INTRODUÇÃO
Este artigo aborda a relação entre vínculo de trabalho e adoecimento docente. Nele, são analisadas as licenças para tratamento de saúde dos professores da Rede Estadual de Educação de Minas Gerais (REE/MG) que ocupavam cargos efetivos e designados (temporários), entre 2016 e 2018.
O ingresso no serviço público, por regra, deve ocorrer por meio da aprovação em concurso público (BRASIL, 1988), e isso é válido para todos, inclusive, os professores das redes de ensino públicas, como a REE/MG. Mas há exceções à regra: por exemplo, em Minas Gerais, o instituto da designação prevê que professores designados sejam contratados sem concurso, temporariamente, para substituir professores efetivos enquanto estiverem impedidos de ocupar os cargos (MINAS GERAIS, 1990). O grupo de professores designados, portanto, tem vínculo de trabalho precário, diferentemente do grupo de professores efetivos.
Ao longo das décadas, a designação tem sido amplamente utilizada pelo Estado de Minas Gerais, apresentando, do ponto de vista gerencial, a vantagem de solucionar rapidamente os problemas relacionados à escassez de mão de obra, a um custo, aproximadamente, 35% mais baixo que o gasto com efetivos (ARAÚJO et al., 2019). Todavia, em primeiro lugar, foi declarada a inconstitucionalidade do instituto da designação, quando direcionada a suprir a necessidade de professores, decorrente de cargos vagos, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), a ADI 5.267 (BRASIL, 2015), persistindo apenas a possibilidade de designação para situações transitórias e excepcionais. Para cargos vagos, a solução seria o provimento mediante concurso público, ou, mais recentemente, a contratação temporária, nos termos da recém editada Lei Estadual 23.750, de 23.12.2020 (MINAS GERAIS, 2020). Além disso, a designação também compromete a qualidade da política educacional (AMORIM et al., 2018), e, como será demonstrado, constitui uma forma danosa de precarização do trabalho, já que os professores designados usufruem de menos benefícios do que os efetivos, além de impactar severamente a saúde docente.
Os afastamentos motivados por problemas de saúde dos professores designados da REE/MG se distinguem daqueles dos outros professores, ocupantes de cargos efetivos? Como? São essas as questões que motivaram o desenvolvimento da pesquisa e que serão exploradas neste artigo. Trabalhou-se com a hipótese inicial de que, na REE/MG, os professores designados eram mais suscetíveis à licença para tratamento de saúde do que os professores efetivos, pois a precariedade do vínculo contribuiria para maior adoecimento.
Os dados quantitativos necessários para a compreensão do fenômeno foram obtidos no Núcleo de Informações Estatísticas em Gestão de Pessoas da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais (Seplag/MG) (MINAS GERAIS, 2019). O período analisado se estende de 2016 a 2018, porque, a partir de 2015, o lançamento das informações é efetuado por Cadastro de Pessoa Física (CPF), o que melhorou consideravelmente o registro dos eventos e a confiabilidade do bando de dados.
Também foram realizadas algumas entrevistas semiestruturadas, com o intuito de entender o fenômeno em questão. Entrevistaram-se dois professores designados e dois professores efetivos da REE/MG (Professor Entrevistado A, 2019; Professor Entrevistado B, 2019; Professor Entrevistado C, 2019; Professor Entrevistado D, 2019), assim como um psicólogo peritos da Superintendência Central de Saúde do Servidor, órgão da Seplag/MG (Psicólogo Perito Entrevistado, 2019). Essas entrevistas auxiliaram a ler criticamente os dados quantitativos, obtidos na Seplag/MG, após eles passarem pela análise descritiva básica.
OS PROFESSORES DESIGNADOS DA REE/MG: SERVIDORES PÚBLICOS “DE QUINTA CATEGORIA”
Di Pietro (2013) define o servidor público como a pessoa física que presta serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta. Dessa forma, do seu ponto de vista, os servidores estatuários, os empregados públicos e os servidores temporários estariam abarcados pela terminologia “servidor público”. Já Carvalho Filho (2013) entende que servidor público é apenas o servidor estatutário. Na literatura, essas são as duas definições para a expressão. Este trabalho adota, no entanto, a primeira conceituação apresentada, aquela proposta por Di Pietro (2013).
Os servidores estatutários são os que estão sujeitos ao regime estatutário. Esse regime é estabelecido por uma lei, denominada “estatuto”, em que estão disciplinadas todas as regras dessa relação jurídica, bem como os direitos e deveres dos servidores (CARVALHO FILHO, 2013).
Os empregados públicos, por sua vez, são os contratados sob a ótica do regime trabalhista para ocuparem empregos públicos. Diferentemente do que ocorre no regime estatutário, a relação dos empregados públicos com a Administração tem natureza contratual, ou seja, o Estado e o servidor celebram um contrato bilateral, nos mesmos moldes adotados nas relações privadas. A norma que regula essa relação, em todos os níveis da federação, é a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) (CARVALHO FILHO, 2013).
Por fim, os servidores temporários são os contratados por tempo determinado, para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público, exercendo função pública não vinculada a cargo ou emprego (DI PIETRO, 2013). Essa modalidade, também conhecida como “regime especial”, encontra previsão no artigo 37, inciso IX da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988). Carvalho Filho (2013) enumera três exigências para que o regime especial possa ser utilizado: determinabilidade temporal da contratação, temporariedade da função e excepcionalidade do interesse público. A determinabilidade temporal da contratação significa que os contratos firmados nesse regime devem ter prazo determinado, diferentemente do que ocorre nos regimes estatutário e trabalhista. Já a temporariedade da função significa que a necessidade dos serviços deve ser temporária. Caso a necessidade fosse permanente, então, o Estado não deveria utilizar o regime especial para a contratação, e sim os outros regimes. Percebe-se, na prática, no entanto, que esse pressuposto não tem sido observado, e a Administração têm efetuado contratações temporárias para funções que são permanentes, como se demonstrará adiante. A excepcionalidade do interesse público, finalmente, impossibilita que situações administrativas comuns ensejem esse tipo de contratação. Carvalho Filho (2013, p. 611) afirma: “excepcionalidade do interesse público corresponde à excepcionalidade do próprio regime especial”.
O artigo 37, inciso II, da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) é taxativo e determina que
a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
O concurso público, dessa maneira, é regra geral para se ingressar no serviço público, e seu alcance deve ser alargado o mais amplamente possível, abarcando a Administração Direta e Indireta, pessoas jurídicas de direito público e pessoas jurídicas de direito privado (CARVALHO FILHO, 2013).
Entretanto, o artigo 37, inciso IX, da Constituição (BRASIL, 1988) permitiu que se contratasse “servidores temporários”, como já mencionado anteriormente. E Minas Gerais foi além: no Estado, a Lei n.º 10.254, de 20 de julho de 1990 (MINAS GERAIS, 1990), expandiu a possibilidade de contratação temporária e criou uma nova modalidade de contratação temporária, a designação. Esse foi o caminho legal para que professores designados pudessem ser contratados.
Art. 10. Para suprir a comprovada necessidade de pessoal, poderá haver designação para o exercício de função pública, nos casos de:
I- substituição, durante o impedimento do titular do cargo;
II- cargo vago, e exclusivamente até o seu definitivo provimento, desde que não haja candidato aprovado em concurso público para a classe correspondente.
§ 1º A designação para o exercício da função pública de que trata este artigo somente se aplica nas hipóteses de cargos de:
a) Professor, para regência de classe, Especialista em Educação e Serviçal, para exercício exclusivo em unidade estadual de ensino;
b) Serventuários e Auxiliares de Justiça, na forma do art.7º, parágrafo único, da Lei nº 9.027, de 21 de novembro de 1985, e art. 7º, § 1º, da Lei nº 9.726, de 5 de dezembro de 1988.
§2º Na hipótese do inciso II, o prazo de exercício da função pública de Professor, Especialista em Educação e Serviçal não poderá exceder ao ano letivo em que se der a designação.
§3º A designação para o exercício de função pública far-se-á por ato próprio, publicado no órgão oficial, que determine o seu prazo e explicite o seu motivo, sob pena de nulidade e de responsabilidade do agente que lhe tenha dado causa.
§4º Terá prioridade para designação de que trata o inciso I deste artigo o candidato aprovado em concurso público para o cargo, observada a ordem de classificação.
§5º A dispensa do ocupante de função pública de que trata este artigo dar-se-á automaticamente quando expirar o prazo ou cessar o motivo da designação, estabelecido no ato correspondente, ou, a critério da autoridade competente, por ato motivado, antes da ocorrência desses pressupostos (MINAS GERAIS, 1990).
A REE/MG tem uma quantidade enorme de professores designados. Amorim et al. (2018) verificaram a distribuição dos cargos de professor dessa rede de ensino, demonstrando que, entre 2009 e 2014, a quantidade de cargos efetivos de professor reduziu de 72.428 para 49.107, enquanto a quantidade de designados só aumentou, saltando de 34.955 para 66.230. Os cargos efetivados de professor também sofreram uma queda considerável ao longo do período analisado, e reduziram de 62.766 para 50.4711 . Amorim e Salej (2019) atualizaram essas informações recentemente. De acordo com as autoras, em outubro de 2018, os cargos de professor da REE/MG se encontravam organizados da seguinte maneira: 76.690 efetivos; 89.447 designados e 3.213 efetivados. Ocorreu, então, um aumento significativo no número de cargos efetivos, mas também no de designados, ao mesmo tempo que os cargos efetivados, praticamente, desapareceram.
A situação é tal que se fala em “superdesignação” de professores na REE/MG. “Compreende-se por ‘superdesignação’ (...) a presença massiva e distante do que é preconizado pelo Plano Nacional de Educação (PNE) de cargos temporários de professor na composição do corpo docente de uma rede de ensino” (AMORIM; SALEJ, 2019, p.5). Segundo a primeira estratégia da Meta 18 do PNE, o percentual de professores efetivos de uma rede de ensino pública deveria equivaler, atualmente, a, pelo menos, 90% (BRASIL, 2014). Em outubro de 2018, na REE/MG, todavia, apenas 45,3% dos cargos de professor eram efetivos (AMORIM; SALEJ, 2019).
Essa “superdesignação” gera algumas distorções. Ao discorrer sobre o instituto da designação, Maia (2015, p.26) aponta que
Não se estabelece interstício para recontratação de servidor temporário admitido anteriormente; não é fixado requisito como a dotação orçamentária específica, mediante prévia autorização do Secretário de Estado da entidade contratante; tampouco se determina prazo para realização de concurso público.
Magalhães (2005) afirma que, por vezes, a Administração Pública emprega os designados, em vez de nomear candidatos aprovados em concurso público - sem dúvida, isso é uma afronta aos princípios da isonomia e eficiência, uma vez que o concurso público permite a nomeação dos melhores candidatos, escolhidos por um processo de premiação do mérito. Outra disfunção elencada pelo autor consiste na contratação, por tempo determinado, dos servidores da área educacional, no período de fevereiro a dezembro.
Essas distorções podem ser melhor verificadas com base na análise do leque de direitos dos professores efetivos, em face daqueles dos professores designados. Analisando o Manual do Secretário Escolar (MINAS GERAIS, 2014), elaborado pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG), é possível observar as orientações relativas à concessão de benefícios para os professores. Percebe-se que os designados ostentam alguns benefícios, no entanto, muito aquém dos benefícios ostentados por ocupantes de cargos efetivos. Entre os 37 benefícios listados no referido manual, os professores designados têm acesso a apenas oito: 1) Abono Família; 2) Afastamento por Motivo de Casamento; 3) Afastamento por Motivo de Luto; 4) Licença Maternidade; 5) Licença para Tratamento de Saúde; 6) Licença Paternidade; 7) Gratificação de Educação Especial; e 8) Gratificação de Função de Vice-diretor. Os benefícios dos professores, que constam no Manual do Secretário Escolar, são explicitados no Quadro 1.
Essa discrepância na concessão de direitos impacta, verdadeiramente, o sistema público educacional. Por exemplo, alguns dos benefícios2 dos professores efetivos favorecem o investimento contínuo em sua formação, e um incremento da escolaridade docente e mesmo a participação em cursos livres tende a assegurar uma educação pública de melhor qualidade.
Apesar das distorções e disfunções observadas, o instituto da designação tem sido amplamente utilizado na REE/MG, conforme já demonstrado. Algo estranho, uma vez que ele deveria ser usado apenas em situações excepcionais. Na teoria, o concurso público é regra; na prática, no entanto, ao se observar a realidade, percebe-se que o concurso público se tornou exceção, em detrimento da designação. Situação muito preocupante, considerando que, para além dos efeitos nocivos da designação, o STF, no julgamento da ADI 5.267, reafirmou a jurisprudência de que o cargo público deve ser ocupado por servidores aprovados em concurso público, e declarou a inconstitucionalidade parcial do artigo 10 da Lei estadual 10.254/1990. Isso significa que a SEE/MG terá de encontrar uma solução para a “superdesignação” no curto prazo.
Amorim et al. (2018) apresentam algumas hipóteses explicativas para o quadro de “superdesignação” na REE-MG. Em primeiro lugar, as autoras sugerem que a questão financeira é um fator relevante, considerando que o professor efetivo é muito mais custoso aos cofres públicos do que o professor designado3 . De fato, em atenção à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e à crise enfrentada, atualmente, pelo Estado de Minas Gerais, a reversão do quadro via abertura de concurso público é difícil. Outra hipótese explicativa da “superdesignação” de professores na REE/MG, apontada por Amorim et al. (2018), é de natureza gerencial: trata-se de um fenômeno construído ao longo de décadas, ou seja, fruto de uma série de decisões de gestão, instituídas ao longo de sucessivos governos, e , à medida que ele foi se desenhando, foi se tornando cada vez mais definitivo. Por fim, as autoras elaboraram uma hipótese explicativa sociológica, relacionando a “superdesignação” de professores na REE/MG a um descaso com a educação das camadas populares e ao direito à educação pública, gratuita e de qualidade, da parte dos nossos governantes. “O governo não investiria na constituição de um corpo docente permanente levando em conta o nível socioeconômico dos alunos da escola pública? (...) Seria possível pensar na existência de uma escola pobre para os pobres?” (AMORIM et al., 2018, p. 15).
O ADOECIMENTO DOS PROFESSORES DESIGNADOS DA REE/MG: MENOR QUANTIDADE DE LICENÇAS, MAIOR QUANTIDADE DE DIAS DE AFASTAMENTO
Oliveira (2004) associa o processo de precarização do trabalho docente ao processo de universalização do ensino, tal como ele ocorreu. Reduzir as desigualdades sociais, a partir da expansão do acesso à escola: esse foi o compromisso assumido na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em 1990, em Jomtien. Tal compromisso impôs aos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, a construção de estratégias de gestão e financiamento para aumentar o número de matrículas, sem aumentar na mesma proporção o volume de recursos aplicados. Ao realizar, dessa forma, a ampliação da educação básica, precarizou-se o trabalho docente. Isso porque foi necessário restruturá-lo, ampliando e muito as responsabilidades dos professores, mas também flexibilizar e até mesmo desregulamentar a legislação trabalhista. Na verdade, “(...) assim como o trabalho em geral, também o trabalho docente tem sofrido relativa precarização nos aspectos concernentes às relações de emprego. O aumento dos contratos temporários (...), o arrocho salarial, o [des]respeito a um piso salarial nacional, a inadequação ou mesmo ausência, em alguns casos, de planos de cargos e salários, a perda de garantias trabalhistas e previdenciárias oriunda dos processos de reforma do Aparelho de Estado têm tornado cada vez mais agudo o quadro de instabilidade e precariedade do emprego no magistério público” (OLIVEIRA, 2004, 1140).
Cortez et al. (2017) encaram a saúde dos professores como um tema relevante de pesquisa, considerando que, por um lado, observa-se um crescimento e um agravamento do adoecimento dos docentes relacionado às atividades que eles desempenham profissionalmente e, por outro, observa-se também a implementação de poucas ações pelo Estado com o objetivo de promover a saúde dos professores. Ao realizarem uma revisão de literatura, os autores concluíram, justamente, que a intensificação da jornada de trabalho e a desarticulação das políticas públicas educacionais ensejam e sustentam um ciclo de adoecimento físico e mental dos professores, que acarreta, sobretudo, sofrimento, desestruruturação psíquica e problemas vocais.
A precarização do trabalho docente, que, conforme defende Oliveira (2014), inclui a precarização do vínculo de trabalho dos professores e está relacionada com a universalização do ensino da forma como ela se deu, tem, portanto, segundo Cortez et al. (2017), efeitos negativos sobre a saúde docente. Universalização do ensino sob determinado molde, precarização do trabalho docente e adoecimento dos professores são processos, portanto, que devem ser pensados em conjunto.
O adoecimento dos professores é um assunto recorrente na literatura e a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) classifica a profissão de professor como uma das mais desgastantes e de alto risco para a saúde física e mental, segundo Forattini e Lucena (2015). Baseado em dados coletados em vários órgãos de saúde do servidor e perícia médica, Nabuco (2016) identifica que as enfermidades mentais e as comportamentais são os principais motivos de afastamento de professores para tratamento de saúde. A autora cita o estresse, a Síndrome de Burnout4 e o mal-estar docente como doenças predominantes; somente posteriormente, os transtornos físicos. Entre os professores, os problemas físicos mais usuais são os relacionados à voz e aos distúrbios osteomusculares, concernentes ao trabalho.
Um estudo de Campos (2015) ‒ sobre o adoecimento dos professores da Universidade Federal do Pará (UFPA) ‒ corrobora os resultados apresentados por Nabuco (2016). Entre 2006 e 2010, 14,13% dos pedidos de afastamento docente, na UFPA, foram motivados por problemas de saúde mental, tal como tem sido observado em outras universidades brasileiras. Isso ocorre porque as condições de trabalho, a que os profissionais estão sujeitos, contribuem, verdadeiramente, para o adoecimento - sendo que, quanto mais precárias as condições de trabalho, maior seria o adoecimento, e o ensino básico oferece, normalmente, piores condições para os professores do que o ensino superior.
A intensificação da jornada de trabalho é um elemento central de discussão em diversos estudos sobre a temática do adoecimento dos professores, como o de Nabuco (2016), já mencionado. Neste artigo, o foco, no entanto, não é a intensificação da jornada, mas a precarização do vínculo de trabalho docente e seus efeitos sobre a saúde dos profissionais. Trata-se de associação aparentemente menos estudada, possivelmente em função da dificuldade de se ter acesso à dados que possibilitam investiga-la5.
O adoecimento dos professores gera licenças para tratamento de saúde; isso é fato. Mas qual a quantidade total dessas licenças entre os professores da REE/MG, em 2016, 2017 e 2018? Há variação na quantidade de licenças, comparando os professores efetivos e os designados? E qual a quantidade total de dias de licença para tratamento de saúde dos professores, nesses três anos, na REE/MG? Há variação na quantidade de dias de licença, entre professores efetivos e designados? Essas foram as questões que nortearam o desenvolvimento da pesquisa. Trabalhava-se com a hipótese que os professores designados, pelo fato de possuírem vínculo de trabalho precário, adoeceriam mais do que os professores efetivos.
No banco de dados do Núcleo de Informações Estatísticas da Seplag/MG (MINAS GERAIS, 2019), foi possível extrair a quantidade de afastamentos por motivo de saúde total e por tipo de vínculo de trabalho dos professores. Em 2016, ocorreram 104.355 licenças para tratamento de saúde ao todo; em 2017, 110.133; e, em 2018, 109.970. Em 2016, 52.270 ocorrências de licença para tratamento de saúde envolviam professores efetivos, enquanto 52.085 envolviam professores designados. Já em 2017, foram 58.142 ocorrências de licença para tratamento de saúde, envolvendo professores efetivos, e 51.142, envolvendo professores designados. Finalmente, em 2018, 59.547 ocorrências de licença para tratamento de saúde diziam respeito a professores efetivos, e 50.423, a professores designados (Tabela 1)6.
Situação Funcional | Eventos de LTS | ||
---|---|---|---|
2016 | 2017 | 2018 | |
Efetivos | 52.270 | 58.142 | 59.547 |
Designados | 52.085 | 51.991 | 50.423 |
Total | 104.355 | 110.133 | 109.970 |
Fonte: MINAS GERAIS, 2019.
Elaboração dos autores.
Cruzando as informações contidas na Tabela 1 com o quantitativo de cargos de professores efetivos e designados em 2016, 2017 e 20187 , já que esse quantitativo também estava disponível no banco de dados do Núcleo de Informações Estatísticas da Seplag/MG (MINAS GERAIS, 2019), é possível verificar a média de eventos de licença para tratamento de saúde por cargo efetivo e designado de professor, ao longo desses três anos. Em 2016, cada professor efetivo se afastou por motivo de adoecimento, em média 0,73. Essa média se manteve, praticamente, constante, em 2017 (0,77) e 2018 (0,76). Ao verificar a situação dos professores designados, percebe-se que a média de eventos de licença para tratamento de saúde variou entre 0,49, em 2016; e 0,56, em 2018 (Tabela 2). Não obstante, esses valores estão abaixo daqueles dos efetivos.
Situação Funcional | Média de Eventos de LTS por Servidor | ||
---|---|---|---|
2016 | 2017 | 2018 | |
Efetivos | 0,73 | 0,77 | 0,76 |
Designados | 0,49 | 0,55 | 0,56 |
Fonte: MINAS GERAIS, 2019.
Elaboração dos autores.
No banco de dados do Núcleo de Informações Estatísticas da Seplag/MG (MINAS GERAIS, 2019), também foi possível verificar a data inicial e a data final de cada licença para tratamento de saúde dos professores da REE/MG, em 2016, 2017 e 2018, o que permite afirmar a duração de cada um desses eventos e, consequentemente, a quantidade total de dias de afastamento por motivo de adoecimento. A quantidade de dias de licença para tratamento de saúde, entre os professores efetivos, no período analisado, equivale à: 1.040.163 em 2016; 1.066.870 em 2017; e 1.106.208 em 2018. Já a quantidade de dias de licença para tratamento de saúde entre os professores designados, no período analisado, equivale a: 1.341.143 em 2016; 1.322.729 em 2017; e 1.336.660 em 2018. Enfim, a quantidade de dias de licença para tratamento de saúde entre os professores em geral, no período analisado, equivale a: 2.381.306 em 2016; 2.389.599 em 2017; e 2.442.868 em 2018 (Tabela 3).
Situação Funcional | Dias de LTS | ||
---|---|---|---|
2016 | 2017 | 2018 | |
Efetivos | 1.040.163 | 1.066.870 | 1.106.208 |
Designados | 1.341.143 | 1.322.729 | 1.336.660 |
Total | 2.381.306 | 2.389.599 | 2.442.868 |
Fonte: MINAS GERAIS, 2019.
Elaboração dos autores.
Cruzando as informações contidas na Tabela 3 com aquelas da Tabela 1, é possível extrair a quantidade média de dias de afastamento por licença para tratamento de saúde de professores efetivos e designados da REE/MG. Essa média, entre os efetivos, é de: 19,90 em 2016; 18,35 em 2017; e 18,58 em 2018. Entre os designados, por sua vez, ela é bem mais alta de: 25,75 em 2016; 25,44 em 2017; e 26,51 em 2018 (Tabela 4).
Situação Funcional | Média de dias por LTS | ||
---|---|---|---|
2016 | 2017 | 2018 | |
Efetivos | 19,90 | 18,35 | 18,58 |
Designados | 25,75 | 25,44 | 26,51 |
Fonte: MINAS GERAIS, 2019.
Elaboração dos autores.
A Tabela 1 e a Tabela 2 informam que os professores efetivos da REE/MG usufruem mais licenças para tratamento de saúde do que os professores designados. Uma análise apressada desse fato poderia deduzir que, contrariando a hipótese inicial desse estudo, os professores efetivos adoecem mais do que os professores designados. Mas as tabelas 3 e 4 demonstram, justamente, que, embora os professores designados da REE/MG utilizem menos licenças para tratamento de saúde do que os professores efetivos, a quantidade de dias de afastamento por licença para tratamento de saúde é maior - em outras palavras, na REE/MG, as licenças para tratamento de saúde dos professores designados são mais longas do que as dos professores efetivos. Esse é um forte indicativo de que os professores designados padecem de adoecimentos de maior gravidade do que os professores efetivos, o que corrobora a hipótese inicial deste estudo, em termos.
Conforme anunciado na introdução do artigo, foram realizadas cinco entrevistas com atores centrais ‒ para a melhor compreensão do adoecimento entre professores efetivos e designados da REE/MG, com base nas licenças para tratamento de saúde, a saber: dois professores efetivos da rede (Professor Entrevistado C, 2019; Professor Entrevistado D, 2019) e dois professores designados da rede (Professor Entrevistado A, 2019; Professor Entrevistado B, 2019); e um psicólogo perito (Psicólogo Perito Entrevistado, 2019), da Superintendência Central de Saúde do Servidor, órgão da Seplag/MG. Essas entrevistas forneceram uma série de informações importantes.
Quatro dos cinco entrevistados, os dois professores designados, um professor efetivo e o psicólogo perito afirmaram que os designados têm uma insegurança oriunda do vínculo precário de trabalho. Por esse motivo, eles, quando doentes, demorariam mais a recorrer às licenças para tratamento de saúde. Nas palavras do Professor Entrevistado B, “tirar licenças é o último recurso” (Professor Entrevistado B, 2019). Dois dos professores entrevistados pontuaram que tinham receio de tirar licenças para tratamento de saúde, porque, se o fizessem, os seus contratos de designação poderiam não ser renovados. Inclusive, um desses dois professores relatou que, no momento da designação presencial, insinuaram que licenças poderiam atrapalhar uma próxima designação. E “apesar de ninguém dar ordem para que se evitem licenças, sabemos que, entre dois professores, o que tira menos licenças tem mais chances de ser escolhido [em um processo de designação]”, afirma o Professor Entrevistado A. Trata-se de algo que, segundo os professores designados entrevistados, é dito abertamente nas conversas informais entre designados: é preciso evitar as licenças. Como consequência, os dois professores designados entrevistados admitiram já ter trabalhado doentes, para não dificultar ou comprometer futuras designações. Segundo o Professor Entrevistado B, “quando estou doente, é mais comum eu ir trabalhar do que ir ao médico. Realmente, tento evitar algumas licenças (...)”.
O Professor Entrevistado C, que ocupava cargo efetivo, mas já havia passado pela designação, foi taxativo, diante dos números que lhe apresentamos:
(...) esse dado [a quantidade maior de licenças para tratamento de saúde dos professores efetivos, em relação aos designados] deve ser visto com cuidado. Já fui designado e sei da insegurança desse tipo de vínculo. Após ser aprovado no concurso, eu pude dar mais atenção a minha saúde. Afinal, o trabalho de professor é muito desgastante e, realmente, adoecemos (Professor Entrevistado C, 2019).
Em outras palavras, não é que o professor designado adoeça menos, e sim que ele evita tirar licença para tratamento de saúde, apesar da necessidade, tendo em vista a insegurança da continuidade do vínculo de trabalho.
Não por acaso, então, a Tabela 4 indica que a média de dias de afastamento dos professores designados é muito superior à dos efetivos. Dois seriam os motivos principais desse fato. Em primeiro lugar, constatou-se que o designado encara a licença para tratamento de saúde como último recurso, com receio de que ela dificulte ou impeça futuras designações. Dessa forma, quando o faz, a enfermidade é ou está mais complexa e difícil de curar. Nas palavras do psicólogo perito entrevistado, “os designados, pela sua insegurança, demoram mais a tirar licenças, e, quando eles resolvem tratar da saúde, é possível que a doença esteja mais avançada” (Psicólogo Perito Entrevistado, 2019). Especificamente em relação às doenças psíquicas, ele argumenta:
quase todos os dias, os psicólogos peritos têm de afastar professores designados por motivos psíquicos. Depressão e Síndrome de Burnout são exemplos de doenças que geram licenças enormes. O professor vai renovando as licenças e, no final do ano, há professores que ficaram 100, 200, 300 dias afastados (Psicólogo Perito Entrevistado, 2019).
O segundo motivo principal ‒ para a média de dias de licença para tratamento de saúde ser maior entre professores designados do que efetivos ‒ pode ser relacionado com as piores condições de trabalho às quais estão expostos, em comparação com os professores efetivos. O próprio medo de adoecer e precisar se afastar ou, estando doente, o medo de não suportar e precisar se afastar, que assola somente os professores designados é, segundo o psicólogo perito entrevistado, fruto da violência psicológica sofrida por esses professores - “Sem dúvida, o que está ocorrendo com os professores designados é violência psicológica” (Psicólogo Perito Entrevistado, 2019). Trata-se de algo que diz respeito ao vínculo de trabalho precário e que determina não somente como se lida com a questão das licenças para tratamento de saúde, mas toda a vida do sujeito, inclusive, a sua saúde física e mental.
A pesquisa corrobora, dessa forma, com a tese de outros autores, como, por exemplo, aqueles considerados por Cortez et. (2017) na sua revisão de literatura, segundo os quais a precarização do trabalho docente tem impactos negativos sobre a saúde dos professores. A pesquisa analisou, no entanto, uma única faceta desse processo de precarização, faceta essa destacada por Oliveira (2004): a precarização do vínculo de trabalho docente. E, ao optar por tal recorte, demonstrou que a precarização do vínculo de trabalho possui um impacto negativo específico sobre a saúde dos professores. Enfrentar o problema do adoecimento docente impõe, portanto, também encontrar outra solução de gestão e financeira para sustentar a universalização do ensino, que não passe pela flexibilização dos direitos de natureza trabalhista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS8
Este estudo abordou a relação entre vínculo de trabalho e adoecimento docente, na REE/MG. Pela análise dos dados quantitativos, constatou-se que os professores designados, detentores de vínculo de trabalho precário, recorrem menos à licença para tratamento de saúde. Mas, quando o fazem, seus afastamentos são mais duradouros. Foi refutada, dessa forma, a hipótese inicial de que as licenças para tratamento de saúde ocorreriam em maior número entre os designados. Mas, de certo modo, foi confirmada a ideia de que a precariedade do vínculo contribui para o adoecimento docente.
O estudo ressalta, portanto, mais um efeito danoso da designação. Esse instituto implica uma precarização do trabalho, culminando em pagamentos de valores salariais inferiores, comparativamente à média praticada entre os efetivos, e em um esvaziamento de direitos e benefícios laborais. Além disso, ele ainda demonstra mais um aspecto nefasto: os professores designados têm receio de recorrer à licença para tratamento de saúde e, em função disso, não serem designados futuramente. Por isso, o número de licenças entre os designados é menor do que entre os efetivos. E, ao que tudo indica, pela demora em recorrer à licença para tratamento de saúde, o quadro clínico dos professores designados se agrava. Em parte, por isso, o número de dias de licença entre os designados é maior do que entre os efetivos.
É evidente que medidas precisam ser providenciadas a fim de intervir no quadro de “superdesignação” que existe na REE/MG, para, entre outros, diminuir o adoecimento dos professores e ainda, buscar soluções para a necessidade de pessoal, uma vez que o STF, em decisão recente, datada de 15.04.2020, na ADI 5267, reconheceu a inconstitucionalidade do uso da designação para cargos vagos, cabendo para tanto, a contratação temporária, regulamentada pela Lei Estadual 23.750, de 23.12.2020, como substituto da designação em tais casos, mas com o mesmo teor precário dela.