INTRODUÇÃO
“A ligação entre educação e dignidade, entre as coisas duras e óbvias que são impressas nos livros e as coisas suaves e sutis que se alojam na alma.”
Chimamanda Ngozi Adichie
A presença africana é constitutiva do continente americano.1 Para embasar essa afirmação bastaria considerar o contingente populacional de africanos arrastado pelo tráfico escravista. Embora a quantificação deva admitir imprecisões devido à escassez dos registros que acompanha a violência do tráfico negreiro, a persistência de historiadores2 em desenvolver investigações nessa linha estima que, do início da colonização até o século XIX, entre 3.300.000 e oito milhões de pessoas escravizadas aportaram no Brasil. Até ao século XIX contabilizam-se 12,5 milhões de africanos a entrar no continente americano através do comércio transatlântico de escravizados.
Se dessas cifras deduz-se que o continente americano é “um braço estendido da África”, por outro lado, é inegável a destituição da presença negra por meio de violentos artifícios do colonialismo, com a intenção de instaurar a civilização europeia no centro da dominação política, econômica e do conhecimento. Como assevera Fanon, a “inferiorização do negro”, essa desumanização que oblitera qualquer reconhecimento e conduz ao “sentimento de inexistência” (FANON, 2003, p. 125) é um forte ardil para a rasuradas margens de contato entre o continente americano e o africano e para a identificação das lógicas diaspóricas que atravessam as américas. Na legitimação da hierarquia racial é imprescindível o controle de imaginários, representações e estereótipos para fazer persistir a inferiorização de pessoas, culturas e conhecimentos dos povos subalternizados. Esse controle tem por efeito o que se denominou epistemicídio, isto é, a descredibilização e supressão de conhecimentos não-ocidentais e não-cristãos por uma operação epistemológica, a da ciência moderna, que se impôs pela força da intervenção política, econômica e militar do colonialismo e capitalismo moderno (SANTOS e MENESES, 2010, p. 16). Do modo como entendemos, o epistemicídio é impetrado pela educação escolar, que reverbera, dissemina e controla normas eurocêntricas de conhecer e de viver.
A resistência ao escravismo pode ser lida no mesmo fluxo da dominação colonial. Lutas emancipatórias inscritas no continente americano disputam as narrativas que sustentam opressões e explorações. É nesse âmbito que situamos as reflexões trazidas nesse artigo. Do modo como entendemos, o direito ao reconhecimento da matriz africana na composição da identidade nacional, como reivindicado por movimentos negros e afrodescendentes, desarticula a perspectiva eurocêntrica e os aparatos que a sustentam, entre esses a educação escolar. Trazida na bagagem colonizadora, a educação escolar integrou os processos de dominação instando homogeneidades e unidades à custa da negação de culturas, línguas, narrativas.
Práticas discursivas que se sustentam em dispositivos de políticas educacionais para o reconhecimento da presença negra no continente americano, a partir do conhecimento e da cultura afrodescendente consistem no tema desse artigo. O conceito de diáspora nos oferece um aporte analítico na medida em que permite a abordagem desses dispositivos em conexão com as formas de agenciamento político “exercitado nas culturas e movimentos de resistência e de transformação e outros processos políticos que não são visíveis em escala maior” (GILROY, 2012, p. 20). Lopes (2004, p. 237), em sua “Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana”, alerta para a diferença entre a acepção grega da palavra diáspora, como dispersão espontânea e a desagregação compulsória que, “por força do tráfico de escravos, espalhou negros africanos por todos os continentes”. O autor indica que a diáspora africana compreende dois momentos, sendo o primeiro “gerado pelo comércio escravo, ocasionou a dispersão de povos africanos tanto através do Atlântico, quanto através do oceano Índico e do mar Vermelho caracterizando um verdadeiro genocídio, a partir do século XV - quando talvez mais de 10 milhões de indivíduos foram levados, por traficantes europeus” (LOPES, 2004, p. 237). O segundo momento identificado pelo autor situa-se a partir do século XX, com a imigração para as metrópoles coloniais. Na organização da “Enciclopédia” o autor demonstra que o significado da diáspora africana reúne “os descendentes de africanos nas américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram” (LOPES, 2004, p. 237). Com base nessa definição acionamos diáspora africana como a disposição dos afrodescendentes para reconstruir a existência com os escassos recursos disponíveis, os resíduos da colonização. Adicionamos ainda as reflexões de Silvério e Trinindad (2012, p. 909) acerca de uma lógica presente no atual conceito de diáspora, segundo a qual a origem africana, ou aquilo que se nomeia como ancestralidade, permite pensar a identidade para além da fronteira nacional e consequentemente, perceber de modo crítico a presença negra na sociedade.
Em nossa abordagem, aderimos à tese de Gomes (2017, p. 14) segundo a qual o movimento negro brasileiro assume papel “educador, produtor de saberes emancipatórios e um sistematizador de conhecimentos sobre a questão racial”. Na definição da autora, o Movimento Negro é entendido como:
As mais diversas formas de organização e articulação das negras e dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam à superação desse perverso fenômeno na sociedade. Participam dessa definição os grupos políticos, acadêmicos, culturais, religiosos e artísticos com o objetivo explícito de superação do racismo e da discriminação racial, de valorização e afirmação da história e da cultura negras no Brasil, de rompimento de barreiras racistas impostas aos negros e às negras na ocupação de diferentes espaços e lugares na sociedade. (GOMES, 2018, p. 23-4. Grifos da autora)
Em nossa concepção esses movimentos elaboram uma prática discursiva, ou seja, estratégias de ação, reflexões políticas que reverberam em teorias, conceitos, saberes que “ganham corpo em conjuntos técnicos, instituições, esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e de difusão, em formas pedagógicas, que ao mesmo tempo as impõem e mantêm” (FOUCAULT, 1997, p. 11)3. As práticas discursivas, portanto, se expressam em disputas em múltiplos campos, tais como o aparato jurídico, midiático, educativo. Focalizamos políticas educacionais para o reconhecimento da presença negra no continente americano a partir da prática discursiva dos movimentos negros e afrodescendentes entendendo-as como dispositivo de poder que conjugam elementos complexos a desestabilizar as tramas das relações raciais. Por essa via perseguimos rotas que demonstram os caminhos de uma presença africana em recursos de sobrevivência à violência colonial e em disputas pela noção do que significa viver e ser.
Na aproximação de experiências e práticas de luta presentes no continente americano, notadamente Brasil e Colômbia, adotamos os procedimentos da tradução intercultural a convocar um “diálogo mútuo entre as lutas que enfrentam o colonialismo, o racismo e a negação do ser e da história” (MENESES, 2017, p. 187). A tradução intercultural consiste num trabalho de interpretação entre movimentos sociais para identificar preocupações isomórficas e as diferentes respostas produzidas (SANTOS, 2006, p. 781). A tradução intercultural, nessa proposta, permitiria identificar o que não cabe nas totalidades construídas e percorrer o encadeamento de lutas semelhantes e respostas congêneres, para, a partir daí traçar a composição de novas zonas epistemológicas que indiquem racionalidades impronunciáveis devido à opressão de uma racionalidade hegemônica.
Essa analítica assenta-se nas epistemologias do sul, construto teórico que toma como pressuposto a inesgotável “diversidade do mundo” (SANTOS, 2010, p. 54) silenciada pelo monopólio do conhecimento científico4. Nessa perspectiva, a tradução intercultural focaliza formas de conhecimento elaboradas como parte da contraposição às injustiças e opressões sistemáticas provocadas pelo colonialismo, racismo, capitalismo, patriarcado.
Entendemos que esse procedimento não se estabelece sem indagações. Questões acerca das hierarquias de saberes no processo de tradução, ou relativas aos saberes e práticas impronunciáveis, ou ainda sobre a dificuldade de contrastar essas tradições de lutas distintas tendo em vista o perfil geográfico e o caráter heterogêneo da repressão colonial (CARVALHO, 1995) devem ser consideradas.
Entretanto, compreendemos, com base em Bhabha (2013, p. 284), que a incomensurabilidade cultural repercute na “atividade de articulação humana que dá sentido ao valor da racionalidade”. Portanto, a tradução intercultural dedicada à pontos articuladores dos movimentos sociais negros e afrodescendentes pode nos facultar o acesso às formas heterogêneas de subjugação em nosso passado colonial e às múltiplas camadas de resistência elaboradas como efeito da diáspora. A conjugação de fenômenos que abordamos nesse artigo, movimentos negros e afrodescendente, implica numa opção por aproximar práticas de luta que se definem por critérios distintos. Afrodescendente é uma nomeação instada por organismos multilaterais, perfilhado, por exemplo, pelos programas da Unesco no Brasil, nos idos da década de 1950. Conforme discutem Silvério e Trinindad (2012), o desenrolar do projeto Unesco viabilizou a produção empírica que fortaleceu teorizações opostas à democracia racial. Nesse mesmo enquadre, a origem africana passou a ser mobilizada discursivamente como raiz constitutiva da identidade. O efeito mobilizador do prefixo afro pode ser identificado na Colômbia, inclusive na designação movimento afro-colombiano. Mas se as aproximações são nítidas, sua força não deve apagar distinções. No Brasil, a criação do Movimento Negro Unificado estabelece um ponto de referência da articulação de várias entidades - culturais, políticas, religiosas - e segmentos - militantes vinculados a partidos políticos, sindicalistas, intelectuais, artistas. Nossa opção pela designação “movimentos negros e afrodescendentes” visa acentuar a convergência dessas perspectivas distintas, mas não opostas.
O registro das aproximações entre movimentos antirracistas nas américas não é recente e nos leva a afirmar que a luta por emancipação sempre foi a contrapartida da escravidão, embora essa nunca tenha sido homogênea em práticas e concepções. Nesse contexto, sinalizamos a correlação afrodiaspórica entre Brasil e Colômbia, atravessada por fenômenos análogos, como os dispositivos de políticas de educação para reconhecimento da presença negra nas américas, os quais impulsionam nossas análises. Na tentativa de introduzir um lugar de enunciação contraposto às estruturas hegemônicas do poder, e das narrativas, recorremos a produções discursivas dos movimentos negros e afrodescendentes ou elaboradas por intelectuais que assumem essa perspectiva. Cogitamos que não se trata de uma mudança do foco narrativo, mas de uma alteração do lugar enunciatório, um deslocamento na posição de autoridade. Nosso empenho é por buscar as interrogações e disputas que estão a introduzir a educação emancipatória.
APROXIMAÇÕES DIASPÓRICAS ENTRE BRASIL E COLÔMBIA: DISPUTAS PELA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Países com maior população afrodescendente do continente americano, Brasil e Colômbia guardam estreitas aproximações. No Brasil, a cifra relativa à população negra - critério que agrega autodeclarados preto ou pardo - contabilizava 51% da população segundo dados demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)5 de 2010. Em 2016, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo IBGE registrou maior crescimento da população autodeclarada negra: enquanto a participação percentual dos brancos na população do país caiu de 46,6% para 44,2%, participação dos pardos aumentou de 45,3% para 46,7% e a dos pretos, de 7,4% para 8,2%. Na Colômbia, o censo realizado pelo Departamento Administrativo Nacional de Estatística (DANE)6, no ano de 20057 afirma que a população afro-colombiana estava constituída por 4.311.757, representando um total de 10.4% da população nacional. Contudo, os dados oficiais a esse respeito são controversos. Segundo o informe do Ministério de Educação Nacional, em 2004 a população afro-colombiana se aproximava aos 10.5 milhões de pessoas, equivalentes ao 26% do total da população do país (MEN, 2004, p. 24).
As aproximações entre Brasil e Colômbia no que tange à presença da população afrodescendente é notória e nos impulsiona a interrogações relativas às lutas contra o racismo, particularmente no âmbito da educação. Os debates em torno da educação intercultural indagam a possibilidade de descolonizar essa instituição e construir uma pedagogia de colonial (WALSH, 2008). Situamos a problemática desse artigo em torno das possibilidades e potencialidades de incorporação da cultura afro-brasileira e afro-colombiana aos currículos escolares, componente das políticas educacionais de reconhecimento da presença negra dos dois países, como estratégia de descolonização. Entendemos essa proposição como resultante das disputas em torno da cultura, história e a língua, instâncias controladas pela proeminência dos estados nação e que conformam o sentido de identidade nacional.
Pesquisas sobre a história de movimentos negros e afrodescendentes8 em ambos os países demonstram o desenvolvimento de uma prática discursiva que disputa a educação em três níveis: como elemento de mobilidade social na hierarquia econômica, com ênfase em seu caráter redistributivo; como meio de integração à sociedade resultando em participação política - representatividade; como instância de reverberação de representações através das narrativas que concorrem para a construção de identidades válidas - reconhecimento. Nesse artigo nos detivemos no último lineamento, sem prejuízo dos anteriores.
As correspondências entre movimentos negros e afrodescendentes no Brasil e na Colômbia em relação às disputas pela educação são evidentes, nem sempre coincidentes. Na Colômbia, nas décadas de 1930 a 1960, tanto no Departamento de Chocó como no Norte do Cauca, as lideranças políticas negras reivindicam a educação como ferramenta de ascensão nas condições materiais de vida,
La educación se vuelve, pues, un canal o una herramienta de ascenso social para lograr un capital económico suficiente que les permita dedicarse al activismo político cuando regresen a sus pueblos, donde relevan gradualmente a las élites políticas pertenecientes a grupos mestizos o blancos tanto locales como provenientes de otras regiones (WAGBGOU et al, 2012, p. 69).
Desde as primeiras mobilizações como o “dia do negro”9, as demandas estiveram direcionadas para o campo educativo, fosse na forma de estudo da cultura das populações afro-colombianas, através da criação do Centro de Estudos Afro-colombianos voltado para a pesquisa histórica, linguística e etnológica (WAGBGOU et al, 2012, p. 71), como na organização “Club Negro” decorrente do “dia do negro” que pretendia:
El club apuesta por la educación y las instituciones oficiales como medios fundamentales para exaltar la contribución de los negros y los “valores negros” en la construcción del país, ideas que corresponderían hoy a la etnoeducación (WAGBGOU et al, 2012, p. 74).
No Brasil do período pós-abolição formal da escravidão, a luta pela emancipação concreta persistiu defrontando-se com os tentáculos do racismo que impregnara as relações sociais. As agremiações, jornais, clubes constituíam-se em pontos de apoio da população negra para o enfrentamento da estrutura racista que persistia em situações de trabalho ao mesmo tempo adversas e desconsideradas nas demandas “dos trabalhadores”10. No período que vai de 1931, data de sua fundação e 1937, extinção por decreto ditatorial, a Frente Negra Brasileira destacou-se como entidade negra com programa que ultrapassava a integração da população negra à sociedade e disputava a representatividade negra nas posições de poder, em todos os setores sociais11. Em 1936, a FNB foi instituída como partido político carregando as características de autoritarismo ultranacionalista, as mesmas que marcavam a Frente Integralista Brasileira. Concomitantemente, a FNB era atravessada por influências socialistas, denunciava as formas de segregação racial na ocupação do espaço social e do trabalho e enfatizava a educação na mobilidade econômica e política.
Entre 1944 e 1961 o Teatro Experimental do Negro (TEN) persistiu como projeto de criação de uma nova dramaturgia, em flagrante oposição ao black face e à redução da presença negra aos limites do exótico. Conforme os registros divulgados pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros (IPEAFRO),12 o TEN nasceu com o objetivo de “encenar e ensejar a criação de peças dramáticas voltadas à cultura e aos temas emergentes do povo negro”13 e a intenção de inserir na cena brasileira a cultura e a personalidade dessa população.
A primeira obra encenada - Inspetor Jones, autoria de Eugene O´Neill, que cedeu gratuitamente os direitos autorais - apresentou “um retrato mais aproximado da situação do negro após abolição da escravatura”14. Uma das publicações do TEN, os “Testemunhos”15, expõem reações ecoadas pela imprensa da época. O artigo “Teatros dos Negros”, publicado originalmente numa sessão de comentários do jornal O Globo, de outubro de 1944, consiste numa peça de reiteração da democracia racial que evidencia o cinismo dessa perspectiva16. No embate contra essa reiteração o TEN organizara o periódico “O Quilombo”, no qual circulavam denúncias de discriminação racial, apoios a organizações afro-brasileiras, discussões sobre as normas estéticas que reverberavam o racismo.
Os registros comprovam que o TEN atuava simultaneamente em várias frentes indo da arte à cidadania, da política à alfabetização de seu elenco, composto de modo eclético por operários, empregadas domésticas, favelados sem profissão e modestos funcionários públicos. Nesse contexto, a educação era estratégica e a alfabetização, condição mínima de acesso aos textos das peças, era conduzida pelo objetivo de proporcionar “uma nova atitude, um critério próprio que os habilitava também a ver, enxergar o espaço que ocupava o grupo afro-brasileiro no contexto nacional”17. O TEN consistiu num ponto irradiador de uma prática discursiva em disputa com a democracia racial ao denunciar o racismo como componente intrínseco da sociedade brasileira e colocar em questão a valorização da identidade negra em suas dimensões cultural, histórica, artística, étnica. Uma disputa política e epistêmica.
Na outra fronteira, no ano de 1975 se organizou na cidade de Cali o primeiro encontro da população negra colombiana, em cujas conclusões se destacava o racismo como problema estrutural da sociedade, alimentado por uma educação que o reverbera (WAGBGOU et al, 2012, p. 104). Durante o segundo encontro, no ano de 1977 na cidade de Medellín, propôs-se a criação de “una cátedra de ‘cultura negra, o historia de las realizaciones culturales del hombre negro’, que tenga vigencia en la educación secundaria y universitaria en todo el país” (MORENO ipud WAGBGOU et al, 2012, p. 112).
No mesmo ano se realizou na cidade de Cali o “Primer Congreso de la Cultura negra de las Américas”18 (CAICEDO, 2011, p. 11), no qual intelectuais negras/os, mestiças/os e brancas/os do continente, além de países africanos como Senegal, Egito e Angola, se reuniram no que foi catalogado por Zapata Olivella (1988) como “un primer propósito de ahondar en la esencia de la identidad africana en nuestro continente” (ZAPATA OLIVELLA apud WAGBGOU et al, 2012, p. 117).
Este congresso constituiu-se em patamar para os processos organizativos da população afro-colombiana, além de repercutir na mobilização em movimentos de outros países do continente, como o Movimento Negro Unificado criado no Brasil em 1978. Em 1983 ocorreu o 3º Congresso de Cultura Negra das Américas, com o tema Em busca de identidade, tema que, transitando entre religião, cultura e educação geraria as proposições:
Conhecimento pelos negros das estratégias negras de resistência usadas desde sua chegada na América até hoje, no sentido da preservação de seus valores e costumes.
(...)
Preocupação com a construção de uma educação pluricultural, que leve em consideração os diferentes saberes existentes nos segmentos populacionais brasileiros.
Convocação dos educadores negros e não negros no sentido de análise crítica de livros escolares e a historiografia oficial: denúncia do racismo em relação ao negro que nele se encontrem para uma posterior ação nas escolas públicas (Afrodiáspora, v. 1, p. 141-2)
O relatório de um dos grupos de trabalho, avaliação cultural das afro-américas, prolifera a indissociabilidade entre cultura, educação e religião e preconiza a “descolonização das formulações políticas e da prática do movimento negro” (Afrodiáspora, Vol. 1, p. 146). A premissa “somente sendo definidos por nós mesmos poderemos resistir à opressão existente” (Afrodiáspora, Vol. 1, p. 146) repercutiu em proposições variadas, desde o desenvolvimento de projetos de documentação acerca da participação do negro brasileiro na história nacional, à oficialização dos “Estudos da Cultura Negra” como uma forma de evidenciar as desigualdades produzidas pelo racismo e como mecanismo de reivindicação da “africania”, como herança cultural das américas (CAICEDO, 2011, p. 11) e a criação de um comitê que coordenasse a elaboração da História da Diáspora Africana. As propostas indicaram a construção de uma “educação pluricultural” que levasse em consideração os “diferentes saberes existentes nos segmentos populacionais” e que desencadeasse:
um projeto pedagógico através do qual a participação da cultura negra da diáspora seja tão relevante na construção da identidade negra quanto tem sido a cultura dominante na fragmentação e negação da identidade racial do negro da diáspora. (Afrodiáspora, v. 1, p. 146).
Do modo como entendemos, os Congressos de Cultura Negra das Américas consistem em instâncias que tanto aglutinaram como reverberaram as lutas em torno da educação ampliando sua função social para além da integração à sociedade nacional. Mesmo em um período de ditaduras espalhadas pelas américas, a educação passou a ser disputada como instância de uma articulação transnacional de combate ao racismo e afirmação da identidade negra. Na demanda pelo poder de narrar a própria história, ecoam contradiscursos que redimensionam a função da educação escolar instando-a a interromper o fluxo da narrativa colonial.
CONVERTER DEMANDAS EM POLÍTICAS
Sem o objetivo de uma historicização cronológica discutimos alguns registros que nos permitem indiciar variadas reverberações da prática discursiva dos movimentos negros em políticas de educação para o reconhecimento de identidade negadas e conhecimentos invalidados, no Brasil e na Colômbia. Não se trata de buscar continuidades comparativas no marco jurídico da educação nos dois países, embora esses elementos possam ser encontrados19. Nosso objetivo nesse tópico é evidenciar paralelos na disputa por uma proposta educativa na qual se introduza a diferença e se reconheça a humanidade obliterada.
Na Colômbia, as demandas dos movimentos sociais afro-colombianos e indígenas foram assumidas na Constituição Política de 1991, que pela primeira vez reconheceu a diversidade étnica e cultural da nação anunciada, no art. 7 da Constitución Política de Colombia, de 1991, como objeto de proteção do Estado. Esse reconhecimento desdobrou-se na Lei Geral da Educação (1998) que dispôs as normas para o desenvolvimento de estudos afro-colombianos, de caráter obrigatório com o fim de “conocer y exaltar las contribuciones histórico-culturales, ancestrales y actuales de las comunidades Afrocolombiana en la construcción de la nación colombiana” (MEN, 2004, p.13), isto é persistir na luta contra a invisibilização histórica da população negra e sua exclusão no presente (CAICEDO, 2011). Em 2001, os Lineamentos Curriculares para La Cátedra de Estudios Afrocolombianos foram definidos na Comisión Pedagógica Nacional de Comunidades Negras, um fórum que contara com a participação de docentes e ativistas da educação escolarizada e não escolar (MIRANDA e QUINONES, 2012, p. 65).
No Brasil, o percurso que deságua na Lei 10639, de 200320 foi delineado por formas de ação dos movimentos negros que colocaram em articulação a política partidária, a representatividade no poder executivo e a atuação na cultura21. A tessitura dessa lei põe em relevo uma noção de educação de qualidade, “que implica uma outra visão não-racista” da história e da cultura (PEREIRA, 2007, p. 434). Esse giro na perspectiva da escolarização não ocorre sem embaraços, um dos quais, “de qual África a gente vai falar? Porque são muitas Áfricas, não é?” (BENTES, 2007, p. 433).
As análises sobre esses dispositivos de políticas educacionais tendem a identificar as restrições de sua implementação. Nesse âmbito, um dos paralelos entre Brasil e Colômbia refere-se à concepção persistente de que as modificações curriculares consistem em propostas para afro-colombianas/os, ou afro-brasileiros/as (GOMES e JESUS, 2013), ou seja, a lei “é só para negros”. Segundo este argumento, a necessidade de conhecer a nossa história afrodiaspórica estaria reduzida às populações afrodescendentes na medida em que a omissão das diferenças históricas, culturais e linguísticas dos povos indígenas e os de ascendência africana, deixaram como resultado que sejam representados nas identidades comuns e negativas como simples “índios” e “pretos” (WALSH, 2008, p. 46).
Outros limites seriam a escassez de recursos destinados à produção de materiais didáticos e programas de formação docente, adicionados à dificuldade de superar a concepção que sinalizou Santos (2005) sobre a CEA como tarefa das/os professoras/es de ciências sociais, ou, como no caso da Lei 10639/2003, dificuldades em termos da integração do corpo docente devido desinteresse, desconhecimento22. Na Colômbia, a Lei 70 de 1993, “reconoce y garantiza a las comunidades negras el derecho a un proceso educativo acorde con sus necesidades y aspiraciones etnoculturales” (CAICEDO, 2011, p. 13). Em seu art. 42 a referida legislação sustenta a figura da etnoeducação23 afro-colombiana:
ARTÍCULO 42. El Ministerio de Educación formulará y ejecutará una política de etnoeducación para las comunidades negras y creará una comisión pedagógica, que asesorará dicha política con representantes de las comunidades (CONGRESO NACIONAL DE LA REPÚBLICA, 1993. Lei 70).
A etnoeducação configura-se como processo educativo próprio de grupos étnicos (indígenas, afro-colombianos, e rom)24, agenciado diretamente pelos membros de uma comunidade de pertencimento, e cujo propósito é fortalecer sua autonomia e projeto de vida (ROJAS, 2008). Deriva-se desse modo de educação, a participação de etnoeducadores vinculados aos movimentos sociais e a formulação de orientações curriculares específicas. Enciso (2004) observa que o enfoque dos projetos etnoeducativos varia segundo as necessidades locais e pode priorizar alternativas de produção socioeconômicas distintas, por vezes díspares, como agropecuária, agroambiental, e micro empresarial.
No Brasil, a modalidade de educação escolar quilombola foi inaugurada em 2010 e veio a ganhar consistência em 2012, com a promulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, Resolução Nº 08/ 2012 do Conselho Nacional de Educação (CNE). Essa medida repercute as disputas por reconhecimento dos “remanescentes de quilombos”, grupo formador da sociedade brasileira conforme a Constituição de 1988 (Art. 215 § 1º). Consideramos que a invisibilidade dos quilombos no Brasil foi ativamente produzida por meio de uma prática discursiva que reiterava a representação de um fenômeno extinto e situado num passado de escravidão. As comunidades negras contemporâneas, rurais e urbanas, que sobreviveram às armadilhas de apagamento simbólico e à violência de destruição material constituem as mais de três mil comunidades quilombolas no território brasileiro.
É notório que as alterações promovidas tanto para inserção da história da África, história da afrodiáspora e cultura afro-brasileira, quanto para a construção de processos específicos pautados por lógicas de territorialidade como no caso da etnoeducação e da educação escolar quilombola são tributários da diversidade e inclusão, componentes negociados no âmbito das políticas educacionais. A entronização da diversidade nas políticas educacionais descreve um conjunto disperso no qual se interpelam a garantia da igualdade como princípio e o reconhecimento da diferença como valor. Do modo como entendemos, igualdade e diferença consistem num paradoxo instaurado pela modernidade eurocêntrica, sustentada pela noção de indivíduo e o consequente contrato social25.
Assumimos como pressuposto que as atuais as políticas de diversidade na educação são tributárias dos movimentos sociais contemporâneos, especialmente os articulados em torno das chamadas “políticas de diferença” (HALL, 2003). O adágio “direito à diferença”, formulação que sintetiza as disputas dos movimentos sociais no final do século passado, expressa lutas por afirmação de identidades e pela denúncia de que as bases da política - universalidade e igualdade - foram construídas mediante exclusões e silenciamentos.
Por meio da produção de imagens e significados novos e próprios que combatem assimetrias, hierarquias e subalternidades, movimentos sociais negros e afrodescendentes conquistaram o direito de se autorrepresentar e desnaturalizaram desigualdades sociais e culturais.
Consideramos que os dispositivos de políticas de educação para o reconhecimento da presença negra nas américas foram incorporados às políticas de diversidade e como tal consistem em uma resposta parcial e provisória às demandas da diferença. A esse respeito, aderimos às posições de Hall (2003, p. 339):
Reconheço que os espaços ‘conquistados’ para a diferença são poucos e dispersos, e cuidadosamente policiados e regulados. Acredito que sejam limitados. Sei que eles são absurdamente subfinanciados, que existe sempre um preço de cooptação a ser pago quando o lado cortante da diferença e da transgressão perde o fio da espetacularização. Eu sei que o que substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e por vezes segregada.
Assentimos que as políticas de diversidade admitem a visibilidade de demandas de sujeitos coletivos26 que estão a exigir reconhecimento de especificidades na superação de desigualdades estruturais, como o racismo. Ponderamos que a consideração das especificidades nos dispositivos de políticas de diversidade resulta em estratégias para administrar a diferença e, em muitos casos, descaracterizar sua força de oposição. A enunciação das diferenças particulares que descaracterizam ou enfraquecem as demandas de sujeitos coletivos, como na afirmativa de que somos sempre singulares é uma das táticas para administrar a diferença. Nesse caso, é como se as desigualdades raciais deixassem de existir e entrassem num solo no qual as assimetrias são apagadas “por um tipo de diferença que não faz diferença alguma” (HALL, 2003, p. 318). Esse é o sentido articulado na falaciosa, por vezes cínica, democracia racial brasileira.
Outra tática para administrar a diferença ocorre quando concepções generalizadoras e homogêneas resultam em estereótipos que configuram um padrão de aceitação do “diverso”. A tolerância racial com reservas, admitindo uma estética exótica e uma presença subalterna, mercantilizando sem compaixão o material da cultura numa rede de consumo que também controla narrativas e representações burocraticamente expressa bem a “aceitação” da diversidade.
Por fim, a escolarização da diferença, que burocratiza e segmenta presenças e narrativas. Podemos localizar nesse âmbito as comemorações e outros rituais escolares, tentativas esparsas de diálogo com sujeitos coletivos, que constrangem os tempos de elaboração e reduzem práticas de convivência em formatos segmentados por idades homogêneas, horários comprimidos, conteúdos prescritos, espaços confinados onde ecos não podem reverberar. Essa forma de administração da diferença faz persistir a negação e o desconhecimento de narrativas que afirmam a presença negra no continente americano numa ignorância ativamente cultivada, admitida sem pudor inclusive nas teorias pedagógicas. Nesse enquadre, a necessidade de conhecer a nossa história afrodiaspórica estaria reduzida a uma demanda de afrodescendentes, numa omissão acerca das diferenças históricas, culturais e linguísticas que resulta em representações de identidades negativas. Do modo como entendemos, as políticas de diversidade na educação podem impetrar alternativas de acomodação aos parâmetro da branquitude e da mestiçagem. Entendemos a branquitude como norma de fabricação constante de aparatos que mantém privilégios, ou seja, com base em dispositivos de poder que produzem a normalidade de um determinado corpo, o branco, e dos valores, do modo de pensar e de viver que lhe conduzem com base em um padrão - a branquitude normativa. Desse modo, a branquitude normativa não se resume a um substantivo, não se encarna no corpo branco, mas atravessa os corpos, as instituições e se apoia em normas jurídicas, em aparatos midiáticos, em processos educativos que regulam e “incidem sobre homens e mulheres negros/as, brancos/as e de outros grupos étnico-raciais na produção de sua corporeidade enquanto parte do seu ser no mundo” (GOMES e MIRANDA, 2014, p. 83). A branquitude normativa manipula a mestiçagem de um modo específico, como democracia racial.
Wade (2008) salienta que, no processo da construção da nação colombiana, a branquitude obteve seu lugar manejando a diferença para a reprodução das disposições hegemônica nas relações de poder. Assim, a construção do imaginário da nação colombiana não prescindiu da “gente negra e indígena, o al menos la imagen de ellos, era necesaria como punto de referencia desde el cual podía definirse lo blanco y el futuro de modernidad” (WADE, 2008, p. 377). O branqueamento da população resultaria em “limpar” os elementos inferiores (índio, negro) para convertê-los em expressões modernas e autênticas da identidade nacional. Portanto, a representação dos indígenas e dos afrodescendentes, não ficou anulada, mas se efetuou de forma racista, paternalista e comemorativa, como afirma o autor.
Wagbou et al (2012, p. 115) ressalta que a conformação dos estados nacionais excluiu grupos étnicos e sob “esta lógica de pensamiento occidental que se excluyó de la historiografía oficial el aporte de los descendientes de africano a La nación”.
No que diz respeito ao Brasil, a mestiçagem desenrolou-se como pilar do projeto de nação. Os discursos que denunciavam a degeneração racial promovida pela mestiçagem emergiram com muita força no início do século passado, notadamente após a abolição formal da escravidão. Naquele contexto, a defesa da miscigenação como componente valorizado no ideal de nação brasileira, capaz de dissolver as diferenças num amálgama que definiria a brasilidade sobressaiu-se, haja vista a propagação das teses de Gilberto Freire, inclusive na antiga metrópole lusitana. Assim, a democracia racial como prática discursiva admite a diversidade como tática de apagamento da hierarquização das diferenças pelo argumento da humanidade compartilhada no mote “todos somos seres humanos em essência”, ou na celebração de expressões culturais traduzidas como peculiaridades exóticas27, ou ainda ocultando a segregação racial em suas variadas formas de modo a conturbar a percepção dos violentos processos históricos sofridos pelos grupos raciais subalternizados, diferentes tornados em desiguais, desumanizados.
É nesse âmbito de uma branquitude normativa, conduzida pela prática discursiva da democracia racial, que localizamos as disputas para a implementação dos dispositivos de políticas de reconhecimento da presença negra nas américas. Não desconhecemos que os encaminhamentos dessas políticas nos dois países se deparam com limites e assumem perspectivas distintas. Sinalizamos que, enquanto a participação dos movimentos negros e afrodescendentes na formulação e desenvolvimento das políticas para comunidades negras na Colômbia é requerido (art. 2, Lei 70), no Brasil essa possibilidade foi vetada (art. 76 B, Lei 10639) sob o argumento de constituir-se em “matéria estranha ao seu objeto” (CASA CIVIL, Mensagem 07/2003). Contudo, ao adentrar no aparato jurídico visando a institucionalização de contranarrativas sobre a nação e sobre a presença negra nessa nação, os dispositivos de educação configurados pelos movimentos negros denunciaram aspectos que estruturavam uma forma escolar colonizadora e propuseram a identidade/diferença em questão: “Quem não conhece a sua história não pode ter uma identidade. E quem não tem identidade não sabe de onde está falando” (BATISTA, 2007, p. 439).
REVERBERAÇÕES DA DIVERSIDADE
Levar em conta que a estratégia das políticas de diversidade é a regulação da diferença não implica desconhecer sua reverberação em antagonismos que se recusam a ser alinhados, não se reduzem e nem se aglutinam em torno de um único eixo comum de diferenciação. As políticas de diversidade não conseguem eliminar o questionamento do limite naturalizado do “sujeito de direitos”. Ao contrário, podem, em algumas situações e instâncias, produzir deslocamentos inesperados nas disposições do poder. Podem proporcionar um solo comum como base de negociações possíveis estabelecendo mediações que repercutam na comensurabilidade, ainda que provisória, entre distintos litígios (FRASER, 2008). Lidar com os dilemas da diversidade requer considerar uma abertura ambígua para a diferença em fronteiras que fazem com que um certo tipo de descentramento na narrativa ocidental se torne provável e viável. Um deslocamento nas disposições de poder que proporciona que a diferença seja pronunciada, ainda que num campo resguardado. Se invertermos a perspectiva de análise sobre os dispositivos de políticas de educação para o reconhecimento da presença negra nas américas poderemos discutir não os limites de sua implantação, sempre persistentes, mas as exigências de um redesenho das instituições educativas. Nesse enfoque poderemos indagar sobre o caráter produtivo desses dispositivos.
Ao convocar as relações raciais como tematização da diversidade, tensões decorrentes de processos sociais, políticos, econômicos e culturais no Brasil e na Colômbia emergem e denotam a branquitude normativa. A obrigatoriedade da inserção da história e cultura afro-brasileira e africana nas instituições educacionais provocou o questionamento sobre a seletividade dos currículos escolares, que omitem ou distorcem esse conteúdo. Os currículos serão sempre seletivos, mas podem ser menos parciais em um processo em que a diversidade passe a compor uma lógica discursiva que evidencia conflitos e problematiza relações de poder que silenciam e hierarquizam diferenças. A pesquisa desenvolvida por Regis (2012) com base em teses e dissertações defendidas em programas de pós-graduação no Brasil sustenta essa direção e constata a pregnância de elementos da branquitude normativa em quatro âmbitos estruturadores da educação escolar: os livros didáticos,28 artefato privilegiado na transmissão de conteúdos escolares e contestado pelos movimentos negros e afrodescendentes como instância de reprodução da narrativa hegemônica; as práticas curriculares; o cotidiano escolar e as situações de preconceito e discriminação racial; o ensino da história e cultura afro-brasileira. A autora conclui que as pesquisas oferecem subsídios para questionar lógicas que estruturam a escola, quais sejam, a seletividade, a hierarquia, o universalismo e igualdade abstrata e o individualismo (REGIS, 2012, p. 59).
Evidenciar essas lógicas implica em enunciar a branquitude normativa que subjaz à escolha dos modelos válidos na prática educativa, sejam estéticos, pedagógicos, epistêmicos ou cognitivos.29 A emergência de problematizações e narrativas que validam a identidade racial interpela também a ciência monorracial que sustenta a formação docente evidenciando posicionamentos epistemológicos naturalizados devido à opressão de uma racionalidade hegemônica. Nesse âmbito, será preciso “questionar a origem do poder em determinados conceitos” (MENESES, 2016: 76) e admitir que raça é uma categoria científica válida.
Os dispositivos de políticas educacionais para o reconhecimento da presença negra nas américas, ao nomear as lógicas que estruturam a educação escolar reinstalam a educação em disputa. Sem nos estendermos nesse ponto, acompanhamos as análises de Miranda (2016) que identifica três instâncias mobilizadas na construção da educação escolar quilombola: a “relação da escola com a comunidade quilombola, implicando aí território, cultura e memória; a inserção da temática quilombola como dispositivo curricular de reconhecimento a influir no ideal de nação brasileira” e a reconfiguração dos “procedimentos de gestão da escola e dos sistemas de ensino” de modo a ampliar as lógicas de representatividade de demandas e de reconhecimento de saberes.
Os limites de nossa reflexão nesse artigo não nos permitem aprofundar sobre dinâmicas de práticas pedagógicas emergentes. Tampouco podemos desconhecê-las. Adicionamos a nossa argumentação alguns indícios captados em um projeto etnoeducativo específico de modo a explicitar algo daquilo que Walsh (2013) nomeia como pedagogias decoloniales, as quais têm por base as lutas por re-existência provocadas no contexto da diáspora e da invasão de Abya Yala. Nessa elaboração, a pedagogia não precede as práticas. Ao contrário, tratam-se de práticas entendidas pedagogicamente, “prácticas como pedagogías - que a la vez, hacen cuestionar y desafiar la razón única de la modernidad occidental y el poder colonial aún presente, desenganchándose de ella” (WALSH, 2013, p. 7).
Com base nas pesquisas de Contento (2010 e 2017) aportamos uma discussão sobre as práticas etnoeducativas desenvolvidas em San José de Uré, na Colômbia. Essa instituição etnoeducativa.30 está localizada ao sul do departamento de Córdoba-Colômbia31. No passado foi local de um palenque, produto das fugas dos escravizados das minas de ouro no departamento de Antioquia em 1598 (ESPINOZA, 1942). Na atualidade os seus moradores reivindicam sua herança palenquera.
Atualmente no território uresano convivem com os moradores palenqueros, duas comunidades indígenas, Emberás e Zenúes; além de migrantes, muitos camponeses, do departamento vizinho de Antioquia, chamados de “paisas” e do norte do departamento de Córdoba, chamados de “sabaneros”. Esta configuração social, junto com a situação de ordem pública, pela presença de múltiplos atores armados que disputam o controle do território; e a economia extrativista de níquel, continuam a condicionar a efetivação do projeto etnoeducativo.
Em 1995, uma vez que a Lei 70/93 trouxe a possibilidade de pensar em direitos coletivos e em uma educação própria, a comunidade fez um processo organizativo com ajuda Movimento Cimarrón,32 e criaram a Organização Cimarrón, através da qual demandaram a titulação de terras, capacitações e assessorias para construir seu projeto etnoeducativo.
Entre os principais aspectos mobilizadores na construção do projeto etnoeducativo de Uré identificamos a organização da juventude, a inversão na hierarquia da linguagem pedagógica com a valorização das vozes dos/das estudantes, e o reconhecimento da história de Uré contada pelos/as próprios/as uresanas/os.
Argumentamos que a memória local é um componente estruturante do projeto etnoeducativo e proporciona contraposição à narrativa hegemônica, na medida em que valoriza a história narrada pela comunidade, mecanismo que Pilar Cuevas (2013) cataloga como a “recuperação coletiva da história”. Baseia-se também na necessidade de conhecer a realidade dos setores populares, e a partir do processo de recuperação histórica, dimensionar de “outras” narrativas. Similarmente retira o protagonismo histórico das elites, e se concentra em reconstruir os processos históricos desde as comunidades e suas organizações (CUEVAS, 2013, p. 72). A experiência viva fundamentada na memória palenquera, foi o suporte do projeto etnoeducativo uresano.
Entendemos a memória delineada segundo o estudioso Joel Candau, como “uma reconstrução continuamente atualizada do passado, mais do que uma reconstituição fiel do mesmo” (CANDAU, 2011, p. 9). Assim, a memória pode ingressar nas estratégias identitárias, a partir de “pedaços escolhidos”.
As escolhas verificadas no projeto etnoeducativo uresano estiveram direcionadas por docentes de acordo com sua trajetória e interesses. Assim, vincularam-se à música, à dança, à Quebrada,33 e inclusive ao conflito34 e estiveram correlacionadas com aspectos da linguagem e da história de resistência.
De outro lado, localizamos memórias que não conseguiram fazer parte das escolhas das/os docentes como no caso da Dança dos Diablos35. Embora que a dança tenha reconhecimento regional, razão pela qual é acionada constantemente como símbolo da comunidade, os elementos que incomodam porque remetem à escravatura, lembrando a dor, o sofrimento de milhões de pessoas, não comparem nas apresentações. Consideramos estas memórias a partir do que Martins (2015) denomina “memórias traumáticas” das quais não conseguimos falar, mas nos constituem. Segundo o estudioso, isto representa um excesso de memória, um excesso de dores carregadas (MARTINS, 2015), que ainda sendo nomeadas, e inclusive institucionalizadas pelo Estado, continuam a ser apagadas.
O conflito identificado no projeto etnoeducativo uresano em relação à escolha das memórias que podem figurar na prática pedagógica nos sinaliza a dificuldade de lidar com narrativas descontínuas que pulsam vidas despedaçadas, memórias fragmentadas e lutas sinuosas. Contudo, instigam a considerar como narrativas válidas na educação escolar a sobrevivência que se opera nos interstícios de práticas de luta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iniciamos esse artigo com uma epigrafe extraída do conto “A historiadora obstinada”, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, no qual a instituição escolar é relatada a partir de sua função social na colonização de corpos, mentes e memórias. Aparato estranho às tradições e práticas educativas do continente africano e americano, a escola passou a determinar os costumes válidos, definir o que pode ser ensinado como poesia e literatura aceitável, e desacreditar as sutilezas de sentimentos que se alojam na alma, “dissolver o espírito lutador e substituí-lo ou por uma rigidez sem curiosidade (...), ou por um desamparo frouxo” (ADICHIE, 2017, p. 230).
Ao longo desse artigo argumentamos que a educação consiste numa instância em disputa e a prática discursiva dos movimentos negros e afrodescendentes indicam âmbitos dessa querela: redefinir a função social da escola, promover o reconhecimento das presenças que essa própria instituição colaborou para apagar, interromper o fluxo da narrativa colonial que essa instituição ajudou a promover.
Como demonstramos, a disputa está também em desnaturalizar as identidades num deslocamento de uma invisibilidade ativamente produzida por estigmas e negações, para a afirmação de presenças insurgentes, inesperadas, por vezes incômodas e incongruentes.
Conforme problematizamos, há uma diferença entre aceitar a identidade racial, conjugação presente no discurso de docentes que se embaraçam ao tentar tratar dos tensos processos educativos aqui descritos, e assumir identidades, que é procedimento político manejado pela educação escolar em seus aparatos.
Por fim, declaramos nossa expectativa de que a educação escolar, desconfigurada pelas prática discursivas dos movimentos negros e afrodescendentes e reconfiguda pelos dispositivos de políticas de educação alimentados pela diáspora africana, possa colaborar para ampliar o repertorio de entendimento do mundo alterando a seta que direciona a vida para a escola na tentativa de enquadrá-la em determinados padrões e, saindo de si mesma, possa partilhar outra gramaticidade, outras possibilidades de ser, existir e coexistir.