INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende explorar aproximações entre a noção de performance e os campos da educação e das ciências da natureza e, mais particularmente, investigar potencialidades do uso de metodologias performativas críticas no contexto do ensino de física. Definir o que possam significar tais aproximações e quais as características definidoras dessas metodologias é uma tarefa complexa, uma vez que a noção de performance, como será discutido ao longo deste trabalho, parece ter se estabelecido historicamente não propriamente como um conceito preciso dentro de um contexto teórico específico, mas como uma noção híbrida que atravessa, de maneira bastante potente, campos disciplinares muito heterogêneos, recusando-se a submeter-se a uma definição unívoca. Neste sentido, o procedimento adotado para a exploração das aproximações propostas será o de, em um primeiro momento, procurar circunscrever, através da leitura de abordagens performativas presentes em diferentes contextos disciplinares, alguns dos sentidos comuns aí envolvidos, identificando o tipo de movimento de pensamento realizado por tais abordagens, com particular atenção e interesse aos campos da educação e das ciências da natureza. Em um segundo momento, ao passar a assumir e pressupor certos princípios definidores do que significam metodologias performativas críticas no contexto educacional, tomar a narrativa de alguns acontecimentos pedagógicos como fio condutor para uma reflexão mais vivencial e experienciada a respeito dos possíveis sentidos, possibilidades e potencialidades dessas metodologias.
Talvez um comentário a respeito da motivação do presente trabalho seja a melhor forma de introduzi-lo ao leitor. Desde 2009, venho investigando de maneira relativamente sistemática, no contexto do ensino de física e da formação de professores, possibilidades do que atualmente eu chamaria de metodologias performativas críticas. Primeiro, durante o desenvolvimento de minha tese de doutorado (CROCHIK, 2013), investiguei as potencialidades das relações entre arte e ciência, e particularmente do uso de jogos teatrais, na formação de professores de física. Trabalhando, desde 2006, em um curso de formação de professores de física, realizei grande parte dessa investigação através do oferecimento de uma disciplina de Oficina de Projetos de Ensino na qual investigávamos temas científicos e pedagógicos através de procedimentos que, em grande parte, se inspiravam na sistemática de jogos de improvisação teatral, elaborada por Viola Spolin (1998). A disciplina oferecida estava vinculada às atividades de estágio dos estudantes, de maneira que o material de investigação se associava não apenas à minha experiência com os licenciandos, como também aos próprios relatos das experiências deles nas escolas de ensino médio em que estagiavam. Depois, desde 2015, passei a coordenar, na mesma instituição, um projeto de extensão universitária - o projeto Arte-Ciência na Escola - voltado ao desenvolvimento de intervenções em escolas estaduais de ensino médio que abordassem, de variadas formas, as relações entre arte, ciência e educação. Tais intervenções são criadas em conjunto pelos bolsistas do projeto, em sua maioria estudantes do curso de licenciatura em física, e pelos docentes que compõem a equipe, a partir de (i) estudos e vivências em torno das linguagens artísticas específicas, (ii) de uma investigação a respeito das relações entre estas linguagens artísticas e a atividade científica e (iii) de um contato sensível com as escolas parceiras, para onde as intervenções são levadas. As intervenções que acontecem nessas escolas produzem um material a respeito do qual refletimos, depois, longamente no projeto.
Os acontecimentos pedagógicos narrados na segunda parte deste trabalho são provenientes das experiências vividas nestes dois contextos de investigação.
As relações com o teatro exploradas nestes dois trabalhos tinham menos o sentido de um vínculo com o espetáculo teatral, enquanto produto artístico, e muito mais o sentido da utilização dos processos associados à prática teatral para o desenvolvimento de investigações tanto a respeito de questões científicas como educacionais. Neste sentido, a ideia de ensaios teatrais colaborativos e o trabalho com improvisações teatrais - momentos nos quais os sujeitos se colocam em relação corporal, não para a repetição de um certo comportamento previamente planejado, mas para a produção coletiva, em tempo presente, de um acontecimento ainda desconhecido de todos - serviram como paradigma para uma forma de investigar, pensar e aprender. Valorizando, assim, o processo através do qual podemos aprender e investigar a partir de uma relação que ponha explícita e corporalmente em jogo as subjetividades de cada um dos participantes, encontrei na definição de metodologias performativas críticas de Elyse Lam Pineau (2002) uma perspectiva bastante similar àquela com que já vinha trabalhando. Esta autora propõe a seguinte agenda para o campo educacional (o que, de certa forma, motivou-me a aprofundar a reflexão no contexto do ensino de física):
Pensar o que significa ensinar performativamente em todas as disciplinas e em todos os níveis do currículo. (...) Como parecer-se-ia - e mais importante, sentir-se-ia - um curso se o programa fosse pensado no modelo de um ensaio colaborativo? Pode a metodologia performativa ser integrada ao currículo de forma similar a como a escrita foi articulada? Um teste importante para a pedagogia crítica performativa será utilizá-la de forma tão frutífera em cursos nas ciências duras como ocorre nas artes performáticas (PINEAU, 2002, p. 53, tradução própria).
Para além das boas experiências que esse tipo de metodologia vem propiciando em meu trabalho de investigação pedagógica, encontrei um indício adicional da relevância dessa reflexão ao testemunhar o movimento de ocupações de escolas de 2015, em São Paulo. Pareceu-me, como pretendo argumentar em um próximo trabalho, que o movimento de ocupação, com a valorização inesperada pelos estudantes do espaço físico escolar, transformando-o em um espaço onde a aprendizagem e a ação política podiam se dar a partir do encontro encarnado entre os sujeitos ali presentes, revelou a importância, para estes estudantes, do desenvolvimento de formas de aprendizagem que valorizem a produção coletiva do pensamento e não dicotomizem corpo e pensamento, teoria e ação, representação e realidade, disciplina e prazer. Podemos encontrar confirmação disto tanto nas práticas que os estudantes desenvolveram ao longo do movimento de ocupações, quanto a partir de declarações verbais de alguns desses estudantes, como por exemplo essa de um estudante:
Na educação dentro da escola a gente tá extremamente acostumado a olhar e ficar sentado cada um atrás do outro, a gente não tem esse contato visual. Tem pessoas que estudam aqui há 4, 5 anos e eu falo ‘Caramba, nunca te vi e agora que eu posso olhar nos teus olhos, eu posso lidar com você, eu posso te entender, eu posso te enxergar’… A gente aprendeu a se enxergar aqui dentro (apudCampos; Medeiros; Ribeiro, 2016, p. 134).
Como afirmado anteriormente, procurarei desenvolver inicialmente uma conceituação, ainda que não baseada em definições explícitas, de alguns dos usos que as noções de performance e performatividade têm apresentado em distintos campos disciplinares, buscando discutir sentidos para as aproximações entre performance e educação e entre performance e ciências da natureza. Em um segundo momento, procurarei discutir sentidos, possibilidades e potencialidades do uso de metodologias performativas críticas a partir da narrativa de uma série de acontecimentos vividos, seja durante os trabalhos com a disciplina Oficina de Projetos de Ensino, seja no projeto de extensão universitária Arte-Ciência na Escola. Com estas narrativas, iremos refletir especialmente a respeito de três características marcantes destas metodologias, a saber: a experiência poética do efêmero, a presença de um corpo que reflete e cria e as possibilidades de tensionar e colocar em jogo as normas que estruturam as relações escolares.
A NOÇÃO DE PERFORMANCE E SUAS RELAÇÕES COM A EDUCAÇÃO
Aprender a ler e escrever se faz assim uma oportunidade para que mulheres e homens percebam o que realmente significa dizer a palavra: um comportamento humano que envolve ação e reflexão. Dizer a palavra, em um sentido verdadeiro, é o direito de expressar-se e expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir, de optar (FREIRE, 2001, p. 59).
A noção de performance tem apresentado um espectro de usos e sentidos cada vez mais amplo e relevante, estando presente em áreas tão variadas como as artes cênicas e visuais, a antropologia, a filosofia da linguagem e os estudos de gênero. Dos múltiplos sentidos com que é invocada, talvez um elemento comum seja o questionamento da dualidade entre representação e acontecimento.
Nesse sentido, o livro How to do things with words, de John Austin (1962) tem um papel inaugural relevante ao abordar “enunciados performativos”, em alusão à sua capacidade de “coisas”, produzir acontecimentos, ao invés de simplesmente representá-los. Um juiz, ao declarar duas pessoas “marido e mulher” ou o presidente de um país, ao declarar guerra a outro, não estão representando simbolicamente um acontecimento do mundo, mas produzindo, através de suas palavras, esse próprio acontecimento. De maneira similar, como Judith Butler desenvolveu amplamente (1993), um médico, ao declarar que um recém-nascido (ou um feto) “é menino”, não está simplesmente representando uma realidade, mas produzindo um acontecimento e reproduzindo uma identidade. Por meio da reiteração de discursos e práticas, estabelece-se um biopoder que não é simplesmente repressor, mas também indutor e promotor de maneiras de ser e relacionar-se. Como afirma Butler (2017, p. 35, tradução própria), “não se trata somente de que a linguagem atua, mas sim de que o faz com muita força”.
Se ao discutir o caráter performativo da linguagem, descobrimos, em um universo em princípio simbólico e representacional, um espaço de acontecimentos e de ação, podemos, em sentido contrário, pensar o caráter performativo de certos acontecimentos ao reconhecer neles um espaço de representação, de reapresentação, e, nesse sentido, uma espécie de teatralidade. Richard Schechner (2002), com o campo dos estudos da performance, é uma referência importante a esse respeito ao procurar compreender acontecimentos tão díspares como apresentações teatrais, rituais, manifestações religiosas, manifestações políticas, jogos, a partir das noções de performance e performatividade. O questionamento da dualidade entre representação e acontecimento aparece belamente na seguinte citação de Augusto Boal, que serve de apresentação ao livro de Schechner:
Geralmente, as pessoas dizem que uma apresentação artística verdadeira será sempre única, impossível de ser repetida: nunca os mesmos atores, na mesma peça, produzem a mesma apresentação. Teatro é vida. As pessoas dizem também que, na vida, nunca fazemos nada realmente pela primeira vez, sempre repetindo experiências passadas, hábitos, rituais, convenções. A vida é teatro. (BOAL, apudSCHECHNER, 2002, p. vi, tradução própria).
O conceito de “comportamento restaurado”, discutido por Schechner, permite pensar como gestos cotidianos espontâneos inserem-se em uma rede de citações e repetições, de maneira que nunca realizamos uma ação de fato pela primeira vez, mas “sempre pela segunda até a enésima vez” (SCHECHNER, 2002, p. 36, tradução própria). Independentemente de uma causa social que possa ter sido em algum momento a responsável pelo surgimento de um certo padrão de comportamento e relações, essa rede de citações e repetições adquire uma certa autonomia, podendo permanecer, mesmo quando a causa que a produziu já não está mais presente.
A performatividade, entretanto, não envolve apenas os processos de repetição e reprodução, mas também as maneiras como formas não previstas de atuação podem vir à tona e, dessa forma, representar, pela sua simples aparição, um questionamento, uma ameaça a uma certa estrutura estratificada de relações. A noção de performatividade de gênero, de Judith Butler, nos serve mais uma vez como exemplo. “O gênero é algo que recebemos todos, mas que não está inscrito em nossos corpos como se fôssemos uma lousa passiva obrigada a levar uma marca” (BUTLER, 2017, p. 37, tradução própria). O processo de reprodução de normas de gênero envolve práticas corporizadas que nunca alcançam identificar-se perfeitamente a um certo modelo “ideal” de identidade. Nas sucessivas representações performativas dessas normas há espaço tanto para a sua repetição e reprodução quanto para a possibilidade de aparecimento de novas configurações imprevistas. Ao colocar-se em ato, as normas de gênero ao mesmo tempo se reproduzem e submetem-se a possibilidades transformativas:
Portanto, quando dizemos que o gênero é performativo, estamos incidindo em como ele se põe em ação; o gênero seria uma classe determinada de prática; (…) cabe destacar que todo gênero reproduz umas normas e que quando o gênero se põe repetidamente em ato, se arrisca a desfazer ou modificar as normas em formas não previstas, de maneira que a realidade do gênero pode ficar aberta a novas estruturações (BUTLER, 2017, p. 39, tradução própria).
Se, por um lado, a noção de performance nos permite focalizar as repetições e reiterações que caracterizam nossa vida aparentemente única e original, por outro, nos chama a atenção justamente para o caráter irrepetível, transitório e, por isso, irreprodutível, dos acontecimentos. A repetição implica uma transformação e a transformação advém de um longo processo de repetições, de maneira que essas duas noções não se contradizem, mas se complementam. Nesse sentido, o olhar para o caráter performativo dos acontecimentos e representações envolve não tanto a preocupação com relação aos supostos resultados estáticos e permanentes que eles produziriam, mas sim com relação à experiência do próprio processo, em sua impermanência. “O desaparecimento do objeto é fundamental para a performance”, escreve Peggy Phelan (1993, p. 147, tradução própria). “A performance, de um ponto de vista estritamente ontológico, é não-reprodutiva. (…) o efeito do desaparecimento é a própria experiência da subjetividade” (p. 148).
São múltiplas as perspectivas segundo as quais se pode pensar as relações entre performance e educação e trabalhos recentes no Brasil exploraram uma série delas (ICLE, 2010; ICLE; PEREIRA; BONATTO, 2017). Do ponto de vista do que aqui pretendo discutir, gostaria de enfatizar dois aspectos. O primeiro deles diz respeito à problematização do conjunto de discursos, práticas e rituais que, em sua reiteração, operam de forma a produzir “corpos escolarizados”, que, além de reproduzir as relações sociais de discriminação e injustiça características de nossa sociedade, possuem também suas características peculiares, dentre as quais destacamos, tal como o faz Elyse Lamm Pineau (2002), a própria exclusão e anulação do corpo e de suas relações, para o desenvolvimento de um pensamento e aprendizagem puramente “mental” e “individual”.
Um segundo aspecto relevante diz respeito a um olhar para os acontecimentos que ocorrem na escola e para seu potencial disruptivo. Ao invés da preocupação exclusiva com a dimensão reprodutiva, associada à avaliação dos resultados de aprendizagem, desenvolvemos o interesse pelos processos, em sua impermanência, enfocando as experiências subjetivas que vão se constituindo e a emergência de novas possibilidades de compreensão e de relação com o conhecimento, com os outros e com o mundo. Podemos falar, nesse sentido, de metodologias performativas de aprendizagem, que se desenvolvem como em um processo de ensaio colaborativo (PINEAU, 2002).
Do ponto de vista metodológico, uma perspectiva performativa a respeito da educação demanda-nos formas de investigação que permitam destacar a dimensão da experiência, do caráter transitório e impermanente associado aos processos educacionais. Nesse sentido, perspectivas narrativas (LARROSA, 2015; CONTRERAS, 2015; CONNELLY, CLANDININ, 1995; LIMA, GERALDI, GERALDI, 2015) e de Investigação Baseada nas Artes (HERNÁNDEZ-HERNÁNDEZ, 2008; BARONE, EISNER, 2012) adquirem destaque ao questionar paradigmas de investigação que, preocupados com critérios de objetividade e validação científica, dão enorme peso ao uso de questionários e outras formas de coleta de dados que garantiriam uma suposta neutralidade do observador. Uma perspectiva narrativa, em contraposição a esse modelo estreito de cientificidade, evidencia ao invés de obliterar a relação entre o sujeito que narra e a experiência vivida. Ao invés de preocupar-se em obter uma não problematizada medida de eficiência, coloca em questão os sentidos da experiência educacional. Linguagens artísticas, sem a pretensão de produzir obras de arte no sentido que nossa cultura entende este termo, podem ajudar tanto na constituição de novas possibilidades de experiência e experimentação em educação, como também permitir dar conta de seus múltiplos sentidos ao contá-las. Porque a experiência, para constituir-se como tal, precisa ser narrada, indagada em seus sentidos, refletida (LARROSA, 2015). E isso, indagar sobre a experiência e buscar meios de exprimir seus sentidos, dando oportunidade a que outros tenham também sua experiência ao se relacionar com esta expressão, talvez seja uma das maneiras de compreender as artes. E também a educação.
PERFORMANCE E CIÊNCIAS DA NATUREZA
A partir da mesma linha de raciocínio da seção anterior, de questionamento, com a noção de performance, da dualidade entre representação e acontecimento, podemos problematizar algumas das imagens hegemônicas a respeito do funcionamento e desenvolvimento das ciências da natureza.
O filósofo da ciência Robert Crease (1993), por exemplo, realiza uma crítica interessante ao empirismo lógico positivista ao notar como, no contexto desse movimento filosófico, por um lado, busca-se fundamentar todo conhecimento nos resultados da experiência empírica, mas, por outro, não se presta atenção nem se dá valor ao próprio processo da experiência empírica, como se ele fosse transparente e não problemático, reduzindo assim a experimentação científica à representação teórica de seus resultados lógico-matemáticos, supostamente definitivos. Ao propor uma valorização do processo da experimentação científica, entendendo-a como performance, Crease enfatiza a capacidade própria da experimentação de criação de mundo, de poiesis. Assim como ocorre com a performance teatral, o acontecimento da experimentação é um momento único, novo a cada vez, onde algo acontece, resultado da confluência de representações teóricas e instrumentos na produção de um fenômeno que precisará ainda ser reconhecido por aqueles que o testemunham e dele participam. Essa perspectiva permite-nos escapar tanto da compreensão do experimento como a simples revelação de uma realidade já dada e pré-existente, como de sua compreensão como uma criação arbitrária e irreal: trata-se de uma criação de mundo, constituída a partir dos elementos que configuram a nossa realidade atual (teorias, instrumentos, visões de mundo, materiais, linguagens, afetos, desejos) e reconhecida através de nosso repertório atual de possibilidades de percepção e interpretação.
A partir de uma perspectiva filosófica fenomenológica e hermenêutica, Crease pensa os mecanismos de produção da ciência a partir das relações entre três momentos distintos da prática científica, que ele relaciona analogicamente ao fazer teatral: (i) o momento da representação teórica de um fenômeno, pensado em analogia à construção de um texto teatral; (ii) o da construção de uma apresentação deste fenômeno, através de uma performance experimental, análoga a uma performance teatral; e (iii) o de reconhecimento deste fenômeno pela comunidade científica, análogo ao reconhecimento realizado pelo público e pela crítica de uma performance teatral. A partir dessa analogia, vemos como a representação teórica não é idêntica ao fenômeno, nem esgota toda a complexidade envolvida em sua apresentação experimental. A apresentação do fenômeno, na performance experimental, é um processo complexo, que envolve o desenvolvimento de ensaios, que não correspondem ainda à apresentação verdadeira do fenômeno. Neles, é realizada uma série de ajustes nos aparatos que compõem materialmente o experimento e que correspondem, na analogia proposta, aos atores da performance teatral. A intuição joga um importante papel nessa relação concreta e material com a construção do experimento, objetivando depurá-lo e refiná-lo até conseguir fazer emergir uma apresentação legítima do fenômeno almejado. O reconhecimento do fenômeno, entretanto, nunca é definitivo, dependendo da comunidade científica envolvida, do contexto científico e cultural, etc. Desta forma, aquilo que se “vê” em um determinado experimento pode variar radicalmente de acordo com o contexto histórico em que ele ocorre.
Na imagem desenvolvida por Crease, a ciência torna-se maior, mais complexa e mais humana do que simplesmente o conjunto de “leis teóricas” que representariam e descreveriam como funciona o mundo e com o qual o senso comum e correntes filosóficas de matriz positivista costumam identificá-la.
Já o sociólogo da ciência Andrew Pickering (1995) desenvolve uma perspectiva performativa mais ampla da atividade científica, na qual mesmo o pensamento teórico é pensado em termos performativos. Seu pressuposto filosófico para essa abordagem parte de uma crítica à compreensão representacional da ciência e associa-se a uma compreensão do mundo, tanto o humano como o não humano, em termos de agência, de capacidade de agir e também receber a ação de elementos do mundo:
A questão é esta: no idioma representacional, as pessoas e as coisas tendem a aparecer como sombras de si mesmas. Cientistas figuram como intelectos incorpóreos construindo conhecimento em um campo de fatos e observações (e linguagem, como os reflexivistas nos recordam). Mas há uma outra maneira de pensar a respeito da ciência. Podemos começar com a ideia de que o mundo é composto, em primeira instância, não por fatos e observações, mas por agência. Quero dizer, o mundo está continuamente fazendo coisas, coisas que nos atingem não como sentenças observacionais sobre intelectos incorpóreos, mas como forças sobre seres materiais (PICKERING, 1995. p. 6, tradução própria).
A noção de agência utilizada por Pickering é, dessa forma, bastante ampla e aplica-se tanto ao mundo humano como ao não humano. A atividade científica acontece em uma “dança de agências” em que ora é o elemento humano aquele que age e procura fazer valer sua vontade, ora é o elemento não humano aquele que resiste e age, provocando novas acomodações, demandando uma revisão de objetivos, métodos e estratégias por parte do elemento humano. Não apenas os elementos materiais não humanos possuem agência; também podemos nos referir, por exemplo, a agências provenientes das forças sociais e, inclusive, à agência da dimensão teórica da ciência, proveniente do disciplinamento demandado pelos métodos que ela adota e utiliza (e que podem resistir, por exemplo, a tentativas humanas de translação a outros domínios de validade, provocando novas formas de acomodação e novas iniciativas humanas). Ao invés de fixar uma causa fixa para o desenvolvimento da ciência, seja ela o trabalho experimental ou os interesses sociais, Pickering pensa a ciência como uma rede emergente de relações, um “caldeirão” de práticas heterogêneas, de cuja interação dinâmica podem surgir novas possibilidades de sintonia, de afinação entre as distintas práticas envolvidas, propiciando a criação daquilo que chamamos de fato científico, e que envolve, justamente, uma confirmação recíproca proveniente de distintas práticas devidamente sintonizadas e afinadas.
Apesar de significativamente distintas, as compreensões de Crease e Pickering, aqui apenas rapidamente esboçadas, possuem em comum uma valorização daqueles elementos que constituem a ciência não apenas como uma representação estática de um mundo igualmente estratificado, mas como um processo dinâmico e material, permeado por acontecimentos. Tais acontecimentos invariavelmente envolvem a afinação e o ajuste entre elementos heterogêneos, produzindo seja o que Crease nomeia como a apresentação (performance) de um fenômeno, seja o que Pickering chama a emergência de fatos científicos.
PERFORMANCE E O ENSINO DE FÍSICA
Como as compreensões performativas da educação e da ciência acima esboçadas podem refletir em diferentes perspectivas para o contexto do ensino e aprendizagem das ciências da natureza? Diversas possibilidades poderiam ser aventadas aqui. Neste trabalho, proponho-me a pensar especificamente as possibilidades de utilização de metodologias performativas no contexto do ensino de física, tal como as define Elyse Lam Pineau:
Em termos disciplinares, a metodologia performativa significa uma exploração sistemática e rigorosa, através da encenação de experiências reais e imaginadas, nas quais a aprendizagem ocorre através da consciência sensorial e do engajamento cinestésico. Em termos mais coloquiais, a metodologia performativa significa o aprender através do fazer e pode incluir qualquer abordagem experiencial que demande que os estudantes se envolvam corporalmente com o conteúdo do curso. (PINEAU, 2002, p. 50, tradução própria)
Pineau compara dois usos distintos da performance em contexto educacional: como demonstração e como metodologia de investigação. O primeiro uso é bastante comum em contextos avaliativos, quando solicita-se que o que foi aprendido, bem como suas possíveis aplicações, seja demonstrado em apresentações públicas. Por outro lado, a proposição da performance como metodologia de investigação, defendida por ela, supõe não a exposição de uma investigação previamente realizada, mas o próprio momento da performance como espaço privilegiado para a investigação e a aprendizagem.
Pretender desenvolver a prescrição de um conjunto de procedimentos passíveis de serem aplicados e procurar a seguir analisar a eficácia de seus resultados seria profundamente contraditório com a própria perspectiva performativa que vimos desenvolvendo. Afinal, o centro de nosso interesse incide justamente sobre a experiência dos processos, em sua irrepetibilidade, e sobre o que pode irromper, emergir a partir destes acontecimentos, em sua imprevisibilidade. Como encontrar, então, formas de aprender e investigar a partir de experiências singulares? A narrativa das experiências pedagógicas realizada a seguir, nesse sentido, visa constituir-se como uma forma de indagação e pensamento vivenciais a respeito das possibilidades e sentidos de metodologias performativas no ensino de física e não como um conjunto de dados para o desenvolvimento posterior de uma análise supostamente neutra e objetiva.
Pretendo desenvolver tais narrativas de forma a problematizar três características que considero fundamentais dessas metodologias. Pela amplitude de significados associada ao termo performance, há um risco, apontado pela própria Pineau no artigo citado, de recair em uma compreensão tão alargada do termo que acabe por esvaziá-lo de significado. Por outro lado, é justamente esta amplitude de sentidos que o torna tão interessante, por nos permitir enxergar situações educacionais muito diversas como acontecimentos performativos. Há um aspecto da metodologia performativa que se refere não propriamente ao tipo de acontecimento em si, mas à maneira como olhamos para eles. Nesse sentido, uma primeira característica definidora dessas metodologias refere-se à constituição de uma perspectiva poética sobre o que se faz, valorizando (poeticamente) a efemeridade do acontecimento do encontro ali envolvido. Em oposição à lógica pedagógica hegemônica, trata-se de uma opção radical pela valorização dos processos.
Um segundo aspecto diz respeito à presença do corpo. Novamente, aqui, a questão do olhar é definidora. Porque, evidentemente, o corpo sempre está presente, ainda que frequentemente salte aos olhos a sua ausência. A questão que se coloca é como não dicotomizar corpo e pensamento, corpo e sujeito. Como trazer à tona não um sujeito que possui um corpo, mas um corpo-sujeito. Um corpo que pensa, que reflete.
Por fim, um terceiro aspecto fundamental associado à constituição de metodologias performativas diz respeito à relação com as normas e ritos hegemônicos. Se o caráter performativo de sentenças e ações é muitas vezes reconhecido pela forma como eles, ao acontecerem de forma reiterada, instituem e reproduzem certas normas de conduta, nosso interesse recai justamente sobre a possibilidade seja de dar a ver tais mecanismos, permitindo-nos problematizá-los e desconstruí-los, seja de produzir acontecimentos que tensionem de alguma forma tais normas, questionando por essa via a ideologia que eles representam e reproduzem. Nesse sentido, podemos nos referir a metodologias performativas críticas, termo utilizado por Pineau.
Como estes princípios relacionam-se ao ensino de física? Uma das acusações frequentes à forma como se exerce tradicionalmente o ensino de física é a de ele construir uma caricatura do que seja a atividade científica. Creio que essa acusação não faz justiça ao trabalho dos cartunistas. Afinal, o caráter simplificado e, às vezes, deformado das caricaturas expressa um olhar particular, crítico, que se assume como tal e não pretende ser reconhecido como uma reprodução fiel, real e muito menos única daquilo que se quer representar. Já a educação, ao pretender ditar de forma hegemônica o que seja a atividade científica, constrói, com sua representação deformada, não uma caricatura, mas um simulacro, que procura se fazer crer não uma representação, mas a própria realidade. Quem dera a educação, assumindo as ficções que constrói, pudesse se deixar ver mais como caricatura!
Nesse sentido, mais do que procurar tornar-se parecido ao exercício da pesquisa científica, cabe ao ensino de física assumir a diversidade de olhares particulares e críticos que pode desenvolver. Essa formulação, entretanto, é ainda insatisfatória, por parecer propor uma relação apenas contemplativa, presente na metáfora do olhar. Ela parece sugerir também um foco na necessidade de que criemos, como docentes, imagens de ciência, que possam a seguir ser contempladas pelos estudantes. Como expressar, ao invés disso, a vontade de criar espaços onde se possa construir, explorar juntos?
É aqui que a metáfora da performance parece ser potente. A proposta de performar a relação científica com o mundo abre um espaço de jogo, em que podemos experimentar de forma criativa os múltiplos aspectos da atividade científica, sem pretender igualar esse trabalho ao do cientista profissional, mas construindo com nossa experiência distintas representações para a atividade científica, podendo assim problematizá-la, de maneira crítica e corporificada.
Vimos, ao discutir as relações entre ciência e performance, o processo relativamente recente de valorização de aspectos performativos da atividade científica, ampliando significativamente a identificação simplista entre, por exemplo, a física e um certo conjunto de leis teóricas que descreveriam o funcionamento da natureza. O estudo histórico aprofundado de qualquer desenvolvimento particular da ciência mostra invariavelmente uma complexidade de fatores heterogêneos (teóricos, experimentais, econômicos, socioculturais, filosóficos) envolvidos nos processos de produção de uma representação científica. Embora a reconstituição histórica desses processos seja uma estratégia pedagógica bastante interessante para o desenvolvimento de uma imagem mais complexa da ciência, não estamos restritos a esse tipo de abordagem para problematizar a prática científica. A própria maneira como nos relacionamos, em tempo presente, com representações científicas e com o mundo, a maneira como estas representações se atualizam ao serem ensinadas e aprendidas, abre um leque infindável de possibilidades de indagação performativa.
Conforme discuti na introdução deste trabalho, para indagar a respeito das potencialidades e sentidos de metodologias performativas críticas no ensino de física, escolhi algumas histórias pontuais, provenientes das experiências de investigação que realizei em uma disciplina de formação de professores de física (Oficina de Projetos de Ensino) e em um projeto de Extensão Universitária (Arte-Ciência na Escola). Através delas, discutirei mais aprofundadamente, no contexto do ensino de física, as três características que associei a esse tipo de trabalho, a saber: a experiência poética do efêmero, a presença de um corpo que reflete e cria e as possibilidades de tensionar e colocar em jogo as normas que estruturam as relações escolares. Evidentemente, estes três aspectos não podem ser cindidos e cada experiência narrada permite, de variadas formas, uma reflexão a respeito de todos eles. Procurarei, entretanto, enfocá-los um a cada vez.
A EXPERIÊNCIA POÉTICA DO EFÊMERO
Começo com o relato de uma experiência de regência (em aulas de estágio) de uma estudante da disciplina de Oficina de Projetos de Ensino:
Ao entrar na sala o professor falou aos alunos que a aula seria dada por mim e que eu poderia ficar à vontade. Cumprimentei a todos e iniciei. O meu primeiro passo foi explicar a eles que nós trabalharíamos em cima das seguintes questões:
- O formato do planeta Terra é plano ou esférico?
- A Terra está parada ou em movimento? (...)
Expliquei que a intenção era nos colocarmos numa posição em que não tivéssemos uma resposta certa ou errada, ou seja, vamos pensar em evidências para dizer se a Terra é plana ou esférica, e quais demonstram que ela está parada ou em movimento. Depois dividi a sala em duas equipes para que cada uma defendesse uma tese: a primeira defendia que a Terra era plana e permanecia parada e a outra que era esférica e estava em movimento.
Minha expectativa era que os da primeira equipe teriam mais argumentos e seria mais fácil para eles escreverem as evidências, mas, não foi o que ocorreu, eles ficaram inseguros ao pensar que defenderiam uma “mentira”. Esforçaram-se muito para escrever alguns argumentos. Já os da segunda equipe não se preocuparam muito, transcreveram um trecho do que tinham no caderno e pronto, afinal estavam defendendo o que era “correto”. (...)
Nesse momento expliquei como seria a disposição da sala e logo começaram a se organizar, a disposição frontal deu ao debate uma sensação de disputa, e o debate começou.
A equipe 1 começou a falar e a principal fala foi que ninguém sentia a Terra se movimentando e que ninguém consegue ver a curvatura da Terra.
A equipe 2 disse que tudo estava em movimento e que a ciência já tinha comprovado, mesmo que no nosso combinado esse não era um argumento válido. Foi então que esta equipe começou a falar que não tinha nem como se pensar o contrário, e que o que a outra equipe argumentava não era o certo.
A equipe 1 começou a ficar sem jeito, pois também não admitiam pensar a Terra como parada, então fiz uma intervenção, um dos meninos da equipe estava jogando a borracha para cima e pegando com a mão, eu pedi que ele repetisse para que todos observassem. Percebi que os alunos imaginaram que eu reclamaria ou criticaria aquela atitude e não a usaria como parte da aula. Ele então repetiu o movimento e eu questionei:
- Se a Terra realmente se move, por que a borracha cai exatamente na mão dele e não um pouquinho para o lado?
O silêncio foi total, uma menina falou “só falta agora ela falar que a Terra está parada” outro argumentou “é que o movimento da Terra é muito lento”, mas um outro logo olhou uma anotação no caderno e viu que era de aproximadamente 1500Km/h, portanto o argumento não valia.
A intervenção da estagiária transformou o sentido de uma atitude, considerada inicialmente como “bagunça” e “distração”, em um argumento contra a mobilidade da Terra. Quebrou duplamente a expectativa dos alunos: por defender uma tese “errada” e por não repreender, mas incluir em seu discurso, uma atitude “errada”. E o “silêncio total” que se segue a este ato é bastante significativo, por explicitar o vir à tona de uma situação inesperada, que coloca em xeque nossas formas de perceber o mundo e as relações, dando espaço para a constituição de novas formas de percepção.
O trabalho docente está recheado de momentos como este, em que “algo” acontece, momentos de irrupção. Não há, entretanto, como planejá-los ou prevê-los e, frequentemente, não sabemos aproveitar os momentos em que sua potencialidade de ocorrência aparece. Claro que existe um planejamento que amplifica as possibilidades desses acontecimentos. Toda a organização que a estagiária estabeleceu tanto para a maneira não dogmática como os estudantes se relacionavam com o conhecimento como para a forma como os corpos se relacionavam uns com os outros no espaço e tempo da sala de aula abriram espaço para novos acontecimentos. Além disso, entretanto, existe um preparo docente que não diz respeito ao seu planejamento prévio, mas ao estado de atenção e escuta ao tempo presente, às relações presentes que se estabelecem no espaço. Como pode um docente preparar-se para o estado de “prontidão” que essas relações em tempo presente demandam?
Tampouco valorizamos suficientemente a ocorrência de acontecimentos como este. Eles nos provocam, creio, uma certa felicidade interior, que nos motiva a, às vezes, comentar a respeito com um colega e logo esquecer. Afinal, não há nenhum resultado de aprendizagem mensurável produzido por tais momentos. Valorizar o processo no trabalho educacional implica em dar valor ao que não pode ser medido, ao que não pode ser objetificado, não se sedimenta em um produto, mas passa, como é próprio de todo acontecimento que se dá no tempo. Que qualidades almejamos alcançar nos processos educacionais em que nos engajamos? Trata-se de qualidades impossíveis de reificar, caso contrário, estaríamos novamente tratando de produtos e não de processos. Caracterizam um encontro real, uma singularidade, cujo potencial transformador advém de uma certa qualidade de relação e de envolvimento.
A seguir um relato meu a respeito das relações na disciplina de Oficina de Projetos de Ensino:
Nosso encontro não se dava em uma configuração física de cadeiras e mesas, mas em um chão coberto por tatames de EVA, sem cadeiras e rodeado por estantes com experimentos científicos de baixo custo (adaptava o espaço de um clube de ciências ao uso que necessitava). A ausência de cadeiras e mesas nos expõe de uma maneira a que não estamos acostumados, pelo menos não em situação escolar. Apesar de eu estar habituado a esse tipo de configuração em outros contextos, a transposição ao contexto em que eu era um professor de física me deslocava de uma situação de hábito e conforto a outra em que me sentia um pouco como se estivesse nu. E algo parecido seguramente também acontecia com os estudantes. Disso resultava alguma incomodidade, mas também situações de grande prazer e descoberta. De algumas das coisas mais importantes que aconteciam neste trabalho eu somente me dava conta muito tempo depois, quando alguém comentava a memória de uma situação interessante, que lhe havia reverberado.
Um acontecimento do qual já havia me esquecido tornou-se marcante para mim quando, ao término do semestre letivo, um estudante comentou a respeito da importância que teve, para ele, aquele evento. Eu havia proposto um jogo de improvisação teatral no qual todos formávamos, de pé, uma roda enquanto um jogador entrava no centro do círculo e criava uma situação em que estivesse em um lugar ficcional que se move. Quando alguém, no círculo, acreditasse ter descoberto “onde” estava o jogador ao centro, deveria entrar na cena e complementar a ação do primeiro jogador, mas sem nunca “contar” onde estava. Sucessivamente, outros jogadores deveriam entrar em cena obedecendo à mesma regra. O exercício visava, principalmente, discutir a lei da inércia e a relatividade do movimento, permitir o desenvolvimento do contato e do diálogo, não verbal, entre os jogadores em torno a uma situação ficcional e também desenvolver a espontaneidade nesse estado de exposição pessoal ao qual o conjunto de estudantes está muito pouco habituado.
Em um destes exercícios, um jogador propôs a situação de um barco em movimento. Outros jogadores foram entrando e compondo a ação, entre eles um pescador que havia fisgado um peixe e que se esforçava muito para retirar o peixe da água em uma ação que se desenrolava em minha direção. Sem pensar muito, entrei também em cena no papel do... peixe. Foi com surpresa que, ao final do semestre, ouvi de um estudante, que se sentia desconfortável com esse tipo de exercício, como havia sido importante esse momento. Contou que, neste momento, todos pararam por um segundo surpresos, se olharam e, depois, continuaram o jogo. Ele passou, a partir de então, a não temer tanto a exposição às situações que considerava ridículas. Afinal, se até o professor se colocou nessa situação, estávamos todos, literalmente, no mesmo barco.
Embora os acontecimentos passem, ficam a memória e as marcas dos acontecimentos. Uma maneira importante de valorizá-los, dessa maneira, é contá-los, narrá-los, atribuindo-lhes sentidos ao contar. A narração não é capaz de congelar o acontecimento, ao contrário, ela o transforma, o faz reverberar, o constitui enquanto experiência consciente e permite que tanto aqueles que viveram como aqueles que não viveram o acontecimento original constituam novas experiências a respeito.
Pineau perguntava, em uma citação a que já fiz referência, como sentir-se-ia “um curso se o programa fosse pensado no modelo de um ensaio colaborativo”. Em processos desse tipo, vai se tornando cada vez mais evidente como não temos controle sobre nossas ações, que se configuram como o resultado de uma rede de interações e influências. Quem promove o aprendizado são as situações, em sua imprevisibilidade. Minha decisão de participar daquela cena não teve relação com nenhum objetivo pedagógico, foi uma simples consequência da configuração que ali se estabelecia. Poderia até mesmo dizer que aquela não era uma decisão que coubesse a mim naquele momento, era uma demanda daquela configuração, para a qual eu estava disponível. Provavelmente o aprendizado mais intenso que aquele momento proporcionou não esteve relacionado a nenhum dos temas que eu pretendia desenvolver através daquele jogo, mas sim às múltiplas possibilidades de relação professor - aluno, especialmente quando a nossa presença corporal é explicitamente incluída. Sendo aquela uma disciplina voltada à formação de professores, eu felizmente não fugia da ementa.
O CORPO QUE REFLETE E CRIA
ESTRANHAMENTO
Como investigar, pensar e aprender através do corpo? Um primeiro obstáculo a este tipo de proposição relaciona-se a uma atitude de desconfiança dos sentidos, bastante arraigada em tradições de pensamento racionalista. Frequentemente parece que o testemunho dos sentidos pode ser enganoso e só pode ser utilizado de maneira confiável se for exercido sob o controle da razão. Galileu, por exemplo, para justificar porque deveríamos desconfiar da percepção de que a Terra está parada, compara esse tipo de percepção com a que temos ao observar a Lua, ao caminhar pela cidade:
gostaria de lembrar-lhe um fenômeno que certamente ele já viu mil vezes com o qual pode-se compreender como outros podem facilmente enganar-se com a simples aparência, ou queremos dizer, representação dos sentidos. E o fenômeno é o de dar a impressão àqueles que de noite caminham por uma estrada de estarem sendo seguidos pela Lua com idêntico passo, enquanto a veem rasar as ponteiras dos telhados sobre os quais lhes aparece, exatamente daquela maneira que faria uma gata que, realmente caminhando sobre as telhas, se mantivesse atrás deles: aparência de que, quando não interviesse o raciocínio, muito manifestamente enganar-se-ia a visão” (GALILEI, 2004, p. 338-9).
Sem o “filtro da razão”, a percepção pode ser enganosa. Se há algo, entretanto, que a ciência do século XX nos ensina claramente, é que os “filtros da razão” podem ser também igualmente enganosos e que, como discute Gaston Bachelard (1974), a razão científica antiga coloca-se frequentemente como obstáculo epistemológico à possibilidade de surgimento de novas compreensões científicas do mundo e de um “novo espírito científico”. Dessa forma, ao invés de uma polarização dualista entre sentidos corporais enganosos e um pensamento racional que os esclareceria, podemos reconhecer como as formas de percepção estão já associadas a certas formas de compreensão e como, em certos momentos, surge a necessidade de superar certas formas de percepção e compreensão em favor de formas mais elaboradas e complexas de perceber e compreender. A percepção já é uma forma de compreensão e a compreensão é também uma forma de percepção do mundo.
Procurar estranhar e desnaturalizar certas percepções e compreensões aparentemente inevitáveis e naturais é, dessa forma, uma estratégia frequentemente empregada para dar-se conta do caráter construído e, por isso, mutável do que anteriormente parecia rígido e eterno. Podemos ler o trecho anteriormente citado de Galileu e toda a problematização que ele constrói a respeito da maneira como vemos concretamente o movimento como um trabalho de estranhamento e desnaturalização a propósito da percepção e compreensão do movimento. Ao fazer isso, revela-se a existência de um conjunto de hipóteses implícitas no que antes parecia uma reprodução direta e imediata do real, construindo a possibilidade de transformação de tais hipóteses e, por este caminho, da própria percepção e compreensão do movimento.
O teatrólogo alemão Bertolt Brecht (1978) desenvolveu uma série de estratégias teatrais para a produção de “efeitos de estranhamento” que lhe permitissem problematizar, através de seu teatro, as relações sociais de exploração capitalista, revelando seu caráter histórico, construído e, como tal, mutável. Para isso, a explicitação cênica das convenções teatrais envolvidas em uma representação teatral permitia-lhe romper a ilusão do espectador de estar vendo um acontecimento real, fazendo-o lembrar de que está à frente de um palco, vendo pessoas fingindo, através de certos artifícios e convenções, ser determinados personagens em tempos e lugares ficcionais. A explicitação do caráter artificial, convencional, ficcional da representação leva o espectador a distanciar-se e a pensar a respeito do caráter também artificial e construído da realidade ali representada, perguntando-se a respeito de suas razões de ser e possibilidades de transformação.
A analogia aqui sugerida refere-se à importância de reconhecer o caráter hipotético, ficcional, construído, convencional e mutável das construções humanas, sejam elas uma representação teatral, uma teoria física ou mesmo uma estrutura social. Como nos aponta o físico francês Jean Marc Lévy-Léblond (2001) as construções científicas, dado o seu fundamento hipotético, estão permeadas por ficções:
Rejeitar a ficção significa assegurar a positividade do conhecimento científico contra o risco da imaginação incontrolável. Porém, a elaboração de hipóteses - ou seja, precisamente, fictiones em Latim - é uma das primeiras ações da atividade científica. Como, então, podemos discriminar entre hipóteses que deveríamos descartar como fantasias irracionais e aquelas que postulamos justo no início de nossas investigações? Poderia ser que a ciência paradoxalmente ofereça a melhor prova de que a ficção pode levar aos fatos? (LÉVY-LÉBLOND, 2001, p. 413, tradução própria).
Nesse sentido, a perspectiva de problematizar teorias físicas através de jogos de improvisação teatral, ao mesmo tempo que nos convida a envolver-nos corporalmente com uma determinada reflexão científica, traz uma dimensão ficcional a este envolvimento, permitindo-nos apreciar o caráter construído, simbólico, criado e criativo tanto do jogo teatral como do conhecimento físico.
A primeira lembrança que tenho de experimentar, como professor, esse tipo de trabalho deve ter ocorrido em 2006 ou 2007. Lembro de propor jogos teatrais de trabalho com objetos imaginários. Carregando o objeto, utilizando-o de alguma forma e permanecendo em uma roda com os demais, um dos estudantes atirava-o a outro colega, que então o amassava e formava, a partir daquela matéria invisível em suas mãos, um novo objeto. Cada objeto devia possuir também um peso e isso era perceptível pela maneira como o carregávamos, o manipulávamos, o atirávamos e o recebíamos. Busquei introduzir a física neste exercício acrescentando a orientação: “agora estamos na Lua”; ou “estamos em Saturno”, etc. Assim, queria discutir, a partir da sensibilidade e da imaginação corporal, a diferença entre a massa e o peso de um corpo. Pretendia que chegássemos à percepção de que, mudando de planeta, o peso do objeto se modificaria, mas o impulso que precisávamos fornecer-lhe ao atirá-lo e o tranco que recebíamos ao agarrá-lo, não. A ideia não era chegar a essa conclusão racionalmente para então, com essa informação, orientar a ação, mas, ao contrário, verificar como a imaginação corporal orientaria a ação para então, depois, discutir a questão a partir da maneira como atuamos.
A experiência de relação corporal com as convenções teatrais procurava iluminar o significado que as convenções científicas atribuíam à massa e ao peso de um objeto.
Com o passar do tempo, a ideia de investigar temas da física utilizando jogos teatrais foi se enriquecendo. Particularmente, a noção de estranhamento foi se tornando cada vez mais relevante. A figura 1 mostra um instantâneo de um jogo teatral realizado em que se propunha aos estudantes construir uma “subversão da verticalidade”. Chama a atenção, na imagem, o cuidado dos jogadores em manter a cabeça em uma orientação condizente com a ilusão de verticalidade que estão criando, ao mesmo tempo em que mostram seu caráter artificial e convencional. Com esse tipo de jogos, exploramos a hipótese (ficção) científica de um espaço isotrópico (um espaço geométrico no qual todas as direções são equivalentes) e ressaltamos seu caráter inverossímil em um planeta em que a direção vertical é claramente distinta das demais. Ao mesmo tempo, a exploração do caráter relativo da verticalidade (em um planeta esférico) permitiu-nos construir novas perspectivas a respeito das evidências da esfericidade da Terra e a respeito da natureza da atração gravitacional, trabalho que foi desenvolvido através de uma série de outras atividades em que, de maneira geral, a presença corporal das pessoas que estão refletindo era sempre um foco importante (CROCHIK, 2013).
Também a relatividade do movimento e sua relação com o debate científico a respeito da mobilidade da Terra foi problematizada utilizando estratégias semelhantes (figura 2). Dessa forma, creio, construímos com nossos corpos pensantes problematizações de nossas percepções e concepções que permitiram explicitar as múltiplas hipóteses e convenções envolvidas na estruturação daquilo que chamamos de espaço físico, revelando-o como uma construção humana, dotada de historicidade.
APROFUNDAMENTO DA PERCEPÇÃO SENSÍVEL
O corpo sente de dentro seu fora e sente de fora seu dentro. Sentindo-se, o corpo reflexiona. Pela primeira vez, na história da filosofia [com a obra de Merleau-Ponty], graças à obra de arte, descobrimos que a reflexão não é privilégio da consciência, mas que esta recolhe uma reflexão mais antiga que a ensina a refletir: a reflexão corporal. (CHAUÍ, 2002, p.179)
Uma segunda perspectiva experimentada para as possibilidades de investigação corporal da ciência diz respeito à importância de tornar mais sensível e sutil o ato de perceber. Na obra de Galileu, novamente, podemos encontrar exemplos históricos dessa perspectiva. Seu trabalho de observação da Lua, por exemplo, reconhecendo suas crateras, dependeu não apenas da utilização de um novo instrumento de observação (o telescópio), mas também de um aprofundamento sensível da experiência de olhar, enxergando no jogo de luz e sombras presentes nessa experiência de observação bidimensional, a existência de uma superfície tridimensional irregular, tal como fazia a pintura da mesma época, de maneira que parte importante de sua investigação astronômica dependeu de seu contato e diálogo com pintores, particularmente Cigoli (EDGERTON, 2006; REEVES, 1997).
No contexto do projeto Arte-Ciência na Escola, criamos algumas intervenções, nomeadas como “Laboratório do Corpo”, cuja ideia fundamental era transformar em “objeto experimental” o próprio sujeito que experimenta, tornando-o objeto de estudo, mas sem deixar de ser, simultaneamente, o sujeito que estuda. O ato, sensível e criativo, de percepção de si mesmo nas situações propostas correspondia ao momento mais importante de aprendizagem.
Uma destas propostas explorou o reconhecimento dos diversos pêndulos presentes em nosso corpo. Em particular, ao associar o movimento de nossas pernas ao movimento de um pêndulo (MAINIERI; HELENE, 1984), podemos relacionar, em uma primeira aproximação, a velocidade de caminhada ao período do pêndulo, que depende apenas de seu comprimento e do valor da aceleração gravitacional. Esta relação é interessante porque nos permite estimar a velocidade de diversos animais em função do tamanho de suas pernas / patas e, por outro lado, compreender o que ocorreria com a caminhada humana, por exemplo, na Lua: quanto menor a aceleração da gravidade, mais lento é o movimento do pêndulo e, portanto, mais lenta será também uma caminhada natural, realizada sem esforço excessivo. Com a imagem da perna como um pêndulo, os estudantes foram estimulados a analisar experimentalmente o efeito de um aumento da gravidade, simulado através do uso de elásticos amarrados entre os dois pés, que intensificam a força com que o pé em movimento é puxado “para baixo”. 1Reproduzo um trecho do relato feito por um dos estudantes que propôs e realizou a intervenção:
Perguntamos se eles sabiam o que era um pêndulo e percebemos que a grande maioria já conhecia ou, pelo menos, tinham uma vaga ideia, mas, mesmo assim, mostramos um. Foi nessa hora que ficou claro que os alunos não eram tão ingênuos quanto imaginávamos e que termos mais específicos da física faziam sentido para eles. Não demorou nem um minuto para os grupos falarem “gravidade”. Após esta etapa, perguntamos se eles reconheciam os pêndulos no ambiente e, para a nossa surpresa, eles começaram pelos encontrados no corpo humano, algo que seria pedido posteriormente. Como eles já haviam pulado uma etapa, pedimos para que eles fizessem os pêndulos dos corpos deles oscilarem e confrontar com o que havíamos mostrado anteriormente, no início desta etapa. (...)
Propomos então que eles pensassem uma maneira de simular o efeito do aumento da gravidade e obtivemos respostas como “aumentar a massa do planeta”, “diminuir a resistência do ar” e mais algumas outras coisas que não seriam viáveis. Foi aí que mostramos os elásticos e eles começaram a formular ideias. Porém, antes pedimos para que eles caminhassem sem os elásticos para que pudessem perceber como era a caminhada, pois assim deveria ficar mais evidente o efeito que o elástico dá. Ao entregar, o pátio virou uma festa: os alunos começaram andando, mas logo correram, apostaram corridas e tentaram fazer novas amarrações com mais elásticos. Eles estavam tão empolgados que até as duas professoras do PIBID que estavam acompanhando pediram para participar também. Após uns 20 minutos, pedimos que voltassem aos grupos.
Eles mesmos perceberam o que o elástico fazia com a perna deles, fomos só dando alguns toques e tentando explicar o porquê da força elástica simular o efeito do aumento da gravidade. (...)
Particularmente, acho que a atividade obteve um resultado positivo, confrontamos nossos próprios preconceitos acerca da escola pública e, pelo que havíamos proposto, conseguimos fazer uma boa junção da arte - utilizando o movimento do corpo e fazendo com que eles conseguissem senti-los - com a ciência, pois houve uma grande discussão de tudo aquilo que eles estavam sentindo e por tentarmos dar um sentido físico a tudo aquilo; e tudo isso acontecendo no contexto da escola, fazendo com que eles interagissem com o conteúdo de outra maneira, além de ocorrer uma interação diferente ente os docentes e discentes.
Chama-me a atenção, neste relato, o momento em que o pátio vira uma festa. Tão grande é a intensidade da exclusão do corpo nas relações de aprendizagem escolar que o momento em que ele é incluído e liberado para experimentar faz extravasar uma grande intensidade de vida até então reprimida, contagiando inclusive os demais personagens da escola que a testemunham.
Vale ressaltar que, do ponto de vista da física, coloca-se em jogo nessa exploração um conjunto sofisticado de reflexões, dentre as quais destaco: (i) a capacidade de modelagem de um movimento complexo em termos de um pêndulo simples, operação extremamente importante na construção do pensamento físico sobre o mundo e, ao mesmo tempo, quase ausente na maneira tradicional de abordar a física no ensino médio, que costuma entregar já prontos aos estudantes os modelos; (ii) a indagação a respeito dos efeitos de uma grandeza física (a aceleração da gravidade) no valor de outra (a velocidade do caminhar); (iii) a possibilidade de simular experimentalmente essa pesquisa, através de um elástico; (iv) e, por fim, a possibilidade de investigar com o próprio corpo as propriedades dos modelos propostos e das interações envolvidas, sentindo o efeito da gravidade e da interação com o elástico no movimento das pernas, podendo decupar esse movimento em suas distintas etapas, experimentar variações como o correr e a variação do tamanho dos passos e, ao fim, falar sobre a própria experiência, pensar através e a partir dela.
Importante ressaltar que a modelagem não ocorre aqui como um processo incorpóreo, puramente mental. O modelo de um pêndulo é utilizado para aprofundar a percepção sensível do movimento do próprio corpo ao caminhar, permitindo a exploração de diferentes formas de caminhada e movimento. Há uma relação de troca em duas vias, de sintonia, entre a prática da modelagem e a prática do movimento, com a modelagem transformando e conscientizando a prática do movimento e a prática do movimento definindo os limites e oferecendo “resultados experimentais” para a prática da modelagem. Física e dança se aproximam nessa intervenção.
Em síntese, parece-me que as perspectivas de, por um lado, produzir estranhamentos das próprias formas de percepção e compreensão, e, por outro, de desenvolver um aprofundamento sensível da percepção e compreensão corporal constituem um interessante par complementar que nos permite pensar e estruturar estratégias para o desenvolvimento de formas de reflexão e aprendizagem que não dicotomizem mente e corpo.
COLOCANDO EM JOGO AS PRÓPRIAS REGRAS
O sinal metacomunicativo “isto é jogo” nos libera temporariamente, sem nos desconectar, das realidades e responsabilidades cotidianas de trabalho e abre um espaço privilegiado de pura desconstrução e reconstrução (CONQUERGOOD, 1989, p. 83, tradução própria).
A palavra jogo (play) envolve muitas possíveis significações, mais ainda em inglês, idioma original da citação acima. Nesse sentido, as relações em uma sala de aula podem aproximar-se da noção de jogo de muitas formas e com distintas implicações. Um primeiro aspecto interessante dessa aproximação é a criação de um espaço de liberdade e de criação que se organiza de acordo com determinadas regras - as regras do jogo. As regras do jogo configuram um espaço de possibilidades amplo o suficiente para que nele se possa de fato desenvolver um jogo e não uma simples repetição de comportamentos esperados e antevistos.
Entretanto, nem todo jogo possui regras conhecidas ou sequer definidas. Às vezes, como ocorre por exemplo nos jogos infantis, as próprias regras do jogo são colocadas em jogo e podem ser transformadas ao longo de seu desenvolvimento. Também a distinção entre jogo e “vida real” nem sempre está claramente estabelecida. Às vezes, participamos involuntária e inconscientemente de um jogo estabelecido por outros, naquilo que Richard Schechner (2002, p. 106) chama de jogo às escuras, como ocorre por exemplo no Teatro Invisível de Augusto Boal. O próprio “mundo real”, por outro lado, pode ser pensado metaforicamente como um jogo. Nessa metáfora, a atividade científica (pensando, aqui, as ciências naturais) se associa ao esforço de descobrir as regras desse jogo, que são mais comumente pensadas como fixas (as “leis da natureza”, que podem ter também uma forma probabilística ao invés de determinística). Em alguns casos, porém, mesmo a gênese dessas regras pode ser colocada em questão, como ocorre no contexto da cosmologia.
É nesta acepção mais aberta e indefinida, com relação à definição das regras e ao limiar de distinção entre ficção e realidade, que a noção de jogo aproxima-se mais de uma perspectiva performativa crítica na educação. Parece que se as próprias regras do jogo não forem, pelo menos em alguns momentos, colocadas em jogo e se o professor permanecer estável no papel daquele que dita as regras e zela por sua correta aplicação, sem se arriscar a entrar no jogo, perdemos um daqueles aspectos que a tradição artística da performance nos oferece, de buscar as frestas por onde é possível questionar as normas e ritos estabelecidos e, por esse caminho, as relações de poder, a ideologia que eles implementam e representa.
É interessante que, no contexto do projeto Arte-Ciência na Escola, duas intervenções criadas e realizadas, parcialmente, pelos mesmos estudantes, propuseram-se, de um lado, a problematizar “o jogo” através do qual a ciência procura, supostamente, “descobrir as regras da natureza” e, por outro lado, ao se realizarem na escola, as intervenções levaram os seus propositores a ter que lidar e jogar com as regras implícitas que regulam as relações entre professor e alunos.
A primeira intervenção, de título Códigos, Transformações e Percepções, propunha-se a explorar a relação entre o processo de descoberta das regras de um jogo criado pelos bolsistas e a pesquisa científica, entendida como o esforço de descoberta das regras do “jogo do mundo”. Os bolsistas do projeto expuseram, em uma escola estadual, uma série de experimentos cuja manipulação levava a diferentes efeitos visuais, produzidos por distintos fenômenos físicos. Adicionalmente, eles integraram com seus corpos a exposição e estabeleceram um código segundo o qual diferentes ações dos alunos da escola na manipulação dos experimentos levava-os a produzir determinados sons, através da operação velada de instrumentos musicais e fontes sonoras. Criou-se assim, na intervenção, uma combinação de efeitos “reais” - ainda que às vezes aparentemente mágicos - de experimentos físicos e efeitos “surreais” que também pareciam ser causados pela operação dos mesmos experimentos. A intervenção era, então, um convite a que os estudantes desvendassem o jogo de causas e efeitos ali orquestrado, divertindo-se em distinguir a mecânica real dos experimentos ali expostos do jogo surreal proposto pelos performers que compunham a ação.
A intervenção foi realizada duas vezes, durante a Feira de Ciências da escola. Na primeira, os alunos já estavam esperando por alguma apresentação, que havia sido anunciada pela escola, e, então, decepcionados com a observação de um conjunto de experimentos sem nenhuma explicação, não desenvolveram o interesse de investigar aquele acontecimento e simplesmente acionaram, rápida e mecanicamente, todas as manivelas que viram pela frente e foram embora. Após esse primeiro “fracasso”, os performers se organizaram então para montar novamente sua intervenção, no período noturno, antes da chegada dos alunos à escola, permanecendo ali, juntamente com o conjunto de experimentos, como parte da paisagem da escola, sem nenhum anúncio prévio, a espera de serem descobertos. Cada estudante que chegava, então, interagia com uma parte daquela instalação e, pouco a pouco, foi se constituindo uma curiosidade coletiva sobre o que era aquilo. Cada pequena descoberta que se produzia, então, era fonte de alegria e prazer. A descoberta da ação específica que acionava, de maneira aparentemente automática, o tocar de uma corneta gerou um jogo cômico de repetição, com o aluno acionando seguidamente o mecanismo em questão e observando, a seguir, o movimento aparentemente mecânico do performer de tocar a corneta, explicitando o sentido irônico da intervenção.
Nesse trabalho de investigação, cabia aos estudantes desvendar os mecanismos e a lógica subjacentes àquela realidade muda (mas expressiva), que não se explicava por si, nem orientava o que deveria ser feito, mas apenas permanecia a espera de ser descoberta, em uma metáfora do trabalho de pesquisa científica (pelo menos, de acordo com as convicções epistemológicas dos criadores da intervenção). Os proponentes da intervenção, por outro lado, foram desenvolvendo maneiras de levar os alunos a relacionar-se de uma ou outra maneira com a instalação, sem orientar explicitamente o que “deve ser feito”, deixando que as regras do jogo se constituam a partir do próprio jogo. Nesse sentido, não apenas os alunos agiam sobre a instalação construída, como também a instalação agia sobre os alunos, levando-os, pouco a pouco, a encontrar os códigos que permitiam relacionar-se com ela.
Este aspecto, de uma lógica de interação que emerge a partir de uma dada configuração de agências (em analogia à compreensão de Andrew Pickering a respeito da performatividade na ciência), apareceu de forma mais evidente na segunda intervenção realizada, chamada Transformador Sensorial Rítmico:
Os bolsistas construíram um instrumento musical eletrônico (uma caixa de isopor, acoplada a alguns sensores e um alto-falante), operado por meio da aproximação ou afastamento entre as mãos do manipulador e os sensores do instrumento, sem contato físico. Um microprocessador arduíno transformava as informações de distância, captadas pelos sensores, em distintas frequências, de duração e padrão de repetição variável. A maneira de expor os estudantes a essa instalação foi pensada com a intenção de deixá-los descobrir e inventar sua maneira de interagir com o objeto, evitando o vício da explicação e da normatização da ação: ele foi colocado em um canto do pátio da escola, sem anúncio, a espera de ser descoberto e acompanhado do cartaz: “Toque sem tocar”. Ao ver o vídeo da intervenção, é divertido perceber não apenas a maneira como os alunos da escola vão descobrindo o instrumento e começam a produzir realmente música com ele, constituindo e dançando diferentes ritmos, como também a surpresa dos criadores da intervenção ao perceber, atrás da câmera, que o jogo proposto por sua criação estava funcionando: “Ô, o pessoal tá fazendo um som mesmo, cara! O pessoal tá fazendo um som, cê acredita?”. A intervenção envolveu, a seguir, o desenvolvimento, com os alunos interessados, de uma oficina de utilização do microprocessador arduíno e de discussão do funcionamento dos sensores, das ondas mecânicas que permitem ao sensor “perceber” a distância, oferecendo meios para que os alunos pudessem criar suas própriasengenhocas.
Ao evitar normatizar a ação, os proponentes da intervenção se arriscaram também no jogo que propuseram, e viveram assim a expectativa e a alegria própria de sua participação nesse jogo. De certa forma, por um certo intervalo de tempo, o centro da agência não estava nem nos propositores da intervenção, nem nos alunos da escola, mas sim no instrumento musical criado, que, com o jogo de suas respostas sonoras pré-programadas ia constituindo, juntamente com os alunos da escola, uma sintonia de sons e movimentos. Podemos nos perguntar: teriam os alunos da escola de fato explorado de maneira tão plena e livre as potencialidades do instrumento construído se, ao invés desse jogo de descoberta, tivessem simplesmente sido apresentados a ele por meio de uma explicação de seu funcionamento e forma de utilizar? A forma tácita como o jogo se institui constitui um tipo de relação pautado pela liberdade de agir e interagir e não pela obrigação de cumprir ordens. Para isso, os proponentes da intervenção investiram grande esforço criativo em tornar aquele jogo realmente atraente e convidativo. Aliás, a própria intervenção realizada se configurava como um convite para uma oficina onde o jogo com os componentes eletrônicos poderia ser aprofundado, passando a envolver não apenas uma interação com uma caixa preta (neste caso, branca...) pré-programada, mas a possibilidade de abrir essa caixa e desenvolver novas formas de interação com os sensores.
Ao criar essas intervenções, os estudantes do curso de licenciatura em física envolvidos vão desenvolvendo a sensibilidade para uma relação que se estabelece em tempo presente, até certo ponto imprevisível, mas, por outro lado, dotada de uma lógica, de uma estrutura com a qual é possível jogar, extraindo prazer de cada um destes encontros. Pensar os tipos de relação que podem se estabelecer entre docente, estudantes e experimentos científicos, colocando em jogo a relação entre esses atores, ao invés de simplesmente estabelecendo, de maneira autoritária e inibidora, a relação determinada que supomos a possível, a correta, ou a mais pedagógica é um trabalho de sensibilidade e criação. Se muitas vezes nós docentes acabamos enveredando por dinâmicas mais autoritárias e fechadas é também pela falta de repertório para lidar com outras possibilidades de encontro.
CONCLUSÕES
À primeira vista, a perspectiva de aprender física de maneira performativa pode parecer muito abstrata, inverossímil, ou, por outro lado, apenas anedótica, incapaz de efetivamente constituir uma aprendizagem sólida dessa disciplina. Frente a este questionamento, por um lado, espero ter mostrado, com os acontecimentos pedagógicos aqui problematizados, um leque relativamente variado de possibilidades de aprendizagem da física através de processos performativos, nos quais há o envolvimento de um corpo que pensa, que joga com as situações, que cria.
Por outro lado, é importante explicitar que a utilização de metodologias diferenciadas não objetiva ensinar “a mesma coisa” de formas diferentes, mais ou menos eficientes, mas constituir novas compreensões a respeito do que seja o aprender, do que sejam as ciências, e do que seja aprender física. Neste sentido, afastamo-nos, com as construções pedagógicas aqui discutidas, de uma perspectiva dogmática da atividade científica, focalizada exclusivamente nos produtos científicos, reificada em um conjunto de leis matemáticas descontextualizadas tanto de seu processo histórico de construção, como de suas complexas relações nos processos de modelagem dos fenômenos. Ao invés disso, procuramos valorizar não apenas os processos históricos de construção científica, como também os próprios processos de aprendizagem da ciência, procurando abrir espaços para que seja possível jogar, de corpo presente, com as múltiplas agências aí envolvidas, reconhecendo a dimensão hipotética e ficcional do pensamento científico, a importância dos debates e da contraposição de ideias, a riqueza e a complexidade dos processos de modelagem, a dança de agências envolvida nas relações com os dispositivos experimentais e o mundo material, etc. A perspectiva aqui refletida é a de um espaço de aprendizagem aberto para a constituição de novas experiências de relação tanto entre os sujeitos que buscam conhecer, aprender e ensinar, como de relação com a prática científica. Buscamos contribuir com outros traços, desenhar outras possíveis imagens da ciência e desenvolver outras formas possíveis de relação científica com o mundo, bem como de relação educacional com a escola.
Evidentemente, esse tipo de metodologia - assim como qualquer outro - não esgota as possibilidades de compreensão dos fenômenos estudados. Entretanto, ele permite o desenvolvimento de um tipo de compreensão, encarnada, muito frequentemente ausente em outras formas de aprender. Parece-me que, cada vez mais, a educação presencial necessita apoiar-se na relação presencial entre os sujeitos, nas formas coletivas de aprendizagem, respondendo assim a uma necessidade premente de um mundo cada vez mais virtualizado, onde os espaços de encontro físico e corpóreo são cada vez mais raros.
É verdade que as experiências com estas metodologias tiveram, até agora, um papel marginal nos processos de formação escolar, seja na forma de uma disciplina optativa em um curso de formação de professores, ou da produção de intervenções relativamente pontuais em escolas da educação básica. Estamos evidentemente muito distantes da perspectiva de Pineau de integrar ao currículo metodologias performativas “de forma similar a como a escrita foi articulada”. De qualquer forma, esse caráter marginal não deixa de fazer sentido, ao associar-se a intervenções que buscam tensionar e deslocar formas hegemônicas das relações pedagógicas. Mesmo nessa presença pontual e marginal, entretanto, é possível notar o seu papel formativo, no contexto da formação de professores, ao desenvolver uma sensibilidade para os encontros em tempo presente, para dinâmicas não pautadas por relações hierárquicas e autoritárias, para o desenvolvimento da autonomia e da abertura ao risco na proposição de novas estratégias pedagógicas e para uma relação menos dogmática com relação ao conhecimento científico. No contexto da educação básica, as intervenções pontuais realizadas têm buscado constituir espaços práticos de ensaio e reflexão (envolvendo bolsistas, estagiários, alunos, professores) a respeito de outras possibilidades de relação entre os sujeitos, o espaço escolar e o conhecimento científico. Apesar de uma política educacional orientada em sentido diametralmente oposto aos princípios aqui defendidos, minha expectativa é que tais espaços de experimentação e reflexão possam, assim como a flor que brota no asfalto, encontrar espaço para desenvolver-se e frutificar.