Entre os anos de 1915 e 1916, em São João del-Rei - MG, um grupo de teatro amador, liderado por homens da elite local, militares com altas patentes, homens de letras e do governo, além de alguns conhecedores da arte dramática, realizou apresentações que movimentaram os jornais da cidade. Meninas e moças, filhas da elite local, apresentaram-se no Teatro Municipal, encenando operetas que, embora criticadas pelos literatos do período, eram muito aplaudidas em cidades como Paris, Lisboa, Rio de Janeiro e na própria São João del-Rei.
Com o objetivo de investigar a educação das sensibilidades que se deu durante as apresentações das operetas que mais tiveram sucesso de público no período - O Periquito e A mulher soldado -, realizadas pelo Club Dramático Arthur Azevedo, analisamos as motivações que levaram os sócios da agremiação a escolherem e encenarem tais textos e aquelas que levaram o público a comparecer ao teatro. Tal análise nos forneceu indícios do conjunto de sensibilidades hegemônicas e coletivas daquele grupo social, dados que, por sua vez, nos possibilitaram uma aproximação de quais teriam sido as sensações e sensibilidades produzidas ou provocadas durante tais espetáculos.
Embora o interesse pelo tema dos sentidos e sensibilidades, segundo Oliveira (2018), não seja algo novo entre os historiadores,4 o autor destaca que, nos últimos 20 anos, a História da Educação experimentou “uma inflexão em direção aos sentidos e às sensibilidades”, oportunizada “pela renovação dos estudos em História da Educação e a sua intensa aproximação do campo da História na América Latina” (OLIVEIRA, 2018, p.120). Podemos dizer que o presente estudo se insere no conjunto de pesquisas que, segundo Oliveira (2018), diante do reconhecimento dos limites das histórias de caráter generalizante, busca compreender a materialidade da vida, as respostas que as pessoas dão às diferentes situações vividas a despeito de qualquer racionalidade. Objetiva apreender, ainda, além dos discursos, como se reagia a eles, ou seja, “compreender as respostas emocionais de diferentes indivíduos aos imperativos sociais” (OLIVEIRA, 2018, p.121).3
Para tanto, nos inspiramos na definição de sensibilidade cunhada por Sandra Pesavento (2007). Segundo a autora, as sensibilidades são as “operações imaginárias de sentido e de representação do mundo, que conseguem tornar presente uma ausência e produzir, pela força do pensamento, uma experiência sensível do acontecimento” (PESAVENTO, 2007, p.14-15). Para apreender a educação das sensibilidades em determinado momento histórico foi necessário compreender em quais sensibilidades os realizadores dos espetáculos e o público estavam imersos, distinguindo as sensibilidades hegemônicas daquelas coletivas e das individuais. Definimos as sensibilidades individuais como aquelas operações imaginárias de sentido e de representação do mundo, próprias das experiências singulares dos sujeitos; as sensibilidades coletivas como as operações imaginárias de sentido e de representação do mundo relacionadas com experiências comuns vividas por grupos sociais distintos; e as sensibilidades hegemônicas como operações imaginárias de sentido e de representação do mundo que grupos dominantes almejam impor aos demais sujeitos sociais.
A definição de performance de Paul Zumthor (2007) contribuiu no sentido de ajustar as lentes de análise para as apresentações teatrais como fenômenos educativos. Segundo Zumthor, a performance é a situação em que se dá a poética onde estão presentes corporalmente o ouvinte e o intérprete, uma “presença plena, carregada de poderes sensoriais, simultaneamente, em vigília” (ZUMTHOR, 2007, p.68). O autor acrescenta que ela não apenas comunica, mas modifica e marca o próprio conhecimento transmitido. A partir dessa definição, podemos afirmar que a performance é um fenômeno educativo, momento em que ouvintes e intérpretes, em interação, ao mesmo tempo em que realizam, constituem uma poética.
O trabalho de Zumthor (2007) também fundamentou algumas escolhas metodológicas. A poética que se constitui no momento da performance é indício das sensibilidades ensinadas e aprendidas durante os espetáculos teatrais e, portanto, é objeto de análise deste trabalho. Segundo Zumthor (2007), um texto poético é aquele que produz efeitos de prazer; logo, o estudo da poética das encenações, ou seja, dos elementos que agradaram ao público são-joanense, permitiu analisar a educação das sensibilidades. Essas reflexões nos levaram a selecionar as apresentações teatrais do grupo estudado que mais tiveram sucesso, além de analisar, nas críticas publicadas nos jornais da cidade sobre elas, os elementos que agradaram ao público, entendidos como indícios do fenômeno estudado.
O principal conjunto de fontes utilizado para este estudo é mantido pelo Grupo de Pesquisa em Artes Cênicas da Universidade Federal de São João del-Rei. O acervo é constituído por duas coleções: a primeira pertenceu ao Clube Teatral Arthur Azevedo, associação de amadores da cidade, que teria atuado de 1905 até 1985; a segunda é o acervo particular de Antônio Guerra, amador são-joanense. Entre as fontes, utilizamos alguns dos álbuns confeccionados pelo amador, que reúnem recortes de jornais, programas de espetáculos, panfletos e fotografias sobre as produções do clube investigado, além dos Estatutos da agremiação e algumas publicações do período que compunham a biblioteca da sociedade dramática. O livro escrito por Antônio Guerra, publicado em 1968, também foi central nesta investigação.
São João del-Rei, na virada do século XIX para o XX, vivia transformações intensas em todos os níveis da experiência social. Segundo Guilarduci (2009), em 1881 a Estrada de Ferro Oeste de Minas é inaugurada aproximando a cidade da capital do império e, consequentemente, da Europa. Novidades como a iluminação elétrica, o telégrafo, a instalação de diversas fábricas, de tipografias, de ateliês de fotografia e de uma imprensa bastante ativa e diversificada, mudavam a vida na cidade. Os tempos e os espaços do trabalho, do lazer e do convívio também se transformavam, além da tradicional religiosidade: além dos cultos católicos e das festas religiosas tradicionais,4 em São João del-Rei existiam diversos espaços de sociabilidade e variadas formas de lazer.5
A constituição da República inaugurava novas formas de lidar com o espaço e com o poder públicos; emergiam novas maneiras de pensar a nação e as relações com os outros países. As elites da cidade desejavam novidades e buscavam distinguir-se investindo em atividades artísticas como o teatro. Os membros da diretoria do Club Dramático Arthur Azevedo eram militares, intelectuais e homens do governo, endinheirados, que ocupavam lugares de poder na sociedade são-joanense. Já entre os sócios da agremiação havia, também, aqueles que não possuíam muitos bens, tinham prestígio ou se distinguiam por suas habilidades artísticas.6 Com todas as novidades daquele contexto, os amadores desejavam apresentar peças de “alto nível”7 que demandavam recursos financeiros para investir em cenários, em figurinos caprichados e em amadores competentes que conhecessem os segredos da arte.
A escolha da peça para ser encenada deveria ser algo bastante cuidado por qualquer grupo de amadores, assim recomendava Garraio (1911).8 Para o ensaiador português, um erro comum entre os amadores era o de escolher peças afamadas, pelo desejo de encenar um determinado papel, sem considerar todo o conjunto do espetáculo. O resultado, nesses casos, era o fracasso da encenação, já que um só papel, embora pudesse ser bem desempenhado, não poderia salvar o desempenho de uma peça.
É, portanto, a escolha do espetáculo, numa sociedade de amadores, muito difícil tarefa, mas que pode ser desempenhada com acerto, pondo de parte o desejo de brilhar sozinhos, para conquistarem aplausos todos juntos. (...) Um desempenho medíocre, mas afinado, dizia um grande crítico, agrada-nos mais, do que ver um primeiro artista jogar de cena com o auxílio de nulidades (GARRAIO, 1911, p.6).
Os Estatutos do Club Dramático Arthur Azevedo definiam que o “Diretor de Cena” seria o responsável por escolher as peças representadas pela associação e por ensaiá-las. A ele cabia manter “ileso o princípio de sua autoridade na caixa do teatro, zelando com o máximo escrúpulo pela ordem, respeito e disciplina de todos os amadores, sendo ao mesmo tempo responsável pelos resultados artísticos dos espetáculos.”9 Essas regras nos dão pistas de que era preciso uma autoridade que conhecesse a arte dramática e que fosse capaz de zelar pela ordem, ou seja, alguém que pudesse administrar os desejos dos amadores e amadoras e afinar o conjunto de acordo com as habilidades individuais, responsabilizando-se pelos resultados artísticos das encenações. Alberto Gomes, ator que gozava de prestígio ante ao público são-joanense, por suas atuações nos palcos da cidade, era o Diretor de Cena do clube e certamente precisava equacionar todos esses elementos com os interesses dos diretores da associação dramática para tomar suas decisões.
A escolha de Alberto Gomes por encenar operetas10 tem relação com um contexto histórico em que peças ligeiras11 e musicadas faziam grande sucesso no Rio de Janeiro e em algumas cidades brasileiras, além de ser adequada para um grupo teatral que se denominava Arthur Azevedo, em homenagem ao literato de renome na sociedade brasileira da época, escritor e defensor das peças ligeiras.12 A julgar pelo sucesso das duas operetas analisadas, acreditamos que Alberto Gomes acertou na escolha das peças, considerando os elementos que a associação possuía, suas habilidades e as exigências demandadas pelas peças escolhidas. As semelhanças entre elas também se justificam pela necessidade de uma adequação ao perfil do grupo amador. Era comum, no Brasil da virada do século XIX para o XX, que os atores e atrizes se dedicassem a um determinado personagem-tipo, o que facilitava a encenação de uma variedade de peças, por uma mesma trupe, em um espaço curto de tempo. Além disso, de acordo com Pavis (2011), algumas dramaturgias como a farsa e a comédia de caracteres não poderiam se privar dos tipos. Para Neyde Veneziano (1991, p.120-121), “todo o teatro popular, e em especial a revista, trabalha fundamentalmente com tipos”. O tipo, ou personagem-tipo, é o
personagem convencional que possui características físicas, fisiológicas ou morais comuns conhecidas de antemão pelo público e constantes durante toda a peça: estas características foram fixadas pela tradição literária (o bandido de bom coração, a boa prostituta, o fanfarrão e todos os caracteres da Commedia dell’arte. (PAVIS, 2011, p.410)
Geralmente eram distribuídos os papéis aos atores e atrizes de acordo com o emploi,13 ou seja, a cada artista seria atribuído um papel que correspondesse com seu tipo físico, sua voz, sua personalidade e seu estilo de interpretação.
Garraio recomendava que, diante das “exigências cênicas”, os amadores deveriam procurar “carapuças para nossa gente. Nem todos são para tudo é a máxima que todos os amadores dramáticos devem conservar na memória” (GARRAIO, 1911, p.7, grifos do autor). Também para o ensaiador era preciso considerar a voz, a idade e a estatura de cada intérprete de acordo com as exigências observadas na peça. As características físicas dos amadores deveriam coincidir com as características dos personagens que eles representariam nos palcos. Dessa forma seria possível garantir a “naturalidade do desempenho”:
A naturalidade no desempenho que é dote de subido valor em qualquer artista, exige também propriedade no lugar da ação e em todos os acessórios que tem de completa-la. A vista deleita-se com a semelhança da realidade, como se deleita o ouvido, e é para satisfazermos os espectadores de gosto mais apurado que procuraremos apresentar-lhes uma peça com toda a cor local e verdade, no estilo da sua época. (Grifos do autor) (GARRAIO, 1911, p.8)
Os amadores deveriam sentir-se familiarizados com o lugar da ação, com os acessórios que estivessem em cena, para satisfazer o público que desejava ver uma encenação semelhante à realidade.
A opereta O Periquito conta a história de um jovem que foi educado como uma menina e de seus estranhamentos e transformações ao entrar em contato com o mundo fora dos muros do convento em que vivia, sob os cuidados das freiras e de sua tia, a abadessa. A opereta A Mulher Soldado narra as tensões e confusões vividas por uma senhora, esposa de um militar que, para vingar-se da traição do marido, decide disfarçar-se de soldado e servir no quartel em que ele era sargento.14 Os principais tipos das duas operetas se repetiam:
O travesti, tipo dos personagens interpretados pela amadora Margarida Pimentel: o Periquito da opereta de mesmo nome e Clarinha disfarçada de Ventura da opereta A Mulher Soldado.
O campônio estúpido, semelhante ao tipo descrito por Garraio como o “criado-lorpa” (1911, p.52), interpretado pelo amador Francisco Velloso: Liborio da opereta O Periquito e Thomé d’A Mulher Soldado.
O militar sedutor, semelhante ao galã na classificação de Garraio (1911, p.30), interpretado pelo amador Alberto Gomes: o capitão Carlos, d’O Periquito, e o sargento Villar d’A Mulher Soldado.
Observamos que o ensaiador Alberto Gomes conseguiu, diante das “exigências cênicas”, encontrar “carapuças” para alguns amadores (GARRAIO, 1911, p.7), ao menos para os papéis principais das operetas. Em relação ao grupo amador como um todo, precisamos nos perguntar: quais teriam sido as características do grupo que correspondiam àquelas necessárias para a encenação das operetas selecionadas
Inicialmente observamos que o número de atores e atrizes necessários foi um elemento considerado para a escolha das peças. A opereta O Periquito, da maneira como foi encenada em São João del-Rei,15 era composta por onze personagens masculinos16 e seis personagens femininas,17 encenados por dez amadores18 e seis amadoras.19 A opereta A Mulher Soldado possuía oito personagens masculinos20 e quatro personagens femininas21 desempenhadas por oito amadores22 e quatro amadoras.23
O clube dramático Arthur Azevedo possuía um bom número de amadores, o que viabilizava a encenação de operetas, mas poucas mulheres se dispunham (ou não se atreviam) a atuar nos palcos são-joanenses. Ainda que alguns literatos defendessem que existiam mulheres virtuosas no teatro, possivelmente a imagem da atriz, colada à da prostituta,24 impedia que as são-joanenses atuassem nas apresentações, mesmo em um grupo amador constituído por famílias “honradas” das elites da cidade. Contudo, as meninas e jovens solteiras estavam presentes nos palcos, como veremos adiante. A crença de que a exposição e o espaço públicos eram inadequados às mulheres e a noção de que elas deveriam se ocupar da educação de seus filhos e dos afazeres domésticos podem explicar a ausência de senhoras nas encenações.25
Na conferência realizada pelo poeta Franklin Magalhães em agradecimento à homenagem feita por outro grupo amador são-joanense - Club D. 15 de Novembro -, na noite de primeiro de outubro de 1914, ficam evidentes as questões envolvidas quando uma jovem que estava noiva, prestes a se casar, se apresentava nos palcos de São João del-Rei. Em determinado momento de seu discurso, o poeta agradece a presença “deslumbradora” do “belo sexo” no espetáculo:
(...) Poeta - como o meu estro é fraco! Como o ritmo e a cadência dos meus versos são impotentes para exprimirem toda a harmonia que sinto dentro de mim agora e erguer-vos neste momento um conto que fosse digno de vós.
***
(...)
Não me esqueço, meus senhores;
Todos os dias me lembro
Dos sócios dos diretores
Deste ’15 de Novembro’!...
Como os sóis e as alvoradas
Eu guardo na alma, ridentes.
As homenagens passadas
E as homenagens presentes...
A musa, num gesto belo
Cheia de glória e de gozo,
Agradece à Carmen Mello,
Ao Marcondes e ao Velloso.
Que de ciúmes não se armem
Os noivos; musa faceira;
E vem, com vênias a Carmen
Agradecer ao Pereira!
E da vida no deserto,
No peito como num ninho,
Guardo a homenagem do Alberto,
Da Annita e do Passarinho!
Mas, se os tenho em grande monta,
Mais grata minha alma encerra
As homenagens sem monta,
Que me faz o Nico Guerra.
(Folheto de 13 de novembro de 1914, colado no álbum 1, p.28)
O poeta definia o lugar adequado às mulheres no teatro: a plateia e não o palco. Depois de agradecer às são-joanenses que foram assistir ao espetáculo, frisando que se sentia “todo banhado e iluminado” pelos sorrisos e pelos olhares, de suas patrícias, com “a alma num oceano de felicidades” sob o efeito das graças, encanto e sedução daquelas mulheres da plateia, Franklin Magalhães agradece a homenagem do grupo teatral, em nome de sua alma de poeta, musa inspiradora dos amadores. A alma do poeta - “musa cheia de glória e gozo”, “musa faceira” - pediu licença à amadora Carmen Mello para dirigir a palavra ao Pereira, seu noivo. Magalhães ironizou, invertendo a hierarquia social dominante que atribuía ao homem o papel de tutor da mulher. Fazendo a plateia rir, o poeta rebaixava o noivo de Carmen, insinuando que, na relação do jovem casal, os papéis sociais estavam invertidos. Ao mesmo tempo, o poeta - como que consertando a ofensa - agradeceu ao Pereira, possivelmente, por ter permitido que Carmen, sua noiva, representasse naquela noite em sua homenagem.
Esse episódio indica o mal-estar que a presença nos palcos, da noiva, ou esposa, poderia causar em seus noivos, ou maridos. Carmen, assim como Franklin Magalhães, foi banhada e iluminada pelos sorrisos e olhares da plateia que era, também, masculina. Se isso já era motivo para ter ciúmes e para tirar o sono dos noivos e dos maridos, como seria se eles imaginassem a possibilidade de suas mulheres sentirem-se felizes, sob o efeito da graça, encanto e sedução dos homens da plateia?
Carmen Mello e Nathalia Costa compuseram o conjunto de meninas e jovens solteiras da elite que atuavam como amadoras do Club Dramático Arthur Azevedo. Pertencentes a uma geração que representou desde muito jovem em grupos de amadores teatrais da cidade, possivelmente essas “senhoritas” continuaram a encenar peças enquanto estavam sob a tutela de seus pais. É possível que o casamento marcasse a saída delas dos palcos.
A figura 1, foto retirada do livro de Guerra (1968, p. 101), retrata o Grupo Dramático Infantil 15 de Novembro em 24 de junho de 1906. Nessa época, Guerra, o primeiro menino em pé, à esquerda, tinha entre 13 e 14 anos. Carmen Mello, a primeira menina à esquerda da fila do meio, aparentava ter de 10 a 12 anos. Na figura 2, também retirada do livro de Guerra (1968, p.125), há um “grupo de amadores de teatro” em 1912. O rapaz que está mais em evidência é Antônio Guerra aos 20 anos. De acordo com as indicações do autor, Nathalia Costa seria a moça à sua direita, com cabelos compridos, e Carmen Mello seria a última abaixada à sua esquerda. As duas pareciam ter idades aproximadas, possivelmente entre 16 e 18 anos. A partir dessas imagens, inferirmos que na ocasião das apresentações da opereta O Periquito, Nathalia e Carmem tinham em torno de 20 a 22 anos.
Como é possível observar na figura 1, no grupo infantil 15 de novembro, que existiu em 1906, o número de meninos e meninas era equilibrado, já o conjunto da fotografia de 1912 era majoritariamente composto por jovens senhoritas.
Não temos notícias de mulheres casadas que atuaram como amadoras do clube Arthur Azevedo (1915-1916). Porém, as meninas e jovens solteiras disputavam a ribalta. Elas cantavam, dançavam e/ou interpretavam. O Club Dramático Arthur Azevedo, na encenação da opereta O Periquito, contou com a participação, além dos amadores e amadoras que desempenharam os papéis principais, de mais seis meninas que compuseram o “coro das educandas do convento”: Cecilia Costa, Maria de Lourdes Nogueira, Nenê Pimentel, Diquinha e Lucilia Ribeiro e Hilda Miranda.
O redator do jornal O Zuavo se referiu às meninas da seguinte maneira: “Seis carinhas mimosas desempenharam esses papéis. Que inveja tivemos nós do Liborio!!!”28 A exclamação do redator (com a intensidade de três pontos de exclamação) nos intriga, na medida em que ele expõe, sem nenhum constrangimento, o desejo de estar envolto por “carinhas mimosas”, ou seja, de cercar-se das meninas, filhas de famílias prestigiadas, para as quais ele escrevia. O que significava esse desejo, supostamente compartilhado pelos homens que assistiram à opereta (o autor utilizou a primeira pessoa do plural)?
Segundo Silvia Fávero Arend (2013) se, durante o século XIX, os casamentos eram feitos por conveniência e meninas, que acabavam de entrar na puberdade, por vezes, antes disso, eram casadas com homens bem mais velhos, passava-se, na virada do século, a divulgar uma idade ideal para o casamento, por volta dos 20 anos, momento em que o corpo da mulher estaria mais preparado para gerar seus filhos.29 No entanto, podemos supor que ainda que as prescrições tivessem mudado, as sensibilidades ainda estavam em processo de transformação, e o redator d’O Zuavo expunha o desejo de parte da plateia masculina que teria um enorme prazer de estar cercado por belas meninas casadouras, que estavam ou estariam, em pouco tempo, prontas/formadas para o casamento. Os homens, portanto, viam aquelas meninas como “boas esposas” em formação.
Dado importante que precisamos levar em conta são os papéis e as funções que tais meninas desempenhavam nos espetáculos. No caso da opereta O Periquito, como já dissemos, elas formaram o coral das educandas do convento. No palco, portanto, as meninas possivelmente representaram a si mesmas, ou aquilo que os pais e a sociedade são-joanense desejavam que elas fossem e, portanto, se empenhavam em formá-las para atingir tal ideal. Em 1916, contavam 18 anos que se instalara em São João del-Rei o Colégio Nossa Senhora das Dores, voltado exclusivamente para a educação das meninas e moças. Segundo Maria Aparecida Arruda (2011), a instituição funcionava em regime de internato, semi-internato e externato e oferecia o curso primário, o ginasial, o secundário e o Curso Normal.30 É possível que parte das meninas, que cantaram no coral da opereta, estudava ou já havia encerrado seus estudos no colégio. Durante a pesquisa que deu origem a este artigo não foi possível localizar provas documentais sobre a frequência das amadoras ao ; contudo, ainda que nenhuma delas tenha frequentado o colégio, é possível sustentar o argumento de que o modo como elas eram vistas e se viam, ao representarem nos palcos estudantes do coral de um convento, era produzido por sensibilidades hegemônicas e coletivas.
As elites são-joanenses, assim como as elites brasileiras de outras cidades, buscavam uma educação para suas filhas que seguisse o “modelo feminino europeu de mulher civilizada, em que o domínio da cultura letrada constituía um dos signos de civilidade” (GOUVEIA, 2004, p.198). Além disso, desejava-se o que Maria Cristina Soares de Gouveia chama de “uma formação para o exercício de uma sociabilidade urbana característica das camadas dominantes” (2004, p.198). O Colégio Nossa Senhora das Dores atendia a alguns anseios dessas famílias oferecendo, como mostra Arruda (2011), cursos extracurriculares, que tinham um custo adicional, como aulas de pintura, flores, trabalhos de agulha, bordados, música, canto, piano e violino.31
Os espetáculos organizados por amadores, portanto, configuravam-se como uma extensão da escola e dos salões. Eram momentos em que as elites locais apresentavam suas filhas (meninas e moças casadouras) à sociedade. Dessa forma, essas famílias “honradas” exibiam nos palcos a educação que foram capazes de oferecer às filhas, estampada na capacidade das meninas de cantar, de dançar, no modo adequado como elas se portavam, na maneira cuidadosa e luxuosa com que elas se vestiam. As famílias exibiam também seu poder aquisitivo e se distinguiam de acordo com as habilidades exibidas pelas amadoras, pois só tinham acesso ao ensino de algumas dessas habilidades (como o canto) aqueles que pudessem pagar pelos cursos extras do colégio, ou por aulas particulares que, supomos, eram oferecidas por professoras da cidade, como Balbininha Santhiago.32
A confissão do redator d’O Zuavo, sobre seu desejo de estar no lugar do Liborio, cercado por aquelas meninas, pode ter sido tomada como um elogio às meninas e a seus pais, pois atestava o sucesso da educação por eles oferecida, que resultou na criação de “lindas meninas”, que estavam, ou estariam, prontas para serem boas mães e esposas. O comentário do redator, assim como as palmas do público, saudando o número apresentado pelas meninas, envaideciam pais e mães que certamente também ocupavam lugares na plateia.
Mas, nem todas as amadoras do clube Arthur Azevedo se apresentaram como educandas nas duas operetas analisadas. Nathalia Costa e Carmen Mello representaram atrizes no teatro de São João del-Rei em 1916. A primeira atuou como a atriz Tosca, na peça de Vitorien Sardou, por ocasião da estreia do clube e, n’O Periquito, além de interpretar a educanda Branca, fez a atriz Amélia. Carmen Mello substituiu Nathalia em junho de 1916 (na sexta apresentação da opereta), encenando Amélia e Branca. Nathalia teria se casado? Fica a pergunta. Atuar nos palcos são-joanenses já não era algo simples às mulheres, mais complicado ainda seria representar uma atriz, imprimindo em seu corpo de amadora as características de uma mulher livre e sedutora que correspondiam ao imaginário relacionado às atrizes.
O jornal O Theatro, de 13 de julho de 1916, divulgou a entrada da amadora Carmen Mello para o grupo amador Arthur Azevedo. Segundo o redator,
no espetáculo dado pelo Arthur Azevedo em beneficio da Cruz Vermelha Portuguesa, viram os que compareceram a essa delicada festa de arte quanta vida a senhorita Carmen Mello imprimiu ao papel da Atriz, no “Periquito”, papel que, por obsequio á colônia portuguesa, ela consentiu em desempenhar (...). (O Theatro, nº 8, de 13 de julho de 1916. Álbum 13, p.28).
Em 1916, Carmen ainda era uma ousada “senhorita” que se dispunha a representar papéis que poucas mulheres da elite são-joanense encenariam. Indício disso é a notícia reproduzida acima, em que o redator justificava a ousadia da jovem, caracterizando sua atitude como caridade, um “obséquio à colônia portuguesa”.
Em março daquele ano, a Alemanha havia declarado guerra a Portugal e, desde então, a colônia portuguesa do Rio de Janeiro se organizou, envolvendo outras agremiações portuguesas existentes no Brasil, para unir forças e enviar ajuda à Cruz Vermelha Portuguesa, contribuir com obras de proteção aos órfãos etc. Foram organizadas subscrições entre os portugueses radicados no Brasil, com o objetivo de arrecadar donativos enviados a Portugal.33 Outros países, como a Bélgica, também receberam ajudas de brasileiros e brasileiras; segundo McCann (2009, p.215), durante a primeira guerra as “matronas da sociedade carioca” consideravam de “bom tom” enviar ajuda aos “desaventurados” da guerra.
Dessa forma, o ato de Carmen se justificava porque estava de acordo com o que faziam as senhoras da elite carioca. Sua atitude é também “purificada” na medida em que é associada à caridade, traço de um modelo cristão de mulher possivelmente ovacionado pelos são-joanenses. Indício disso é a presença das Irmãs Vicentinas, desde 1880, exercendo um papel importante na formação de meninas em São João del-Rei, como já nos referimos. As alunas desse colégio, dirigido por Filhas de Caridade, possivelmente tinham Louise de Marillac como modelo de mulher e símbolo da caridade, assim como Eliane Lopes (1991) constatou em relação às alunas de um colégio como esse em Mariana - MG.34 Para as irmãs dessa congregação, a caridade era uma das formas de amar a Deus. Eliane Lopes (1991), ao analisar o contexto em que surge, na França, a Companhia de Filhas de Caridade São Vicente de Paulo (1633), afirma que “a caridade era uma atividade sobretudo feminina, ainda que dirigida por homens” (p.30). De acordo com a autora, um dos responsáveis pela criação dessa instituição Vincent de Paul, aconselhava as “Filhas de Caridade em 1653”:
O espírito das Filhas da Caridade é o amor de Nosso Senhor... É preciso que saibam que ele opera de duas maneiras: uma afetiva e outra efetiva. Porque apenas o primeiro não basta, minhas irmãs, é preciso ter os dois. É preciso, do amor afetivo passar ao efetivo, que é o exercício das obras de caridade, o serviço dos pobres, levado com alegria, coragem, constância e amor. (apudLOPES, 1991, p.30).
Dessa forma, Carmen, ao encenar a atriz da opereta, passava do amor afetivo a Deus para o amor efetivo, servindo com coragem aos desvalidos portugueses. A notícia do jornal do clube amador mostrava, portanto, que para grande parte da elite são-joanense não era adequado a uma mulher, ou a uma jovem, ter sua imagem associada à imagem de uma atriz mas, ao mesmo tempo, evidenciava que essas ideias não eram tomadas a ferro e fogo, pois os são-joanenses encontravam maneiras de conciliar seus desejos com as regras sociais dominantes e com a tradição religiosa.
Em A Mulher Soldado, Luiza Pereira interpretou Alice, a suposta amante de Gabriel. Luiza, assim como Nathalia Costa,35 possivelmente não tinha uma posição social privilegiada entre os membros do Club D. Arthur Azevedo. Afirmamos isso a partir de alguns indícios, o primeiro diz respeito às dificuldades financeiras que a família de Luiza enfrentava, a ponto de um grupo de amadores dedicar uma noite de espetáculos “em benefício da família da senhorinha Luiza Pereira”, no dia 23 de novembro, de 1921 (A Tribuna, de 27 de novembro de 1921. Álbum 13, p.65). Dessa foram, a amadora não se distinguia economicamente entre os membros do Arthur Azevedo.
Luiza também não se destacava nos palcos, nem socialmente: o “lapso” do redator do jornal O Zuavo, ao se esquecer de mencionar Luiza Pereira e Georgina Buccholz em sua apreciação sobre a opereta O Periquito é indício disso.36 Os comentários sobre sua atuação são bastante sucintos. Segundo Theóphilo Silveira (sobre A mulher soldado), “a senhorita Luiza Pereira, embora num papel de pequena responsabilidade, que desempenhou com toda a correção, concorreu para o bom êxito da representação, adornando sempre com a sua elegante esbelteza as cenas em que tomou parte” (O Theatro, n.8, de 13 de julho de 1916. Álbum 13, p.28). Já o autor anônimo, que teve seu texto publicado pelo Zuavo, disse sobre a mesma opereta: “os demais, com exceção de Mademoiselle Luiza Pereira, que se vê desde logo ser uma principiante pelo seu natural acanhamento, muito concorreram para o conceito de que goza a companhia a que pertencem, se afirme e confirme dia a dia” (O Zuavo, de 25 de setembro de 1916, Álbum 13, p.34).37 Às moças que não se distinguiam socialmente entre os membros do grupo amador e que não se destacavam por suas habilidades nos palcos, restavam os papéis “de pouca responsabilidade” e que poderiam manchar a reputação das filhas de famílias privilegiadas.
Conceição Pimentel, filha do presidente do clube, capitão José Pimentel, interpretou a superiora do convento na opereta O Periquito. O papel protegia a amadora, de alguma maneira, dos preconceitos relacionados à presença das mulheres nos palcos, pois o hábito e o modo de ser de uma madre conferiam virtudes àquela que o representava. A menina tinha entre 12 e 13 anos na época da representação. Evidentemente ela não atendia às “exigências da personagem”, segundo o modo de distribuição de papéis do período. Os comentários sobre a interpretação da amadora foram sucintos e elogiosos,38 com exceção da observação do autor anônimo do texto publicado pelo jornal O Zuavo. Para ele,
Conceição Pimentel, provou à evidência, desta vez, que muito mal fazem em a aproveitarem para representar, metida dentro do habito austero de irmã de Caridade. O seu gênero não é esse e, a prova disso a tivemos ontem. O seu sentimento para as coisas alegres, saltitantes, buliçosas, não se acomoda no misticismo duma religiosa... (O Zuavo, de 25 de setembro de 1916, Álbum 13, p.34).
Possivelmente o ensaiador do grupo designou o papel de abadessa à menina Conceição, porque ela era filha do capitão José Pimentel. Pelo mesmo motivo, a imprensa elogiou a amadora omitindo sua inadequação ao papel. A crítica somente veio à tona em um texto de autoria anônima. À filha do presidente do clube foi distribuída uma personagem que tinha uma participação pequena na opereta, o mais condizente possível com suas habilidades, mas que conferia algum destaque à amadora, pelo lugar social que a figura de uma abadessa possuía naquela sociedade. Era como se nos palcos a menina Conceição fosse apresentada com as virtudes da personagem: amadora e personagem se confundiam para o público, assim como em todos os casos.
Na opereta A mulher soldado, Conceição interpretou Rosinha, uma personagem que aparece unicamente na primeira cena do terceiro ato, cantando uma “cantiga ou tango” juntamente com Helena (empregada da estalagem) e um coro. Não tivemos acesso a outros textos dessa opereta, por isso não podemos afirmar categoricamente, mas temos a impressão de que esta cena foi acrescentada à peça para possibilitar a participação de Conceição Pimentel, pois ela não tem nenhuma relação com o enredo. Rocha Junior afirma que, nas peças do gênero musicado, especialmente nas revistas, “algumas músicas não tinham outra função a não ser sua própria apresentação” (2002, p.91). No entanto, em relação às outras dez músicas da opereta, ela se destaca por ser a única nessa situação.
Na última cena do segundo ato da opereta, que antecede a apresentação musical das personagens Rosinha e Helena, Clarinha (disfarçada de Ventura) é presa por ter agredido o sargento Gabriel na estalagem. Abrindo o terceiro ato, a cena interpretada por Conceição Pimentel e Nininha Rodrigues não tem nenhuma relação com a anterior. Ela começa no quartel e, inexplicavelmente, a empregada da estalagem, Helena, lá está com os soldados a festejar. Então Rosinha é chamada para cantar. Na cena seguinte, Thomé comenta que enquanto uns são felizes, outros (como ele e o prisioneiro Ventura, do qual ele fazia a guarda) eram infelizes. A partir daí o espectador é levado de volta à trama da opereta.
Ao que tudo indica o número de Rosinha foi uma apresentação musical, inserida no início do terceiro ato. Ainda que a cena exista nos folhetos originais da opereta, a personagem Rosinha pode ter sido criada com a finalidade de possibilitar a participação da filha do presidente do clube amador. Segundo Theophilo Silveira, a apresentação muito agradou ao público:
A senhorita Conceição Pimentel, foi magnificamente bem no papel de Rosa, tendo dado à cantiga ou tango do princípio do 3º ato um relevo todo especial pela juvenil brejeirice com que a realçou, e pelo meneio grácil com que a sua linda figura acompanhava a cadencia da música: esse trecho mereceu, do público, as honras do bis (O Theatro, n.8, de 13 de julho de 1916. Álbum 13, p.28).
Dessa vez, a amadora vestiu uma carapuça que lhe caiu muito bem, condizente com sua “brejeirice”, de uma menina de 12 ou 13 anos. Portanto, Alberto Gomes criou uma estratégia para atribuir à amadora um papel mais adequado à sua figura, sem muito prejudicar a opereta. O tango que Conceição cantou nos causou estranhamento por seu teor erótico.
3º Ato
Cena I
(Thomé, Helena, Rosinha e soldados)
Coro
Dançar, cantar
Gentis cantigas
Saracoteavas raparigas
A perna é dar
Sem descansar
Sem descansar
Seguir voltar
Rodar passar
Quando pressa tem
O soldado aproveita bem
Em vez de dormir
Toca a divertir.
Todos
Bravo! Bravo! Muito bem!
Helena: Anda Rosinha, canta uma cantiga
Todos: Sim, sim, uma cantiga
Rosinha: Não me faço rogada
Música
Rosinha
Sempre que há festa na aldeia
Quem meneia (bis)
É a moça mais catita (bis)
Traz calçada bela meia
A teteia (bis)
Presa com um laço de fita (bis)
Bis para coro
Rosinha
Um dia foi passear
Um militar (bis)
Com a bela rapariga (bis)
Tentado por um olhar
De fascinar (bis)
Pediu-lhe pra ver a liga (bis)
E assim tão terna (ect.)
Todos
Bravo, bravo, muito bem!
Helena: Se tiverem sede e quiserem molhar a palavra, a patroa mandou por no pátio uma pipa de vinho para os senhores militares.
Todos
Viva a Pátria! (saem com a música)
(Cópia manuscrita da opereta A Mulher Soldado, p.39-40, acervo GPAC - UFSJ).
Como era possível à filha do capitão, presidente da associação dramática, cantar uma cantiga tão “apimentada” (para os preceitos morais daquela sociedade) nos palcos são-joanenses? Como vimos na citação acima, para Theophilo Silveira, na cena esteve em relevo o caráter brincalhão, divertido da amadora e seu “meneio grácil” ou o modo delicado e elegante com que ela (uma “linda figura”) acompanhava a música. Poderíamos dizer que, em sua performance, destacou-se mais a menina faceira do que a rapariga catita que mostrava toda a perna até a liga. Talvez a força dos gestos, da coreografia, do figurino e da presença da menina em cena tenham diminuído a força do conteúdo erótico da canção. Essa hipótese se torna mais forte se considerarmos que tal canção poderia ser já velha conhecida do público e, portanto, já não causava grandes espantos.39
Nininha Rodrigues interpretou a diretora Sebastiana, personagem d’O Periquito. Esse papel também protegia, de alguma maneira, a amadora dos preconceitos relacionados com a presença das mulheres nos palcos. Nininha continuou imaculada por representar uma senhora distinta, que trabalhava no convento e era casada com a bênção da santa igreja católica.
Na opereta A mulher soldado, Nininha Rodrigues atuou como Helena, a empregada da estalagem que, encantada por militares, não aceitava dinheiro deles, mas beijos como gorjeta. A cada beijo que ganhava ela desmaiava, por falta de ar. O autor anônimo que enviou para O Zuavo sua apreciação escrita “au currente calamo”, sobre a encenação da opereta A mulher soldado, destacou os desmaios encenados pela amadora: “Nininha Rodrigues, no papel da Helena, portou-se com muita correção em cena e agradou imensamente. Pronuncia clara, gestos muito oportunos e presença de espírito notável. Esteve admirável nos seus desmaios... naturais” (O Zuavo, de 25 de setembro de 1916, Álbum 13, p.34).
A fonte nos possibilita analisar a performance da amadora, que por meio de sua presença corporal, de seus gestos, constituiu uma poética capaz de agradar “imensamente” à plateia. Assim, a análise da atuação de Nininha, de sua performance, nos possibilita compreender as sensibilidades que estavam em jogo durante aquele momento do espetáculo. Theóphilo Silveira afirmou sobre a atuação da amadora:
A senhorita Nininha Rodrigues deu um desempenho, de excepcional merecimento à parte da criada do hotel, tendo mostrado, mais uma vez, as raras qualidades da sua extraordinária veia cômica, provocando a hilaridade pela graça que, com a maior naturalidade, ela fazia ressaltar das situações do seu papel, principalmente nos desmaios por falta d’ar (O Theatro, n.8, de 13 de julho de 1916. Álbum 13, p.28).
Os destaques dados aos desmaios da personagem e a constatação de que eles causaram efeitos “extraordinários”, provocando o riso, nos levam a supor que a comicidade da cena livrou a amadora dos julgamentos do público ao vê-la encenar Helena (mulher que poderia ser julgada pelo comportamento inadequado, pois preferia ser beijada pelos militares a receber suas gorjetas). A definição de Henri Bergson sobre o riso nos ajuda a refletir sobre essa hipótese.
Para Bergson, há duas condições essenciais para a comicidade: a insociabilidade da personagem e a insensibilidade do espectador. A insociabilidade diz respeito ao caráter rígido e, portanto, insociável, do personagem. Para o autor, “no teatro, o prazer de rir não é um prazer puro, quero dizer um prazer exclusivamente estético, absolutamente desinteressado. A ele se mistura uma segunda intenção (...) a intenção inconfessa de humilhar, portanto, é verdade, de corrigir pelo menos exteriormente” (2001, p.102). Dessa forma, rimos dos defeitos dos outros, ao mesmo tempo em que tememos o riso do outro sobre os nossos defeitos. As virtudes também podem se tornar risíveis. Ridicularizamos uma virtude quando ela é apresentada de forma rígida, insociável. Para Bergson, “a personagem cômica pode, a rigor, andar em dia com a moral estrita. Falta-lhe apenas andar em dia com a sociedade” (2001, p.102). Um personagem com uma honestidade perfeita é insociável e, por isso, cômico. Bergson (2001) acrescenta que um vício flexível seria mais difícil de ridicularizar do que uma virtude inflexível, rígida.
O caráter rígido e insociável da personagem Helena diz dos valores da sociedade são-joanense no período. Possivelmente sua insociabilidade tem relação com seu encantamento pelos militares, um encantamento que a impede de distinguir entre o sargento e o soldado, vendo em todos uma infinita simpatia. Encantamento que a faz dispensar as gorjetas e aceitar os beijos de todos, sem distinção. Uma atitude como essa não condizia com os costumes de uma sociedade em que a elite buscava a todo tempo se distinguir, ou mesmo com o Exército, instituição marcada pela hierarquia. Essa rigidez da personagem ridicularizava e humilhava as mulheres que suspiravam por militares indiscriminadamente.
Já a insensibilidade dos espectadores diz respeito ao vício da personagem e é aí que, imaginamos, a amadora seria perdoada por desempenhar esse papel. Para Bergson, “o riso é incompatível com a emoção” (2001, p. 104). Um vício em si não é cômico, ele torna-se cômico se ele não comover o espectador. Se a cena despertar simpatia, medo ou piedade no público, ela não será mais capaz de fazer rir. A própria rigidez da emoção viciosa (o encantamento de Helena pelos militares indistintamente) impediria que o espectador entrasse em relação com o restante da alma na qual a emoção se assenta.
Outro mecanismo para impedir que o espectador se envolvesse emocionalmente com o vício de Helena era a distração. De acordo com Bergson, para impedir que o espectador leve a cena a sério é preciso impedir que sua atenção se concentre nas ações, pois ela deve se dirigir mais para os gestos. O autor distingue os gestos das ações. Os gestos seriam “as atitudes, os movimentos e até mesmo os discursos por meio dos quais um estado d’alma se manifesta sem objetivo, sem proveito, apenas por efeito de uma espécie de comichão interior”; já “a ação é desejada, em todo caso consciente” (2001, p.107.
No caso das cenas que envolviam a personagem Helena, na opereta A Mulher Soldado, a distração que fez do espectador insensível ao seu vício foi o desmaio. Bergson afirma que se tem uma cena cômica a partir do momento em que a atenção do público incidir no gesto, e não no ato. O desmaio de Helena foi identificado pelos críticos como o momento de maior hilaridade da interpretação da amadora. Assim, podemos dizer, que o desmaio foi o gesto que distraiu a plateia são-joanense do vício da personagem, e dessa maneira, ela teria sido perdoada por encenar uma personagem viciosa. A comicidade da personagem é que permitia a uma senhorita honrada, da sociedade são-joanense, representá-la.
Por meio desses jogos teatrais, a amadora atendia às expectativas do público são-joanense, ávido por momentos de muito riso e gargalhadas e contribuía para que o grupo se destacasse ao renovar o repertório teatral da cidade, deixando os “velhos dramas” e passando a encenar “peças alegres”. O Arthur Azevedo aproximava São João del-Rei da cena teatral do Rio de Janeiro e das cidades da Europa que, naquele período, aplaudiam operetas, revistas e zarzuelas.40
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos dizer que o ensaiador do clube Arthur Azevedo, Alberto Gomes, seguia os conselhos do autor do manual voltado para amadores, Garraio (1911), até o limite dos interesses da diretoria da associação e dos preceitos morais da sociedade são-joanense. Nessa medida, a escolha das operetas O Periquito e A mulher soldado foi bastante acertada, pois considerou o número de amadores e de amadoras necessário para a representação e possibilitou a exposição pública das filhas das elites são-joanenses, protegendo-as do julgamento do público, por meio dos papéis que encenavam. O lugar social dos amadores e das amadoras também era elemento considerado na distribuição dos personagens entre os membros do clube.
A partir da análise das performances que aconteceram durante as apresentações das operetas, observamos que algumas sensibilidades hegemônicas eram reforçadas por essas apresentações, como os sentimentos de vergonha e de inadequação das mulheres casadas nos palcos, o desejo dos pais da elite são-joanense e seu orgulho ao exibir suas filhas prendadas, virtuosas e caridosas, prontas para cumprirem seus papéis de boas esposas e mães. Além disso, a atuação nos palcos certamente provocava, nas meninas e mulheres daqueles anos iniciais do século XX, a sensação de que se situavam entre um passado que as condenava à esfera privada e um presente, ambíguo e tenso, que as permitia certa participação na esfera pública.
Os espetáculos também reforçavam as distinções sociais, econômicas e destacavam os eruditos dos medíocres, gerando certo conformismo e os sentimentos de superioridade em alguns e de inferioridade em outros, o que contribuía para justificar os diferentes tipos de hierarquizações e de desigualdades que caracterizavam o período. Portanto, por meio das sensações provocadas pela presença corporal, gestos e ações das amadoras e dos amadores, ou seja, por meio da performance, durante as apresentações realizadas pelo grupo, aprendiam-se e ensinavam-se sensibilidades relacionadas com os papéis sociais e as relações de poder estabelecidas naquela sociedade.