INTRODUÇÃO
A complexidade que envolve o curso de Pedagogia no Brasil se exprime em questões relativas ao percurso histórico de construção da sua expressão acadêmica, marcado por indefinições e recorrente crise identitária, à fragilidade da relação assumida com o seu campo teórico de referência, a própria Pedagogia como ciência, e às pressões - cada vez mais agudas - de ideologias hegemônicas na sociedade capitalista. Sob esses complexos fatores de contexto e de compreensão teórico-conceitual, o curso atravessa oito décadas acumulando desafios para constituir-se como lócus de formação de pedagogos/as para processos formativos escolares e não escolares e de produção de conhecimento sobre o fenômeno educacional. Uma abordagem crítica em torno desses desafios demanda considerações que se pautem pela análise da historicidade do curso, portanto no movimento dialético entre desafios e possibilidades que conferem sentido e relevância à sua existência e à sua manutenção no contexto acadêmico brasileiro, e pelo estudo das suas relações com as teorias pedagógicas, síntese de proposições que orientam os modos de pensar e fazer em educação.
A partir desses pressupostos, o presente artigo examina o panorama da Pedagogia no Brasil, focalizando tensionamentos na demarcação do(s) seu(s) lugar(es) como ciência, curso e profissão. Como ciência, a Pedagogia é atravessada por dilemas epistemológicos que incidem na forma pela qual se produz o conhecimento pedagógico e seus usos sociais. À Pedagogia como curso impõem-se demandas plurais de formação de educadores/as escolares e não escolares em um contexto de intensificação da agenda mercadológica na definição de suas finalidades. Todavia, como profissão, possui um estatuto fragilizado por representações que a restringem à esfera do magistério na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e, mais ainda, a habilidades de execução de prescrições normatizadas por organismos de gestão das instituições escolares.
Em sua tríplice constituição, a Pedagogia se configura como um saber e uma prática fundamentalmente necessária à humanização do sujeito na busca permanente pela transformação das condições sociais de sua existência individual e coletiva. Ampliar o sentido do pedagógico para além do instrucional e assumir a complexidade do curso de Pedagogia diante da pluralização de práticas educativas dentro e fora das escolas, e para além da sala de aula, preservando finalidades formativas contrapostas ao reducionismo neoliberal, são alternativas para reposicionar a Pedagogia no Brasil.
Ao tomar por base considerações epistemológicas, formativas e profissionais que demarcam a problemática da Pedagogia no Brasil, este texto deflagra reflexões sobre as relações entre o pensamento pedagógico e a formação no curso de Pedagogia; sobre a dilemática que envolve a definição das finalidades formativas e a organização curricular desse curso; e ao status de reconhecimento da Pedagogia como campo de referência para a produção de conhecimento da e para a educação no contexto da pós-graduação em Educação.
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
Como uma atividade específica desenvolvida entre os seres humanos, a educação possui finalidades que se desdobram na socialização do sujeito no contexto cultural que lhe é pre-existente e na sua constituição subjetiva, como sujeito que se constrói, individualmente, na relação com os outros, coletivamente. Assim como a educação pode operar na direção da conservação social, também pode instituir possibilidades de transformar a sociedade, com base na crítica às estruturas e dinâmicas pré-existentes.
Paulo Freire discute que “não se pode encarar a educação a não ser como um quê fazer humano [...] que ocorre no tempo e no espaço, entre os homens e uns com os outros” (1997, p. 1). Compreendemos que aos processos educativos compete desenvolver capacidades nos sujeitos para, a partir dessa relação dialógica com os outros, transformarem as condições de existência individual e coletiva, refletindo acerca dos determinantes sociais que produzem situações de des-humanização. Assim, a educação, como prática social de humanização, necessita ser concebida em suas relações com tais determinantes, com vistas a superá-los.
Como ciência, a Pedagogia assume o princípio fundador de estudar a prática educativa em seus contextos e múltiplas determinações para equipar os sujeitos, profissionais da educação, incluindo professores/as e pedagogos/as, na perspectiva de promoção de uma educação humanizadora. Isso significa que o objeto da ciência pedagógica é a educação que se manifesta em diferentes modalidades e contextos. Para compreendê-lo e nele intervir, a Pedagogia constrói seu objeto no diálogo com outras ciências que também se debruçam sobre a complexidade do humano, orientando-se à investigação das finalidades, dos saberes, dos métodos, dos sujeitos e dos contextos educativos, assim como seus próprios procedimentos investigativos.
Desse modo, o objeto da Pedagogia é a educação como processo de formação da condição humana. Sua abordagem teórica busca concebê-lo em sua dimensão concreta, em sua historicidade, considerando as contradições nas quais se insere. Em função do seu caráter de práxis, constitui-se como campo de produção teórica socialmente engajada, pois o conhecimento pedagógico manifesta uma dimensão explicativa, mas também propositiva, articulando-se ao trabalho dos/as educadores/as, ressignificando-se a partir da dialética entre pensamento e ação. Para os/as educadores/as, a Pedagogia deve oferecer perspectivas analíticas em torno da complexidade da educação como prática que se contextualiza histórica, social, cultural e institucionalmente, compreendendo a si mesmos/as como profissionais em espaços escolares e não escolares, cuja ação demanda o exercício permanente da crítica das condições materiais que se impõem ao seu exercício profissional e como, por essas mesmas condições, (re)produz-se a negação da educação emancipadora e humanizadora.
Entendemos a ciência como produto da ação humana, portanto histórica. Segundo Sánchez - Gamboa (1989), enquanto construção sempre provisória, a produção científica opera a mediação entre o homem e a natureza, uma forma desenvolvida na relação ativa entre o sujeito e o objeto na qual o ser humano, como sujeito, veicula a teoria e a prática. Nesse sentido, explicitamos a Pedagogia como ciência da educação (que emerge da prática) e para a educação, como unidade dialética que possibilita a práxis, como ação transformadora.
Em uma perspectiva crítico-dialética, a Pedagogia, como ciência, organiza-se em torno da práxis educativa, uma vez que esse processo articula teoria e prática, pensamento e ação, como dimensões mutuamente implicadas em um projeto de transformação social guiada por finalidades civilizatórias.
Nas práticas sociais educativas são expressas as diferentes e mesmo opostas direções de sentido que se imprime à educação. Assim, conforme Freire,
Uma educação só é verdadeiramente humanista se, ao invés de reforçar os mitos com os quais se pretende manter o homem desumanizado, esforça-se no sentido da desocultação da realidade. Desocultação na qual o homem existencialize sua real vocação: a de transformar a realidade. Se, ao contrário, a educação enfatiza os mitos e desemboca no caminho da adaptação do homem à realidade, não pode esconder seu caráter desumanizador (1997, p.11).
Inserindo-se na superestrutura da sociedade, a educação, como prática social, é multiplamente determinada por fatores econômicos, políticos e sociais, de acordo com os contextos históricos, e, como outras instituições, participa do processo de reprodução da ideologia dominante. Entretanto, mediante um enfoque dialético, a Pedagogia pode identificar as contradições existentes na sociedade e criar condições para superação do que opera como mecanismo de des-humanização e marginalização do sujeito.
Como ciência, a Pedagogia apoia-se em uma lógica crítico-dialética para analisar as práticas educativas, evidenciando condições que contradizem o direito humano a aprender, a (trans)formar-se, individual e coletivamente. O estatuto epistemológico da Pedagogia decorre, portanto, do seu compromisso com a transformação das práticas educativas como ação intencional do humano, diferentemente de outras ciências que se restringem a explicar dimensões que lhe são constitutivas. Autores como Wolfdietrich Schmied-Kowarzik (1983), Paulo Freire (1987), Dermeval Saviani (2012) e Celestino Alves da Silva Junior (2017) assumem esse posicionamento epistemológico e político na compreensão sobre o aspecto fundante da Pedagogia.
Compete aos cursos de Pedagogia, ao tomarem por base as teorias pedagógicas, proporcionar aos/às estudantes a problematização do processo educativo e seus determinantes, contradições e possibilidades. Para isso, a pesquisa é um elemento formativo estruturante que permite o estudo científico como fundamento de uma práxis transformadora. É a partir da demanda de analisar para intervir e transformar a prática educativa que a Pedagogia dialoga e mobiliza diferentes conhecimentos, além de produzir o conhecimento pedagógico que é necessário para estruturar os processos de intervenção pelos quais se exerce a práxis dentro e fora das escolas.
PEDAGOGIA NO BRASIL: ENTRE O SURGIMENTO DO PENSAMENTO PEDAGÓGICO E A INSTALAÇÃO DO CURSO DE PEDAGOGIA
A problemática educativa no Brasil se inicia com a vinda dos religiosos jesuítas em 1549 com o propósito de evangelizar e doutrinar povos indígenas, conforme os valores civilizatórios dos colonizadores portugueses. Inicialmente, os religiosos se inseriam nas aldeias e, posteriormente, foram instalando os Seminários para formação de sacerdotes, bem como os Colégios, tendo por base o Ratio Studiorum, criado em 1599 pela Companhia de Jesus. Trata-se de um minucioso manual de funções para os dirigentes e professores, e de organização e administração escolar com prescrições sobre currículo, carga horária, textos, metodologia de ensino, avaliação, premiação e promoção nos colégios jesuíticos. Sem mencionar o termo “pedagogia”, o manual ficou conhecido como a expressão genuína da “pedagogia jesuítica”, ou a “pedagogia tradicional católica”, predominante no país até meados do século XX.
Em 1759, o novo ministro da Coroa Portuguesa, Marquês de Pombal, expulsa os jesuítas do país como parte de seu projeto de modernização da administração do reino e suas colônias, tendo por objetivo aumentar as rendas obtidas por meio da exploração comercial, uma vez que “a educação jesuítica não era oportuna, pois tinha por objetivo servir aos interesses da fé” (SILVA et al, 2018, p. 637). Inspirado por doutrinas iluministas, Pombal instituiu o modelo das aulas régias isoladas de primeiras letras e de letras e humanidades, fragmentado e disperso, no lugar do sistema mais ou menos unificado pelos jesuítas, que se baseava na seriação dos estudos.
No período pombalino, “outras ordens religiosas que já missionavam no Brasil - beneditinos, carmelitas, franciscanos e mercedários - foram assumindo, em diferentes ocasiões, a direção dos colégios e escolas” (KLEIN, 2016, p. 10), no lugar dos jesuítas que retornaram em 1832.
Os colégios jesuítas, e demais colégios católicos, foram precursores da formação identitária dos/as professores/as brasileiros. De início, religiosos missionários foram incorporando leigos à medida em que assumiram a formação de estudantes externos aos seus seminários.
A meta dos colégios era a formação do aluno “nas virtudes e nas letras, ou na fé e na ciência” (KLEIN, 2012, p.149), o que foi configurando a base para a formação docente nos conhecimentos científicos e teóricos aos quais se somavam os preceitos práticos, metodológicos, morais e místicos definidos no Ratio. O trabalho docente foi se constituindo mais como um apostolado do que como atividade remunerada.
No início do século XIX, período dos movimentos pela independência institucionalizada em 1822, o país passou a contar com as “escolas de primeiras letras” (ou instrução primária) sob a responsabilidade do poder público, que tendeu a adotar a formação de professores seguindo o modelo europeu de criação de Escolas Normais. À primeira, em 1835, se seguiram as demais que prevaleceram como exclusivas até 1971, quando a Lei 5692/71 as extinguem com a transferência para o então criado curso de segundo grau como uma das possíveis habilitações profissionais em nível médio (Habilitação Específica para o Magistério - HEM). Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 a formação de professores para atuar nos anos iniciais da escolarização passou a ser recomendada em nível superior, e em 2006 a promulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Pedagogia sacramenta esse curso como o responsável pela formação desses/as professores/as. Assim, o curso de Pedagogia, criado em 1939, que já formava os professores para as Escolas Normais e HEM, dentre outras funções, passou a formar diretamente os/as professores/as para a Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental, como veremos adiante.
A Escola Normal, em seus primórdios, era frequentada apenas por homens devido à forte identificação da atividade docente exercida até então pelos membros do clero religioso. A presença feminina se dará ao longo do século XX e se intensificará a partir dos anos de 1930, quando se amplia, gradativamente, o aumento do número de escolas de ensino primário, impulsionado pelas profundas transformações políticas, econômicas e sociais do país. Com a crise internacional da economia, a sociedade pautada no modelo agrário-rural se industrializou e se urbanizou, configurando a aceleração do capitalismo industrial e novas formas de produção, o que gerou a necessidade de que os operários tivessem cada vez mais o mínimo de instrução qualificada para operar as máquinas. A formação de núcleos urbanos, por sua vez, reclamou uma escolaridade mínima da população, quer para que se colocasse em condições de competir no mercado de trabalho, quer para que pudesse sobreviver na cidade, espaço de dinâmicas sociais mais complexas do que a sobrevivência no campo, quer pela possibilidade que a escolaridade mínima abrisse para o trabalho autônomo (ou não) nas atividades comerciais. É importante destacar que na esteira desse processo haverá grandes fluxos de imigrantes europeus, principalmente italianos e alemães, bem como de orientais, notadamente japoneses que, trazendo de suas culturas a importância da escolaridade, passaram aqui a demandá-la. Esses aspectos impulsionaram o Estado brasileiro a organizar, pela primeira vez e de forma única e centralizada, a educação no país com as Leis Orgânicas do Ensino (1942 - 1946).
Nesse processo, cabe destacar o protagonismo dos intelectuais reunidos no Movimento dos Pioneiros da Educação Nova (1932) que, a partir da década de 1930, instalaram no cenário nacional a defesa da ampliação da escolaridade básica pública, gratuita e laica para toda a população, opondo-se, portanto, ao predomínio da igreja católica, inspirados em movimentos que vinham ocorrendo em países europeus e Estados Unidos da América do Norte.
Um último aspecto a considerar nesse período foi a 2ª. Guerra Mundial. Até então, o Brasil importava tudo, inclusive professores/as de nível superior. A economia da guerra obrigou o país a formar seus/suas profissionais. Sintomaticamente, uma das primeiras universidades brasileiras (Universidade de São Paulo), fundada em 1934, reuniu as então Faculdades de Medicina, Engenharia, Farmácia e Odontologia e Direito, que datavam do século anterior, e criou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), “que, na concepção de seus fundadores, assumia o caráter de alma mater da universidade”, conforme Saviani, (2012, p. 21), e “ligava-se ao objetivo fundamental de criação dessa universidade que era a formação de uma elite dirigente respaldada nos conhecimentos científicos” (idem, p. 24).
O Decreto n. 1190/1939, ao organizar a Faculdade Nacional de Filosofia no país, estruturou-a em quatro seções: Filosofia, Ciências, Letras e Pedagogia, acrescentando, ainda, a de Didática, considerada seção especial, conforme Saviani (2012). As três primeiras abrigavam cada uma um curso. A quarta, de Pedagogia e Didática, passaram a oferecer um curso denominado “Pedagogia”. Na Universidade de São Paulo (USP), a Seção de Educação desapareceu e à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras agregou-se uma quarta seção, denominada “Pedagogia”. Assim, “ao Curso de Pedagogia caberia preparar os/as profissionais aptos/as para as novas exigências legais estabelecidas pelo decreto, ao passo que ao Curso de Didática caberia formar os/as licenciados/as, ou seja, dar aos/às bacharéis/las a formação pedagógica, técnica, profissionalizante”, conforme Bontempi Jr (2011, p. 199). Configura-se, assim, em 1939, o curso de Pedagogia da USP, incorporando o Instituto Pedagógico de São Paulo, então originado de sua Escola Normal, criada em 1846.
A seção de Ciências foi destinada à formação de professores/as para os então Ensino Secundário, para as disciplinas de ciências exatas e naturais (física, matemática, química e ciências naturais). A seção de Letras, para os cursos de letras, filosofia, geografia, história, e línguas vivas. Ao absorver o Instituto de Educação, passou a abarcar a seção de Pedagogia como um departamento que oferecia um curso de bacharelado em Pedagogia para formar “técnicos/as em educação”, (sem que houvesse clareza do que configuraria esse/a profissional), ao qual se somaria a licenciatura com a seção especial de Didática para formar professores/as para o Ensino Normal. A licenciatura também seria oferecida aos/às demais bacharéis/las das outras seções da FFCL.
Assim, os cursos de formação de professores/as no país ficaram configurados no modelo 3+1, sendo 3 anos de bacharelado e 1 de licenciatura. O bacharelado em Pedagogia, diferentemente dos demais, não se voltava aos estudos científicos de sua área (educação e ensino), ficando identificado como curso de formação de professores/as para o magistério. Essa configuração explica, em parte, a fragilidade da Pedagogia como campo epistemológico, teórico, científico e profissional no país.
Os cursos de Pedagogia que haviam sido criados em 1939 sofreram algumas alterações curriculares em 1962. À época, já se esboçava uma tendência de que o curso de Pedagogia deveria assumir a formação de professores/as primários/as em nível superior (o que viria a ocorrer em 2006) e a formação de especialistas em nível de pós-graduação. O Parecer 251/1962, de autoria de Valnir Chagas, realizou pequenas alterações curriculares mantendo a indefinição profissional: o curso formaria professores/as para o Normal, além de história, geografia e matemática (ausentes de seu currículo) para o Ensino Secundário.
O curso de Pedagogia seguiria esse modelo até a aprovação da Resolução do Conselho Federal de Educação n. 02/1969, com base no Parecer 252/1969, de autoria do Conselheiro Valnir Chagas, que buscou equacionar os problemas que estudos e pesquisas, especialmente as realizadas no âmbito do INEP , apontavam: ausência de clareza de foco profissional; formação de professores/as para disciplinas do ensino secundário ausentes na formação; currículo elitista distante da realidade das escolas primárias para as quais formariam na escola normal, dentre outras fragilidades.
Argumentando que a profissão em educação “é uma só e, por natureza, não só admite como exige `modalidades´ diferentes de capacitação a partir de uma base comum” (BRASIL, 1969, p.106), a Resolução n. 02/1969 instituiu o curso de Pedagogia como formação da/o pedagoga/o, com uma base comum e outra diversificada em habilitações: a de Magistério - para formar professoras/es do ensino normal; e as de Orientação Educacional, Administração escolar, Supervisão escolar, Inspeção escolar - para formar especialistas. Sendo a de Magistério obrigatória e as demais optativas, o curso passou a formar, então, professoras/es e especialistas. Poder-se-ia afirmar que essa estrutura foi uma tentativa de superar o caráter generalista do curso. No entanto, conforme Saviani (2012, p. 44), “nem as funções correspondentes aos ‘especialistas’ estavam bem caracterizadas”, conforme admitido por Valnir Chagas que a elaborou, “nem se poderia dar como constituído um mercado de trabalho demandando aqueles profissionais” (idem).
Curiosamente, nesse curso denominado de Pedagogia não se buscava “dar as bases científicas à prática pedagógica, como ocorreu no primeiro momento com o INEP e, no segundo, com as escolas de aplicação, classes experimentais e ginásios vocacionais” (SAVIANI, 2012, p. 53). O espaço acadêmico com estudos teóricos e científicos da Pedagogia ficaria para a pós-graduação em Educação, na visão do Conselheiro Valnir Chagas, o que, de fato, não ocorreu.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional promulgada em 1996 ( ) não alterou substantivamente a Resolução n. 02/1969, mantendo a “base comum nacional” sem explicitar o significado e o conteúdo da Pedagogia para estruturar e sustentar as habilitações que ficaram mantidas. Os debates suscitados por esses resultados “mantiveram oxigenado o campo educacional, tendo reflexos positivos no espaço acadêmico da Pedagogia” (SAVIANI, 2012, p.37).
No período em análise, cabe destacar, conforme Pimenta (2012), que a produção acadêmica na área da Educação foi significativamente impulsionada com a criação, em 1968, dos cursos de pós-graduação na área. Alguns Programas tiveram expressiva contribuição na análise crítica da educação brasileira, privilegiando um referencial marxista e gramsciniano na análise dos problemas educacionais e da escolaridade no país, e configuraram um espaço de resistência à ditadura militar. É desse período a significativa contribuição de Dermeval Saviani, então coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, quando desenvolve, em sua obra Escola e Democracia (SAVIANI, 1983), uma análise crítica sobre as tendências pedagógicas no Brasil (Tradicional; Escolanovista; Tecnicista; Críticas ;), ampliada na obra História das Idéias Pedagógicas no Brasil (SAVIANI, 2007). Amplamente estudadas no país (edições em 2021: a primeira obra na 44ª; a segunda na 6ª), são obras que compõem e sistematizam a Pedagogia como campo teórico- epistemológico no país.
Incorporando as contribuições das várias disciplinas que se ocupavam da educação como a Sociologia, a Antropologia, a Filosofia, a Economia, contraditoriamente, a pós-graduação foi se afastando da Pedagogia como ciência da e para a prática educativa. Esses aspectos acabaram por evidenciar a fragilidade da Pedagogia nos seus próprios cursos, além de uma crise identitária profissional.
Iniciados nos anos 1990, os intensos e acalorados debates em torno da identidade da Pedagogia, do curso de Pedagogia e da profissão de pedagoga/o, prosseguiram no novo século, com vistas a superar as fragilidades da Resolução n. 02/1969 agravadas pela LDB de 1996, tendo no horizonte a formulação de novas diretrizes. Dois grupos de educadoras/es, então, opuseram-se: o que defendia a Pedagogia como um campo teórico-científico próprio e o curso para formar pedagogas/os para se inserirem profissionalmente nos espaços sociais da práxis educativa; e o grupo das/os que defendiam a Pedagogia como um curso de licenciatura para formar professoras/es para a Educação Infantil e os Anos Iniciais do Ensino Fundamental (antigo primário), principalmente, e para a gestão educacional nos sistemas e instituições de Educação Básica. O primeiro grupo, formado por pesquisadoras/es da educação, entende a Pedagogia como base da formação da/o pedagoga/o, incluindo para o exercício da docência. Para as/os integrantes do segundo grupo, reunidas/os no movimento de educadores que se denominou Associação Nacional dos Profissionais da Educação (ANFOPE), a docência é a base da formação da/o pedagoga/o. Essa propositura acabou por ser majoritária na configuração do novo curso de Pedagogia instituído pela Resolução n. 02 de 2006 (BRASIL, 2006), tendo a docência como base e o curso como licenciatura para formar, prioritariamente, professoras/es para a Educação Infantil e os Anos Iniciais do Ensino Fundamental e para a gestão educacional na Educação Básica.
Opostos/as a essa perspectiva, o grupo de pesquisadoras/es, conforme Saviani, apresentava-se preocupado em “compreender a identidade e especificidade da Pedagogia tanto pelo aspecto epistemológico, isto é, pelo seu caráter teórico-científico, como pelo aspecto prático-organizacional, ou seja, pelo seu caráter de curso destinado à formação de educadores” (2012, p. 53), pedagogas/os e professoras/es. Opondo-se à fragilização do curso e de sua (quase) redução à formação de professores/as, suas pesquisas foram publicadas em livros que contam com inúmeras edições, conforme Saviani (2012): Pedagogia, ciência da Educação? (PIMENTA, 1996), que atingiu a 6ª edição em 2011; Pedagogia e pedagogos, para quê? (LIBÂNEO, 1998), que chegou à 16ª edição em 2018; Pedagogia e pedagogos: caminhos e perspectivas (PIMENTA, 2002), que chegou à 3ª edição em 2015 ; e Pedagogia como ciência da Educação (FRANCO, 2003), que atingiu a 2ª edição em 2015.
OS EMBATES DO CURSO DE PEDAGOGIA NA ATUALIDADE
Atualmente, a Pedagogia é o curso com o maior número de estudantes no Ensino Superior brasileiro. Desde que foram promulgadas as suas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), em 2006, ele passou a se caracterizar como uma Licenciatura, um curso de formação de professoras/es para atuarem nas etapas iniciais da Educação Básica: Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Além do foco no exercício da docência nessas etapas de ensino, o curso também se vincula à formação das/os gestores educacionais para atuarem na direção escolar e coordenação pedagógica, dentre outras áreas dos sistemas de ensino, assim como à formação de pedagogas/os para trabalharem em espaços educacionais não escolares (SEVERO, 2018). Entretanto, o que explica a grande procura por esse curso tem sido o acesso ao exercício do magistério nas etapas iniciais da escolarização, que demanda por grande número de professoras/es.
Assim, o curso de Pedagogia teve uma expansão vertiginosa, figurando, pelo menos desde 2011, entre os três cursos mais procurados de nível superior, e em 2020 passou a ocupar o primeiro lugar tanto em número de matrículas, quanto de ingressantes e concluintes de graduação no país, de acordo com o último Censo da Educação Superior (INEP, 2022). O número total de matriculados/as no curso em 2020 era de 816.427 estudantes, dos/as quais apenas 118.930 (14,5%) se inserem nas universidades públicas.
De fato, a expansão de vagas ocorreu, fundamentalmente, no setor privado, atrelada às políticas educacionais neoliberais, e de um modo extremamente precário. Nesse setor, o curso registra 697.497 matrículas. O percentual dessas matrículas em todos os cursos de Pedagogia no país evidencia inicialmente o predomínio da modalidade de Educação a Distância oferecida por Instituições de Ensino Superior (IES) de caráter privado. A maioria destas pertence a Conglomerados Econômicos denominados como instituições de capital privado que integram o sistema financeiro e operam a educação como mercadoria e bem de consumo, por isso denominadas também de instituições privadas financistas. Em geral, dificultam o acesso a pesquisadores/as que buscam analisar a qualidade formativa que oferecem. Assim, o número de 697.497 matrículas que detêm impressiona também pelo apagão dos dados sobre a qualidade dos cursos ofertados na modalidade a distância. Entretanto, pesquisas realizadas em cursos de Pedagogia presenciais oferecidos por essas instituições (PIMENTA et al, 2019; KASSIS, 2021), trazem evidências inequívocas de suas fragilidades, o que permite concluir que nos cursos a distância a precariedade é maior.
O domínio da iniciativa privada na oferta das matrículas do curso de Pedagogia, conforme os dados acima, aponta o maior desafio na área de formação de professoras/es no Brasil: a fragilidade da formação inicial para a atuação na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. As IES privadas financistas (com fins lucrativos), responsáveis pela formação da maior parte das/os professoras/es no Brasil, oferecem, de modo geral, péssimas condições tanto para as atividades de ensino das/os professoras/es formadoras/es, quanto para as aprendizagens dos/das futuros/as professoras/es dessas etapas da Educação Básica em suas várias modalidades. Nessas instituições, são comuns salas de aula com mais de cem alunas/os, cursos presenciais com maior parte das aulas a distância, uma/um professora/or formadora/or para lecionar inúmeras disciplinas de áreas do conhecimento das quais não é especialista, etc. (KASSIS, 2021). Por outro lado, o perfil predominante das/os ingressantes no curso de Pedagogia nas instituições privadas financistas pode ser caracterizado pela presença majoritária de mulheres de diferentes faixas etárias, muitas vivendo em condições de vulnerabilidade social e com um histórico escolar extremamente precarizado (KASSIS, 2021). Entretanto, se a condição social e cultural das/os estudantes que frequentam o curso de Pedagogia nas instituições financistas evidencia a necessidade de um projeto pedagógico que considere suas dificuldades, o que, contraditoriamente, ocorre é que: além de não implementarem iniciativas institucionais que minimizem as condições desfavoráveis dessas/es estudantes, ainda agravam o seu desempenho acadêmico ao negarem as condições mínimas necessárias para a sua formação profissional.
Cabe lembrar que a história da educação no Brasil é marcada por um elitismo estrutural. Somente na virada do atual século ocorreu a universalização do Ensino Fundamental e uma decorrente expansão do Ensino Médio, o que permitiu a possibilidade de acesso ao Ensino Superior de segmentos sociais que nunca o frequentaram anteriormente. Daí a procura por cursos mais acessíveis em termos econômicos, como é o caso do curso de Pedagogia. Nesse sentido, é importante também considerar que a opção do Governo Federal à época da ditadura militar foi pela expansão do Ensino Superior privado para conter a expansão das universidades públicas, e, ao mesmo tempo, atender aos setores econômicos interessados em ampliar seus lucros com a educação. Desde então, o Ensino Superior no Brasil vem crescendo de modo acelerado e descontrolado em favor das instituições privadas financistas, em detrimento das universidades públicas, com exceção apenas para o período dos governos do Partido dos Trabalhadores, que investiu efetivamente na expansão de vagas nessas universidades já existentes e com a criação de novas universidades públicas, no período de 2003 a 2016.
Uma vez que a seleção para o ingresso no Ensino Superior público é bem mais concorrida em função da qualidade oferecida, as/os estudantes de baixa renda e baixa escolaridade acabam por ingressar no ensino privado, compondo o perfil acima descrito de boa parte das/os estudantes dos cursos de Pedagogia no país. Assim, a combinação de estudantes em condições mais desfavoráveis ingressarem em instituições de ensino pouco comprometidas com a qualidade dos cursos evidencia um dos maiores desafios na área de formação das/os professoras/es, como afirmado anteriormente.
Curso de Pedagogia: formação de pedagogos/as ou professores/as?
Além desse problemático predomínio do setor privado financista na área de formação docente no Brasil, acrescentam-se as incongruências das atuais Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de Pedagogia (BRASIL, 2006) que, como analisado anteriormente, estão voltadas centralmente para a formação de professoras/es para a Educação Infantil e os Anos Iniciais do Ensino Fundamental (PIMENTA et al, 2014). Entretanto, apesar da formação docente ser central no curso, ela não é exclusiva. As DCN preveem também às/aos egressas/os desses cursos atuarem na área da gestão escolar e em espaços educacionais não escolares. Com a pulverização das finalidades do curso, a formação da/o professora/or polivalente concorre com a carga horária destinada à gestão educacional e demais áreas de atuação previstas nas DCN.
Por outro lado, as pesquisas sobre os cursos de Pedagogia têm evidenciado que a formação da/o professora/or da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental é deficitária, em especial, no que se refere ao domínio dos conteúdos de ensino das diferentes áreas disciplinares (LIBÂNEO, 2010; PIMENTA, et al, 2014). Daí a necessidade da formação dessas/es professora/es ter melhores condições para, além de garantir o referido domínio dos conteúdos escolares das primeiras etapas da Educação Básica, também aprimorar os processos formativos do/a professor/a polivalente em pelos menos dois importantes aspectos. O primeiro refere-se ao desafio de garantir uma formação interdisciplinar à/ao futura/o professora/or, cuja característica fundamental é justamente o exercício da docência polivalente. O outro aspecto é em relação à necessidade de um maior investimento por parte dos cursos na formação da/o professora/or de Educação Infantil, pois a formação da/o professora/or dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental absorve a maior parte da carga horária dos cursos, de modo que a Educação Infantil acaba tendo um tratamento curricular residual (PIMENTA et al, 2014).
No que se refere à formação específica do/a pedagogo/a para atuar na área da gestão educacional, seja nos sistemas de ensino ou em outras instituições e espaços educativos, a gravidade do atual curso de Pedagogia é ainda maior. A referida área acabou por assumir nas atuais DCN do curso de Pedagogia um espaço quase marginal. Nos projetos pedagógicos dos cursos, o que deveria ser tratado especificamente como uma área de estudos e de atuação do/a pedagogo/a acabou ficando reduzido a uma ou outra disciplina. Ou seja, os saberes específicos necessários para a atuação nas diferentes funções ocupadas por gestores/as educacionais, tais como a direção escolar, a coordenação pedagógica e a supervisão de ensino no âmbito escolar, assim como os saberes dos/as pedagogos/as que atuam na área da saúde, do sistema judiciário, no Ensino Superior, nas diferentes organizações não governamentais etc., não são contemplados nos atuais projetos pedagógicos dos cursos, e quando muito, aparecem pulverizados em uma disciplina genérica denominada “gestão educacional” (PIMENTA et al, 2014; SEVERO, 2018).
Assim, as incongruências das DCN do curso de Pedagogia de 2006 - antecipadamente denunciadas por alguns/mas pesquisadores/as da área à época de sua formulação - acabaram por serem confirmadas após quinze anos de sua implementação: enquanto uma licenciatura não consegue formar adequadamente o/a professor/a polivalente, e como um curso efetivo de Pedagogia nem mesmo garante o espaço curricular necessário para formar o/a profissional que atua na área da gestão educacional, da pesquisa e da prática pedagógica em espaços não escolares.
A FRAGILIDADE DA PEDAGOGIA NO ÂMBITO DA PÓS-GRADUAÇÃO BRASILEIRA
No Brasil, o termo que é utilizado, predominantemente, para designar o campo de estudos educacionais especializados é Educação, diferentemente de outros contextos internacionais, como o espanhol, o italiano e o alemão, por exemplo, em que predomina o termo Pedagogia. Educação é o termo adotado oficialmente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), organismo de fomento à produção do conhecimento científico no país, e pela Coordenação de Aperfeiçoamento da Formação de Pessoal em Nível Superior (CAPES), organismo vinculado ao Ministério da Educação que, entre outras atribuições, regula a pós-graduação stricto sensu, sendo responsável pela avaliação de programas existentes e autorização para criação de novos. Esses dois organismos concentram no país a maior parte das ações regulatórias das práticas de pesquisa e formação de pesquisadoras/es, tendo grande influência na produção do discurso institucional sobre os campos de conhecimento.
Especificamente no campo educacional, desde 1978, quando foi criada, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED) atua como entidade representativa da comunidade vinculada a programas de pós-graduação estruturados em duas modalidades: programas acadêmicos, destinados à produção de conhecimento científico que alimente e amplie o campo conceitual e metodológico da Educação por meio da formação de pesquisadoras/es, e os programas profissionais, regulamentados desde 1995 (FISCHER, 2005), responsáveis pela formação de profissionais que, a partir da pesquisa aplicada, desenvolvem saberes e habilidades associadas a um determinado campo de trabalho. De acordo com o Relatório da Área de Educação da CAPES, em 2019 estavam em funcionamento, no país, 184 Programas de Pós-Graduação em Educação, os quais ofertavam 133 cursos de Mestrado Acadêmico, 88 de Doutorado Acadêmico, 48 de Mestrado Profissional e 01 de Doutorado Profissional (CAPES, 2019).
Em comparação aos países da América Latina, o Brasil é o país com maior oferta de pós-graduação em Educação, embora internamente discrepante, haja vista a concentração de programas/cursos no eixo nas regiões sudeste-sul. Uma busca sistemática de informações nos websites institucionais dos Programas de Pós-Graduação (PPG) identificou que, segundo informações disponibilizadas, em apenas dois dos 184 Programas a Pedagogia aparece sinalizada como campo de conhecimento associado às suas linhas de pesquisa. Tratam-se dos PPG em Educação da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Federal da Bahia. No primeiro, existe uma linha de pesquisa intitulada “História e Memória da Educação”, que prevê estudos sobre a trajetória histórica da Pedagogia, e, no segundo, há a linha “Linguagens, Subjetivações e Práxis Pedagógica”, que aponta a realização de pesquisas sobre política, sociedade e indivíduo a partir de leituras da Pedagogia e de outros campos de saber. Com efeito, esses dados não indicam que pesquisas sobre Pedagogia não estejam ocorrendo, mas que, no discurso institucional alinhado às agências supracitadas, a ela não se vincula um sentido orgânico de campo de conhecimento.
Sob a mesma tendência, a ANPED, composta por 23 Grupos de Trabalho (GT) que congregam pesquisadoras/es no debate de temas que demarcam, ao longo do tempo, territórios acadêmicos especializados, não tem se voltado, de modo particular, a reflexões sobre a Pedagogia como campo específico de conhecimento, exceto, tangencialmente, no GT 4, de Didática. Isso configura uma situação minimamente curiosa no caso brasileiro: a discussão sobre a Pedagogia como campo depende da Didática, que é uma de suas disciplinas. Manifesta-se, nesse sentido, uma relação invertida em que a disciplina, como unidade pertencente ao campo, portanto mais especializada, conduz, ainda que de forma residual, a discussão sobre seu campo mais amplo.
Com efeito, os dados sobre as linhas de pesquisa dos PPG e dos GT da ANPED não são determinantes óbvios de que a discussão epistemológica da Pedagogia não tenha lugar na agenda de produção acadêmica especializada, mas sinalizam que, na sua especificidade como campo de conhecimento, o tema é negligenciado ou obstruído, especialmente pela compreensão de que a Educação consistiria em si mesma um outro campo distinto da Pedagogia. O documento de área da CAPES aponta que a Educação possui natureza fortemente interdisciplinar ao passo em que “[...] articula diferentes campos de conhecimento em torno de seu objeto” (CAPES, 2019, p. 8). Em que consistiria a Pedagogia, nesse sentido? Em um “objeto” ou “tema” da Educação? Outra vez, encontramo-nos diante de uma situação paradoxal: o fenômeno prático, que é a educação, torna-se campo, e o campo que historicamente dedica-se ao estudo da educação em sua manifestação prática, a Pedagogia, é subsumido como um tema ou, pior, um apêndice na discussão sobre as finalidades e as mediações no campo educacional, referindo-se tão somente ao caráter instrumental ou metodológico do conhecimento aplicado às práticas.
Conforme argumentamos neste texto, a Pedagogia possui uma dimensão interdisciplinar que emerge da clareza sobre a multidimensionalidade do seu objeto. Entretanto, no modo pelo qual operam os GT da ANPED e a tradição institucional dos PPG em Educação, o que se evidencia como uma característica do tratamento investigativo em torno do fenômeno educacional é a dispensa da Pedagogia como campo em nome da multidisciplinaridade, uma vez que, entre esses GT e, não raramente, entre linhas de pesquisa dos PPG, atualiza-se a cultura de nicho que explica a pouca permeabilidade do conhecimento produzido em contextos concretos da prática educativa. A ausência da Pedagogia como uma referência para pensar a dimensão praxiológica de uma pesquisa não apenas sobre a educação, mas para a educação - no sentido de vinculação aos desafios que se situam no plano concreto da práxis educativa, preocupando-se, assim, com transformação de sentidos e mediações práticas que se materializam em tal plano - segue justificada pelo argumento da natureza interdisciplinar do campo, embora predomine, nas culturas institucionais, a tendência multidisciplinar.
Como assinalam Touriñan López e Saez Alonso (2012), a Pedagogia seria, justamente, o campo disciplinar implicado na complexa tarefa de articular a relação entre os conhecimentos produzidos no que, tradicionalmente, classifica-se de Ciências da Educação, a partir da multirreferencialidade que a prática educativa expressa. Compreendemos que, para isso, a Pedagogia constitui um domínio específico visto que, em uma perspectiva complexa, essa articulação supera a simples justaposição multidisciplinar da variedade de conhecimentos disponíveis sobre a educação. O domínio pedagógico é estruturado pela síntese praxiológica (SCHMIED-KOWARZIK, 1989) da qual resulta um conhecimento especializado da, pela e para a relação entre teoria e prática educativa. Isso converte a Pedagogia em uma ciência mediadora e reconstrutiva que mobiliza pela pesquisa, e não pela mera aplicação, diferentes conhecimentos para produzir aquilo que lhe é particular: o pedagógico como manifestação dialética do pensar e do fazer educativos. Nesse sentido, o argumento interdisciplinar legitima a Pedagogia e não o contrário.
A tradição multidisciplinar, por sua vez, tende a reificar territórios acadêmicos, de modo que as pesquisas e os processos formativos que neles se situam reforçam, muitas vezes, o distanciamento entre teoria e prática, prejudicando a construção de um campo que tome a educação como objeto de conhecimentos científicos específicos organizados em torno de problemas pedagógicos. É comum que nos deparemos com pesquisas aplicadas da sociologia, filosofia, história, etc., classificadas como educacionais, mas que se vinculam fortemente às epistemes e métodos das áreas-matrizes, não resultando na produção do conhecimento pedagógico. Ao assumirmos a necessidade de superar o modelo aplicacionista da relação teoria e prática, identificamos que, mesmo sob o domínio da tradição multidisciplinar, no entanto, há produções significativas sobre Pedagogia como campo de conhecimento desenvolvidas no âmbito da pós-graduação brasileira.
Com o objetivo de depreender, a partir do exame de teses e dissertações defendidas em PPG da área de Educação no Brasil, o sentido atribuído à Pedagogia como campo disciplinar de produção de conhecimento científico foi desenvolvido um mapeamento no Banco de Teses e Dissertações da CAPES. A busca recuperou pesquisas desenvolvidas no período de 1989 a 2019. Os descritores de busca e as quantidades respectivas de produções recuperadas foram: Pedagogia-título (6.585 registros); Pedagogia/Teoria-título (105 registros); Pedagogia/disciplina-título (89 registros); Pedagogia/campo-título (121 registros); Pedagogia/Ciência-título (184 registros). Após a leitura de títulos, resumos e sumários desse conjunto, constituiu-se um corpus de 26 produções dedicadas ao tema, das quais 10 resultavam de pesquisas de mestrado e 16 de doutorado.
As 26 produções foram selecionadas mediante o parâmetro de que a pesquisa tivesse se centrado em discussões sobre o caráter identitário da Pedagogia como campo de conhecimento. Nesse conjunto, 15 produções referiam-se a pesquisas sobre o curso de Pedagogia. Tais pesquisas referenciavam a Pedagogia como campo de conhecimentos para problematizar as finalidades formativas e organização curricular dos cursos de Pedagogia. As demais 11 produções enfocavam, propriamente, o estudo do conhecimento pedagógico em uma perspectiva historiográfica e, também, o estudo da atuação profissional de pedagogas/os. Dentre essas, 8 produções delimitaram reflexões sobre o caráter científico da Pedagogia, sendo que 3 vincularam-se ao enfoque pós-crítico, 2 ao materialismo histórico-dialético, 2 à teoria crítica de Habermas e 1 à teoria da complexidade.
Vale ressaltar que os 6.585 trabalhos que traziam a palavra Pedagogia em seu título revelaram a profusão do seu uso. Adjetivada, a palavra Pedagogia produz uma dispersão léxica e semântica própria de um contexto discursivo de ausência ou negação do seu sentido específico. Com isso, podemos assinalar que, no âmbito do debate acadêmico, a Pedagogia aparece como uma ideia vaga, escorregadia, quase banal, cujo uso dispensa justificativas conceituais em torno do que lhe difere em relação à educação, à formação humana ou à socialização cultural, termos com os quais se confunde, recorrentemente. Ou seja, a adjetivação sobrepõe-se ao que é substancial.
Foi possível observar a tendência de que o debate sobre o campo disciplinar da Pedagogia tem se atrelado, fundamentalmente, à busca pela compreensão da especificidade do curso de Pedagogia, sob a permanência de tensões históricas. Evidenciou-se a recorrência de alguns autoras/es brasileiras/os mobilizados no tratamento conceitual que confere à Pedagogia reconhecimento de ciência, notadamente José Carlos Libâneo, Selma Garrido Pimenta, Maria Amélia Santoro Franco e Dermeval Saviani. Assim, se isso indica a incidência e valorização da produção nacional, indica também um fluxo limitado de diálogos com autoras/es internacionais que, em diferentes contextos, dedicam-se, sistematicamente, à defesa de teses da Pedagogia como ciência.
Quanto ao caráter metodológico, as pesquisas dividem-se em: 5 estudos teóricos; 2 estudos historiográficos; 6 estudos curriculares; 2 estudos documentais; e 9 estudos empíricos que também abarcavam etapas de mapeamento bibliográfico ou documental. Exceto nos estudos referenciados em teorias pós-críticas, cuja abordagem atuava no sentido de desconstruir/problematizar a condição disciplinar/científica da Pedagogia para conceituá-la como um dispositivo cultural associado a diferentes espaços-tempos das experiências educativas no marco das (inter)subjetividades, as/os demais autoras/es preocupam-se em justificar o status de cientificidade da Pedagogia como condição para o reconhecimento de sua complexidade acadêmica. Porém, notam-se lacunas na estruturação dos argumentos haja vista a pouca articulação com o debate que a Filosofia da Ciência e a Epistemologia aportam sobre modelos de cientificidade, ciência prática, inter/transdisciplinaridade e, finalmente, sobre método, aspectos tratados pela Teoria da Educação como disciplina da Pedagogia. Torna-se necessário, então, um exame mais rigoroso das bases epistemológicas da Pedagogia e a consolidação da Teoria da Educação como uma disciplina estruturante dos PPG do campo.
A dinâmica da pós-graduação brasileira estimula a formação e a produção acadêmica associadas ao trabalho colaborativo de grupos de pesquisa. No intuito de produzir mais um indicador sobre a situação da Pedagogia no âmbito da pós-graduação, foi feita uma busca categorizada no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil, vinculado ao CNPq, com o descritor Pedagogia como título e como linha de pesquisa. A busca recuperou 274 registros de grupos. No entanto, o termo Pedagogia manifesta-se, mais uma vez, como dispositivo de dispersão, com destaque para a área de Artes, Educação Física e Saúde, nas quais o termo é empregado como sinônimo de Didática ou metodologia de ensino, com mais frequência. Nos grupos cadastrados na área de Educação, o uso adjetivado da Pedagogia coincide com a emergência de ferramentas conceituais relativamente consolidadas, tais como Pedagogias Culturais, Pedagogias Decoloniais (mais recentes), Pedagogias da Infância, Pedagogia Histórico-Crítica, Pedagogia Freiriana e Pedagogia Universitária.
Os dados apontam a necessidade de discussões que levem ao reconhecimento da Pedagogia como campo de referência para pesquisas que intencionam fertilizar a práxis educativa para além do esquema aplicacionista/multidisciplinar que nega a complexidade da relação teoria e prática e, por isso, tende a construir um saber colonizador que pouco colabora com a conscientização das/os educadoras/es em seus processos de trabalho. A formação de educadoras/es-pesquisadoras/es na pós-graduação poderá ser impulsionada na direção de leitura crítica e propositiva da realidade concreta quando pautar-se pela compreensão da Pedagogia como ciência mediadora e engajada no propósito de produzir o inédito viável do qual falava Freire (1987).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A problematização do campo teórico da Pedagogia em seus nexos com a formação de profissionais e pesquisadores/as no movimento histórico de seus cursos no Brasil evidenciou suas fragilidades. A quase ausência do campo teórico e epistemológico da Pedagogia como uma ciência teórico-prático-práxica de formação humana emancipatória deixa seus cursos como campo aberto aos interesses das ideologias neoliberais que transformaram a educação em mercadoria, como ilustra a Resolução do CNE n. 02/2019.
Inicialmente, com contribuições de Schmied-Kowarzick (1974) e de Paulo Freire (1997), explicitamos nossa compreensão da Pedagogia como ciência dialética que tem a relação teoria e prática como constitutiva. Como ciência social e humana, a Pedagogia estuda teoricamente a educação que se pratica na sociedade em suas diversas instituições, incluída a escolar. A Pedagogia Dialética analisa criticamente, por meio da pesquisa científica crítico-dialética, as práticas educativas e pedagógicas que sonegam a emancipação ao impedir o direito humano à educação; e se volta à prática, propondo transformações à práxis educativa e pedagógica. Nessa condição, a Pedagogia “encara como sua tarefa consciente a de ser ciência prática da e para a práxis educacional” (SCHMIED-KOWARZICK, 1974, p. 10). O autor citado nos lembra que a relação entre teoria e prática é conflitiva, originando propostas de práticas muitas vezes de interesses opostos. Assim, concordamos com a denominação da Pedagogia como ciência dialética. Ou seja, tem a prática como intencionalidade de seu estudo (teórico-científico) para a ela se voltar, propondo transformações à práxis para que seja emancipatória e humanizadora (FREIRE, 1997).
Mediante essa compreensão, buscamos nas origens da educação em nosso país desde a chegada dos colonizadores portugueses nos anos de 1500, os avanços e recuos na educação do povo brasileiro em constituição até a escolarização pública que se inicia em finais do Século XIX. Em meados desse Século surge a preocupação de se formar professores/as quando são, então, criadas as Escolas Normais. Essas escolas serão as precursoras do curso de Pedagogia de nível superior que seria criado em 1939. Até então, nesse longo período, a palavra “Pedagogia” é referida como um termo; não como um campo de estudos ou de atividade profissional.
Os cursos de formação de professores/as no país ficaram configurados no modelo 3+1, sendo 3 anos de bacharelado e 1 de licenciatura. O bacharelado em Pedagogia, diferentemente dos demais, não se voltava aos estudos científicos de sua área (educação e ensino), ficando identificado como curso de formação de professores/as para o magistério (licenciatura) e de técnicos/as em educação, sem que houvesse correspondência para a atuação desses/as profissionais. Essa configuração explica, em parte, a fragilidade da Pedagogia como campo epistemológico teórico, científico e profissional no país.
A breve imersão histórica que realizamos evidencia novas fragilidades nas legislações subsequentes que, desde os anos de 1960, buscaram superar a formação generalista configurada nos cursos de Pedagogia. A Resolução n. 02/1969 institui o curso de Pedagogia como formação da/o pedagoga/o com uma base comum e outra diversificada em habilitações: a de Magistério, para formar professoras/es do ensino normal; e as de Orientação Educacional, Administração escolar, Supervisão escolar, Inspeção escolar, para formar especialistas. Tendo a de Magistério como obrigatória e as demais como optativas, o curso passou a formar, então, professoras/es e especialistas, sem adequar-se para as especificidades de cada uma dessas dimensões formativas em contraponto às críticas em torno de seu caráter generalista.
Curiosamente, nesse curso denominado de Pedagogia não se estudava a Pedagogia como campo de conhecimentos historicamente produzidos para se compreender as bases teóricas e científicas das práticas pedagógicas, situadas em seus contextos configurados pelo capitalismo. O estudo das tendências pedagógicas hegemônicas e contra-hegemônicas na educação brasileira empreendido por Dermeval Saviani e colaboradores nos anos de 1980, em que pese a virada de rumo que possibilitaram ao terem como pressupostos epistemológicos a dialética crítica para o estudo dos fenômenos educativos em sua práxis, não fertilizaram os estudos da Ciência Pedagógica nos cursos de Pedagogia porque, simplesmente, esses cursos não estudavam a Pedagogia e seu campo disciplinar. Diferente de outras ciências que investigam a educação, a Ciência Pedagógica tem a dialética entre teoria e prática como constitutiva. Essa fragilidade acentuou a crise identitária profissional e provocou discussões nacionais sobre as configurações possíveis para o curso de Pedagogia no Brasil, caracterizando dois grupos distintos: o que defende a Pedagogia como ciência e o curso como lócus de formação de pedagogos/as para diferentes práticas profissionais; e o que defende o curso centralizado na formação de professores/as para as etapas iniciais da Educação Básica.
Ao contrário do primeiro, que argumenta sobre o campo teórico e epistemológico da Pedagogia como base para a formação dos/as profissionais da educação, o segundo grupo defende a docência como base para tal formação. Esse grupo conquistou hegemonia político-ideológica e espaço no CNE na formulação das DCN n. 02/2006. Nos cursos de Licenciatura em Pedagogia pautados por essas Diretrizes, o campo histórico-teórico-prático-práxico da Pedagogia não é estudado. Mais uma vez a fragilidade da Pedagogia nos seus próprios cursos foi/está evidenciada. Essa lacuna também pôde ser observada nos cursos de pós-graduação em Educação, como demonstra a baixa quantidade de teses e dissertações sobre o campo teórico da Pedagogia e o número limitado de linhas e grupos de pesquisa vinculados aos Programas que se dedicam, sistematicamente, a tal foco. Ressalta-se o fato de que a Pedagogia sequer aparece na árvore de conhecimento do CNPq. A incidência do paradigma das Ciências da Educação nesse âmbito é um fator explicativo da descontinuidade que a Pedagogia experimenta no campo acadêmico brasileiro, a qual se revela na ruptura entre o curso de graduação e a área de pós-graduação correspondente. Diante disso, pode-se questionar qual a esfera institucional de estudos especializados/avançados sobre a Pedagogia? Os dados apontados ao longo do texto demonstram que a pós-graduação em Educação não tem se configurado como esse lugar, o que implica na fragilização do debate específico sobre teoria e pesquisa pedagógica. As configurações teórico-metodológicas da pesquisa pedagógica precisam ser ajustadas de acordo com a necessidade de refletir e agir nos contextos da práxis. Nesse sentido, a pesquisa pedagógica dirige-se à prática guiando-se pelo propósito de produzir teorias capazes de nutrir a reflexão e a ação dos/as educadores/as, servindo-lhes como instrumento para uma práxis intencional fundada pedagogicamente, uma vez que busca desvelar as práticas e nelas intervir de modo crítico-criativo.
Conforme já explicitamos em outros trabalhos (PINTO, 2018; MOREIRA; PIMENTA, 2021; SEVERO, 2018), entendemos que as atuais DCN do curso de Pedagogia devem ser revistas e atualizadas, como indicam as problematizações analisadas neste artigo e os caminhos que propomos para fortalecer a Pedagogia enquanto campo teórico de base epistemológica crítico-dialética, campo de formação de pedagogos/as e como campo de atuação profissional.
Sugerimos que esse movimento de revisão e proposição de novas DCN, além de congregar as associações e entidades acadêmicas da área, considere os resultados de pesquisas desenvolvidas sobre o curso de Pedagogia, assim como análises de eventuais experiências desenvolvidas por universidades públicas que nas duas últimas décadas buscaram superar em seus projetos pedagógico-curriculares dos cursos de Pedagogia os limites e problemas da DCN de 2006, visando formar o/a profissional pedagogo/a para atuar na educação escolar em todas as suas instâncias e na educação não escolar, demandadas por outras instituições sociais que também se configuram com finalidades e ações (práxis) educativas.