INTRODUÇÃO
A ideia deste artigo nasceu de discussões durante a aplicação de uma disciplina eletiva de tópicos especiais, no mestrado profissional em Educação Profissional em Rede Nacional (ProfEPT), da Instituição Associada Instituto Federal do Paraná (IFPR), no segundo semestre de 2019. Por meio da interação com profissionais de distintas áreas do conhecimento, foi possível traçar uma linha de raciocínio que pudesse direcionar a EPT em uma via segura para a efetivação de um desenvolvimento sustentável.
A sustentabilidade foi um tema fervorosamente debatido em meio à pandemia da Covid-19, pois se observou que são necessárias mudanças estruturais na dinâmica econômica, social, política e cultural da comunidade mundial para que seja assegurada a continuidade da vida no planeta Terra. A escala de certos problemas ambientais é global, e são necessários enfrentamentos de todos os países para uma solução plausível, o mais rapidamente possível.
Tendo em vista essa nova realidade mundial, a educação se torna peça fundamental para a mudança de rumo das atitudes cotidianas e profissionais. Os indivíduos precisam saber a quais riscos estão expostos de maneira assertiva, e não apenas superficialmente. Por essas razões, já passou da hora de modernizar a educação, com metodologias inovadoras, conteúdos contemporâneos e uso de tecnologias que acompanhem a evolução da humanidade, com suas consequentes mazelas decorrentes do modo produtivo atual.
Como o elo entre a educação e o trabalho é a Educação Profissional e Tecnológica (EPT), a transformação deve começar por essa vertente. Esse processo deve demorar alguns anos para gerar resultados positivos, mas é necessário que se inicie agora.
Portanto, neste artigo, tenta-se responder às seguintes questões: há como avançar na EPT, para além do domínio das técnicas? Qual seria o diferencial do profissional do futuro com relação às habilidades transdisciplinares?; e há formas de desenvolver tais habilidades?.
Desse modo, o objetivo deste trabalho foi analisar as práticas de sustentabilidade como um possível caminho para o alcance da transdisciplinaridade na EPT. Para tanto, foram observados e discutidos os conceitos e as peculiaridades da EPT, da transdisciplinaridade e da sustentabilidade.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA NO BRASIL
De acordo com a legislação vigente acerca da Educação Profissional e Tecnológica, o Art. 39 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), nº 9.394, de 1996, diz que a EPT é aquela que integra os diferentes níveis e modalidades de educação às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia (BRASIL, 1996). Nessa perspectiva, segundo a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (SETEC/MEC), a EPT se fundamentou, de forma privilegiada, pela convergência de dois direitos básicos do cidadão: o direito à educação e o direito à profissionalização (SETEC, 2021).
Entretanto, essa conveniente vantagem da EPT não se traduz por um amplo número de oferta de vagas, no Brasil, pois ainda paira grande preconceito sobre essa forma de educação, por esta ser “culturalmente associada à pobreza, à perspectiva da servidão” (MORAES; ALBUQUERQUE, 2019, p. 7). Para confirmar tal situação, a Figura 1, abaixo, apresenta dados de 2018 sobre a educação profissional de alguns países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e parceiros. Em média geral, os países membros da OCDE possuem 32% de estudantes matriculados na EPT, enquanto o Brasil ocupa um dos últimos lugares, com 8%, perdendo para a Colômbia (18%), Costa Rica (22%) e Chile (28%).
Fonte: Elaboração própria, com base na Figura B7.1 do Education at a Glance 2020 (OCDE, 2020, p. 242).
Com relação à estrutura da EPT, o Parágrafo 2º do Art. 39 da LDB, incluído pela Lei nº 11.741/2008, organiza a abrangência da EPT em cursos de formação inicial e continuada (FIC), em cursos técnicos de nível médio e de graduação e pós-graduação (BRASIL, 2008).
Essa amplitude de níveis educacionais é paradoxal, sendo alvo de controvérsias e discussões. Por um lado, a EPT é capaz de abarcar toda a população economicamente ativa, mas, por outro lado, a EPT se apresenta como uma “estrutura paralela ao sistema escolar” (MORAES; ALBUQUERQUE, 2019), pois a LDB define apenas dois níveis escolares: a educação básica, formada pela educação infantil e pelos ensinos fundamental e médio; e a educação superior (BRASIL, 1996, Art. 21). Moraes e Albuquerque (2019) mostraram esse paralelismo por meio da Figura 2, que resume, simplificadamente, a organização educacional brasileira, proposta pela Lei nº 11.741/2008, e a configuração da Educação Profissional, estabelecida pelo Decreto nº 5.154/2004 (BRASIL, 2004).
Como uma forma de amenizar essa “dualidade estrutural” da EPT (KUENZER, 1989; CUNHA, 2005; FARIAS, 2019), foi instituída a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Rede Federal) e a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) por meio da Lei nº 11.892/2008. Essa lei inseriu outra dimensão na discussão do que é a EPT e a fortaleceu, pois, no âmbito dos IFs, além dos já mencionados cursos de FIC e de educação profissional de nível médio, a lei explicita como EPT os cursos de educação superior de tecnologia, licenciaturas, bacharelados e engenharias, além dos cursos de pós-graduação lato sensu de aperfeiçoamento e especialização e de pós-graduação stricto sensu de mestrado e doutorado, ou seja, abrange todos os níveis da educação nacional.
Porém, deve-se frisar que esses cursos apenas serão contabilizados como EPT se forem ofertados pela Rede Federal, que abarca os IFs, os Centros Federais (CEFETs), as Escolas Técnicas vinculadas às universidades federais e o Colégio Pedro II (MORAES; ALBUQUERQUE, 2019). Se uma licenciatura for ofertada, por exemplo, por uma universidade particular, ou estadual, ou até mesmo federal, as estatísticas não serão geradas para a EPT. Do mesmo modo, se um curso profissionalizante é ofertado por uma das unidades do Sistema S2, um grande número de matrículas é desconsiderado pelo Censo Escolar, pois os cursos de formação inicial e continuada de trabalhadores não estão incluídos em um nível escolar (MORAES; ALBUQUERQUE, 2019). Resumindo, a dificuldade conceitual permanece.
Divergências e discussões à parte, retrocedendo na linha do tempo da EPT, no Brasil, chega-se ao período da colonização, o que a coloca em desenvolvimento paralelo com a história do país (SETEC, 2021a). E como a nação está em pleno progresso, a EPT está em franco crescimento. Em 2014, o Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2014, p. 22) apresentou como meta, para ser alcançada até 2024, “oferecer, no mínimo, 25% das matrículas de educação de jovens e adultos, nos ensinos fundamental e médio, na forma integrada à educação profissional”. Outra ousada meta do PNE é “triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio [...] e pelo menos 50% (cinquenta por cento) da expansão no segmento público” (BRASIL, 2014, p. 23).
Atualmente, a Rede Federal conta com 654 unidades educacionais, sendo 92,9% de institutos federais, 2,3% de CEFETs, 3,0% de escolas técnicas vinculadas e 1,8% de unidades do Colégio Pedro II (PNP, 2021). Esses dados estão disponíveis de forma online na Plataforma Nilo Peçanha (PNP), “um ambiente virtual de coleta, validação e disseminação das estatísticas oficiais da Rede Federal” (PNP, 2021, p. 1).
Ainda conforme a PNP (2021), em 2020, a Rede Federal ofertou 898.787 vagas, em 10.878 cursos. O corpo docente, em 2020, era de 45.467, sendo 88,3% de professores efetivos com dedicação exclusiva, 2,2% de professores efetivos 40 horas, 1,4% de professores efetivos 20 horas, 7,6% de professores substitutos (temporários) 40 horas e 0,5% de professores substitutos (temporários) 20 horas. A maioria desse corpo docente tem mestrado (50,0%) e doutorado (34,7%), e há incentivo de afastamento integral para capacitação docente.
Com relação ao perfil do egresso da Rede Federal em 2020, 86,8% foram de cursos FIC, 8,3% de cursos técnicos, 2,6% de cursos superiores e os 2,3% restantes estavam divididos em cursos de educação básica e pós-graduação. O eixo tecnológico que mais teve matrículas em 2020 foi o Desenvolvimento Educacional e Social (32,0%), seguido de Gestão e Negócios (14,0%), Informação e Comunicação (13,3%), Controle e Processos Industriais (9,5%), Recursos Naturais (9,2%), Ambiente e Saúde (6,8%), Infraestrutura (4,1%), Produção Alimentícia (3,5%), Turismo, Hospitalidade e Lazer (2,4%), Produção Industrial (2,1%), Produção Cultural e Design (1,3%) e Segurança (1,1%) (PNP, 2021).
Vale lembrar que o Sistema S também oferta cursos da EPT, porém não são contabilizados pela Plataforma Nilo Peçanha e, sim, pelo Censo Escolar ou por levantamentos próprios (MORAES; ALBUQUERQUE, 2019).
A despeito do descompasso na legislação e nas estatísticas brasileiras para a EPT, é indiscutível a importância dos cursos técnicos e tecnológicos para a formação profissional e pessoal do indivíduo e para o progresso da nação. Saviani (2007, p. 160) justifica que o “nível de desenvolvimento atingido pela sociedade contemporânea coloca a exigência de um acervo mínimo de conhecimentos sistemáticos, sem o que não se pode ser cidadão, isto é, não se pode participar ativamente da vida da sociedade”. Ampliando a discussão do autor, apoiado por Antonio Gramsci, Karl Marx e Mario Manacorda, de que a educação profissional e tecnológica deve passar “do reino da necessidade para o reino da liberdade” (SAVIANI, 2007, p. 164), faz-se urgente a aplicação de novas metodologias e um novo currículo para o desenvolvimento holístico de capacidades e habilidades, não somente se restringindo ao conteúdo disciplinar mas também buscando alcançar e alterar a percepção, a cognição ou o comportamento do sujeito. A esse conceito se dá o nome de transdisciplinaridade.
CONSIDERAÇÕES SOBRE TRANSDISCIPLINARIDADE
A sociedade contemporânea é complexa. Aliás, pode-se dizer que a humanidade vive, atualmente, na Idade da Complexidade. O paradigma da complexidade, posteriormente abreviado por paradigma C, foi introduzido por Nicolescu (1999) com base nas obras de contexto holístico de Naess (1973), Capra (1975, 1982), Maturana e Varela (1984), Sachs (1986) e Boff (1993). Nesse novo cenário mundial, estudiosos têm contribuído para definir, de forma sistemática, o que seja o atual entendimento do termo complexidade. De acordo com Almeida Filho (2005), a complexidade pode ser compreendida por seis elementos interrelacionados: i) dinamismo, ii) não linearidade, iii) caos, iv) emergência, v) borrosidade e vi) fractalidade.
O dinamismo é a característica da complexidade, que compreende as “estruturas sistêmicas abertas, em constante transformação, totalidades formadas por partes interrelacionadas, elementos, conexões e parâmetros mutantes” (ALMEIDA FILHO, 2005, p. 35). Essa constante mutação acontece de forma não linear, ou seja, não é previsível. Capra (2006, p. 117) explicou que os sistemas dinâmicos não lineares são instáveis, e os pontos críticos de instabilidade são denominados “pontos de bifurcação”. São nesses pontos que acontecem as mudanças. O conjunto do dinamismo e da não linearidade dos sistemas complexos leva à ideia de caos, que, para essa análise, não significa “bagunça” ou “aleatoriedade”, mas, sim, organização em uma ordem mais profunda. Pela análise das primeiras três características da complexidade, chega-se à quarta, que é ao mesmo tempo causa e consequência das demais: a emergência, que pode ser traduzida por ocorrência imprevista. A borrosidade, ou difusividade, traduz a ideia de imprecisão dos limites dos elementos do sistema, ou seja, não é possível visualizar onde um elemento inicia ou termina (ALMEIDA FILHO, 2005). Por fim, o mais fascinante elemento da complexidade, a fractalidade, pode ser descrito geometricamente como autossimilaridade, em que “a forma do todo é semelhante a si mesma em todos os níveis de escala” (CAPRA, 2006, p. 118).
Sobre esse contexto, Morin (2015) deixou claro que a complexidade não é uma solução, é um problema. E, para solucioná-lo, é necessário que as ciências, fragmentadas e reduzidas até o final do século XVIII, realizem um melhoramento. Assim, com o início do entendimento da complexidade, autores têm levado seus conceitos para a educação, como Georges Gusdorf, Jean Piaget, Basarab Nicolescu, Erich Jantsch, Edgar Morin, Ivani Fazenda, Hilton Japiassu, Mario Chaves, Naomar Almeida Filho, Eduardo Vasconcelos, dentre outros (ALMEIDA FILHO, 2005; CHAVES, 1998; JANTSCH; BIANCHETTI, 2011; SANTOS; TEIXEIRA, 2015; NICOLESCU, 1999; SILVA, 1999; VASCONCELOS, 2002).
Apesar de lenta, uma evolução que se observa na educação é o modo de produção do conhecimento, com discussões acerca da definição dos termos multi, pluri, inter e transdisciplinar. Ainda não houve consenso entre os autores sobre essas definições, mas há uma tendência de compreensão. Silva (1999) revisou o modelo de Jantsch para a produção do conhecimento, que é a mais difundida atualmente, sendo complementado por Almeida Filho (2005).
O estudo multidisciplinar acontece quando há uma justaposição das unidades disciplinares em um mesmo nível hierárquico, portanto sem uma coordenação e sem cooperação ou interlocução entre os conhecimentos específicos. Na produção pluridisciplinar, o objeto de estudo é analisado por diferentes unidades disciplinares, mas, mesmo sem coordenação, há cooperação entre as disciplinas. A abordagem interdisciplinar é uma evolução das abordagens anteriores, na qual existe enriquecimento mútuo das disciplinas ao se estudar um objeto. Pela presença de uma coordenação hierarquicamente superior, os resultados apresentam partes em comum.
Atualmente, as análises interdisciplinares não são mais suficientes para o estudo do mundo real. Com a aproximação entre a neurociência e a educação, o termo mais apropriado para aplicação no ensino é o transdisciplinar (FERREIRA; GONÇALVES; LAMEIRÃO, 2019), por possibilitar “uma troca dinâmica entre as ciências ‘exatas’, as ciências ‘humanas’, a arte e a tradição” (UNESCO BRASIL, 2000, p. 174).
Para ordenar o debate, em 1994, foi publicada a Carta da Transdisciplinaridade no I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, ocorrido em Portugal, que norteou as discussões sobre o assunto, englobando a abordagem transdisciplinar para a educação, a cultura, a economia e a ética. Nicolescu, um dos redatores da carta, definiu transdisciplinar como o “que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina” (NICOLESCU, 1999, p. 51).
Nessa perspectiva, é possível dizer que a relação entre os conceitos de complexidade e de transdisciplinaridade foi bem definida nas palavras de Chaves (1998, p. 7): “a complexidade está para o mundo real como a transdisciplinaridade está para o mundo acadêmico”.
Esse modo de construção intelectual foi, primeiramente, usado na área de ensino da saúde e da saúde mental (VASCONCELOS, 2002) e, atualmente, se espalhou para diversas áreas do conhecimento.
Como na educação profissional e tecnológica se pretende formar profissionais críticos, criativos, com plena consciência de serem cidadãos globais e preparados para as constantes mudanças da Idade da Complexidade, é imperioso que a transdisciplinaridade seja efetivamente alcançada por um currículo inovador. Dessa forma, Pacheco (2012, p. 112) enfatiza que a construção dos currículos da EPT deve considerar “os arranjos locais, os dados socioeconômicos, ambientais e culturais e as potencialidades de desenvolvimento local”. Apoiada na Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), a proposta do autor é fortalecer a educação ambiental na educação profissional técnica de nível médio, tornando possível promover uma gestão sustentável no mundo do trabalho, com a inserção da dimensão socioambiental nos currículos, bem como na formação de professores e na elaboração de materiais didáticos (PACHECO, 2012, p. 114).
Mas, para além dos cursos de nível médio e de educação ambiental, é urgente que todos os níveis de educação de todas as modalidades tenham acesso a conteúdos de sustentabilidade, que unifiquem os três grandes pilares: ambiental, social e econômico. Por meio desses tópicos, é possível debater questões como ética, empatia, equidade, paz, felicidade, inovação, resiliência e flexibilidade, por exemplo, que são abarcados pela transdisciplinaridade.
CONSIDERAÇÕES SOBRE SUSTENTABILIDADE
O Plano Nacional de Educação, vigente por meio da Lei nº 13.005/2014, estabelece como uma importante diretriz da educação a “promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental” (BRASIL, 2014, p. 2). Essa vertente é fruto de um movimento global que tem provocado uma pressão internacional desde os anos de 1970, quando se deu o início do discurso ambientalista.
Com o passar do tempo, esse debate foi ganhando corpo pelo entendimento que nos proporcionaram os estudiosos da área, como, por exemplo: Naess (1973), Capra (1975, 1982, 2006), Lovelock (1979), Maturana e Varela (1984), Sachs (1986), Boff (1993) e, mais recentemente, Francisco (2015) e Harari (2018). Esses filósofos, físicos, biólogos, economistas, teólogos, historiadores e outros pesquisadores mostraram que a preocupação com o meio ambiente, a saúde do planeta Terra e a perpetuação da vida não se restringem a uma área do conhecimento, é necessária uma compreensão holística convergente, partindo de todas as áreas.
Com a ideia de que “um planeta finito não suporta um projeto infinito” (BOFF, 2014, p. 42), o conceito de desenvolvimento sustentável foi cunhado como sendo aquele “que atende às necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades” (ONU BRASIL, 2021, p. 7). Como forma de atingir um desenvolvimento sustentável, Elkington (1994) definiu, pela primeira vez, o termo “sustentabilidade”, em que as instituições devem se firmar no tripé (Triple Bottom Line) do economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente correto.
Atualmente, já foram adicionadas outras pilastras humanísticas e éticas no modelo-padrão de sustentabilidade, como a gestão da mente sustentável, a generosidade, a cultura e o cuidado (Boff, 2014). Para esse autor, somente a sustentabilidade, entendida e praticada em sua totalidade, é capaz de garantir a sobrevivência do ser humano e de outras formas de vida no planeta.
Devido à grande importância da sustentabilidade na atual conjuntura planetária, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou, em 2015, o documento intitulado Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, apresentando dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e suas 169 metas como responsabilidades dos seus Estados-membros. Essa publicação foi uma ampliação dos Objetivos do Milênio, que vigoraram de 2000 a 2015. Salienta-se que os dezessete ODS são “integrados e indivisíveis, e mesclam, de forma equilibrada, as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental” (ONU BRASIL, 2021a, p. 14). Além disso, a ONU entende que os ODS encerram as áreas de importância crucial para a humanidade, os cinco Ps: Pessoas, Planeta, Prosperidade, Parcerias e Paz.
Dessa forma, são inter-relacionados os dezessete temas dos ODS, os quais merecem ser explicitados: 1) erradicação da pobreza, 2) fome zero e agricultura sustentável, 3) saúde e bem-estar, 4) educação de qualidade, 5) igualdade de gênero, 6) água potável e saneamento, 7) energia limpa e acessível, 8) trabalho decente e crescimento econômico, 9) indústria, inovação e infraestrutura, 10) redução das desigualdades, 11) cidades sustentáveis, 12) consumo e produção responsáveis, 13) ação contra mudança do clima, 14) vida na água, 15) vida na terra, 16) paz, justiça e instituições eficazes, e 17) parcerias e meios de implementação.
Nesse sentido, os esforços para se alcançar as metas dos ODS devem partir de todas as pessoas, individual ou coletivamente, seja dentro de empresas, instituições, organizações políticas ou de escolas. Nessa perspectiva, a educação de qualidade, como base desses esforços, passa a ser, ao mesmo tempo, um objetivo e um meio para se alcançar os demais ODS, sendo o único tema com essa propriedade. Todos os temas relacionados acima devem ser trabalhados na escola, em todos os níveis e modalidades, incluindo a formação continuada dos docentes. Em espaços não-formais, em especial nos setores produtivos da sociedade, também se deve almejar a sustentabilidade, pois é exatamente nessa ponta que, efetivamente, acontece, ou não, o desenvolvimento sustentável.
A PRÁXIS PEDAGÓGICA DA SUSTENTABILIDADE PARA A TRANSDISCIPLINARIDADE NA EPT
Com base no arcabouço exposto, podemos tentar responder às indagações aqui formuladas. Primeiramente, há como avançar na EPT para além do domínio das técnicas?
Amartya Sen (2010) explica, de forma bem clara, que só há desenvolvimento se houver liberdades: econômica, social e política. Para completar essa teoria, somam-se as ideias de Freire (2013) de que a educação traz liberdade. Então, completando o raciocínio, a educação promove o desenvolvimento, tanto individual quanto coletivo. E essa liberdade é justamente o que faz com que o cidadão escolha sua profissão em vez de ser escolhido para desempenhar uma função na sociedade, que, normalmente, não o remunera adequadamente, não o inclui socialmente e não o representa politicamente.
Em um momento acelerado de transformações motivadas pela pandemia da Covid-19, é urgente que o projeto da EPT se modifique para acompanhar as aceleradas mudanças tecnológicas e de relações econômicas, sociais, políticas e culturais. Deve-se aproveitar esse momento ímpar na história da humanidade para uma reforma íntima nos conteúdos e nas metodologias da EPT. É hora, portanto, de acrescentar os ODS ao debate pedagógico, pois esse novo paradigma do desenvolvimento sustentável permite que os discentes despertem e avancem no entendimento sobre o futuro, tanto de sua própria profissão quanto do planeta.
Inicialmente, essa nova proposta de currículo poderia conter uma disciplina obrigatória específica sobre os conceitos de sustentabilidade que se articulasse com todas as outras disciplinas dos cursos de EPT. Posteriormente, com a formação de professores nesses moldes, os princípios de sustentabilidade poderiam ser incorporados em todas as disciplinas, o que garantiria a transdisciplinaridade.
Obviamente, o que asseguraria esse processo transdisciplinar seria o Ministério da Educação como política pública, e isso faria com que se desacreditasse que a desvalorização da educação é um programa do governo, desde o Império (RIBEIRO, 1986). Formar um contingente de mão de obra desqualificada, semiescravizada, dependente e reprimida é muito cruel e imoral da parte dos que são escolhidos para estarem no poder. Sen (2010) demonstrou que não se gera desenvolvimento de um país apenas com crescimento econômico, pois o Produto Interno Bruto (PIB) tem dono, e o custo social e ambiental não aparecem quando se fala em PIB. Como exemplo, é possível analisar o caso do Brasil, que, antes da pandemia, em 2019, tinha o 9° maior PIB do mundo (TUON, 2020), enquanto ocupava a 84ª posição, entre os 189 países, quanto ao IDH - Indicador de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2020). Vale ressaltar que o Brasil caiu, na classificação do PIB, para a 12ª posição, em 2020, e deve ir para a 13ª, em 2021 (ALVARENGA, 2021).
Portanto, esse é um grande desafio, especialmente porque estudiosos preveem que, até 2050, deverá surgir uma nova classe de indivíduos: os “inúteis” ou “inempregáveis” (CASTEL, 2010; HARARI, 2018). Esse neologismo pode ser entendido como uma categoria de indivíduos os quais não serão apenas desempregados mas também não terão como se inserir no mundo do trabalho, por não terem as qualidades mínimas necessárias. Espera-se que a formação holística de todas as classes trabalhadoras, por meio da sustentabilidade e do entendimento dos ODS, possa amenizar essas perversas previsões. Nesse sentido, Boff (2014) garante que somente uma educação ecologicamente centrada seria humanamente libertadora e extremamente democrática, o que poderia transformar esse cenário pessimista.
A segunda questão a ser respondida é: qual seria o diferencial do profissional do futuro com relação às habilidades transdisciplinares?
O desenvolvimento de aptidões cognitivas e emocionais, além das disciplinas técnicas, poderia trazer uma clara vantagem para o egresso da EPT: a de não fazer parte da nova classe de inúteis. Para o historiador Yuval Harari, em entrevista a Timothy Ferriss (2019), em um futuro não muito distante, os sujeitos precisarão de três principais qualidades para enfrentar com êxito o mundo ocupacional: aprender a aprender, inteligência emocional e resiliência. Para o autor, cada uma dessas habilidades está intrinsecamente interligada às outras.
O primeiro atributo diz respeito à formação contínua e à capacidade de se renovar para as sucessivas mudanças que o ritmo do século XXI nos impõe. Até pouco tempo, o indivíduo tinha duas fases em sua vida: a de estudante, em que se preparava para a fase posterior; e a de trabalhador, determinada, de forma quase imutável, pela fase anterior. Atualmente, as duas fases devem ser a de estudante e a de trabalhador-estudante. E, para que a segunda etapa da vida do sujeito possa ser consolidada é necessário que, na primeira etapa, ele, como discente, aprenda o valor do estudo permanente e seja estimulado à criatividade, ao pensamento crítico, ao trabalho multidisciplinar coletivo e à colaboração (HARARI, 2018). Esses dois últimos, inclusive, são qualidades muito frequentes nas relações ecológicas.
Outrossim, daqui a algumas décadas, o indivíduo não terá uma única profissão, serão constantes a criação e o desaparecimento de ofícios (ocupações). Assim, para acompanhar essa mudança, será primordial atingir as metas dos ODS 4 (educação de qualidade), 8 (trabalho decente e crescimento econômico) e 9 (indústria, inovação e infraestrutura).
Além disso, é importante destacar o autoconhecimento. Nesse sentido, a máxima de Sócrates nunca foi tão adequada: “conhece-te a ti mesmo”. E talvez essa seja a lição mais difícil de se aprender, pois não estamos muito acostumados a enxergar e aceitar nossos defeitos. Também precisamos olhar o outro com empatia, aceitando suas realidades, diferenças e limitações. Com todas as reflexões que a sustentabilidade nos traz, como, por exemplo, os conteúdos dos ODS 5 (igualdade de gênero) e 10 (redução das desigualdades), talvez isso seja possível.
O autoconhecimento, por sua vez, introduz a segunda qualidade profissional para o futuro, segundo Harari (2018), que é a inteligência emocional. De acordo com Goleman (2011, p. 60), é necessário usar “inteligentemente as emoções”. O mundo profissional contemporâneo é marcado pela competição acirrada entre os sujeitos, além da pressão excessiva por parte de seus diversos atores. Grande parte dessa conjuntura emocional tem provocado diversas doenças mentais, como estresse, depressão e ansiedade, além de suas consequências mais extremas, como a violência e o suicídio. Ademais, o sentido de sociabilidade e o afeto por outras formas de vida e pelo planeta Terra também devem ser trabalhados ao longo do período de aprendizado do indivíduo. Por essa ótica, o entendimento e a prática dos ODS 3 (saúde e bem-estar), 12 (produção e consumo consciente), 14 (vida na água), 15 (vida terrestre), 16 (paz, justiça e instituições eficazes) e 17 (parcerias) poderiam auxiliar na internalização das habilidades transdisciplinares e, ainda, quem sabe, corrigir possíveis distorções da educação familiar.
Com essas duas habilidades asseguradas, a terceira, a resiliência, concatena as anteriores para garantir a capacidade de enfrentar positivamente as situações adversas do cotidiano. Segundo diversos autores, ao longo de quarenta anos, a resiliência humana tem sido estudada como fator de emergência de experiências negativas, como guerras, pobreza extrema, doenças mentais, maus tratos, dentre outras (SILVA; ELSEN; LACHARITÉ, 2003). Conforme os pesquisadores, essa habilidade seria resultante da interação de fatores genéticos e ambientais, sendo estes últimos possíveis de serem trabalhados na escola, e não apenas na EPT, pois, quanto mais cedo, melhores serão os resultados. A sustentabilidade, com seus três pilares fundamentais (ambiental, social e econômico), entra nesse debate como exemplo de resistência e sobrevivência ao longo das eras.
Como terceiro ponto para reflexão, ainda podemos responder à pergunta: há formas de desenvolver tais habilidades?
A primeira consideração a respeito dessa investigação é sobre a formação continuada de professores. É preciso romper o ciclo reprodutivo de preparação de docentes nos moldes dos séculos passados e incluir a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade nos cursos de formação de professores. A possibilidade de favorecer uma conversa entre as diversas áreas de conhecimento e a tentativa de propor atividades integradas de diferentes disciplinas podem se mostrar muito atraentes e divertidas para os docentes. Durante esse exercício, os educadores experimentariam doses de criatividade, empatia, colaboração e administração das emoções, minimamente. A proposta de formação continuada de professores na perspectiva histórico-social de Mazzeu (1998) ainda se mostra atual e tem grande relação com os pressupostos da sustentabilidade. O autor propõe cinco passos como processo pedagógico, sendo o primeiro e o último iguais, como o início e o fim de um círculo: a prática social, a problematização, a instrumentalização, a catarse e a prática social.
Com relação aos currículos da EPT, as metodologias ativas são, definitivamente, um caminho a ser trilhado, pois essa abordagem centrada no estudante lhe confere autonomia, senso crítico, flexibilidade a mudanças, engajamento, organização, espírito de equipe e unidade, dentre outras habilidades necessárias para garantir um ofício digno (BACICH; MORAN, 2017). Diversas são as técnicas que podem ser levadas ao planejamento das disciplinas de forma interdisciplinar, como, por exemplo, a aprendizagem baseada em problemas ou em projetos (CASTAMAN; TOMMASINI, 2020), o ensino híbrido (CHRISTENSEN; HORN; STAKER, 2013), a sala de aula invertida (BERGMANN; SAMS, 2016), a aprendizagem por pares (MAZUR, 2015), a gamificação (FARDO, 2013), os jogos educacionais (SILVA et al., 2021), a cultura maker (DOUGHERTY, 2012) e a educação STEAM (MARTINEZ, 2017). Uma rápida pesquisa em plataformas digitais comprova que diversos são os relatos de práticas bem-sucedidas, principalmente as atividades que envolvem ensino-pesquisa-extensão em sustentabilidade (ARRUDA et al., 2018; GRANDISOLI, 2018; MAYWORM; FERREIRA; NERIS, 2017; PEREIRA, 2021), especialmente na EPT (PEREIRA, 2020).
E como a EPT já pressupõe “ações de desenvolvimento territorial sustentável”, com “a formação integral de cidadãos-trabalhadores emancipados” (SETEC, 2010, p. 14), há um perfeito alinhamento entre sustentabilidade e transdisciplinaridade. O termo desenvolvimento territorial sustentável (DTS) ainda é amorfo, mas se alicerça nos conceitos de ecodesenvolvimento, de Sachs (1986, 2007), que propõe um esforço para planejar o desenvolvimento considerando as dimensões social, econômica, ecológica, espacial e cultural. O “território” pode ser entendido como o espaço delimitado política e administrativamente, ou como uma área geográfica que se consolida a partir do encontro de atores sociais que procuram diagnosticar e solucionar problemas comuns (CAZELLA, 2006). Pelo novo paradigma da complexidade, espera-se que os territórios se desenvolvam considerando a indissociabilidade entre os sistemas sociais e naturais, fortalecendo os arranjos produtivos sustentáveis locais (TIEPOLO; DENARDIN, 2016). Como, atualmente, a Rede Federal está capilarizada com uma unidade para cada nove municípios do país, grosso modo (PNP, 2021), almeja-se que a EPT capacite a sociedade para que esta participe efetivamente do desenvolvimento, do planejamento e da gestão territorial.
Todas as ações dessa última discussão têm relação direta com o ODS 4 (educação de qualidade), considerando que, sobre esse assunto, a ONU tem como premissa “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” (ONU BRASIL, 2021a).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das considerações levantadas neste artigo, pode-se concluir que, no Brasil, a EPT é alvo de algumas polêmicas, porém é um nicho com grande potencial de transformar o país em uma potência no desenvolvimento sustentável, já que essa é a tendência mundial para um futuro próximo.
Assim, o trabalhador-estudante do amanhã se destacará se puder desenvolver e treinar as habilidades transdisciplinares, o que, provavelmente, lhe dará a chance de escolher se tem aptidão para trabalhos manuais, braçais ou intelectuais, e desenvolvê-los da melhor forma, com possibilidade de alterar o método produtivo, caso julgue necessário.
Para isso, existem alguns meios, porém se defende a trilha da sustentabilidade, pois é a forma como o mundo tem enfrentado o novo paradigma da complexidade. E esse movimento poderá ser concretizado pela alteração de duas dimensões: docentes e estrutura da EPT.
Portanto, recomenda-se, primeiramente, que os professores reflitam constantemente sobre suas práticas pedagógicas e incorporem atividades de sustentabilidade em suas aulas. Essa tarefa está inacabada e é sempre possível que a atividade seja diferente, pois as turmas são distintas e os estudantes também. Nesse mesmo sentido, o professor também é diferente a cada ano, pois já se transformou com a atividade anterior e com as discussões com seus ex-estudantes. Obviamente, essa tarefa só será efetivada se o professor conseguir investir em sua formação continuada, ou por ação pessoal, ou por incentivo e prática da escola.
Aliado a isso, deve haver significativa reformulação do currículo da EPT; incentivos financeiros para pesquisa, extensão e inovação em sustentabilidade; encorajamento às metodologias ativas e divulgação das benesses da EPT para o futuro de nossa nação. Para essa segunda dimensão, novamente, volta-se a enfatizar o desenvolvimento de políticas públicas. Essa é uma importante via para se conseguir cumprir as atuais e vindouras metas para o desejado desenvolvimento sustentável.