INTRODUÇÃO
O dia 27 de Setembro!
Vincula servitii tandem sunt saeva remissa3. C. L.
“O mez de Setembro, o mez da primavera e flores, é duplamente lisongeiro ao grande Império Americano.
O dia 7 raiou para registrar na lista das nações independentes a autonomia do nascente Império.
O dia 27 dissipou do horisonte brasileiro a única nuvem que lhe offuscava o brilho.
O primeiro consagrou a independência de um povo.
O segundo veio allumiar a liberdade em sua plenitude.
Salve! dia 27 de Setembro! tu que vieste lançar um marco milliario na estrada da civilisação e do progresso!
De hoje avante, os que nascerem neste bello torrão americano, nascerão para a liberdade, e os ferros da dependência servil, as algemas da escravidão, a humilhação do captiveiro, não mais matarão ao nascedouro as mais lisongeiras esperanças, as mais gratas aspirações!
Gloria á nação brasileira, que por um nobre esforço soube collocar-se ao lado das mais importantes e civilisadas nações do mundo.
Reconhecimento e respeito ao Monarcha que tomou a si o generoso empenho de fazer realisar a grandiosa idéa da libertação do escravo.
Gratidão ao Gabinete que luctou contra a fúria desabrida dos interesses feridos; contra essa legião de despeitos, de ambições ignóbeis, de idéas retrogradas que se congregaram para impedir-lhe o passo.
Felizes os nascituros, por que para elles raiou o sol da liberdade!
(SEMANA ILLUSTRADA, 1 de outubro de 1871).4
As reformas fazem parte da agenda política, ora mais gerais, ora mais específicas. A proposta de efetivar um conjunto de reformas ao longo do processo de construção do estado nacional foi a solução encontrada pelo governo para lidar com os desafios sociais intensificados a partir da década de 18705. Decorrente de um conjunto de elementos que vinham se constituindo há décadas, a conjuntura que mobilizou o meio político nos anos 70 do século XIX impulsionou as lideranças a tomarem algumas medidas para amenizar os efeitos da instabilidade política e assegurar uma opinião pública favorável à monarquia. O conjunto de ações promovidas foram importantes para reorganizar as forças sociais e impedir ou retardar determinados projetos, tais como a abolição da escravidão e a instauração da República. Neste sentido, um dos pontos centrais da agenda política consistia no projeto de emancipação do elemento servil. No entanto, como lidar com este problema? Deveria haver libertação dos escravizados? Seria uma emancipação plena? Deveria ser gradual? De que tipo? Não deveria ser realizada? Por quê? Em qualquer um dos cenários, uma questão se colocava: como gerir o acesso da população escravizada aos universos da cultura letrada? Enfim, caberia instruir e de que modo escravizados, ingênuos e libertos? Essas são as questões centrais que inspiraram e orientaram este trabalho.
No imaginário geral ser escravizado apresentava uma correlação quase direta com a cor da pele. Nesta chave, a pessoa de cor negra, por vezes, era confundida com a condição de ser escravo6, como se pode observar na sessão da Câmara dos Deputados, de 1826, na qual Vasconcellos7 afirmou: “a presunção é que um homem de cor preta é sempre escravo”. Esta manifestação na tribuna da “cadeia velha8” foi contestada por companheiros de bancada, com observações do tipo: “Dizer-se que um homem da raça negra deve ser reputado escravo todas as vezes que não prova o contrário, é um absurdo, é uma injúria feita à humanidade na pessoa desse miserável” [...] “Qualquer homem tem a presunção de ser livre, porque todos assim nasceram”. Ao deslocar o debate para o plano da legislação brasileira, o deputado mineiro replicou: “Eu falei na forma de nossa legislação quando disse que a presunção é de que o homem preto é escravo: esta é a presunção que nela existe, e não sou obrigado a mais. Não disse que os pretos deviam ser sempre escravizados” (SOUSA, 2015, p. 52).
Schueler e Teixeira retomam a discussão acerca da correlação simples, direta e mecânica entre negritude e escravidão. Ao considerarem a centralidade da escravidão e a desigualdade na sociedade imperial, essas autoras assinalam a complexidade da condição jurídica e social de negros, livres e libertos, com indicativos de ascensão social por parcelas da população negra do meio urbano. Observaram, ainda, que muitos negros se envolveram no processo pelo fim da escravidão e na luta pelo acesso à escola, principalmente, nos anos de 1870 e 1880 (SCHUELER; TEIXEIRA, 2015)9.
Neste trabalho, investimos nos debates da Câmara dos Deputados e do Senado acerca da aprovação da reforma emancipacionista em 1871, medida que contribuiria para dissociar definitivamente o suposto par negritude-escravidão. Ao examinar o processo em torno desta norma e do gradualismo que a mesma representava no que se refere à eliminaçãodo elemento servil, observamos entraves e disputas que a mesma provocou. Para não ficar nos limites do normativo e das disputas em torno do jurídico e do legal, o outro movimento realizado no trabalho corresponde à análise de iniciativas que possibilitaram o acesso dos escravizados, negros, libertos e ingênuos à cultura letrada, com indícios da participação de diversos grupos, pessoas, associações e clubes, dentre outros10.
QUEM LUTA, LIBERTA: ENTRE ESCRAVIZADOS E INGÊNUOS
Em 29 de setembro de 1870 foi organizado o Gabinete de José Antônio Pimenta Bueno11, o Marquês de São Vicente, que convidou João Alfredo Corrêa de Oliveira12 para gerir a pasta do Império. Nesta ocasião, a questão emancipacionista ganhava novos contornos e era preciso enfrentá-la. Inicialmente, o referido Marquês foi quem mais se destacou no Conselho de Estado nesta matéria, pois teve a honra de ser um dos primeiros homens de governo “que na questão dos escravos tentou e conseguiu mover o nosso mechanismo politico todo, - Imperador, Conselho de Estado, Ministério, - de ter sido o primeiro a formular o conjunto de medidas que desenraizou a escravidão do nosso solo em 1871” (NABUCO, 1899, p. 179). No entanto, o Marquês de São Vicente não era um chefe de partido, um orador com a resistência que a luta parlamentar exigia. Deste modo, não obteve o amparo dos conservadores e teve oposição franca dos liberais (LYRA, 1978). Em 07 de março de 1871, São Vicente passou a presidência do Gabinete para José Maria da Silva Paranhos13, o Visconde do Rio Branco, que possuía características mais apropriadas para a discussão requerida pela reforma voltada para a emancipação do elemento escravo. Ao se referir ao Rio Branco, Alonso sublinha: “Amor a matemática, experiência em negociação, pendão modernizador e sangue frio proverbial fizeram de Rio Branco o capitão capaz de atravessar o mar bravio no qual São Vicente naufragara” (ALONSO, 2015, p. 54).
Ao organizar o Gabinete da Secretaria do Estado dos Negócios do Império14, Rio Branco conservou João Alfredo Corrêa de Oliveira no cargo de Ministro dos Negócios do Império. No início de sua gestão, oferece pistas do motivo que o levara a alterar todas as pastas do seu Gabinete, menos a que estava sob a responsabilidade de Oliveira. De acordo com Nabuco, João Alfredo “logo na primeira sessão em que dirigiu a Camara como ministro do Império, conquistou, na frase de Rio Branco, o bastão de Marechal” (NABUCO, 1899, p. 203).
Rio Branco não reformaria tanto quanto queriam os abolicionistas, nem deixaria tudo da forma como estava, conforme clamavam os “emperrados” (ALONSO, 2015). Operando em um cenário de interesses cada vez mais polarizados o Visconde necessitava de todo o apoio possível, pois havia uma resistência muito grande em relação à aprovação de uma reforma que iria modificar a estrutura social, econômica e educacional de um país que havia sido construído sob o pilar da escravidão. Ao refletir sobre a influência da escravização na sociedade, Joaquim Nabuco enumera alguns elementos que justificavam, sob alguns aspectos, a “natureza” da escravidão:
Bem ao contrário, quando se podia extinguir o cancro e repudiar no benefício do inventário as servidões herdadas da metrópole, abriu-se os braços à emigração africana, como se dizia, isto é, ao tráfico dos negros. Todos os crimes que a imaginação pode conceber, desde o lançamento ao mar de centenas de homens vivos até a morte, no porão, por asfixia, de outros tantos desgraçados, tudo cai como uma responsabilidade enorme de sangue sobre a nossa cabeça.
Eis porque hoje quando queremos livrar-nos sem abalo desse mal, não podemos.
Ele tem a idade do nosso país: nascemos com ele, vivemos dele. Foi como um vírus que se embebeu longos séculos em nosso sangue.
Toda a nossa existência social é alimentada por esse crime: crescemos sobre ele, é a base de nossa sociedade. Nossa fortuna donde vem? De nossa produção escrava. Suprimi hoje a escravidão, tereis suprimido o país. Eis como a lei moral reage. Nossa liberdade fez-nos escolher o caminho do crime, seguimo-lo: hoje que queremos dele sair estamos a ele pregados (NABUCO, 1988, p. 32).
Com uma larga tradição, fortemente ancorada na economia baseada no trabalho escravo e nos costumes, a escravização assumiu legitimidade, tendo sido fortemente institucionalizada conforme demonstra o estudo de Alonso (2015, p. 53): “Somente insensatos, se insurgiriam contra a ordem natural das coisas, que não vigeria por vontade de uns, e sim por necessidade de todos.” A crítica “à ordem natural”, contudo, ganhava as ruas e adentrava o parlamento. Dentre os maiores apoiadores do projeto “insensato” estavam Sales Torres Homem15, São Vicente, Bom Retiro16 e João Alfredo Corrêa de Oliveira (HOLANDA, 1972).
A resistência à reforma da emancipação na Câmara dos Deputados, por sua vez, foi liderada por Paulino de Souza17, tendo contado com a colaboração de representantes como José de Alencar18 e Ferreira Viana19, por exemplo. O partido Conservador se dividiu, pois alguns parlamentares conservadores se posicionaram a favor da emancipação gradual do elemento servil, apesar da forte frente de oposição, liderada por Souza. Entre os liberais, a divisão foi menos percebida, devido à ausência de representantes na Câmara dos Deputados. No Senado, o projeto emancipador encontrou adeptos como Nabuco de Araújo20 e Paranaguá21. A oposição contou com a militância aguerrida de Zacarias22 que combateu todos os artigos da reforma (HOLANDA, 1972).
O impasse fez com que o Presidente da Câmara reunisse o governo e os dissidentes na tentativa de um acordo, sem sucesso. Paulino permaneceu inflexível e os governistas não negociaram o cerne do projeto; o ventre livre. A realização das sessões foi obstruída pela minoria que utilizava artimanhas: impedia quórum, inventava reuniões no horário das sessões, atrasava relógios de deputados, entre outras ações. Esse conjunto de estratégias procurava testar a força e organização dos emancipacionistas, na medida em que os obrigava a fazer um esforço para pôr a base inteira na Câmara. Conforme as observações de Ângela Alonso (2015), para enfrentar esta situação, Corrêa de Oliveira parece ter tido uma grande participação. Segundo ela, o outro lote de deputados, mais arisco, aderiu graças ao cabresto do Ministro dos Negócios do Império que, como uma espécie de “para-raio ministerial”, caçava deputados em casa, colocava sentinelas para que ficassem na sessão, chegando a arrastar um deputado com febre para o plenário.
Como se pode notar, a tramitação do projeto na Câmara dos Deputados não foi tranquila. O ministro pernambucano esteve à frente impulsionado os estadistas a comparecerem às sessões. Conforme Barreto (1884, p. 85), “O ministro do Império, Conselheiro João Alfredo, cuja energia influiu poderosamente nos menos corajosos governistas”, foi um dos que mais ajudaram o Presidente do Conselho. Sua permanência na pasta ministerial, a mais longínqua do Império, lhe valeu a reputação de:
Administrador inteligente, operoso, empreendedor, de vistas largas e muito preocupado com o ensino público e os melhoramentos da capital, mas o que lhe deu louros imarcescíveis foi a sua colaboração na lei de 28 de setembro de 1871. Chamaram-no nessa época de líder taciturno dos encerramentos, recurso regimental de que muito se serviu o governo para evitar protelação dos debates. [...] Aos auxiliares deste estava reservado outro papel. E ninguém desempenhou melhor o seu do que João Alfredo, reunindo e disciplinando a maioria, levando-a ao recinto e fazendo-a secundar a ação do governo (LYRA, 1978, p. 211, grifos do autor).
A forma como os ministros conduziam o projeto da emancipação estava sendo observado em diversas instâncias. O empenho que o Ministério erigiu para conseguir sucesso na aprovação da proposta foi observado pelo Senador Souza Franco23 em uma discussão acalorada com Rio Branco no Senado:
O Sr. Souza Franco - Eu o felicito pelo facto, porém não pelo modo, porque promove este grande acto humanitario e vantajoso ao Imperio; arrancando-o á força á camara dos deputados, e arrastando seus amigos, representantes da nação, por baixo das forças caudinas. [...]
O Sr. Visconde do Rio Branco (Presidente do Conselho): - Já reclamei contra isto.
O Sr. Souza Franco - De fórma que poderá ficar registrado nos Annaes que o Brasil escravocrata decidido, para decretar a manumissão de seus escravos, não teve expontaneidade. O braço forte do Sr. Visconde do Rio Branco (este nome ha de ficar na memoria) a arrancou aos representantes da nação obra da força pujante do Sr. presidente do conselho, o Brasil não terá no acto o menor merecimento. E' o que proclama S. Ex. no Jornal do Commercio. [...]
O Sr. Visconde do Rio Branco (Presidente do Conselho): - Quem disse que se forçava a camara? Diz-se justamente o contrario; fui até censurado pela minha moderação pelo nobre senador pela Bahia, que disse que eu tinha desarmado o ministerio.
O Sr. Zacarias - Sim, senhor. [...]
O Sr. Souza Franco - Então V. Ex. tem de recuar por falta de animo e não fará passar a lei de emancipação.
O Sr. Visconde do Rio Branco (Presidente do Conselho): - Então é preciso levar á força, segundo V. Ex.? (ANAIS DO SENADO, 17 de maio de 1871, p. 113).
As discussões acerca do projeto emancipatório foram igualmente acirradas na Câmara dos Deputados, como demonstra o debate ocorrido na sessão de 16 de maio de 1871, na qual o senhor Sr. Saraiva24 questionou:
Sim, se para a emancipação do escravo... emancipação, não; o projecto não trata da emancipação dos actuaes escravizados, e apenas de extinguir a fonte da escravidão sem prejuizo dos senhores. Se para conseguir reforma tão prudente, e que não é politica, luta o ministerio com tantas difficuldades, que embaraços não encontrará logo que trate de fazer a liberdade de voto, e por essa fórma ameace a esperança que tem o partido conservador de guardar o poder por um seculo ou mais? (ANAIS DO SENADO, 16 de maio de 1871, p. 94).
A radicalização e polarização dos discursos traziam à tona assuntos que não estavam na pauta, mas se apresentavam como um problema a ser resolvido pelo ministério, indicando um redirecionamento do debate. Neste caso, o Sr. Saraiva trouxe para a discussão a reforma eleitoral, outro ponto que integrava a agenda de reformas do período.
A sessão de 2 de agosto foi marcada por uma desordem generalizada. Estava em discussão o artigo 4ª do projeto. O Sr. Paulino solicitou votação nominal, na qual o art. 4º foi aprovado com 59 votos a favor e 39 contrários. Como estratégia, para impedir a votação do 5º artigo, os dissidentes discursavam sobre outros assuntos como, por exemplo, a reforma eleitoral. O presidente advertiu que a pauta era outra, sem que tivesse surtido o efeito desejado. Houve reação dos governistas que reagiram requisitando o prolongamento da sessão. Após as discussões regimentais e de muitos apartes, da situação e oposição, os governistas conseguiram passar para o debate do 5º artigo.
A oposição acusou o chefe de Gabinete de subserviência ao Imperador (ALONSO, 2015). Nesse ponto, Rio Branco solicitou ao Presidente que chamasse o orador à ordem. Os insultos continuaram até que Rio Branco, exaltado pelas palavras que ouvira, exclamou: “V. Ex.ª não está em estado de deliberar.” Todos se levantaram, gritando em alto tom. O Presidente da Casa se dirigiu ao Presidente do Conselho dizendo: “O senhor Ministro não pode servir-se dessas palavras em relação a um membro da Casa. Só o Presidente da Câmara tem esse direito.” Rio Branco tenta explicar que havia chamado a atenção do Presidente para as palavras do orador, mas era inútil, pois a desordem se generalizara. Sentindo-se incapaz de restabelecer a ordem, o Presidente da Câmara suspendeu a sessão, depois de declarar sua renúncia ao cargo (HOLANDA, 1972).
O esforço do Ministério para aprovar a reforma, a divisão do partido conservador, as sessões acaloradas e a renúncia do presidente da Câmara fizeram com que o ano de 1871 fosse marcado por turbulências entre governistas e dissidentes, tendo como ponto nevrálgico o instituto da escravidão. A construção de posições muito marcadas leva-nos a “pensar na dimensão simbólica do poder político, em como o Estado se utiliza de aparatos teatrais para representar e encenar o poder, que efetivamente exerce” (SCHWARCZ, 2001, p. 7).
As inquietações e temores estavam conduzindo, literalmente, os debates na sociedade. Havia muita coisa em jogo, na medida em que o ventre livre era representado como uma ameaça à economia, pois poderia quebrar agricultores e comerciantes. Ao mesmo tempo, se fracassasse em seus objetivos, arruinaria a política, com o descrédito derivado do seu fracasso. Conforme destaque de Alonso (2015), o ventre livre faria com que classes como o comércio e a lavoura, que apoiavam firmemente a monarquia, dela pudesse se divorciar.
Terminados os longos e intempestivos debates na Câmara, em 29 de agosto, o projeto com as emendas foi enviado para o Senado, local em que as discussões foram um pouco mais tranquilas. Ao subir à sanção da princesa imperial regente, tornou-se a Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre.
Em 15 de outubro de 1871 a Revista Semana Ilustrada, publicou um “aviso” sobre um quadro comemorativo do Decreto de 28 de setembro, elaborado pelo Imperial Instituto Artístico do Rio de Janeiro:
O anúncio descreve as representações projetadas no quadro intitulado “Honra e Glória ao Ministério 7 de Março de 1871”. Uma homenagem aos principais agentes que, no jogo político, disputaram o projeto no plenário da Câmara. As opiniões se dividiam, uma parte da sociedade e dos estadistas clamavam pela reforma, que mudaria a vida da população escravizada e seus filhos, mas também afetaria, diretamente, o comércio e agricultura. Neste sentido, defender ou estar contra a emancipação significava dar suporte a projetos nacionais distintos. Para os defensores da abolição gradual da escravidão, a medida expressava o desejo da liberdade e igualdade para todos os brasileiros como elemento indispensável para a formação de uma Nação civilizada. Para os que se opunham, o projeto se constituía em uma espécie de negativo, um risco à ordem, instituída sob a égide do trabalho de escravizados e escravizadas.
No referido “aviso” há a descrição de um conjunto de elementos que representavam a escravização, são eles: emblemas a libertação dos escravizados, a agricultura, o comércio, a colonização, a imigração, as figuras alegóricas da Glória e da História. Ao evidenciar estes elementos do quadro (figura 2), o leitor se vê lançado em um universo simbólico bem determinado25.
Fonte: Biblioteca digital luso-brasileira. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon1208241/icon1208241.jpg. Acesso em: 01 jan. 2021.
A centralidade da figura do Imperador, da Princesa Isabel e dos componentes do Ministério 7 de Março no quadro serve para fixar a imagem desses agentes. Trata-se, igualmente, de realçar os protagonistas de um evento voltado para mudar a configuração social, econômica, política, cultural e educacional do país. Trata-se, enfim, de uma tentativa de inculcar na sociedade uma memória coletiva, que “é essencialmente mítica, deformada, anacrônica, mas constitui o vivido desta relação nunca acabada entre o presente e o passado” (LE GOFF, 1990, p. 22-23).
Ao procurar constituir uma memória coletiva da política emancipacionista, de caráter gradual, o quadro funde elementos da natureza, da indústria, da religião católica, mulheres negras em gesto de agradecimento, ao mesmo tempo em que indica que a tarefa civilizatória e o rumo ao progresso se encontrava associado a dois outros fenômenos: a colonização e a imigração. Armava-se, assim, o tripé de uma nova política de sustentação do Império.
O redator do anúncio atribuiu à Lei do Ventre Livre estatuto assemelhado ao da Independência do Brasil, como também foi registrado na Semana Illustrada, destacado na epígrafe deste artigo. Trata-se de considerar a liberdade dos escravizados e da Nação como equivalentes, pois libertar uma parcela da população, os escravizados, deveria assumir o sentido de completar uma tarefa inacabada, ambas decorrentes de muitas mediações, conflitos e morte26.
Machado de Assis27, observador atento da vida pública, frequentava as sessões do Parlamento e em suas crônicas realizava algumas sátiras e críticas ao governo. Em março de 1877, escreveu na revista Illustração Brasileira: “Nos países representativos a vida pública está principalmente nas Câmaras. Quem não lembra das sessões de 1871? Vida é luta; onde houver oposição, há contraste, há vida” (Illustração Brasileira, 1 de março de 1877, ed. 17, p. 9).
Como destaque adicional deste “lugar de memória” (NORA, 1993), remete aos emblemas em latim. O quadro comemorativo recupera a frase em latim, publicada 14 dias antes na revista Semana Illustrada, com o acréscimo de uma nova divisa: In hoc signo vinces. Localizada sobre o brasão do Estado Imperial, entre a imagem do Imperador e a palavra liberdade, essa frase também foi grafada nas moedas de prata brasileiras do Império do Brasil, com diversos valores; multiplicando indefinidamente a mensagem em um suporte não descartável. Em uma face, a figura do imperador. Na outra, o brasão e a divisa ilustrada, que procura sintetizar uma espécie de destino do regime: vencer!
Fonte: Casa da Moeda do Brasil: Disponível em: http://www.moedasdobrasil.com.br/moedas/catalogo.asp?s=105&xm=462 Acesso em: 01 jan. 2021.
Em uma tradução livre, a expressão reproduzida em diversos suportes significa “Com este sinal vencerás”. A que sinais parece se referir? Há indícios de que se refere a um conjunto que integram o quadro, cabendo aqui ressaltar a convergência para o signo da liberdade. Esta, por sua vez, associada à figura central de D. Pedro II, ladeada pelo corpo de ministro, composto por sete homens, ungidos por figuras celestiais. Nas margens, história e glória, enfeixam uma natureza prodigiosa, gente trabalhadora e produtiva na agricultura e comércio, cujo incremento se vê conectado ao fim do elemento servil. Por fim, as escravizadas aparecem em posição de agradecimento, subserviente, o que termina por apagar as estratégias diversas ativadas pela população escravizada, traço bastante forte na historiografia da educação, conforme estudos como o de Fonseca (2007).
A libertação das crianças nascidas do ventre das escravizadas, a partir da Lei de 28 de Setembro de 1871 se constitui, pois, em um marco na história da escravização, com efeitos diversos cabendo observar alguns dos que afetaram parcela da população escravizada, especialmente aquela que passou a nascer formalmente livre.
ENTRE CHIBATAS E LIVROS: A EDUCAÇÃO DE NEGROS, ESCRAVIZADOS E INGÊNUOS
O que fazer com as forças produtoras tornadas livres, esses degradados pelo sistema escravista que, a partir de então, estariam libertos dos ferros da escravidão e do controle privado do poder senhorial? (SCHUELER, 2005, p. 20, grifos da autora).
A questão apresentada por Schueler estava relacionada aos debates educacionais da segunda metade do século XIX, principalmente após a Lei de 28 de setembro de 1871. Neste sentido, a educação dos ingênuos passou a ser discutida em diversas instâncias do Império brasileiro, em busca por soluções para a educação dos nascituros. A frase publicada na revista A Instrução Pública, de 1872, ilustra a opinião pública da época acerca da emancipação: “A Lei de 28 de setembro foi o prenúncio da liberdade geral dos escravizados: reunamo-nos agora e trabalhemos energicamente para a abolição da mais negra escravidão: a ignorância” (A Instrucção Pública, 1872, p. 5).
Agentes públicos, por vezes, criticavam a Lei de 28 de setembro, utilizando a instrução dos ingênuos como um obstáculo, conforme ocorreu no Senado em 1879:
Sr. Marquez do Herval (Ministro da Guerra) - Senhores, eu quizera que neste paiz todos fossem doutores....
Sr. Barão de Cotegipe - Não bula nessa casa de marimbondos (risadas).
Sr. Marquez do Herval (Ministro da Guerra) - ... quizera que até os negrinhos, ingênuos da lei de 28 de Setembro fossem educados e formados (risadas), mas senhores, não tendo com que sustentar o exército; não tendo com que sustentar uma esquadra cujos navios na maior parte estão imprestáveis; não tendo com que dar estradas à agricultura; não tendo com que dar-lhe braços úteis, pois a lavoura falece a falta de braços, e não se lhe tem pedido dar sinão borrachos... (Apoiados; risadas). [...]
Sr. Marquez do Herval (Ministro da Guerra) - ... que vem para o Brasil a peso de ouro e não querem trabalhar....
Sr. Marquez do Herval (Ministro da Guerra) - ... não tendo com que recorrer a tantas necessidades, não devemos cuidar só dos estabelecimentos de instrucção (ANAIS DO SENADO, 07 de fevereiro de 1879, p. 70).
O debate incide sobre uma das questões mais abordadas nas duas Câmaras, durante e após a tramitação do projeto da emancipação: a educação dos nascituros. Como se pode observar, trata-se de uma sessão de 1879, oito anos após a promulgação da Lei do Ventre Livre, ocorrência que indicia que a a educação dos ingênuos não se encerrou com a aprovação da lei de 28 de setembro de 1871.
As lutas e movimentos em torno das definições da cidadania, inclusive entre negros e mestiços, entre liberdade e escravidão se configuram em um indicativo das clivagens que caracterizavam uma sociedade hierarquizada, aristocrática e monárquica que manteve, por exemplo, o monopólio sobre as terras e os escravizados, conforme consta na Constituição de 1824, que reconheceu uma velha tradição colonial.
O Regulamento nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, manteve a interdição de matrícula e frequência às escolas aos sujeitos submetidos ao regime da escravidão. Entretanto, diversas pesquisas no campo de História da Educação apontam a presença de escravizados que sabiam ler, escrever e contar na sociedade oitocentista. No século XIX, diversas forças educativas configuraram espaços e redes de sociabilidade formais e informais, o que favoreceu a inserção de pobres, desvalidos, escravizados, libertos e ingênuos no mundo letrado (SEBRÃO, 2015; FONSECA & BARROS (orgs), 2016; MAC CORD; ARAÚJO & GOMES (orgs), 2017; LOPES, 2020).
Nos estudos a respeito da questão da instrução e educação das crianças nascidas após a Lei do Ventre Livre, Lopes (2012) assinala que o Manifesto da Sociedade Brasileira contra a Escravidão caracteriza a referida Lei como conservadora por respeitar os interesses dos senhores, assegurando-lhes a propriedade de seus escravizados28. Ao mesmo tempo, o referido Manifesto reconhece a emancipação dos nascituros como um golpe no sistema escravista, ao ser descrita como “Lei da Emancipação”, modo de representação que teria induzido à crença, fora do país, de que o Brasil teria libertado, de uma só vez, cerca de um milhão e meio de escravizados.
A autora corrobora com a afirmação de que a Lei do Ventre Livre legitimava o retorno das crianças filhas de escravizadas ao cativeiro, condenando-as a mesma condição dos progenitores, haja vista o fato de que o proprietário poderia preservar a responsabilidade sob o nascituro até a idade de 21 anos. Lopes assinala que a questão da infância desvalida e das crianças livres de mulheres escravizadas estavam postas, simultaneamente, nas décadas finais do século XIX. Para ela, a educação dos ingênuos estava articulada aos problemas relativos à infância pobre e desvalida o que, de certo modo, representou o fracasso da política de educação mais igualitária no que se refere à inserção dos ingênuos em uma sociedade baseada no trabalho livre.
A autora retoma os argumentos do Ministro José Antônio Saraiva, quando este estadista afirmara que, decorrente do pequeno número de menores entregues ao Estado, não era necessário pensar estabelecimentos de educação específicos para as crianças nascidas do ventre livre, marcando sua preferência por estabelecimentos apropriados para a educação de menores órfãos e desvalidos, instituições que também deveriam atender os ingênuos Duas instituições no Município Neutro foram criadas para cumprir essa função, o Asylo Agrícola de Santa Isabel e o Asylo dos Meninos Desvalidos (LOPES, 2012). Conforme os estudos do (NASCIMENTO, 2016), a educação dos ingênuos parece ter se valido da estratégia de uma formação articulada à formação para o trabalho:
A sociedade imperial estava preocupada com o destino desta camada social, as crianças nascidas do ventre livre, e o controle educacional deste novo modelo de infância deveria fazer parte de um quadro social organizado sobre os preceitos morais e civilizatórios em curso. A solução não era simples. Alguns vestígios apontam medidas adotadas para amenizar este problema, como a criação de colégios, principalmente, as escolas profissionais (NASCIMENTO, 2016, p. 157).
Em 1875, o Ministro João Alfredo inaugurou o Asylo dos Meninos Desvalidos29 destinado ao acolhimento de menores abandonados, órfãos e ingênuos. A instituição deveria oferecer o ensino primário e o de ofícios. Em 1874, no relatório apresentado à Assembleia Legislativa, o Ministro João Alfredo anunciara a criação do Asylo dos Meninos Desvalidos, que atenderia os artigos 62 e 63 do Regulamento de 1854, os quais tratavam do recolhimento à instituição asilar, crianças em estado de pobreza e que vivessem em situação de mendicidade. Enquanto o estabelecido na forma da Lei não fosse efetivado, os meninos poderiam ser entregues aos párocos, coadjutores ou mesmo aos professores dos distritos. Após receberem a instrução do primeiro grau, os meninos seriam enviados para as companhias de aprendizes dos arsenais ou para as oficinas públicas ou particulares, mediante um contrato.
Apesar de notificar a criação do asilo como um atendimento da legislação em vigor, o projeto elaborado na gestão ministerial de João Alfredo, de acordo com o parágrafo 5º do Projeto 73/1874 estabelecia:
Crear-se-hão nos municipios das provincias do Imperio escolas profissionais, em que se ensinarão as sciencias e suas applicações que mais convierem ás artes e industrias dominantes ou que devam ser creadas e desenvolvidas. Os planos de estudos destas escolas serão organizados de modo que os alumnos, que o quizerem, possam no fim do curso ir completar seus estudos nos estabelecimentos de que trata o § 12. - III, sendo-lhes levados em conta os exames das disciplinas que já tiverem aprendido.
§ 12. O governo poderá:
III. - Auxiliar os estabelecimentos particulares de instrucção gratuita primaria e profissional de mesmo municipio que se mostrarem dignos deste favor, sendo preferidos os que se propuzerem a manter cursos nocturnos para adultos, e ficando os respectivos directores sujeitos para com o inspector da instrucção ás mesmas obrigações dos professores públicos (PROJETO 73/1874, p. 2-3).
Observa-se que o ministério não aguardou a aprovação do referido projeto na Câmara dos Deputados30 para efetivar a criação de uma instituição asilar e profissionalizante para o acolhimento dos meninos pobres, desvalidos e órfãos31, que também serviria para receber os nascidos do ventre livre.
Para se ter uma noção do efeito desta medida, quinze anos após a promulgação da Lei do Ventre Livre, o Relatório do Ministro do Império apresentou o seguinte resultados sobre o Asylo dos Meninos Desvalidos:
O número de 300 menores asilados recebidos na instituição correspondia à quantidade máxima permitida pela Lei nº 3.314, de 16 de outubro de 1886. Vê-se que não havia vagas ociosas no estabelecimento, indicativo de que o número de crianças em estado de abandono e pobreza no Município era elevado. Provavelmente, a instituição não atendia todos os meninos desvalidos da cidade32.
As oficinas eram diversificadas e operavam de modo a obter resultados, no sentido de atender algumas das necessidades dos asilados tais como roupas e calçados. A compra de máquinas parece ter sido um outro investimento realizado com os recursos obtidos pelos serviços realizados pelos internos nas oficinas profissionalizantes que, no ano de 1886, totalizou 11:638$44433 .
A solução asilar, contudo, não se constitui na alternativa para dar conta dos efeitos da Lei do Ventre Livre, com potencial incremento das demandas da população por escolarização, sobretudo quando a instrução aparece representada como condição para superação da barbárie e conquista da cidadania/civilização, argumento mobilizado por diversos agentes sociais.
Rui Barbosa, por exemplo, em “Discursos Parlamentares Sobre a Emancipação dos Escravos”, na sessão de 13 de julho de 1871, retoma discurso de José de Alencar34.
Nós queremos a redenção de nossos irmãos, como a queria Cristo. Não basta dizerdes à criatura, tolhida na sua inteligencia, abatida na sua consciência: Tu és livre; vai; percorre os campos como bêsta-fera!....
Não, senhores: é preciso esclarecer a inteligência embotada, elevar a consciencia humilhada, para que um dia, no momento de conceder-lhe a liberdade, possamos dizer: Vós sois homens, sois cidadãos. Nós vos remimos não só do cativeiro, como da ignorância, do vício, da miséria, da animalidade, em que jazieis! (ALENCAR, apud BARBOSA, 1945, p. 77).
No limite, Alencar indaga: “E como libertar o cativo, antes de educá-lo?”. Barbosa denuncia o sofisma empregado por José de Alencar que, por meio de “palavras sedutoras”, defendia uma preparação prévia impossível. Neste caso, o expediente retórico de Alencar foi adotado para se opor ao projeto de emancipação, utilizando como argumento a incapacidade de investimento do Estado na instrução dos ingênuos. Nesta lógica, a dos escravocratas, não fazia sentido libertar os nascituros.
A educação dos ingênuos e a (in)capacidade do Estado em prover a educação dos nascidos do ventre livre passou a assumir centralidade nos debates dos que advogavam em favor da norma, bem como daqueles que a ela se opunham. Na sessão de 1871, um opositor se manifestou a respeito da matéria, destacando os limites do Estado nas questões relacionadas ao oferecimento de serviços, tratamento e educação dos nascituros:
O Sr. Barão da Villa da Barra35 - Condemno a base do ventre livre, porque o governo não pode encarregar-se da criação, tratamento e educação desses ingênuos para depois encabeça-los na sociedade como cidadão livre com todas as suas prerrogativas e direitos (ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 11 de julho de 1871, p. 97).
A oposição utilizava um outro argumento para combater o projeto, chamando atenção para o fato da criação e educação dos ingênuos ficar sob a responsabilidade do proprietário da escravizada, outra faceta do argumento da incapacidade do Estado e da Sociedade Civil responderem satisfatoriamente à liberdade dos nascituros.
Sr. Souza Reis36 - Já vêm, portanto, os nobres deputados que a repugnancia que ha pela libertação do ventre, não é porque, como disse o nobre deputado que me precedeu, o sórdido interesse dos senhores das escravas está lhes fallando na alma, não; não é essa a razão; mas porque não poderão, sem sacrifícios de toda a ordem, os senhores das escravas ficar com pesado onus de criar e educar os filhos de taes escravas, como 1ivres, no seio das suas fazendas, onde vão viver com os pais, irmãos e outros muitos escravos destinados ao trabalho. (Apoiados da minoria).
Este é o grande inconveniente dessa idéa da proposta (ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 11 de julho de 1871, t. V, p. 76).
Esse deputado, no entanto, procurou dar maior visibilidade ao debate ocorrido no interior da Câmara dos Deputados, recorrendo à publicação do seu discurso sobre o elemento servil, pronunciado no dia 21 de julho de 1871. A palavra do deputado pelo 1º distrito da província de Pernambuco, em justificativa ao seu voto contra a tentativa de se apressar a extinção da escravidão, declara que não se poderia mantê-la perpetuamente, mas que, naquela conjuntura, tal ato acarretaria a ruína do país. Os argumentos do risco, perigo, ruína e da legalidade organizam a narrativa do parlamentar pernambucano, de modo a modular a opinião pública e reforçar as posições dos “emperrados”. Ao final, como uma síntese da posição que encarna e defende, assinala:
Se quer, porém, o governo ir mais longe, e pode vencer todas as difficuldades que se apresentão, então, respeitando o princípio constitucional, estabeleça os meios de criar e educar os que nascerem de escravas depois da lei, mas deixe a liberdade aos senhores de pôr esse meio fazer livres aquelles que por sua generosidade quizerem que o sejão, mandando-os para os estabelecimentos que o governo crear.
O projecto em discussão, Sr. presidente, altera, a muito, a legislação existente, no que diz respeito ás relações dos senhores com os escravos. (Apoiados.)
E' este um ponto em que a proposta e torna a olhos vistos digna de toda a consideração, porque me parece um grande perigo alterar a legislação a esse respeito.
No que diz respeito ás relações entre os senhores e escravos e, respeitemos o que existe; faça-se o que se quizer, se se póde fazer, se o governo tem meios para isso, se contar com a garantia da segurança individual e tranquilidade pública, mas não altere a legislação vigente no que diz respeito ás relações entre os senhores e os escravos (REIS, 1871, p. 30).
Como se pode notar, uma das formas de se opor ao projeto de emancipação consistia em abordar a questão da educação das crianças que nascessem do ventre das mulheres escravizadas a partir da promulgação da lei, considerando os limites do governo na oferta dos serviços para essa parcela da população. A que limites se referia o deputado pernambucano? Ele se referia a dois deles; a capacidade de indenização e o acolhimento dos ingênuos em instituições próprias, como previsto no segundo artigo da lei.
Art. 2º O Governo poderá entregar a associações por elle autorizadas, os filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores dellas, ou tirados do poder destes em virtude do art. 1º § 6º.
§ 1º As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 annos completos, e poderão alugar esses serviços, mas serão obrigadas:
1º A criar e tratar os mesmos menores;
2º A constituir para cada um delles um peculio, consistente na quota que para este fim fôr reservada nos respectivos estatutos;
3º A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada collocação.
§ 2º As associações de que trata o paragrapho antecedente serão sujeitas á inspecção dos Juizes de Orphãos, quanto aos menores.
§ 3º A disposição deste artigo é applicavel ás casas de expostos, e ás pessoas a quem os Juizes de Orphãos encarregarem da educação dos ditos menores, na falta de associações ou estabelecimentos creados para tal fim.
§ 4º Fica salvo ao Governo o direito de mandar recolher os referidos menores aos estabelecimentos publicos, transferindo-se neste caso para o Estado as obrigações que o § 1º impõe ás associações autorizadas (Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871).
Como se pode observar, prevê-se a criação de um aparato institucional para inscrever os nascituros em determinadas instituições e famílias/pessoas para se prevenir dos perigos da inutilidade e da ignorância. No entanto, os problemas decorrentes das concepções de sociedade e da escravidão estavam longe de serem equacionados.
O acirramento das posições não implica em afirmar um ato inaugural, como se o acesso ao universo letrado estivesse por se iniciar com os nascidos do ventre livre. O medo era da ordem da intensidade e da alteração da ordem constituída37. Como demonstrado por estudos recentes, parcelas da população negra, liberta e mesmo escravizada tiveram acesso ao mundo das letras. Alguns vestígios dão a ver que negros e escravizados participaram do processo de escolarização, como podemos observar por meio de uma iniciativa ocorrida na década de 1830. Nos “idos de 1839” havia um escravo alfabetizado, o Cosme Bento das Chagas, conhecido como o “imperador da liberdade”, que abriu uma escola de primeiras letras, localizada na fazenda Lagoa Amarela, para alfabetizar 3.000 negros fugidos das fazendas ou aquilombados na região do Codó, na Província do Maranhão38. Esta ocorrência indicia a existência de multiplas formas de educação e estratégias de acesso à escolarização e à aprendizagem das letras por negros e escravizados ao longo dos oitocentos (GONDRA; SCHUELER, 2008)39.
Na Corte, a revista A Instrucção Pública, em 1873, fornece outras pistas ao noticiar a educação de escravizados, de ambos os sexos, por iniciativa de um proprietário:
Instrucção Primária - Escreveram-nos: o Sr. Commendador Joaquim José de Souza Breves40, abastado fazendeiro da província do Rio de Janeiro, acaba de mandar estabelecer em suas diversas fazendas aulas de primeiras letras para o ensino de seus escravos menores de ambos os sexos (A INSTRUCÇÃO PÚBLICA, 18 de março de 1873, ed. 20, p. 160).
A experiência de escolarização de escravizados foram desenvolvidas de várias maneiras, formais ou informais. Dois elementos chamam a atenção neste artigo. Primeiro, o fato do proprietário das terras mandar estabelecer aulas em várias fazendas, o que aumentaria a quantidade de meninas e meninos escravizados instruídos nas primeiras letras. Em segundo lugar, podemos destacar o efeito da legislação aprovada dois anos antes, indicador da disposição do proprietário em cumprir a lei e manter o seu extenso plantel, garantia das riquezas obtidas com o cultivo do “ouro negro”, forma comum de se referir ao café.
Vale lembrar que havia outras formas de inserção do escravo em ambientes letrados. Em 1870, Policarpo Leão41 publicou um livro com suas concepções acerca do elemento servil. Nesta publicação o autor oferece pistas acerca da apresentação de obras de escravizados em uma exposição no Rio de Janeiro em 1865: “Na exposição, que se fez no Rio de Janeiro no anno de 1865 premiaram-se senhores, só porque seus escravos apresentaram obras muito boas, devidas ao talento, e app1icação dos escravos”. Informação com que procura dar sustentação ao seis argumentos que emprega em favor das classes livres42 (LEÃO, 1870, p. 9-10).
Os anúncios de jornais da época, por outro lado, se constituem em fontes importantes para pensar a educação de negros e da população escravizada do século XIX, conforme apontam Lopes (2017, 2020) e Silva (2018). Estas autoras localizaram propagandas de diversos jornais que indiciavam a existência de escravizados que sabiam ler, escrever e contar. Alguns anúncios sinalizam a existência de escravizados que tinham ofício, como por exemplo carpinteiro, alfaiate e sapateiro. Outros anúncios apontam para a existência dos que sabiam fazer tradução do francês, bem como músicos.
Nos impressos do final da década de 1870, é possível localizar a venda de escravizadas com seus filhos (ingênuos). Um exemplo pode ser lido no Jornal do Commercio, de 1877, no qual foi anunciado:
Vende-se, por 1:500$, uma preta de 18 annos, que engoma perfeitamente, lava, cose, cozinha de forno e fogão e faz doces, com um ingenno de seis mezes, e abundancia de leite do primeiro parto: tres negrinhas de 14, 16 e 17 annos, perfeitas engommadeiras e de todo serviço, a 1:300$, 1:400$ e 1:500$. Informa-se na rua de S. Pedro n. 246 (JORNAL DO COMMERCIO, 01 de janeiro de 1877, ed. 1, p.1).
Seis anos após a Lei do Ventre Livre ser promulgada, contudo, algumas práticas senhoriais permaneciam inalteradas, como a venda das escravizadas e seus filhos, libertos por força da lei. Observa-se que o fato de ter leite em abundância agregava valor no “produto” a ser alienado, na medida em que poderiam servir como ama de leite para os filhos dos donos ou mesmo ser alugada para cumprir esta função.
Ao realizar uma leitura do discurso de apresentação do Dr. Alambary Luz na Revista Instrução Pública, Schueler ressalta que:
Em uma sociedade que se complexificava progressivamente, do ponto de vista tanto das diferenciações étnico-raciais como das condições sociais dos seus indivíduos, onde crescia a confusão entre livres, libertos e escravos, principalmente nos maiores centros urbanos, o redator-chefe da revista pedagógica percebia que as transformações ocorridas influíam no direcionamento político dos governos e, principalmente, reclamavam por novos arranjos e novas estratégias de ordenação e controle sociais [...] estava claro que o desenvolvimento da instrução estava diretamente relacionado às transformações decorrentes da crescente complexidade social e ao acirramento das lutas políticas, econômicas e sociais nos anos de 1870 - entre elas, o recrudescimento dos debates sobre a escravidão e sobre a Lei de 28 de setembro de 1871 (conhecida como lei do ventre livre) e a conseqüente reformulação dos conceitos e das práticas em torno do trabalho (SCHUELER, 2005, p. 15).
Vê-se que havia uma relação entre a condição social do indivíduo, se livre, liberto ou escravo, as lutas políticas e a instrução desta parcela da população. Os escravizados eram legalmente excluídos das políticas de instrução oficial, ainda que seja possível flagrar gestos antidisciplinares, instaurando outros possíveis no interior da interdição formal.
Na década de 1880, por exemplo, alguns particulares, principalmente os vinculados ao movimento abolicionista, investiram na criação de escolas para os libertos. Na mesma época, os impressos solicitavam às associações abolicionistas que fundassem escolas como expediente importante para forçar e organizar uma outra tradição. Como resultado, os abolicionistas, clubes e associações criaram as escolas noturnas e gratuitas de instrução popular, tais como o Clube de Libertos de Niterói, escolas de primeiras letras com professores abolicionistas, a Escola Noturna Gratuita da rua das Flores e a Escola Noturna da Cancella (ALONSO, 2015).
O jornal Gazeta da Tarde de 1883 publicou um artigo sobre a visita realizada por José do Patrocínio43 à Escola Noturna Gratuita, mantida pelo Clube dos Libertos de Niterói, criado por João Fernandes Clapp44.
A nota publicada no Gazeta da Tarde45 faz publicidade da Escola Noturna Gratuita e do Club dos Libertos de Nictheroy. Esta última instituição foi criada pelos componentes do movimento abolicionista e teve participação significativa no processo de abolição dos escravizados.
O espaço físico e a higiene da escola foram ressaltados pelo redador. Estes eram aspectos destacados com grande importância, por se tratar do momento em que se priorizava reformar e construir um país sob o signo da civilização, o que implicava na adoção de conjunto de medidas preventivas, sendo uma delas manter os sujeitos, a cidade e ambientes limpos e higienizados. A desordem, por sua vez, fosse fisica ou moral, deveria ser médico-cientificamente combatida (GONDRA, 2004).
O “adiantamento intelectual” dos alunos foi enaltecido como outra característica positiva da escola, elemento que determinava a boa qualidade de uma instituição pensada para o atendimento de pobres e libertos. Na sequência, o redator convida/convoca a população para contribuir com as causas abolicionistas:
Unam-se as associações abolicionistas, fundem escolas e a regeneração da pátria sera tanto mais rápida quanto maior foi a educação do povo.
A preferência dos alunos nessas escolas é a grande prova de que o escravo restituído á sociedade, não sahiu do abysmo do captiveiro para atirar-se em um outro - a ignorância.
Elles querem também a luz.
A recordação da visita que fizemos nos será eterna, e aquelle que lá forem aquella escola encontrarão no livro dos visitantes os nossos nomes, uma honra que tivermos quando nas suas paginas os gravamos (GAZETA DA TARDE, 17 de abril de 1883, ed. 86, p. 1.)
O redator faz um apelo direto aos coletivos reunidos em favor da abolição para que fundassem escolas, no registro de que a regeneração da pátria possuía uma correlação direta e positiva com a educação do povo. Não bastava apenas sair do abismo do cativeiro. Era, igualmente, necessário superar o da ignorância. Trata-se de argumento que articula fortemente os dois pares, como condição necessária para abolir o duplo cativeiro: o da escravidão e o da ignorância. Iniciativas, contudo, anteriores ao apelo de 1883 já vinham sendo postas em prática em diversas Províncias do Império, apontando para movimentos que atestam a participação de negros, escravizados e libertos na cultura letrada, conforme levantamento organizado por Alonso (2011).
O movimento abolicionista assumiu uma configuração complexa e heterogênea no Brasil, ainda que tenham construído uma agenda comum; o fim do elemento servil e a necessária formação da população liberta. Conforme Alonso (2011), o movimento não se encerrou com a conquista, parcial, representada pela lei de 28 de setembro de 1871. Segundo ela, outros coletivos foram criados no pós-ventre livre, com táticas e perfis bastante diversos, recorrendo, por exemplo, a flores, votos e balas, como bem demonstrado em seu estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse estudo, observamos que a atuação do poder público no processo de libertação dos escravizados foi marcada por momentos de muita instabilidade. As disputas complexas pela direção do Império brasileiro funcionou como um grande entrave no processo de aprovação da reforma da chamada lei do Ventre Livre, a Lei n° 2.040, assinada no dia 28 de setembro de 1871. Considerada um marco no processo de abolição da escravidão no Brasil, esta medida se insere no conjunto de ações que buscavam minimizar os efeitos do cativeiro no Império, como a Lei Euzébio de Queiroz (1850) e a Lei dos Sexagenários (1885).
A Lei do Ventre Livre declarava livres os filhos de mulher escravizada nascidos no Brasil, a partir da data da aprovação da lei. Além disso, determinava que as crianças deveriam permanecer em poder dos senhores das suas mães, obrigando-os a criá-los até os oito anos de idade. Cumprido este prazo, poderiam entregar o menor ao governo, com direito a uma indenização, ou, ainda, utilizar os serviços dos nascidos livres até os 21 anos. Na prática, significava a abolição gradual da escravidão, considerando-se que seria necessário aguardar a geração seguinte, nascida no país, para que todos atingissem efetivamente a liberdade. O gradualismo não amenizou as críticas dos abolicionistas, que demandavam a extinção imediata e completa do elemento servil.
Os políticos disputavam entre si, no meio da “ordem e da desordem” do plenário e da sociedade, o destino de muitas vidas. Comerciantes e agricultores pressionavam os estadistas para legislar de forma que não tivessem prejuízo. Para estes, a reforma não deveria ser aprovada. Assim, manteriam o controle comercial, financeiro e sobre a vida da população escravizada. Neste caso, a derrota dos escravocratas foi pela margem de 20 votos, sendo 65 a favor e 45 contrários, o que implicou a abertura de um novo capítulo na história da escravidão e do projeto do fim do cativeiro, ainda que na perspectiva gradualista, como defendiam muitos reformistas.
No século XIX, ainda que de modo residual, a leitura e a escrita estiveram presentes na vida de pequena parcela da população escravizada, dos negros, libertos e ingênuos. O movimento abolicionista, assim como o de professores e até mesmo de fazendeiros, contribuíram para que uma fração da população pobre, negra e escravizada tivesse acesso ao mundo letrado. É importante perceber que o poder público ter proibido a matrícula dos escravizados nas escolas oficiais, não funcionou como obstrução plena, na medida em que a condição de propriedade e todas as violências que tal condição impunha aos escravizados não demonstrou ser suficientemente rígida para impedir o acesso e difusão da cultura letrada a parcelas desta população. As correntes, grilhões, chibatas, apedrejamento, forquilha, pelourinho, dentre outras técnicas de assujeitamento, também conviveram com expedientes inesperados, insubordinações mais ou menos visíveis que, ao fim e ao cabo, favoreceram a difusão de elementos da cultura escrita e de experiências de liberdade, ainda que em uma sociedade muito desigual, fundada e nutrida pelo instituto da escravidão.
Pelas evidências de nosso presente, o sol da liberdade ainda não foi visto por muitos. Por outros tantos, com muitas restrições. Como registrou Belchior, muitos ainda “tem sangrado demais” e “chorado pra cachorro”. Contudo, ao reconhecer as mortes do “ano passado”, cultiva a esperança de não mais morrer: “Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”46. Esperança, no entanto, que esbarra nos números de exclusão, prisão e assassinato de homens e mulheres negros/as, herdeiros/as de tantas violências, rotineiramente reportadas no Brasil e em outros países, isto sem nos referirmos aquilo que não sai nos jornais e mesmo nas mídias alternativas47. Com isso, ao dar visibilidade às estratégias e experiências de parcela da população negra na esfera da cultura letrada, procuramos chamar atenção para desfazer generalizações e apagamentos perniciosos e, ao mesmo tempo, observar a atualidade de uma agenda incômoda que, ao fim e ao cabo, denuncia os limites da democracia e da difusão igualitária dos raios de luz.