição de um sistema econômico, como o capitalismo, e apresentar problemas ambientais enfrentados por comunidades tradicionais e sua dificuldade em manter sua cultura, tradições e estilo de vida também é falar sobre ciência.
Cidade Invisível pode não ser especificamente um instrumento de divulgação científica, mas permite que seja usada como uma ferramenta para tal, pois é usada como premissa para novos conteúdos e discussões, desempenhando assim um importante papel social ao estimular o pensamento crítico sobre qual cultura estamos deixando para as gerações futuras e quais culturas estamos apagando. Também é importante ressaltar que sua contribuição de levar a cultura brasileira ao mundo é inegável, mesmo com todos os “poréns” que contemplamos neste artigo.
A série traz consigo discussões que são científicas e que deveriam estar mais presentes nos ambientes científicos e na sociedade, para uma ciência mais humanizada, comprometida com os problemas sociais e incorporando o pensamento crítico. Nesse sentido, concordamos com (Muzio, 2021, p. 1) quando ele propõe que “O sobrenatural encanta. Ele seduz. E Cidade Invisível trabalha com uma abordagem contemporânea de criaturas folclóricas para nos trazer questões atuais e estruturais”. O autor ainda afirma que
A divulgação científica [pode ocorrer] em vários níveis. Não precisa ser necessariamente uma aula complexa sobre o tema proposto. Pode ser uma provocação, um convite, um flerte. Assim como um filme que conta a história já narrada em um livro, a divulgação científica é uma adaptação da ciência. É preciso abandonar a necessidade de literalidade. Não há problema em ter elementos que não necessariamente existam.
Críticas, Personagens e Escolhas Narrativas
Como escolha narrativa, a série não dedica minutos de tela para explicar que o folclore brasileiro, suas origens e personagens não têm origens precisas, por isso a série teve que incluir elementos visuais e narrativos que resgatassem na memória do espectador possíveis referências pessoais sobre as histórias. Por exemplo, o folclore representado na série de livros e televisão do Sítio do Pica Pau Amarelo7 de Monteiro Lobato, que fez muito sucesso no país.
O Saci, por exemplo, tem sua suposta origem entre os povos indígenas da região das Missões, no sul do Brasil, em que é apresentado como um jovem negro que tem apenas uma perna e um gorro vermelho na cabeça, o que lhe confere poderes mágicos. Esse mesmo gorro, quando retirado, atribui a quem o usa a obediência e o controle do Saci. Essa entidade da cultura popular também é conhecida por pregar peças, mover-se em um redemoinho e assustar os viajantes noturnos com seus assobios.
Em Cidade Invisível, o Saci (interpretado por Wesley Guimarães) é um jovem negro e pobre, que vive em uma ocupação8, chamado Isac – um tipo de anagrama que indica seu caráter folclórico –, e caracterizado com um lenço vermelho que faz alusão ao gorro vermelho do personagem tradicional.
O boto-cor-de-rosa é outro exemplo interessante dessa caracterização. Presume-se que seja originário da região amazônica é o maior golfinho de água doce. Dentro da cultura, ele é um animal que tem o poder de se transformar em um homem muito bonito e elegante, geralmente vestido de branco e usando um chapéu que visa a esconder suas narinas de golfinho localizadas no topo da cabeça. Essa personagem se transforma e aparece em festas em que escolhe, atrai e engravida jovens solteiras, levando-as para o fundo do rio.
O boto-cor-de-rosa (interpretado pelo ator Victor Sparapane) é retratado logo no início da série e encontrado morto na orla da praia do Rio de Janeiro. Ao ser levado pelo protagonista Eric (interpretado pelo ator Marco Pigossi), ele se transforma em um jovem bonito, vestido de branco e usando um chapéu. Seu nome é Manaus, aludindo assim à possível origem da lenda.
Esses dois exemplos, apresentados neste artigo, demonstram a escolha narrativa da série de se apoiar na memória prévia do público sobre elementos do folclore brasileiro, depositando em pequenos detalhes indicações sobre o que se trata.
Insistimos que a falta de explicação e a suposição de que o público está familiarizado com os detalhes e enredos do folclore brasileiro impõe a necessidade de imagens e/ou consulta em outros materiais. Além disso, não há garantia de que o público realizará tal tarefa, especialmente quando consideramos que a série, sendo sucesso em mais de 40 países, é apresentada a um público que não está nem remotamente familiarizado com essa cultura. Dessa forma, com o tempo, as versões distorcidas podem se tornar mais conhecidas.
Um exemplo bem conhecido dessa distorção já ocorreu, mesmo durante a divulgação do programa, quando o público brasileiro expressou seu estranhamento quando a personagem Cuca (interpretada pela atriz Alessandra Negrini) foi apresentada. Em Cidade Invisível, Cuca é uma mãe solteira, independente, forte, sensual e que se transforma em borboletas. Metade de sua casa é um bar e a outra metade é seu local de prática de magia, poções e feitiços. Mas era a Cuca de Monteiro Lobato que o público brasileiro estava habituado e, talvez, esperava ver. Ou seja, um grande jacaré de cabelos loiros que vive em uma caverna.
Outro ponto que deve ser destacado é a escolha de restringir os cenários nos quais a história se passa a apenas três lugares: o Rio de Janeiro turístico; o Rio de Janeiro pobre, demonstrado pela ocupação; e a comunidade ribeirinha fictícia de Vila Toré. Ao optar por apresentar ao público apenas o Rio de Janeiro, a série ignora o fato de que o folclore permeia todo o país, com cenários pontuais e características que interferem na história contada. Assim, ao apresentar o folclore em um único cenário (litoral sudestino brasileiro), a série teve que criar atalhos para justificar a presença de algumas entidades em determinados locais – como o boto-cor-de-rosa, que é um animal de água doce em um ambiente de água salgada –, contribuindo para um apagamento da diversidade cultural e geográfica brasileira.
Como crítica positiva, Cidade Invisível cria a oportunidade de apresentar a cultura brasileira para pessoas do mundo todo, já que o streaming disponibiliza a produção internacionalmente para seus assinantes. Também traz à tona as antigas discussões ambientais que continuam a afligir o país, como o desmatamento e a desapropriação indevida de comunidades tradicionais. Tal como as abordadas na série pelo antagonista Dr. Afonso (interpretado pelo ator Rubens Caribé), que comete infrações e crimes ao obrigar a população da fictícia comunidade ribeirinha de Vila Toré a vender suas casas para que um resort seja construído no local.
O Desencantamento do Mundo a partir de sua Invisibilidade
O mundo está tão louco que acho que se eles dissessem que a produção é sobre o folclore brasileiro, talvez não tivesse gerado tanto interesse do público
(Muzio, 2021, p. 1).
Muzio traz um debate fundamental para pensarmos não apenas o lugar do folclore brasileiro, mas da produção de conhecimento e informação sobre nossa própria história. Como também observa Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo, perguntamos: quando foi que perdemos o entusiasmo por essas narrativas? Há quanto tempo nossa realidade está desencantada e embalada em recipientes plásticos prontos para serem consumidos e jogados fora?
Por outro lado, nessa série ficcional, há outra questão que está presente e atravessa a narrativa e que é poderosa para pensarmos sobre o conhecimento tradicional considerado não legítimo para o mundo científico e acadêmico. Em Cidade Invisível, há um embate latente entre o científico (o fato) e o tradicional, tido como lendário. Esse conflito traz várias reflexões sobre nosso uso do mundo, sobre nossa relação com o meio ambiente. Temos atualmente uma modernização globalizante e padronizadora, na qual as individualidades são apagadas, tornadas invisíveis, como diria Foucault: “A ficção consiste, portanto, não em mostrar o invisível, mas em mostrar como é invisível a invisibilidade do visível” (Foucault, 2009, p. 225).
Nós, viventes imersos na cultura eurocêntrica, não estamos interessados em olhar o mundo a partir de diferentes visões e construções. Outras visões são assustadoras, pois colocam em questão a sociedade do mercado, das máquinas, das ausências. De fato, essa civilização centrada em pressupostos modernos só pode existir como universal pelo extermínio de outras humanidades possíveis. Como nos diz Krenak (2019, p. 13) “Nosso tempo é especializado em criar ausências: no sentido de viver em sociedade, no sentido da experiência da própria vida”.
A invisibilidade das comunidades não brancas, a partir da imposição de certas lógicas que validam um conhecimento legítimo, neutro e universal, é colocada tanto na série quanto na discursividade constante da ciência. Ao propor o conflito entre ciência e folclore, insere como marco a condição de possibilidade de análise plausível dentro dos relatos, da expertise: a produção de fatos.
Por outro lado, a cidade invisível se impõe, com sua diversidade e eventos que não se encaixam nesses conhecimentos validados por essa lógica – e aos poucos se afastam e rompem com a plausibilidade da ciência.
Fora do mundo ficcional, a lógica dada pela sociedade ocidental branca, detentora do chamado “conhecimento formal”, é cada vez mais incapaz de lidar com sua própria falta de controle, com as consequências de sua produção. Que tipo de consequências?
Consequências como as trazidas no relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2021) pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nesse sentido, não há como voltar atrás, as mudanças climáticas estão ocorrendo rapidamente e com grande impacto da ação humana. A sociedade capitalista conhece tais consequências e reconhece os riscos intrínsecos à sua forma de produção e consumo do mundo. Risco aqui entendido a partir da definição de Anthony Giddens, ou seja, como desastres avaliados em relação a possibilidades futuras. O risco é algo específico da sociedade ocidental branca, uma vez que a palavra risco só começa a fazer sentido em “sociedades orientadas para o futuro” (Giddens, 2003, p. 33).
Será que agora, com a iminência de desastres ambientais, provocados pelo relatório da ONU, em vez de apenas calcular os riscos e decidir quem sofrerá com essas consequências, teremos a coragem de mudar a lógica intrínseca de nossa sociedade?
Lembrando que no mundo contemporâneo não há apenas impactos locais. Nos grandes centros urbanos, sentimos as mudanças ambientais com menos clareza, como bem analisa Krenak (2020, p. 54) “Aqueles que vivem na cidade não experimentam isso com a mesma intensidade, porque tudo parece ter uma existência automática: você estende a mão e tem uma padaria, uma farmácia, um supermercado, um hospital”
Por outro lado, alguns povos tradicionais9 sentem diariamente os impactos das mudanças climáticas e vêm narrando isso a partir da escassez e das dificuldades em manter suas vidas tal como foram construídas ao longo das gerações. Uma das narrativas sobre os impactos ambientais vivenciados diariamente pelas comunidades indígenas foi contada por Davi Kopenawa Yanomami. Ele e Luiz Bolognesi estrearam o documentário A Última Floresta, baseado no livro A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. O documentário aborda os recentes conflitos entre a população Yanomami e a invasão de garimpeiros ilegais. Além disso, Davi Kopenawa traz a noção de xawara, que são espíritos de doença trazidos pelas máquinas, que poluem o meio ambiente e impactam a vida da comunidade Yanomami (Kopenawa, 2015).
Além disso, durante a pandemia da covid-19, houve um aumento da contaminação por mercúrio nas terras Yanomami, também devido ao garimpo (Vilaça, 2020). Esses são impactos que nós, na cidade, acostumados à “existência automática”, como diz Ailton Krenak (2019), não presenciamos. Não podemos mensurar, com nossa epistemologia ocidental, a agressividade intrínseca dessas invasões e da destruição dos territórios Yanomami, pois, como diz Davi Kopenawa, para eles não há separação entre o humano e o meio ambiente; ao contrário, os Yanomami são parte da floresta, portanto, a destruição de seus territórios, as invasões, a poluição, são a destruição de sua própria identidade (Kopenawa, 2015).
Por outro lado, abordando o ambiente urbano, quais são as populações que mais sofrem com o aumento da temperatura, a escassez de água e a maior frequência de tempestades? São as populações periféricas, marginalizadas, invisíveis, que vivem nos morros, mais propensas a deslizamentos de terra, e onde o serviço de limpeza municipal não tem acesso, além de não poderem se proteger com tecnologia do calor excessivo.
A série Cidade Invisível mostra como estamos vivendo um momento de reflexão sobre as consequências de nossa “humanidade”. Ao longo da história da ciência, testemunhamos um distanciamento dos seres humanos de sua produção, dos indivíduos da natureza, e foram feitas tentativas de subjugar a sub-humanidade a essa lógica.
Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam permanecer ligados a esta Terra são aqueles que ficaram meio esquecidos nas fronteiras do planeta, nas margens dos rios, nas bordas dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São os caiçaras, os indígenas, os quilombolas, os aborígenes - a sub-humanidade
(Krenak, 2019, p. 11).
As entidades apresentadas na série não são as representações dessas sub-humanidades? Além disso, o título da série não seria um olhar para essa sub-humanidade, relegada, excluída? Basta pensar nos sujeitos representados pelas entidades da série: a mãe solteira, o mendigo, o morador de uma ocupação, a criança abandonada. Somente pessoas que vivem à margem da sociedade. Como nos fala Muzio (2021, p. 1) “[…] atualmente, esses personagens vivem em regiões e ocupações degradadas. As entidades acabam tendo, portanto, o mesmo destino que as comunidades tradicionais têm quando são retiradas de suas terras ou quando essas terras são descaracterizadas: a marginalidade”.
Indo um pouco além dos indivíduos, será que a Cidade Invisível não se refere ao próprio grupo de conhecimento esquecido e invisível, jogado nas bordas do mundo? Nós escolhemos o que ignorar, escolhemos o que existe e o que não existe.
Reconhecimento da Existência de Outras Culturas
Em março de 2021, o Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM) da Unicamp recebeu o biólogo e escritor moçambicano Mia Couto para uma bela conversa para uma palestra nomeada Quando o Meio Ambiente não tem Nome (Couto, 2021).
Esse nome nos leva a duas questões: a primeira é o apagamento do meio ambiente na cultura ocidental, o apagamento físico, o desaparecimento do que era conhecido anteriormente, a extinção de culturas e sociedades, a destruição de ambientes naturais. A segunda é a falta de palavras para designar o que chamamos de “meio ambiente” em algumas culturas.
Em seu discurso inspirador, Mia Couto (2021) nos conta que em algumas culturas moçambicanas, não existe uma palavra para designar “meio ambiente”, pois, ao contrário das culturas europeias, as culturas moçambicanas não entendem a separação entre sociedade, cultura e natureza.
Essa população que “se apodera da terra” não percebe algo externo chamado “meio ambiente”, pois não concebe a separabilidade de sua existência – como humanos – e a de um espaço natural e cultural à parte de sua própria existência. Esse segundo ponto nos leva a questionar se seria possível haver um diálogo entre conhecimentos supostamente incompatíveis e contraditórios.
Em nossa opinião, o mito da incomensurabilidade é apenas mais uma maneira de justificar o não uso, o não reconhecimento e a não aceitação do conhecimento que está fora do padrão da sociedade ocidental. Portanto, como podemos contornar a inexistência de palavras em certas filosofias, o distanciamento dos modos de vida? Uma primeira maneira seria reconhecer a existência dessas outras culturas, para tornar visíveis aquelas que até então eram consideradas invisíveis.
Ciência e Conhecimento Popular: um convite para aprender sobre o meio ambiente e nossa cultura
Quando observamos a série Cidade Invisível, há um constante confronto do investigador de polícia, baseado na racionalidade científica, com os fatos que apontam para a sobrenaturalidade folclórica brasileira. À medida em que ele embarca nos meandros da investigação, torna-se cada vez mais difícil manter a posição de racionalidade diante dos fatos que se desenrolam no enredo da série.
Quando trazemos as questões sobre divulgação científica para o contexto da série, buscamos apontar essa dualidade também presente na série. Ou seja, para abordar o folclore, para afirmar a narrativa das diferentes sociedades brasileiras, é necessário abandonar os preceitos científicos e sua racionalidade. A historicidade das populações periféricas, com suas narrativas e saberes, são marcadas como não possuidoras dessa racionalidade que tem como base e fundamento o conhecimento branco e eurocêntrico.
A série, sob essa perspectiva, ao apresentar elementos da cultura brasileira, aliados a questões ambientais e políticas (como a destruição de ecossistemas e reservas para construção e a ameaça de indivíduos de populações marginais pela especulação imobiliária), mais do que se opor à ciência e à racionalidade, nos faz um convite. Uma vez que aponta que os indivíduos que tornam periféricas as narrativas populares são os mesmos que destroem o meio ambiente dentro das justificativas da racionalidade científica, do progresso e do desenvolvimento da sociedade.
Martin-Barbero (2003) aponta para a necessidade de um estudo transversal sobre o conhecimento, especialmente quando se trata de conhecimento periférico, como é o caso da América Latina. Nesse sentido, o autor aborda diversas formas de conhecimento negligenciadas e segmentadas das diferentes sociedades que compõem esse continente. Ou seja, a forma como algumas comunidades se constituem a partir da comunicação oral e coletiva, com suas narrativas sendo construídas de maneiras diferentes das científicas hegemônicas.
A transversalidade, diz Martin-Barbero (2003), é uma das condições para se pensar em nossa sociedade e em uma produção de conhecimento voltada para as margens. Analisar o conhecimento por essa lente o tornaria obsoleto se não englobasse questões éticas, de solidariedade e de produção coletiva. Ou seja, tomar a produção de conhecimento como uma nova possibilidade para a construção da sociedade. Esse pressuposto impõe uma agenda para a formação dos sujeitos, tanto na escola quanto em outros espaços formativos informais (como a internet, a ciência, a comunicação), que também leve em conta o conhecimento local, tornando-o conhecido, retirando-o de uma narrativa meramente folclórica, periférica e marginal.
Considerações Finais
Cidade Invisível é divulgação científica sobre o meio ambiente, sim senhor!Provoca Paulo Muzio (2021, p. 01), apontando o quanto precisamos observar as produções locais para pensar sobre nossa realidade, o impacto social e ambiental de nosso modelo de sociedade. Essa série pode ser, segundo o autor, uma excelente ferramenta para isso, com linguagem acessível e um roteiro permeado de histórias reconhecíveis do nosso país.
Mesmo com a evidência dessa discussão em sua postagem nos Blogs de Ciência da Unicamp, Muzio ainda recebeu confrontos de vários leitores com os argumentos de que a série não poderia ser divulgação científica, justamente por se tratar de uma produção sobre conhecimentos tradicionais e não científicos. Nesse confronto, fica claro o abismo que existe entre os dois saberes, ou melhor, o abismo do que se entende por ciência e se este pode e deve ser usado para a divulgação científica. “Não é necessário acreditar em entidades sobrenaturais para validar a importância dessas lendas brasileiras, que movem o enredo de Cidade Invisível e são ferramentas de divulgação científica” (Muzio, 2021, p. 1).
Entender essa série como uma ferramenta de divulgação científica é justamente aceitar o convite de Martin-Barbero (2003) e Muzio (2021) para pensar o conhecimento local articulado com o conhecimento hegemônico. É transversalizar o conhecimento, torná-lo local, nosso, pensar a partir de nossa sociedade e dos problemas vividos em nosso país. Perceber o debate científico, popular e tradicional da série como parte de nossa cultura, enredado em nosso cotidiano, produzindo sujeitos a partir de nossas narrativas invisíveis.
Cidade invisível é um convite a olhar para esses saberes invisíveis, esses sujeitos apagados por uma sociedade que impõe a legitimidade do ser e do saber. A partir da invisibilidade que ocorre na série, podemos discutir a existência de diferentes saberes, diferentes humanidades que resistem, nas margens, nos becos, com subterfúgios.
A história, portanto, nos convida a pensar sobre a humanidade que decidimos construir e as sub-humanidades que deixamos para trás. Ela nos convida a refletir sobre nossa relação com o meio ambiente, sobre o desencantamento do mundo e sobre esse distanciamento entre uma “humanidade” e um “meio ambiente” externo que nos faz perder os laços de afeto.