INTRODUÇÃO
O ano de 2020 começou de uma forma completamente inesperada para as sociedades do chamado mundo globalizado: a eclosão de uma pandemia que abalou todo o planeta expôs a condição de vulnerabilidade do ser humano e evidenciou os riscos à saúde associados à intensificação das mudanças ambientais e da mobilidade humana.
No dia 30 de janeiro, com base na rápida disseminação entre humanos do novo coronavírus, a OMS (Organização Mundial da Saúde, agência das Nações Unidas) declarou sua sexta emergência internacional. O anúncio foi feito após a Organização identificar e reconhecer mais de 7 mil casos espalhados em 19 países diferentes. Pouco mais de um mês após o anúncio da emergência sanitária - e diante da propagação globalizada do vírus causador da Covid-19 -, a OMS se viu obrigada a admitir, no dia 11 de março de 2020, a existência de uma pandemia com alcance e impactos globais (RAMOS, 2020).
No momento em que este artigo é redigido, nove meses após o anúncio da pandemia, e vivendo sob as mudanças e as incertezas que este período trouxe para a humanidade, já podemos afirmar que os impactos e as consequências dessa situação devem atingir a todos de forma duradoura - ainda que com intensidades diferentes.
No campo das migrações internacionais, os processos foram marcados por uma drástica ruptura global, sobretudo em função das medidas de isolamento, confinamento e quarentena, adotadas pela maioria dos países na tentativa de conter a pandemia de Covid-19. De acordo com Rosana Baeninger (2020, p. 211), o fechamento das fronteiras foi capaz de interromper imediatamente quase que todos os tipos e modalidades de deslocamentos da população mundial: “desde fluxos migratórios internacionais de longa distância, de vizinhança, fronteiriço, mobilidade do turismo, mobilidade estudantil até os deslocamentos intraurbanos nas cidades e seus bairros.”
De um dia para o outro, a “imobilidade da população mundial”, imposta pelo grave momento, se tornou um ativo importante no debate acerca da continuidade ou da interrupção da “Era das migrações”, pois, seguramente, será neste cenário pandêmico - e marcado pela intermitência - que “novas dimensões sociais, econômicas e políticas poderão (re)configurar os movimentos migratórios internacionais” (BAENINGER, 2020, p. 213). “Era das migrações” é a expressão cunhada pelos teóricos Stephen Castles, Hein de Haas e Mark. J. Miller para identificar a conjuntura migratória das últimas décadas, na qual a mobilidade e os deslocamentos humanos se tornaram o reflexo “natural” das sociedades de globalização econômica e de livre mercado em que vivemos. Isto é, um mundo constituído por profundas desigualdades sociais, que fazem surgir “ilhas” ou “oásis” de produtividade e rentabilidade, em torno dos quais surgem também desertos econômicos que obrigam pessoas a migrar em situações completamente desfavoráveis e a aceitar condições laborais precárias ou a viver na informalidade (PATARRA, 2006, p. 14-15). A expressão também se presta para representar os mais de 68 milhões de deslocados à força, que saíram obrigados de seus territórios de origem mediante grave ameaça ou risco de morte por motivos de guerra ou perseguição relacionados à sua raça, etnia, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política, e por consequência de conflitos armados, violência generalizada e violação dos direitos humanos - desse montante, cerca de 25 milhões cruzaram uma fronteira internacional em busca de proteção e são chamados de refugiados (ACNUR, 2018, p. 4-5).
Ora, vivendo em um mundo com contínuos conflitos armados, intolerâncias das mais variadas espécies e frequentes violações aos Direitos Humanos, além de acentuadas assimetrias entre centro e periferia, entre economias capitalistas desenvolvidas e países pobres, o surgimento dos novos fluxos migratórios das últimas décadas tem sido escopo de pesquisas em todo o globo terrestre. Ainda que não seja possível concluir o assunto, pode-se afirmar que os chamados novos fluxos migratórios - que constituem a “Era das Migrações” - são causa e efeito de várias formas de conflitos, e não um fenômeno isolado ou uma invenção do século XXI3.
Embora a mobilidade humana tenha alcançado visibilidade e esteja sendo percebida como um fenômeno recente e descontrolado, ela não se trata de uma novidade, mas, sim, de uma prática milenar da humanidade. A novidade talvez esteja na diversidade das atuais categorias de migrantes: econômicos, expatriados, refugiados, requerentes de asilo indocumentados, trabalhadores transfronteiriços, trabalhadores sazonais, binacionais, estudantes etc.4
No mundo “pré-pandêmico”, também poderia ser considerada uma novidade a mudança na maneira como os países “anfitriões” reagiam e atuavam em resposta à diversidade desses fluxos em seus territórios. Com a política da União Europeia e dos Estados Unidos, de progressivo fechamento de suas fronteiras para a recepção de migrantes e refugiados, novas rotas de migração foram sendo configuradas ao redor do mundo. Desde o início dos anos 1990, e mais fortemente na década de 2000, houve uma multipolaridade de fluxos migratórios, que passaram a ocorrer não apenas em direção aos principais países de imigração do Hemisfério Norte e nas áreas com maior concentração de empregos, mas, também, nos países emergentes do Hemisfério Sul - a chamada migração Sul-Sul, feita na “periferia” do capital global.
Como se observa, o surgimento desses novos fluxos tem gerado reações adversas até mesmo em países com histórico de recepção de imigrantes, como é o caso do Brasil. Em geral, migrantes - econômico/laborais ou refugiados -, a despeito de suas diferenças, já eram tratados, muito antes da pandemia, como um problema a ser enfrentado e combatido pelos Estados Nacionais. Nomeados, muitas vezes, como ilegais, clandestinos, irregulares e deportados, eles eram, constantemente, alvos de semânticas negativas e “policialescas” que evocavam a intolerância, a violência, o desemprego, o isolamento, o preconceito, a pobreza, a condenação, a fiscalização, a punição e, até mesmo, a detenção (COGO, 2002, p. 38).
Diante de um cenário no qual o Brasil passava a figurar como receptor de migrantes e refugiados dos novos fluxos migratórios e das emergências humanitárias, percebemos, então, a relevância de empreender uma investigação sobre as iniciativas de garantia de direitos dessas populações, com especial atenção aos direitos educativos de adultos, que, via de regra, já estão inseridos (ou em idade de inserção) no mercado de trabalho, contribuindo ativamente para o remodelamento social e econômico dos territórios de acolhida.
Com o abrupto surgimento da pandemia, no entanto, nossas pesquisas na área, com foco no acolhimento da população migrante da cidade de São Paulo, foram prejudicadas. De um dia para o outro, nos vimos “voltando algumas casas” na percepção e no entendimento do “tabuleiro do jogo migratório”. Quando estávamos pesquisando sobre a necessidade de migrantes e refugiados jovens e adultos - independentemente de sua condição migratória ou documental - poderem estudar, retomar ou validar seus estudos prévios sem discriminação, a partir de políticas públicas adequadas, de gestão escolar democrática e de currículos relevantes, fomos impelidos a retornar à discussão inicial a respeito do controle migratório fronteiriço - assunto que, de fato, nunca saiu da pauta.
Da mesma maneira, quando estávamos amadurecendo a discussão sobre a diversidade cultural e social de migrantes e refugiados, e sobre como os programas educacionais poderiam ser mais flexíveis, adaptando sua intensidade, conteúdo e calendário às necessidades e aos contextos dos deslocados adultos, voltamos a concentrar nossas pesquisas nas ações de apoio e desenvolvimento das migrações, que, em razão do contexto pandêmico, tendem a desaparecer para dar lugar à legitimação de um “espaço de segurança” que implica políticas restritivas, de redução de direitos, militarização das fronteiras, limitação de liberdades e estigmatização de determinados países, gêneros, regiões, religiões, raças e etnias.
Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo refletir sobre o impacto das medidas restritivas adotadas na pandemia de Covid-19 nas migrações internacionais e nos migrantes, bem como na efetivação de seus direitos educativos. Constitui uma análise exploratória, baseada em revisão bibliográfica e documental, subdividida em duas partes: a primeira traça um panorama das vulnerabilidades às quais os migrantes estão submetidos nestes tempos de pandemia; a segunda, trata das consequências sobre seus direitos educativos. Esperamos, com isso, contribuir com o urgente debate que deve ser estabelecido em face ao novo momento migratório pelo qual passa o mundo.
PANORAMA DA SITUAÇÃO DOS MIGRANTES E REFUGIADOS NO MUNDO DA COVID-19
Mesmo antes do início da pandemia, a situação de migrantes e refugiados era considerada preocupante ao redor do mundo, e não apenas pela habitual dificuldade na efetivação de direitos essenciais, mas, também, por conta do atual recrudescimento dos discursos de ódio, cuja emergência se intensificou com a ascensão de governos de extrema direita e nacionalistas, claramente contrários à recepção e ao acolhimento dessas populações em seus territórios. Além disso, o tratamento midiático - realizado muitas vezes com terminologias incorretas - acaba por contribuir para a construção de uma ameaça imaginária de afluxo de estrangeiros, que migravam para “roubar as oportunidades dos nacionais”. Esses discursos, quase sempre, vinham ignorando o fato de que, do ponto de vista dos Direitos Humanos, todo cidadão tem o direito de deixar seu local de origem e a ele retornar (ou seja, o direito à livre circulação), sem ser classificado como “irregular”, “ilegal” ou “clandestino”.
De forma inusitada - não podemos deixar de mencionar -, foi justamente este direito à livre circulação um dos fatores que contribuíram para a rápida disseminação do Sars-Cov2, o vírus causador da Covid-19.
E, não por acaso, as primeiras providências adotadas pelos mais diversos governantes ao redor do mundo foram as restrições de mobilidade humana, com o fechamento imediato das fronteiras. Segundo Svetlana Ruseishvili (2020, p. 160), “paradoxalmente, o direito ao livre movimento, um dos pilares do liberalismo, parece ter se tornado o maior aliado do vírus mortal que põe em xeque a estrutura demográfica, econômica e social da vida coletiva contemporânea”. Foi assim que, em pouco tempo, caiu sobre os migrantes ao redor do mundo o peso redobrado da xenofobia: comportamento de quem vê no estrangeiro uma ameaça inata e uma fonte permanente de perigo (CHARLEAUX, 2020).
De acordo com João Paulo Charleaux (2020), em maio de 2020, dois meses após o anúncio da pandemia, as Nações Unidas já tinham mapeado 1.820 leis restritivas à imigração, instituídas por governos das mais variadas nações, no contexto da Covid-19. Também em maio, a OIM (Organização Internacional para as Migrações), da ONU, declarou que 219 países impuseram algum tipo de restrição ao ingresso de migrantes a postos fronteiriços, o que compreende “a restrição de entrada para os passageiros vindos das áreas de risco, medidas sanitárias compulsórias (quarentena, exames médicos) ou interrupção de concessão dos vistos de entrada” (RUSEISHVILI, 2020, p. 161).
No contexto da Covid-19, a associação de “vírus” e “doença” com “migrantes estrangeiros” foi tamanha que, no dia 8 de maio de 2020, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, emitiu um comunicando, pedindo que os líderes políticos, que a sociedade civil, que as instituições de ensino, que os veículos midiáticos e que os líderes religiosos fizessem “um esforço coletivo para acabar com o discurso de ódio desencadeado pela pandemia” (IFRANGEER; DAL POGGETTO, 2020, p. 171). O comunicado do Secretário também apelava para a desconstrução da ideia de que migrantes e refugiados seriam “fonte do vírus” nos territórios.
O fato é que, mesmo recebendo o apoio declarado de organizações internacionais, o medo e a incerteza acerca da pandemia colocaram os migrantes e refugiados em um cenário ainda mais desfavorável do que aquele que já vinham enfrentando - o que Beltramelli Neto e Menacho (2020, p. 54) chamaram de “agudização da desventura”. Para essa população, o mundo pandêmico representou o enfrentamento simultâneo de três crises: socioeconômica, de saúde e de proteção humanitária. Todas as pesquisas, relatórios e documentos consultados até o momento demonstram que “a pandemia de Covid--19 veio acelerar a tragédia socioeconômica cotidiana que assola, de há muito, a esmagadora maioria de migrantes e refugiados” (NETO; MENACHO, 2020, p. 57).
A pandemia escancarou as desigualdades sociais, evidenciou a desproteção dos grupos mais vulneráveis e confirmou que em tempos de crise eles são sempre os primeiros a sofrer diversas formas de violência - simbólicas e concretas, legais e ilegais - perpetradas pelo Estado ou sob sua conivência (PARISE; CARVALHO; PEREIRA, 2020). Isso porque as ações discricionárias dos Estados para combater a pandemia acabaram por desencadear efeitos desequilibrados sobre diferentes estratos sociais, “aumentando a vulnerabilidade das populações mais carentes” (RUSEISHVILI; TRUZZI, 2020, p. 473), dentre as quais estão os negros, indígenas, as mulheres, os trabalhadores informais e os migrantes e refugiados.
É importante fazer um parêntesis para destacar que, mesmo não sendo possível estabelecer uma teoria única ou um quadro teórico preciso para explicar todas as migrações internacionais da contemporaneidade, uma afirmação tem se mostrado suficientemente consistente e relevante nos estudos contemporâneos sobre o tema: com exceção dos deslocamentos forçados (que caracteriza a busca de refúgio), a migração está intimamente ligada ao trabalho.
Sendo assim, é inconteste que, durante uma crise sanitária que impossibilita as pessoas de se deslocar até mesmo dentro dos territórios, os 164 milhões de trabalhadores migrantes ao redor do mundo, juntamente com suas famílias, estariam mais expostos à perda de empregos e de renda em comparação com os nacionais - ainda que nacionais de baixa renda de países pobres também estejam fadados à carestia (NETO; MENACHO, 2020).
Torna-se premente lembrar, inclusive, que, por conta da dificuldade de retomar e/ou validar seus estudos e conhecimentos prévios adquiridos nos territórios de origem, os migrantes e refugiados acabam aceitando ofertas de subempregos sem direitos à proteção social ou recorrendo à informalidade. De acordo com a publicação da OIT (Organização Internacional do Trabalho), Protecting migrant workers during the COVID-19 pandemic, há alta incidência de informalidade entre os trabalhadores migrantes, “com quase 75% das mulheres migrantes e 70% dos homens migrantes trabalhando na economia informal” (NETO; MENACHO, 2020, p. 56).
Uma parte do contingente de migrantes que vive do trabalho informal é constantemente incentivada ao empreendedorismo, até mesmo, por organismos internacionais como a OIM e o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). Não obstante suas boas intenções, é sabido que, na lógica neoliberal contemporânea, a alcunha de “empreendedor” pode se tornar “sinônimo de um trabalhador informal, sem direitos, responsável integralmente por seu sucesso e por seus fracassos” (RUSEISHVILI; TRUZZI, 2020, p. 479).
Sendo assim, para a além das consequências mais amplas sobre os fluxos migratórios, os chamados lockdowns (protocolos de isolamento que geralmente restringem ao máximo a circulação de pessoas e serviços não essenciais), os toques de recolher e o fechamento do comércio e serviços tiveram impacto profundo na vida de migrantes e refugiados trabalhadores, fazendo com que eles perdessem abruptamente trabalho e renda. É importante ressaltar que, em um cenário de crise econômica como este, essas populações “tendem a ter pouca ou nenhuma reserva financeira capaz de amenizar choques socioeconômicos”, o que aumenta sua condição de vulnerabilidade (NETO; MENACHO, 2020, p. 55).
Evidentemente, os impactos dos lockdowns - necessários para conter a disseminação do vírus e evitar o colapso dos sistemas de saúde, sobretudo nos países mais pobres - também alcançaram os empregos formais. No Brasil, segundo a PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a taxa de desemprego entre a população geral do país subiu de 11,2% em janeiro para 14,6% no final do terceiro trimestre do ano - um aumento de 2,8 pontos percentuais frente ao 3º trimestre de 2019, cujo índice era de 11,8% (IBGE, 2020). Seguramente, a escalada do desemprego e a paralisação de setores produtivos aprofundaram a vulnerabilidade de quem já estava marginalizado (PARISE; CARVALHO; PEREIRA, 2020). Conforme declarou Squeff (2020, p. 283), para a comunidade de migrantes e refugiados nos territórios, “a ameaça do desemprego tornou-se tão ameaçador quanto o próprio vírus.”
Especificamente, entre a população migrante do nosso país, podemos citar os dados da pesquisa “Impactos da Pandemia de Covid-19 nas Migrações Internacionais no Brasil”, realizada pelo Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Direitos Sociais e Migração (GIPE) e pelo Grupo Distribuição Espacial da População (GEDEP)-PUCMINAS/Observatório das Migrações em São Paulo--NEPO/UNICAMP, publicada em julho de 2020, apontando que quase metade de um total de 2.475 migrantes entrevistados perdeu seu emprego durante a pandemia. Se antes da Covid-19, 1.184 migrantes estavam trabalhando, depois do início da crise sanitária, esse número caiu para 624 migrantes (FERNANDES; BAENINGER; DEMÉTRIO, 2020, p. 56).
Aqui no Brasil, ainda podemos citar outro fator de desventura para essa população: a dificuldade em receber o auxílio emergencial concedido pelo Governo Federal. Por conta de problemas recorrentes para ter documentos reconhecidos como válidos pelo governo ou por ter documentos com erros de informação - por exemplo, a grafia de nome estrangeiro ou inconsistência no CPF (Cadastro de Pessoa Física) -, muitos acabaram impedidos de acessar o valor inicial de R$ 600,00 para a população geral e de R$1.200,00 para as mulheres definidas como chefes de família monoparentais, além de continuar com dificuldades para acessar as parcelas residuais, nos valores de R$ 300 reais para o geral e de R$ 600 para a mulheres cujas famílias possuíssem ao menos um dependente menor de 18 anos e que não tivessem cônjuge ou companheiro (PARISE; CARVALHO; PEREIRA, 2020). Além disso, as barreiras com a língua, a dificuldade de acesso à informação e o medo de estar ilegal e ser deportado privaram migrantes e refugiados desses benefícios e agravaram ainda mais a situação de miserabilidade em que muitos se encontravam.
A segunda lição aprendida com o passar do tempo durante a pandemia foi a de que pobres e vulneráveis estão - em todo o globo terrestre - mais propensos à contaminação e à morte por Covid--19.
Nos países com grande índice de desigualdade social como o Brasil, enquanto alguns segmentos da sociedade puderam adotar com certa tranquilidade medidas de auto-isolamento, transferindo as atividades cotidianas e laborais para dentro de suas casas, outros tantos tiveram de continuar trabalhando e - se arriscando - fora delas (RUSEISHVILI, 2020).
Como consequência imediata dessa desigualdade de exposição, assistimos muitos migrantes e refugiados continuarem vivendo, se deslocando ou trabalhando em ambientes lotados ou com condições insalubres, nos quais a disseminação da Covid-19 se dava facilmente (OIM, 2020a; 2020b).
De acordo com o geógrafo David Harvey (2020, s/p.), nos EUA, a pandemia colocou a classe trabalhadora diante da cruel escolha entre “contrair a contaminação em nome de cuidar e manter os principais recursos da provisão (como supermercados) abertos ou ficar desempregada sem benefícios”. Situação que se repetiu em todo o globo terrestre.
E as condições adversas propensas ao aumento da exposição à contaminação não foram constatadas apenas na esfera laboral, uma vez que essas populações, seja em qual parte for, tendem a viver nas periferias, em casas pequenas ou superlotadas, onde é praticamente impossível manter o isolamento social.
Por fim, convém lembrar que, quando infectados, migrantes e refugiados poderiam ter o tratamento comprometido, sobretudo se estivessem indocumentados e/ou alocados em países com sistema de saúde não universal. Mesmo no Brasil, cujo SUS (Sistema Único de Saúde) é destinado a todos, irrestritamente, a falta de informação para esse contingente e a superlotação das unidades de atendimento (que compromete todo o sistema) prejudicaram a oferta de tratamento.
Para além das consequências imediatas - e terríveis - como a perda de renda e, pior, da própria saúde, os impactos da pandemia de médio e longo prazo em relação às políticas de acolhimento também podem ser desastrosos: acesso reduzido dos refugiados ao asilo (quase 100 países não estão abrindo exceções para novas admissões); aumento de detenções; retornos forçados e deportações, que podem acontecer em condições de superlotação e insalubridade; processos de separação familiar e maior exposição ao risco de tráfico humano (UNITED NATIONS, 2020, p. 4).
Mesmo entendendo que o contexto sanitário impôs restrições à mobilidade internacional para conter a contaminação pelo Covid-19, já que a proteção à vida e à saúde deve ser a prioridade global, não há como não temer que a atual crise se torne justificativa legitimadora - e definitiva - das restrições impostas e, pior, que culmine na cessação de direitos adquiridos com muita luta ao logo dos tempos.
REFLEXÃO SOBRE OS DIREITOS EDUCATIVOS DE MIGRANTES E REFUGIADOS ADULTOS NA PANDEMIA
Especificamente, em relação à efetivação dos direitos educativos de migrantes e refugiados adultos, que é o foco das nossas pesquisas, a situação não é mais animadora.
Antes de prosseguir, contudo, é importante ressaltar que, no Brasil, falar de educação de adultos é falar sobretudo da EJA (Educação de Jovens e Adultos), que, de acordo com Maria Clara Di Pierro (2008, p. 396), deveria se tratar de um conjunto variado de processos de aprendizagem - formais, informais e não formais - pelos quais as pessoas enriquecem seus conhecimentos, cultura e qualificações profissionais para satisfazer suas necessidades individuais ou coletivas. No entanto, as provisões dessa modalidade, nos territórios, são bem diferentes do que preconizam as normativas.
Historicamente, a EJA está vinculada às populações marginalizadas da sociedade, que não puderem frequentar ou concluir a educação formal na idade considerada ideal. Dentre outros motivos, esta vinculação aos excluídos explica por que ao longo dos anos essa modalidade de ensino vem sendo colocada em segundo plano na agenda educacional do Brasil, sendo “alvo de políticas descontínuas e de iniciativas aligeiradas, circunscritas à precariedade e à provisoriedade, quase sempre relacionadas apenas à preparação para o mercado de trabalho” (FANTINATO; FREITAS; DIAS, 2020, p. 105).
É importante destacar que a educação de adultos pode ter conotações diferentes, a depender da sociedade em que está inserida. Nos países ricos e desenvolvidos, ela pode assumir um caráter de educação continuada - a também chamada “educação ao longo da vida” -, na qual os indivíduos não devem cessar os seus processos de aprendizagem. Já nos países pobres e em desenvolvimento, ela pode assumir um caráter reparador, na tentativa de diminuir as desigualdades sociais enfrentadas pelos seus sujeitos.
No Brasil, assim como em muitas partes do globo, a ideia de educação/aprendizagem ao longo da vida ainda configura um conceito polissêmico em disputa, que transita entre uma corrente humanista, pautada nos fundamentos da educação popular, e uma corrente instrumental, que vê a educação continuada apenas como forma de atender as demandas economicistas por formação e qualificação profissional, resultando em mão de obra especializada a serviço, apenas, das exigências do mercado e do capital (LIMA, 2007).
No entanto, seja qual for o conceito adotado de educação para adultos nos vários territórios, migrantes e refugiados adultos têm direitos educativos. A construção de normativas inscritas no campo do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) consolidou, na legislação, o direito à educação para todas as pessoas. Segundo Norberto Bobbio (2004, p. 36.), “[...] não existe atualmente nenhuma carta de direitos que não reconheça o direito à instrução”.
Acontece que, com a pandemia de Covid-19, a efetivação desses direitos - que já era difícil, sobretudo, por conta da distância entre o que está garantido legalmente e o que se manifesta no cotidiano dessas populações - ficou mais distante da realidade/efetividade.
No Brasil, assim como na maior parte do mundo, as escolas, tanto públicas quanto particulares, suspenderam as aulas presenciais e adotaram o que hoje podemos chamar de ensino remoto emergencial - importa dizer, uma espécie de formação muito diferente de EAD (Ensino a Distância). O ensino remoto foi uma maneira rápida que instituições encontraram de manter as aulas, ainda que a distância, mas que são - e precisam ser - entendidas como uma solução temporária, diferentemente do EAD, que, em tese, tem uma metodologia específica, pensada para garantir a aprendizagem não presencial.
De toda forma, o que assistimos na pandemia de Covid-19 foi a mudança abrupta do modelo presencial para o modelo remoto, sem a devida preparação dos alunos, nem dos professores, em um contexto extremamente desfavorável. Para a EJA, de maneira geral (tanto para os educandos migrantes quanto para os educandos nacionais), o maior sinal de preocupação emitido pelo ensino remoto emergencial foi a iminente criação de novos distanciamentos desse contingente do processo educacional formal.
Ao transferir todas as atividades escolares para plataformas on-line, os gestores de políticas de EJA não tiveram tempo suficiente para considerar três fatores importantes: 1) a maior parte dos alunos da EJA ficaram afastados da escola por muito tempo e podem não ter autonomia suficiente para a realização de atividades remotas; 2) esse público é constituído, sobretudo, por trabalhadores, muitos dos quais estão na informalidade, sem direitos sociais, e cuja realidade econômica não permite acesso a equipamentos e internet de qualidade para a realização das atividades; 3) e, justamente, por ser um público que está à margem, tentando sobreviver em um contexto dificílimo, essas pessoas poderiam não ter tempo e disposição para o ensino remoto. Além disso, com as moradias lotadas, muitos tiveram de compartilhar equipamentos, dispositivos e sinal de internet, o que - em muitos casos - acabou por inviabilizar a continuidade dos estudos.
Embora o primeiro fator supracitado possa não ser decisivo para os migrantes e refugiados adultos matriculados nas redes de ensino no Brasil - pois, conforme resultados preliminares de pesquisa, grande parte deste contingente já possui médio e alto índice de escolarização formal -, os segundo e terceiro fatores são bastante significativos, sobretudo quando o “acesso às boas condições de tecnologias de comunicação e informação tornou-se condicionante para a continuidade de qualquer estudo escolar” (FANTINATO; FREITAS; DIAS, 2020, p. 108).
De fato, para a maior parte dos migrantes e refugiados, não é possível dizer que se trata de jovens e adultos pouco ou não escolarizados: “oriundos, portanto, de uma cultura não escolar [...] que terão que se inserir e interagir com os modos de funcionamento particulares da instituição” (LIMA; PIRES; SOUZA, 2020, p. 4). Mas não podemos ignorar o fato de que se trata de pessoas aprendendo a ser alunos em uma cultura diferente da sua, aprendendo e descobrindo formas de ser e estar na escola - inclusive, enfrentando profundas dificuldades relacionadas à falta de domínio da língua portuguesa, o que per si já caracteriza uma desvantagem educacional que dificulta a socialização e o desenvolvimento de afetos, além de aumentar o risco de discriminação, de assédio, de baixo nível de autoestima e inviabilizar o acesso a outros direitos considerados essenciais.
Dessa forma, se antes da pandemia de Covid-19 essa população já tinha de aprender a “estar” na escola, com a suspensão das aulas presenciais e a instituição do ensino remoto emergencial, ela teve de reaprender a “estar” em um espaço constituído por pessoas isoladas, frequentemente desempregadas ou preocupadas acerca de suas provisões financeiras, exaustas com as tarefas domésticas, e, não raro, tendo que auxiliar os filhos e os netos na mesma tarefa - complexa - de aprender remotamente.
Em geral, na educação de adultos, é muito importante a prática pedagógica construída no dia a dia, na interação entre educandos e educadores, na qual o processo de uma aprendizagem relevante precisa levar em conta as especificidades do sujeito, bem como seus conhecimentos prévios e suas experiências de vida. Dessa forma, se a construção desse locus de aprendizagem já era difícil na modalidade presencial - marcada pelas intermitências comuns aos estudantes de EJA, que por conta das exigências da vida têm de priorizar, constantemente, outros aspectos em detrimento da educação escolar -, imagina-se o quão distante está da realidade de migrantes e refugiados adultos matriculados nas redes de ensino.
É nesse sentido que Saviani (2020, p. 5-6) enfatiza: o ensino remoto “não pode se equivaler ao ensino presencial, sendo admitido apenas como exceção”, o que só pode se dar quando todos os estudantes preencherem os requisitos mínimos para tanto. E mais: “é preciso que todos estejam não apenas alfabetizados em sentido estrito, mas também em sentido funcional e, mais do que isso, não sejam analfabetos digitais”.
Ainda que alguns caiam na tentação de alegar que atualmente até mesmo os mais pobres têm acesso a smartphones e às redes sociais, é preciso reconhecer que nem todas as pessoas possuem experiência para lidar com plataformas digitais e ambientes virtuais de aprendizagem; “são crianças, adolescentes, jovens que utilizam redes sociais para entretenimento, mas não quer dizer que dominam as tecnologias digitais para serem utilizadas com o compromisso e a concentração que o ambiente de estudos exige” (LIMA; PIRES; SOUZA, 2020, p. 9).
No Brasil, o Parecer nº 5/2020 (BRASIL, 2020), do Conselho Nacional de Educação (CNE), de caráter orientativo, que dispõe sobre a reorganização do calendário escolar e o cômputo de atividades pedagógicas não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, parece desconsiderar - completamente - a existência de desigualdades no acesso e no uso de recursos tecnológicos, bem como de desigualdades sociais, culturais e econômicas estruturais na sociedade brasileira (ARRUDA; OSÓRIO; SILVA, 2020, p. 408).
É verdade que o referido parecer, para a EJA, menciona a necessidade de considerar as condições de vida dos estudantes, bem como a harmonia na rotina de estudos e de trabalho e a valorização dos saberes não escolares; mas - composto, principalmente, por princípios generalistas - não evoca as dimensões sociais e culturais dessa modalidade nem faz qualquer menção a respeito das singularidades dos sujeitos que a compõem, sobretudo
“neste cenário de excepcionalidade, de problemáticas outras que extrapolam os processos de escolarização em curso, realidade objetiva em crise que acumula o agravamento das desigualdades de renda e de acesso a bens e serviços, perpetuando tensões relacionadas à precarização das formas de vida da população” (ARRUDA; OSÓRIO; SILVA, 2020, p. 408).
Ademais, o parecer não emana orientações para a o trabalho específico com migrantes e refugiados.
Quando, por fim, observamos o que tem acontecido com educandos e educadores do nosso convívio próximo, sobretudo aqueles das redes públicas, que seguem orientações normativas como o parecer citado, percebemos o cansaço e a frustração de um processo que não está funcionando satisfatoriamente. Como resultado, o excluído ainda se sente culpado por não ter estudado, por não ter conseguido aprender, “como se as condições fossem igualitárias, em que todos têm as mesmas oportunidades e quem não consegue é porque não se esforça” (LIMA; PIRES; SOUZA, 2020, p. 16).
Para ilustrar o exposto até aqui - e tentar estabelecer alternativas para não restringir direitos educativos de migrantes e refugiados adultos -, citamos brevemente a experiência do CIEJA Perus (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos, da prefeitura de São Paulo, unidade de Perus), em artigo publicado pelos pesquisadores Cristiane Maria Coutinho Fialho, Daniela Aparecida Vieira e Guiniver Santos de Souza Ferreira (2020), no qual se evidencia um corpo discente de 1.510 estudantes, com, aproximadamente, 800 haitianos.
Cientes de que a EJA é composta por “trabalhadores estudantes”, e não “por estudantes trabalhadores” - inversão importante para compreender a necessidade primordial do trabalho para subsistência na vida adulta -, os diretores, os coordenadores pedagógicos e educadores do CIEJA Perus decidiram ampliar o conceito de direitos educativos para outros campos de aprendizagem, trabalhando, naquele momento, a conscientização dos educandos quanto às formas de prevenção da Covid-19 e a orientação para o reconhecimento e tratamento dado às fake news relacionadas ao tema sanitário ou a quaisquer outros temas, inclusive aos políticos (FIALHO; VIEIRA; FERREIRA, 2020, p. 326).
Conscientes de que muito educandos da instituição trabalhavam na informalidade como vendedores ambulantes, ou como domésticas, diaristas, artesãos, auxiliares de limpeza em empresas, recepcionistas, cozinheiros, atendentes de supermercado, entre outros - e, que portanto, não possuíam renda fixa e/ou direitos trabalhistas, e que, de um dia para outro, se viram privados até mesmo das refeições que faziam na escola -, a solução encontrada para que os alunos não perdessem totalmente o vínculo com a instituição nem o sentimento de pertencimento que vinham construindo na comunidade escolar foi o de realizar atividades outras - por exemplo, o programa de conscientização - com os alunos.
De acordo com Fialho, Vieira & Ferreira (2020, p. 327), o público atendido no CIEJA Perus é “marginalizado e oprimido [...] Para eles, a nossa instituição educacional é muito mais do que uma escola; é um lugar onde, além de construírem e compartilharem conhecimentos, eles recebem atenção e afeto e se alimentam”. Dessa forma, o fechamento da escola durante a pandemia, por determinação legal, e mesmo com a boa intenção de conter a disseminação do Covid-19, significou o fechamento de um lugar essencial para mais de 800 migrantes internacionais.
Por esse motivo, a gestão do CIEJA Perus considerou que “propor-lhes, por exemplo, aulas e atividades inteiramente a distância seria impraticável” e que seriam necessárias outras ações durante o período da quarentena. Além das atividades propostas no material impresso distribuído pela SME (Secretaria Municipal de Educação) - elaborado a partir de um esforço coletivo para oferecer atividades aos estudantes da rede - deu-se início às ações de conscientização, conversa e partilha, por escrito e oralmente, nos grupos de WhatsApp, dos quais grande parte dos educandos participam (FIALHO; VIEIRA; FERREIRA, 2020, p. 329). É importante destacar que o referido material - Trilhas de Aprendizagem - possui cadernos destinados para a EJA e que sua produção considerou as especificidades dos sujeitos dessa modalidade. No entanto, a publicação mostrou-se um material “limitado”, por não citar ou desenvolver na sua carta de orientação aos educadores a necessidade/possibilidade de trabalho com o público migrante adulto.
De acordo com os mesmos autores supracitados, ainda que as atividades pelos grupos de Whatsapp não fossem as ações ideais, foi a maneira encontrada para que a escola continuasse ocupando o lugar de “formadora” para esse contingente que parece não estar sendo considerado em nenhum documento oficial (FIALHO; VIEIRA; FERREIRA, 2020, p. 329). Diante da situação dada, a maneira encontrada para preservar o papel formador da escola foi acolher as principais reivindicações dos próprios alunos - ação preferível ao simples repasse de conteúdos impressos ou à cobrança de atividades em plataformas digitais.
O episódio do CIEJA Perus exemplifica como os direitos educativos de migrantes e refugiados adultos estão sendo impactados a partir do contexto de pandemia, mas também nos abre a perspectiva de questionar o que tem sido feito, o que não tem sido feito e o que tem sido orientado para ser feito em termos de direitos educativos para essa população.
O período pandêmico se revela, então, como um momento apropriado para pensar no desafio que será garantir direitos educativos a um crescente número de adultos migrantes e refugiados, proporcionando a elevação dos níveis de competência e habilidades em um momento de turbulência econômica, priorizando, sobretudo, a elaboração de mecanismos e instrumentos de reconhecimento de qualificações e aprendizagens prévias, uma vez que, em geral, como temos visto nos resultados preliminares de nossas pesquisas, esses sujeitos já possuem um alto nível de escolaridade5. Isso, sem dúvidas, facilitaria sua entrada no mercado de trabalho formal e lhes asseguraria direitos sociais.
Por fim, é importante lembrar: ainda que a vida e a saúde estejam acima de qualquer corolário, a Educação é um verdadeiro Direito Humano - firmado, em 1948, na Declaração de Direitos Humanos e, mais tarde, reafirmado numa lista de outros instrumentos legais, todos eles ratificados pela grande maioria do mundo democrático -, e que a negação ou a cessão desse direito ameaça a garantia de todos os outros direitos humanos, tais como a paz, a democracia, o desenvolvimento e a justiça social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de uma breve análise de conjuntura do momento crítico que a humanidade atravessa - a persistente pandemia de Covid-19 -, o objetivo deste artigo foi o de demonstrar como as medidas restritivas da mobilidade humana podem impactar negativamente os migrantes e refugiados, bem como impedir a efetivação de alguns de seus direitos básicos como os direitos educativos, que já encontravam dificuldades para serem implementados antes mesmo do surgimento do novo coronavírus.
É certo que do ponto de vista sanitário, enquanto o vírus continuar circulando com grande potencial de disseminação, haverá a manutenção das restrições à mobilidade humana, com a “permanência do fechamento de fronteiras, em especial, para os fluxos oriundos dos países periféricos” (CAVALCANTI; OLIVEIRA; TONHATI, 2020, p. 379).
É certo também que não há liberdade ou direito fundamental de natureza absoluta, e que, em um contexto de preservação coletiva da vida e da saúde, o direito à mobilidade restará em segundo plano (MARTINI; PESSOA, 2020). Mas é importante relembrar a todo instante o caráter de excepcionalidade dessas limitações, e cuidar para que elas não se tornem solo fértil para medidas restritivas de Direitos Humanos. Aliás, após a pandemia, “a reposição da amplitude e da densidade de certos direitos é, portanto, um bom teste à maturidade jurídica e política dos Estados” (GOMES, 2020, p. 2). Destacamos que, na contramão dos acontecimentos, alguns autores acreditam que “a Covid-19 pode convencer as sociedades que apenas as medidas coletivas, solidárias e universais são capazes de proteger a população dos perigos de epidemia, pobreza e violência” (RUSEISHVILI, 2020, p. 166).
O fato é que, se no início de 2020, o vírus era até então desconhecido, as medidas para a proteção das pessoas que migram e se refugiam não o eram; ou seja, não demandavam nenhuma inovação comparável às tão esperadas vacinas ou, propriamente, à cura da doença pandêmica (NETO; MENACHO, 2020). Conforme afirma Squeff (2020, p. 291), se já houvesse, no Brasil, uma política pública nacional voltada a “coordenar e articular ações setoriais implementadas pelo Poder Executivo federal em regime de cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”, incluindo, igualmente, “a sociedade civil, os organismos internacionais e as entidades privadas”, certamente os migrantes não encontrariam tantas dificuldades para acessar seus direitos.
Ainda que tenhamos diante de nós dois cenários distintos - no primeiro, o impacto esmagador da recessão nas principais economias do mundo, lugares de destino da migração contemporânea, diminuirá a atratividade e o fluxo de pessoas se deslocando; no segundo, uma desaceleração econômica com altos níveis de desemprego, cujo resultado nos países pobres ou em desenvolvimento será brutal e obrigará a busca por novos postos de trabalho e melhores condições de vida, aumentando os deslocamentos -, ainda assim, a “receita” para o acolhimento de migrantes e refugiados inclui o que já conhecemos: políticas públicas adequadas e firmes posicionamentos dos governos “em prol da inclusão social e do seu tratamento como sujeitos de direitos - inclusive, e sobretudo, os sociais”(NETO; MENACHO, 2020, p. 58).
Em relação especificamente aos direitos educativos de migrantes e refugiados adultos - tomando como parâmetro a situação brasileira, em especial daqueles grupos de indivíduos que pesquisamos e que estão na cidade de São Paulo -, acreditamos que o momento seja o de resistir à possível cessação de direitos já adquiridos e de refletir sobre estratégias para ampliar os direitos educativos dessa população. De acordo com os resultados preliminares de nossa pesquisa, para esse público, direitos educativos podem significar também facilidade/gratuidade na validação de diplomas, acesso a cursos de língua portuguesa com certificação oficial e mudança no paradigma de confundir a “diferença” com “deficiência”, além de atuar na erradicação da crença limitante de que o conhecimento de profissionais migrantes, particularmente daqueles vindos de países pobres ou em desenvolvimento, seria incompatível e inferior aos das sociedades receptoras e, portanto, inválidos (GUO, 2015, p. 11-12).
Ainda que haja uma incerteza sobre a evolução da pandemia, direitos educativos são Direitos Humanos e deverão ser efetivados em quaisquer cenários, para quaisquer populações. Portanto, além de buscar um conceito ampliado de EJA (na perspectiva humanista da educação ao longo da vida) - que ultrapasse o mero direito à matrícula e resulte em um currículo relevante e uma gestão democrática -, é necessário reinventar o espaço formativo da escola, cuidando para que a implementação do ensino remoto emergencial não submeta os sujeitos dessa modalidade de ensino, inclusive os migrantes, a novos mecanismos de exclusão.