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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.1590/0102-469836778 

Artigos

DIMENSÕES POLÍTICA, CONTEXTUAL E DO CONHECIMENTO DA FORMAÇÃO DOCENTE: UMA PERSPECTIVA À LUZ DO PENSAMENTO BAKHTINIANO

DIMENSIONES POLÍTICA, CONTEXTUAL Y DE EL CONOCIMIENTO DE LA FORMACIÓN DEL PROFESORADO: UNA PERSPECTIVA A LA LUZ DEL PENSAMIENTO BAKHTINIANO

DIOMAR CARÍSSIMO SELLI DECONTO1 
http://orcid.org/0000-0003-3707-7303

FERNANDA OSTERMANN2 
http://orcid.org/0000-0002-0594-2174

1 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). Caxias do Sul, RS, Brasil.

2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil.


RESUMO:

A partir do pensamento bakhtiniano, construímos dimensões de uma perspectiva de formação contra-hegemônica de professores de Ciências da Natureza. Essa perspectiva formativa, que denominamos por “formação dialógica-responsável de professores”, é constituída de sete dimensões - práxica, ética, estética, investigativa, política, contextual e do conhecimento, das quais as três últimas serão desenvolvidas no presente trabalho. A construção dessas dimensões foi desenvolvida a partir do cotejamento de textos do Círculo bakhtiniano com textos da literatura de formação docente, estabelecendo tensionamentos, contraposições, mostrando insuficiências e propondo avanços em relação ao modelo formativo hegemônico, fundamentado na racionalidade técnica. Nesse processo, emergiram dimensões formativas que, distanciadas de um perfil prescritivo, se constituem como princípios que permitem repensar, transformar, dar encaminhamentos, estruturar formações que rompam com a perspectiva hegemônica. Defendemos que nossas dimensões possibilitam ressignificar a formação docente no que diz respeito à compreensão ampla da realidade, criticidade, autonomia docente, organicidade dos processos formativos e dialogicidade na construção do conhecimento.

Palavras-chave: Círculo de Bakhtin; formação de professores; formação dialógica-responsável

RESUMEN:

Con base en el pensamiento bajtiniano, desarrollamos dimensiones de una perspectiva de formación contrahegemónica de profesores de Ciencias Naturales. Esta perspectiva formativa, que llamamos “formación dialógico-responsable de profesores”, consta de siete dimensiones: praxica, ética, estética, investigativa, política, contextual, y conocimiento, de las cuales las tres ultimas serán desarrolladas en el presente artículo. La construcción de estas dimensiones se llevó a cabo a partir del cotejo de textos del Círculo Bajtiniano con textos de la literatura sobre la formación del profesorado, estableciendo tensiones, contrastes, mostrando insuficiencias y proponiendo avances en relación al modelo de formación hegemónico, dirigido por la racionalidad técnica. En este proceso emergieron dimensiones formativas que, alejadas de un perfil prescriptivo, se constituyen como principios que permiten repensar, transformar, estructurar formaciones que rompan con la perspectiva hegemónica. Sostenemos que nuestras dimensiones permiten resignificar la formación del profesorado en lo referente a la comprensión amplia de la realidad, la criticidad, la autonomía docente, la organicidad de los procesos formativos y la dialogicidad en la construcción del conocimiento.

Palabras clave: Circulo de Bajtín; formación del profesorado; formación dialógico-responsable

ABSTRACT:

Based on Bakhtinian thought, we developed dimensions of a perspective of counter-hegemonic training of Science teachers. This training perspective, which we call “dialogical-responsible teacher education,” consists of seven dimensions - practical, ethics, aesthetics, investigative, political, contextual, and knowledge. The last three will be developed in this paper. The development of these dimensions was built up from the collating of Bakhtinian Circle texts with texts from the literature on teacher education, tensions, and contrasts, showing insufficiencies and proposing advances concerning the hegemonic training model guided by technical rationality. In this process, formative dimensions emerged that distanced from a prescriptive profile, are constituted as principles that allow rethinking, transforming, giving directions, and structuring formations that break with the hegemonic perspective. We argue that our dimensions make it possible to resignify teacher education regarding the broad understanding of reality, criticality, teaching autonomy, organicity of training processes, and dialogicity in constructing knowledge.

Keywords: Bakhtin Circle; teacher education; dialogical-responsible education

INTRODUÇÃO

Modelos de formação docente têm sido discutidos pela pesquisa em Educação em Ciências, no sentido de propor alternativas à perspectiva da racionalidade técnica (Contreras, 2012), enraizada nos processos formativos, entendida como modelo hegemônico de formação (Pereira-Diniz & Zeichner, 2017; Coimbra, 2020).

A ideia básica do modelo de racionalidade técnica é que a prática profissional consiste na solução instrumental de problemas mediante a aplicação de um conhecimento teórico e técnico, previamente disponível, que procede da pesquisa científica. É instrumental porque supõe a aplicação de técnicas e procedimentos que se justificam por sua capacidade de conseguir os efeitos ou resultados desejados. (Contreras, 2012, p. 101).

Diante disso, como vimos defendendo (Deconto, 2020; Deconto & Ostermann, 2021a), o pensamento bakhtiniano1 pode ser visto como uma visão de mundo que permite contrapor o modelo formativo hegemônico, possibilitando a proposição de uma formação contra-hegemônica de professores de ciências. Caracteriza-se como contra-hegemônica, nessa perspectiva, uma (re)construção a partir da análise crítica das insuficiências do modelo hegemônico.

Assim, neste trabalho, de natureza teórica, temos por objetivo discutir algumas dimensões de uma perspectiva sobre formação docente contra-hegemônica construída a partir do pensamento bakhtiniano. Nesse processo de construção emergiram dimensões (práxica, ética, estética, política, contextual e institucional, conhecimento e investigativa), decorrentes desse arcabouço teórico, constitutivas do que passamos a chamar “formação dialógica-responsável de professores” (Deconto, 2020).

Em trabalho anterior (Deconto & Ostermann, 2021a), justificamos o caráter contra-hegemônico e discutimos dimensões da formação dialógica-responsável relacionadas à noção de ato responsável (práxica, ética e estética) e, neste momento, nos dedicamos a discutir dimensões relacionadas à noção de linguagem (política, contextual e do conhecimento), que tem como princípio constitutivo o dialogismo. Assim, as dimensões tratadas neste trabalho não foram escolhidas aleatoriamente, mas, como ficará explícito nas próximas seções, derivam diretamente da concepção de linguagem (e, consequentemente, dialogismo) do Círculo.

Desta forma, neste artigo, completando a discussão das dimensões características da perspectiva de formação dialógica-responsável de professores de ciências, desenvolvemos as dimensões política, do conhecimento e contextual - por meio do entrecruzamento entre os conhecimentos de formação docente e o pensamento bakhtiniano. É preciso esclarecer que o Círculo não tratou do tema da formação docente, o que confere à construção teórica desenvolvida nesta pesquisa alto grau de originalidade. Além disso, apontando para a originalidade do trabalho, está a constatação de Deconto e Ostermann (2020), a partir de revisão de literatura da área “Educação em Ciências”, de que pesquisas com o objetivo de pensar a formação docente a partir do pensamento bakhtiniano são escassas, de forma que a maioria da produção não se debruça especificamente sobre a formação de professores nos termos que nos propomos, utilizando-a mais como um pano de fundo para a investigação de outros temas (por exemplo, apropriação de documentos oficiais, compreensão de perspectivas educacionais, construção de consensos sobre Física Moderna e Contemporânea), ainda que correlatos à formação docente.

O entrecruzamento entre aportes teóricos (formação docente e pensamento bakhtiniano) que estabelecemos no trabalho estrutura-se pelo princípio metodológico utilizado em alguns escritos do Círculo bakhtiniano: o cotejamento (Geraldi, 2012). Cotejar, nessa perspectiva, significa dar contexto a um texto, colocá-lo em contato com outro texto (Bakhtin, 2011), um contato dialógico que permite compreensões a partir de uma ação que contém o confronto e encontro com o outro (Andreis, 2017), a partir do qual vozes de um enunciado sejam mostradas/auscultadas e colocadas em relação interativa com outros enunciados, ampliando contextos (Scherma, 2017).

LINGUAGEM E PENSAMENTO BAKHTINIANO

Se essencial nessa perspectiva de formação docente contra-hegemônica é a noção de ato responsável (Deconto & Ostermann, 2021a), ao lado dela, há sem dúvida outro tema caro ao pensamento bakhtiniano: a linguagem. Se pensarmos que a linguagem possibilita a negociação de significados, organiza as funções mentais do sujeito e permite o segundo nascimento do homem, para além do nascimento físico, como nascimento social (Volóchinov, 2017), sua relação direta com a educação fica mais perceptível. Desta forma, não nos parece ser possível pensar a formação docente sem refletir sobre o papel ímpar desempenhado pela linguagem nesse processo. Assim, sob a assunção de que a linguagem se constitui em um fenômeno que não pode estar desvinculado da formação docente, destacamos a potência de trazer o pensamento bakhtiniano para a discussão sobre essa formação, bem como sua posição de destaque em relação a outros referenciais de formação de professores, nos quais não se vislumbra uma abordagem que seja tão elaborada e consistente sobre linguagem. Talvez essa seja a grande contribuição oferecida pelo pensamento bakhtiniano à formação docente com relação a outros referenciais.

Apesar disso, promover uma discussão extensiva sobre o conceito de linguagem causaria um deslocamento acentuado do propósito deste trabalho (não se pretende aqui desenvolver um tratado minucioso sobre linguagem), uma vez que o desenvolvimento de tal conceito está envolto por dimensões complexas e emaranhadas. Sem esgotar a questão, abordamos, ao longo deste trabalho, os principais conceitos que permitem compreender a noção de linguagem no pensamento bakhtiniano: interação verbal, signo ideológico, enunciado e dialogismo. Para introduzir a questão da linguagem, explicitamos que para o Círculo bakhtiniano,

A realidade efetiva da linguagem não é o sistema abstrato de formas linguísticas nem o enunciado monológico isolado, tampouco o ato parafisiológico de sua realização, mas o acontecimento social da interação discursiva que ocorre por meio de um ou de vários enunciados. (Volóchinov, 2017, p. 218).

Isso significa que a realidade fundamental da língua é a interação discursiva, ou seja, colocam-se as bases para o entendimento da linguagem no mundo concreto, no mundo do acontecimento, assumindo-a como uma atividade humana, um fenômeno social da interação discursiva. Assim, como uma atividade que é espaço-temporalmente situada, concreta e singular (Bakhtin, 2010), “e reflete em todos os seus elementos tanto a organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou” (Volochínov, 2013, p. 141), nasce o enunciado concreto, a unidade real da comunicação.

Dessa maneira, um enunciado nunca pode ser abstraído de sua situação concreta e jamais representará um conjunto de palavras soltas, ele é dirigido a alguém, de quem se espera uma resposta e, portanto, assumirá uma postura ativa-responsiva (Volóchinov, 2017). Desta forma, sempre há um elo entre os enunciados, de maneira que um enunciado sempre se dá em resposta a outros enunciados e, da mesma forma, se concretiza sob a condição de que será respondido por outros enunciados, ou seja, os enunciados estabelecem entre si relações de sentido, relações dialógicas. Essas noções brevemente evocadas, de enunciado e dialogismo, para dar uma visão geral da noção de linguagem, são aprofundadas nas seções que seguirão. Entretanto, por ora, trazemos à baila o elemento que nos conecta à próxima seção do trabalho e que é essencial na discussão de linguagem do Círculo: o signo ideológico.

A partir da linguagem como fenômeno de interação social, que tem como unidades reais da comunicação os enunciados, por trás dos quais sempre há um sujeito sócio-histórico constituído por índices de valor, emergem os signos, que operam como articuladores entre a língua e a realidade sócio-histórica. Portanto, o signo é um elemento mediador de relações entre sujeitos e também destes com o mundo que os cerca, cujas características, importantes para compreender a filosofia da linguagem do Círculo, diferem das que são constituintes do sinal (Volóchinov, 2017).

Enquanto o signo é compreendido, o sinal é apenas reconhecido e, portanto, relacionado a uma comunicação mecânica, de caráter meramente técnico, de pura identificação. O sinal, assim, é algo repetível, como um código que tem forma única, fechada e imóvel. O signo, por outro lado, é mutável, flexível e, principalmente, ideológico. O signo faz parte de uma dada realidade, tem uma presença física, e torna-se signo a partir da valoração social, de uma convenção social, adquirindo, assim, um significado, mas também remetendo a outra realidade que não é a sua e que por ele será refletida e refratada (Volóchinov, 2017).

Faraco (2009) nos ajuda a compreender a questão da reflexão e refração sígnica, apontando que por meio do signo é possível descrever o mundo (reflexão), indicar uma dada realidade externa a ele, mas, principalmente, construir diversas interpretações (refração) desse mundo a partir de diferentes perspectivas marcadas pelas contradições de valores e interesses sociais. Por isso, “não é possível significar sem refratar” (Faraco, 2009, p. 51). Neste sentido, é possível compreender que o pensamento bakhtiniano coloca a ideologia e o signo em um mesmo plano, pois afirma que tudo que é ideológico possui significado, logo, é signo.

O signo não é somente parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade, sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico e assim por diante. As categorias de avaliação ideológica (falso, verdadeiro, correto, justo, bom, etc.) podem ser aplicadas a qualquer signo. O campo ideológico coincide com o campo dos signos. Eles podem ser igualados. Onde há signo há também ideologia. Tudo que é ideológico possui significação sígnica. (Volóchinov, 2017, p. 93, grifo do autor).

O sinal, por outro lado, não reflete e não refrata nada, não é ideológico. O signo é um fenômeno do mundo externo, pois surge em um território interindividual, do processo de interação social de consciências individuais socialmente organizadas. Assim, se para compreender um signo é necessário outro signo, mas como a consciência de cada sujeito só é permeada por signos a partir da interação social entre estes, então a própria consciência individual é um fato social e ideológico.

O signo verbal, a palavra, assume estas funções sígnicas e de comunicação com clareza e plenitude, por isso, “é considerada o fenômeno ideológico par excellence” (Volóchinov, 2017, p. 98) e o “medium mais apurado e sensível da comunicação social” (Volóchinov, 2017, p. 99). Além disso, atribui-se a ela o título de mais puro dos signos e de signo neutro, no sentido de ser um curinga (algo multifacetado e multicontextual), pois pode cumprir as funções ideológicas de todos os gêneros: científico, estético, moral, religioso. A palavra constitui também o material sígnico da consciência, serve de signo interior e, por isso, “a palavra acompanha toda a criação ideológica como seu ingrediente indispensável” (Volóchinov, 2017, p. 100). Portanto, fica evidente o aspecto da materialidade da ideologia na concepção de linguagem do pensamento bakhtiniano. A noção de signo ideológico traz, necessariamente, para o debate a questão da ideologia, possibilitando a emersão de uma dimensão política da formação docente, como desenvolvemos na próxima seção.

DIMENSÃO POLÍTICA DA FORMAÇÃO DOCENTE

Como aponta Ponzio (2009), talvez em apenas uma passagem de todas as obras do Círculo bakhtiniano seja possível encontrar uma definição explícita de ideologia, ainda que bastante sintética e superficial:

Por ideologia entendemos todo o conjunto dos reflexos e interpretações da realidade social e natural que se sucedem no cérebro do homem, fixados por meio de palavras, desenhos, esquemas ou outras formas sígnicas. (Volochínov, 2013, p. 138, grifos do autor).

Apesar de não encontrar uma definição extremamente elaborada, é possível compreender a noção de ideologia a partir de vários sentidos atribuídos pelo Círculo, como nos mostra, por exemplo, Faraco (2009, p. 16-18). Talvez, o elemento mais importante a salientar é que o significado de ideologia do Círculo diverge parcialmente das correntes marxistas que o associam a uma “falsa consciência”: que não permite a percepção da existência de contradições sociais e de classes sociais, “promovida pelas forças dominantes, e aplicada ao exercício legitimador de poder político e organizador de sua ação de dominar e manter o mundo como é” (Miotello, 2005, p. 168). Neste sentido, como aponta Miotello (2005), partindo dessa concepção de ideologia como algo já dado e pronto, destruindo e reconstruindo parte dela, o Círculo bakhtiniano desenvolve sua proposição, extremamente dinâmica, como um espaço de contradição ao invés de ocultamento, baseada em um movimento entre estabilidade e instabilidade.

O Círculo irá propor a distinção de dois níveis de ideologia, colocando, segundo Miotello (2005), ao lado da ideologia oficial a ideologia do cotidiano. Nessa proposição, tais níveis se interpenetram, se confrontam, se relacionam e não devem ser entendidos como camadas apartadas. Portanto, nessa concepção, tem-se de um lado, a ideologia relativamente dominante e estruturalmente estável, que tenta implantar uma concepção única de produção do mundo e, de outro, a ideologia relativamente instável, que se constitui nos encontros casuais, “na proximidade social com as condições de produção e reprodução da vida” (Miotello, 2005, p. 169). Desse movimento entre o que é estável e instável é que se dá a produção da ideologia e toda sua historicidade, fruto de interações sociais.

O nascedouro mais primário da ideologia se dá no nível da ideologia do cotidiano, no qual ocorrem mudanças bastante lentas, inicialmente sem configuração evidente, suscitadas pelos signos em contato direto com os acontecimentos socioeconômicos, no âmbito da fala cotidiana, dispersa e rotineira (Volóchinov, 2017). Todavia, em determinado momento, ocorre um agrupamento dessa pluralidade de fios ideológicos existentes, que se identificam de forma mútua e adquirem mais estabilidade, materializando um nível de ideologia com maior consistência e mais relacionado às organizações sociais, “onde repercutem mais rapidamente as mudanças da infraestrutura socioeconômica. [...] esse nível é o que acumula as energias criadoras a partir das quais se efetuam as revisões parciais ou totais dos sistemas ideológicos oficiais” (Miotello, 2005, p. 174).

Por outro lado, no nível mais estabilizado da ideologia oficial, circulam conteúdos mais aceitos pelo conjunto social e amparados pelos jogos de poder. Esse nível de ideologia, por ser o sistema de referência constituído e assumido pelo grupo social dominante, se impõe com relação à ideologia do cotidiano e dá o tom hegemônico nas relações sociais, buscando ocultar as contradições existentes. Entretanto, apesar disso, não é o único tom, pois essas contradições sociais, alvo de solapamento, persistem na base e destroem paulatinamente a ideologia oficial. Assim,

A relação permanente entre esses diversos níveis faz com que todo o conjunto ideológico de uma dada sociedade se apresente como um conjunto único e indivisível, e em constante movimento, pois reage às transformações que se dão nas esferas produtivas. E o movimento em cadeia, que se dá tanto na organização social quanto na comunicação interpessoal, faz com que a ideologia se constitua e se renove no contato ininterrupto que se dá entre indivíduos socialmente organizados. (Miotello, 2005, p. 175).

Por meio da discussão exposta, refletindo sobre a interrelação dos elementos estabilidade/instabilidade, signo, valoração, interação e ideologia, seria possível afirmar, numa tentativa de sintetizar, se é que isso é possível, que:

Neste sentido, a ideologia é o sistema sempre atual de representação de sociedade e de mundo construído a partir das referências constituídas nas interações e nas trocas simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados. É então que se poderá falar do modo de pensar e de ser de um determinado indivíduo, ou de determinado grupo social organizado, de sua linha ideológica, pois que ele vai apresentar um núcleo central relativamente sólido e durável de sua orientação social, resultado de interações sociais ininterruptas, em que a todo momento se destrói e se reconstrói os significados do mundo e dos sujeitos. (Miotello, 2005, p. 176).

A partir dessas discussões defendemos que, como atividade humana, a formação de professores não pode ser concebida em uma perspectiva desvinculada da ideologia. Neste contexto, um aspecto inicial que o pensamento bakhtiniano permite trazer para a discussão envolve o confronto entre os dois níveis de ideologia que se fazem presente no processo formativo. De um lado, tem-se o conhecimento acadêmico, já cristalizado e estável e, de outro, o conhecimento que o futuro professor carrega consigo, fecundo nas interações cotidianas ao longo da sua vida, que caracteriza a ideologia do cotidiano

É razoável pensar que os processos formativos necessitam atentar-se para o fato de os futuros professores trazerem consigo uma bagagem de conhecimentos, crenças e atitudes referentes ao ensino e à aprendizagem que vai sendo formatada ao longo muitos anos, desde as primeiras vivências como alunos, a partir do contato com seus professores. Isso constitui o que a literatura chama, frequentemente, por formação “ambiental”, “incidental”, “tácita” (Maldaner, 2000).

Desta forma, o licenciando, ao ingressar no curso de formação, se vale de uma série de concepções sobre como ensinar, como o aluno aprende, como avaliar, sobre o que é ciência, entre outras. Esse grupamento de concepções irá influenciar no processo formativo, podendo constituir-se em um elemento prejudicial à formação, uma vez que “responde a experiências reiteradas e se adquire de forma não-reflexiva como algo natural, óbvio, o chamado ‘senso comum’, escapando assim à crítica e transformando-se em um verdadeiro obstáculo” (Carvalho & Gil-Pérez, 1995, p. 26). Tais concepções, características da ideologia do cotidiano, irão confrontar-se diretamente com concepções acadêmicas sobre os mesmos temas, que se mostram mais aceitas, estabilizadas e com o crivo dos pesquisadores no decorrer do processo formativo. Assim, entendemos que o professor formador tem função singular em tal processo, pois recai sobre ele a responsabilidade de fomentar a reflexão crítica e a desconstrução e (re)construção de concepções em confronto.

Embora a ideologia do cotidiano possa representar um obstáculo no processo formativo, Furió-Mas (1994) aponta que, quando a formação ambiental é levada em consideração no processo formativo, seu questionamento não é tão problemático, pois, apesar de sua marcante naturalidade, não tem como característica uma forte estabilidade e consistência, justamente pela origem incidental. Muito provavelmente, esta pouca consistência ocorre, como sugere a discussão do Círculo, pelo fato de constituir um nível mais baixo de ideologia cotidiana. Diante disso, ao formador cabe compreender quais são as concepções de senso comum sobre docência trazidas pelos licenciandos, estudá-las e identificar seu nível de estabilidade e consistência, de forma a poder discuti-las adequadamente. Nesta dinâmica, a maneira como os discursos do formador serão articulados fará bastante diferença para se atingir as aprendizagens que se propõem, podendo ser, de acordo com o pensamento bakhtiniano, de autoridade ou internamente persuasivos (a serem discutidos mais adiante).

Outro aspecto relevante a destacar nessa discussão sobre ideologia é a função determinante que a ideologia oficial, marcada pelos interesses dos grupos dominantes, assume na formação de professores, pois, como sugere o pensamento bakhtiniano, dá o tom hegemônico das relações sociais e, portanto, também da educação e da própria formação docente. Por exemplo, de acordo com as teorias críticas, a educação incorpora os valores e ideais da ideologia dominante, transformando a escola um instrumento que, via de regra, acaba servindo para a reprodução das relações sociais vigentes (Silva, 2010).

Assim, a formação docente também se dá nesses termos, se dá a partir das mesmas contradições estruturais e ideológicas relacionadas com o plano social mais amplo (carregadas pela língua para dentro da formação), sendo formatada, em geral, de acordo com os interesses do Capital, como se vislumbra através da perspectiva da racionalidade técnica, na qual há um viés de formação utilitarista, com vistas à eficiência e à burocratização (Oliveira & Jesus, 2020; Baldan & Cunha, 2020). A própria noção de competências, vigente nas políticas públicas de formação docente, é um desdobramento das concepções capitalistas da classe dominante, da filosofia neoliberal na educação (Kuenzer, 2002; Lavoura, Alves, & Santos Junior, 2020). Neste contexto, reflexões sobre as novas diretrizes de formação docente alertam para essa articulação entre a ideologia dominante, as competências e o processo formativo:

Ela [racionalidade neoliberal] forma um fio condutor que amarra e articula formação de professores e Educação Básica, conectadas e fundamentadas nas competências e habilidades definidas na BNCC. Abre-se, a partir de tal proposição, uma porta considerável para o mercado, que estará apto a fornecer produtos e serviços no âmbito educativo alinhados à missão de concretizar a BNCC nas salas de aula do país. A Resolução CNE/CP n. 2/2019 configura-se como estratégia potente, que se articula com outros arranjos, de forma a compor uma rede de formação de capital humano atrelada aos princípios do neoliberalismo em uma versão conservadora. (Gonçalves, Mota, & Anadon, 2020, p. 373).

Diante disso, a política instituída a partir da Resolução CNE/CP n. 2/2019 representa um belo exemplo da necessidade de discussão acerca da ideologia nos processos formativos, uma vez que esse movo modelo conduz a uma perspectiva mecanicista, acrítica, desintelectualizada, voltada puramente para o mercado de trabalho (Pires & Cardoso, 2020).

Assim sendo, esta concepção de educação, sob a égide das relações sociais dominantes, “tende a se reduzir a uma preparação psicofísica, intelectual, estética e afetiva subordinada às necessidades unidimensionais da produção mercantil” Frigotto (2009, p. 72), pois o trabalho é reduzido a uma mercadoria, que tem seu valor definido pelo mercado do emprego (compra e venda de força de trabalho), com vistas a uma política de resultados (Santos & Ferreira, 2021). Quando, na verdade, o trabalho é um princípio educativo (Lavoura, Alves, & Santos Junior, 2020), pois por meio dele “o ser humano produz a si mesmo, produz a resposta às necessidades básicas, imperativas, como ser da natureza (mundo da necessidade), mas também e não separadamente às necessidades sociais, intelectuais, culturais, lúdicas, estéticas, artísticas e afetivas” (Frigotto, 2009, p. 72). Diante destas conjunturas, como apontam Aguiar e Tuttmann (2020), os modelos formativos propostos pelas políticas caracterizam-se pela disputa de projetos de sociedade que se organizam em torno de duas perspectivas.

Assim, as propostas curriculares de formação de professores podem estimular as práticas revolucionárias ou retardá-las, à medida que permitam ou não a compreensão do mundo do trabalho capitalista com todas as suas contradições; que possibilitem o desenvolvimento de práticas conservadoras ou estimulem o desenvolvimento de sujeitos críticos e criativos, comprometidos com a construção de outras relações sociais. (Kuenzer, 2011, p. 678).

Desta forma, mais do que formar o professor para o mercado de trabalho, com aceitação acrítica da ideologia dominante, é necessário formá-lo para o mundo do trabalho, formá-lo para que seja capaz de compreender as contradições existentes na sociedade, de forma a buscar sua transformação, uma vez que, na concepção bakhtiniana, a ideologia apenas irá renovar-se em movimento, como reação das transformações que se dão na base. Isso significa, não aceitar a visão determinista e pessimista de que a esfera educacional vai reproduzir os valores hegemônicos em definitivo. Significa que na educação há espaço para a resistência, pois apesar de a ideologia dominante dar o tom hegemônico, como nos mostra o pensamento bakhtiniano, não é o único. Essa resistência, todavia, não pode consistir apenas na oposição, na subversão, necessita ir além, no sentido de gerar possibilidades de mudança, de emancipação, pois, o contra-hegemônico, necessariamente, está relacionado à luta, à transformação (Giroux & Mclaren, 2002).

É neste sentido que a dimensão política se torna essencial para a formação docente, torna-se impossível de ser silenciada, pois ela é que tem potencial de conferir à formação o caráter de compreensão ampla da realidade, de estabelecer a crítica e possibilitar transformações. O primeiro aspecto a ser evidenciado é a própria falácia da neutralidade dos processos formativos, como se estes pudessem ocorrer de forma ideologicamente isenta.

Talvez seja este o primeiro desafio a enfrentar: superar a falsa consciência da suposta neutralidade das políticas e propostas de formação. Mesmo considerando que o espaço da formulação e implementação de políticas é um campo de disputas, o campo da formação de professores tem sido tratado por sobre as diferenças de classe, como se o simples fato de exercer a profissão docente isentasse esses profissionais de valores, concepções e compromissos de classe. Ou, como diria Gramsci (1978), como se fossem intelectuais tradicionais, que se colocam acima das diferenças de classe, buscando educar a todos para o bem comum. (Kuenzer, 2011, p. 669).

Um exemplo de como a dimensão política é importante na formação fica bastante evidente em períodos como o que tem passado a educação, alvo de ataques com objetivo de promover silenciamentos que levariam “à liquidação da escola pública como espaço de formação humana, firmado nos valores da liberdade, de convívio democrático e de direito e respeito à diversidade” (Frigotto, 2017, p. 17), tal como previa o projeto “Escola sem Partido” (PL 7180/14). De forma simplificada, o projeto desejava impor uma falsa neutralidade ideológica na educação, quando, na verdade, o que desejava eliminar era exatamente a ideologia capaz de transformar, movimentar, reestruturar a ideologia oficial que está dada (como “neutra”) na sociedade e na educação.

Neste sentido, é possível aproximar a dimensão política da formação aos pressupostos de Giroux (1997, p. 163) que apontam para “a necessidade de tornar o pedagógico mais político e o político mais pedagógico”. Isso significa que a formação docente não pode se limitar a discutir apenas as valiosas questões de ordem pedagógica e metodológica, mas precisa assumir também um caráter crítico com relação à sociedade, à escola, ao conhecimento, ao ensino. A formação deve levar o futuro professor a pensar sobre o que ensina, por que ensina e, principalmente, para quem ensina, sempre com vistas ao fortalecimento democrático, à superação das injustiças sociais e econômicas, à promoção da problematização e ao desenvolvimento de seres agentes, críticos e com voz ativa, o que certamente não se verifica no modelo hegemônico de formação.

O importante não é apenas proporcionar aos futuros professores uma formação que os permita desenvolverem uma linguagem da crítica (muito embora nem isso ocorra no modelo hegemônico), mas para além, desenvolverem uma linguagem da possibilidade, que permita a efetiva atuação para desestabilizar e transformar aquilo que a linguagem da crítica permite contestar. São aspectos alinhados à própria complexidade da ideologia no pensamento bakhtiniano que, entre instabilidade e estabilidade, se estabelece em movimento constante de destruição-(re)construção-transformação de significados do mundo e dos sujeitos, como espaço de contradição e não de ocultamento.

Assim, a partir da dimensão política, vislumbra-se, então, o deslocamento de características formativas tradicionalmente associadas ao modelo de professor enquanto racionalista técnico em direção ao modelo de professor como intelectual crítico, nos termos de Contreras (2012):

A figura do intelectual crítico é, portanto, a de um profissional que participa ativamente do esforço para descobrir o oculto, para desentranhar a origem histórica e social do que se apresenta como ‘natural’, para conseguir captar e mostrar os processos pelos quais a prática do ensino fica presa em pretensões, relações e experiências de duvidoso valor educativo. Do esforço também para descobrir as formas pelas quais os valores ideológicos dominantes, as práticas culturais e as formas de organização podem não só limitar as possibilidades de ação do professor, mas também as próprias perspectivas de análise e compreensão do ensino, de suas finalidades educativas e de sua função social. Igualmente, o intelectual crítico está preocupado com a captação e potencialização dos aspectos de sua prática profissional, que conservam a possibilidade de ação educativamente valiosa, enquanto busca a transformação ou a recondução daqueles aspectos que não a possuem, sejam pessoais, organizacionais ou sociais. (Contreras, 2012, p. 203).

Assim, a dimensão política da perspectiva dialógica-responsável aponta para o comprometimento da formação em possibilitar uma compreensão mais ampla da sociedade, dos jogos de poder, dos condicionantes que influenciarão positivamente ou negativamente a vida dos futuros professores, sua atuação em sala de aula e a vida de seus alunos. Implica uma formação crítica que leve o futuro professor a pensar sobre o que ensina, por que ensina e, principalmente, para quem ensina, sempre com vistas ao fortalecimento democrático, à superação das injustiças sociais e econômicas, à promoção da problematização e ao desenvolvimento de seres agentes, críticos e com voz ativa. Assim, traz nuances de uma intelectualidade crítica para a formação, bem como apontamentos para a construção de uma autonomia docente como emancipação.

DIMENSÃO CONTEXTUAL DA FORMAÇÃO DOCENTE

Ao longo dessas discussões, fica evidente que o pensamento bakhtiniano rejeita a tese de que a língua é um sistema de formas linguísticas abstratas e estáveis, regida por leis normativas que lhe proporcionariam um caráter objetivo e fechado, independente de valores ideológicos, neutra, desvinculada do plano social. Da mesma forma, rejeita a antítese em relação a esta, de que a língua se materializa em atos de fala puramente individuais, como uma atividade análoga às criações artísticas, guiada por leis da psicologia individual. Assim, no pensamento bakhtiniano, vislumbra-se a ideia de que “a língua vive e se forma historicamente justo aqui, na comunicação discursiva concreta, e não no sistema abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (Volóchinov, 2017, p. 220). Desta forma, como conceitua Volóchinov (2017, p. 221), “os enunciados são as unidades reais do fluxo da linguagem”, cuja origem está justamente na interação entre os sujeitos:

Uma enunciação concreta (e não uma abstração linguística) nasce, vive e morre no processo de interação social dos participantes da enunciação. Sua significação e sua forma em geral se definem pela forma e caráter dessa interação. (Volochínov, 2013, p. 86).

Assim, para o pensamento bakhtiniano há uma distinção clara entre as unidades convencionais da língua (frases e orações) e as unidades reais da comunicação (enunciados). As unidades convencionais são abstrações linguísticas, que independem do contexto e dizem respeito ao repetível e generalizável, não possuem um vínculo direto com o fenômeno da vida real. Em oposição a estas unidades estão os enunciados que, em uma concepção coerente com a visão de eventicidade e unicidade do ser, priorizam o irrepetível, o único, o singular, o concreto, o real, são fruto de interações e, consequentemente, permeados de relações alteritárias. Vê-se ainda, que, como o enunciado é determinado basicamente pela interação, pelas condições da enunciação, sempre estará ligado às estruturas sociais (Bakhtin, 2011).

Ou seja, os enunciados sempre irão refletir as particularidades de um dado campo da atividade humana, por isso, precisam ser tomados em sua totalidade, o que envolve não apenas o verbal, mas também o extraverbal. Em função disso, o enunciado é determinado pela situação e pelo seu auditório, em que se compreende que o primeiro é “a efetiva realização na vida real de uma das formas, de uma das variedades, do intercâmbio social” (Volochínov, 2013, p. 159); e o segundo, a presença de um ou mais atores/locutores que a situação vivida supõe.

O auditório reflete na orientação social do enunciado. Como um enunciado, diferente das frases e orações, sempre possui um interlocutor, um destinatário, uma direcionalidade, sua construção sempre leva em consideração quem é este interlocutor (mesmo que não seja real), sendo mediada, portanto, por relações de alteridade. Assim, as condições do outro, como sua classe social, sua profissão, suas convicções e preconceitos, por exemplo, irão influenciar na compreensão responsiva do enunciado proferido a ele.

Já a situação aponta para o fato de que “a comunicação discursiva nunca poderá ser compreendida nem explicada fora dessa ligação com a situação concreta” (Volóchinov, 2017, p. 220). Por isso, a comunicação verbal exige sempre um complemento extraverbal, que representa todo o entorno sócio-histórico-cultural envolvido na interação verbal entre os sujeitos. O contexto extraverbal é o que confere sentido à parte verbal do enunciado, pois a significação da palavra é a mesma em todas as situações, entretanto, o seu sentido, é definido apenas na correlação com o contexto extraverbal. O contexto extraverbal permite compreender “que é precisamente a diferença das situações que determina a diferença dos sentidos de uma mesma expressão verbal” (Volochínov, 2013, p. 172, grifo do autor), pois o que o define é a articulação de três fatores inseparáveis (Volochínov, 2013, p. 78):

  1. um horizonte espacial compartilhado por ambos os falantes (a unidade do visível);

  2. o conhecimento e a compreensão comum da situação, igualmente compartilhada pelos dois;

  3. a valoração compartilhada pelos dois, desta situação.

Neste sentido, o enunciado sempre possui uma parte percebida ou realizada pelas palavras e uma parte subentendida. A parte subentendida, constituída pelo contexto extraverbal, são os conhecimentos que não estão explícitos verbalmente, mas subentendidos, indicando que o dito na interação é complementado pelo não dito. O presumido representa, portanto, aquilo que é comum/compartilhado entre os sujeitos da interação, aquilo que é visto, reconhecido, sabido, “trata-se antes de tudo de uma unidade material do mundo, que forma parte do horizonte dos falantes [...] e da unidade das condições reais da vida que geram a comunidade das valorações” (Volochínov, 2013, p. 80). O que é pressuposto tem de ser, portanto, social e jamais individual.

Cabe ressaltar que o presumido pode assumir um caráter mais ou menos amplo. Em um nível menos amplo está o contexto imediato, mais estreito, restrito, que se refere mais especificamente ao momento de ocorrência da enunciação; tal nível pode expandir-se tanto no tempo como no espaço e assumir um contexto mais amplo, um contexto mediato, referente à relação que os sujeitos da interação têm com o plano da organização social e histórica no qual estão inseridos. Neste caso, o enunciado pode agir se sustentando em fatores constantes da vida e em avaliações sociais fundamentais.

Assim, nesta concepção, a formação docente, como atividade humana que exige a linguagem para se estruturar e desenvolver não deveria desvincular-se dos mais diversos contextos que a envolvem e que lhe conferem sentido. Por isso, o referencial bakhtiniano permite refletir que os processos formativos docentes exigem uma dimensão contextual e institucional.

Um primeiro contexto relevante a destacar, talvez envolto por certa obviedade, é o mais imediato, o contexto de ocorrência dos eventos, da sala de aula no qual interagem professor formador e futuro professor. Sobre este contexto estreito, obviamente, deve ser levada em consideração a articulação dos três elementos que definem o contexto extraverbal da situação, mas, principalmente, as nuances desses elementos que se referem ao auditório desta situação: Quem é este estudante? Quais visões de mundo possui? O discurso será compreendido por ele de que forma? Neste sentido, esse contexto mais imediato aponta para a necessidade de não-indiferença do formador com o licenciando, tal qual acontece, muitas vezes, na educação universitária.

A irrelevância do auditório no processo, a indiferença com o sujeito, é uma marca, por exemplo, do próprio contexto científico influenciando a formação docente. Não importa muito o sujeito, importa o conteúdo, o conhecimento. O contexto científico, que envolve a produção dos conhecimentos científicos, acaba sendo o mais preponderante nas instituições universitárias e introduz no ensino algumas visões de mundo que o caracterizam. Sob a presença forte deste contexto tem-se, nas universidades, a valorização das atividades de pesquisa e a depreciação das atividades de ensino e, consequentemente, a priorização de formações voltadas à pesquisa, como os cursos de bacharelado, em detrimento àquelas voltadas ao ensino, como as licenciaturas. Por exemplo, o próprio professor universitário não precisa ter afinidade ao contexto educacional ao ingressar na instituição, mas precisa possuir afinidade ao contexto científico, tendo de ter, necessariamente, formação e certo reconhecimento na área específica. Em geral, sua prioridade é fazer pesquisa e dar algumas aulas para cumprir a carga horária mínima necessária.

Neste sentido, o contexto científico tende a transpor valores como a hierarquização/priorização da pesquisa em detrimento ao ensino, da teoria em relação à prática, de quem produz conhecimento em detrimento a quem “aplica/recebe”, entre outros. Porém, esse contexto, no qual se produzem os conhecimentos que se tornam objeto sobre que se debruçam formadores e licenciandos, envolve a formação docente de forma controversa, pois não é a ciência de referência, o conhecimento produzido pela ciência que é ensinado pelos formadores, mas disciplinas que resultam da transformação, seleção e adaptação desse conhecimento. “Isso significa dizer que os conhecimentos acadêmicos são produzidos em meio a finalidades próprias das diferentes instituições universitárias, as quais orientam a escolha, a organização e a transformação dos conhecimentos científicos a ser ensinados” (Marandino, Selles, & Ferreira, 2009, p. 93).

A controvérsia reside no fato de que nesse processo de transformação, essas finalidades, são estabelecidas por aqueles que pesquisam formação docente e, portanto, assumem apreciações valorativas diferentes daqueles que pesquisam a área específica, logo a formação de professores se institui na tensão entre grupos envolvidos no processo: da área específica (Física, Química, Biologia, etc), da educação e área de interface (educação em ciências). Tal situação, permite pensar em outro contexto importante do processo formativo, um pouco mais abrangente que o nível imediato: o contexto institucional. O contexto institucional que, com sua visão sobre formação docente (nem sempre consensual entre os pares), implicitamente, organiza determinados comportamentos e as ações dos formadores, determina normas que influenciam a todos e cria um ambiente no qual determinadas visões de mundo podem ser consideradas indignas e outras naturalizadas - passando a ser inculcadas nestes sujeitos, mesmo que de forma velada, como aponta Deconto (2014).

Desta forma, cabe discutir sobre o papel dos formadores no sentido da concepção e leitura da proposta de formação do curso. Pensando na concepção, é necessário destacar as ações do Núcleo Docente Estruturante (NDE) dos cursos, criado pela portaria do MEC n° 147, de 2 de fevereiro de 2007, responsável pela formulação do Projeto Pedagógico do Curso (PPC). Entendemos que é da discussão desenvolvida neste núcleo (não sem a escuta de outros professores formadores) que a memória de futuro2 (Bakhtin, 2011) acerca da formação docente é projetada, isto é, a memória do acabamento “final” desta etapa de formação, materializada no PPC, que definirá um perfil de docente e deverá dar direcionamento às ações dos formadores.

Entretanto, o “acabamento” ao projetado não é dado somente pelos membros constituintes do NDE, mas por um conjunto maior de formadores e, neste sentido, entra em cena a leitura feita da proposta. Talvez, neste momento é que o contexto institucional, marcado por tensões e interesses diversos, mostre de maneira mais contundente seu reflexo na formação de professores. É possível afirmar que, muitas vezes, o PPC elaborado não se harmoniza à visão predominante de formação que circula no contexto institucional. Mais do que isso, não é absurdo afirmar que o PPC não é valorizado e conhecido pela maior parte dos sujeitos que compõem o contexto institucional. Neste sentido, tal contexto é decisivo para romper com uma formação hegemônica, pois, não basta ter um projeto pensado em uma concepção de contra-hegemonia de formação se não houver uma “leitura” deste que implique ações comprometidas com a memória de futuro aí projetada.

Por fim, há um contexto muito mais amplo implicado no processo de formação que diz respeito a questões históricas, sociais, políticas, econômicas que, sem dúvida, precisam ser articuladas aos conhecimentos de educação, bem como às formas de organização dos espaços escolares durante a formação docente. Assim sendo, um contexto mais amplo que impacta o funcionamento das universidades, bem como a organização de cursos de licenciatura e da própria escola onde o futuro professor irá atuar, é o contexto ideológico vigente na nossa sociedade nas últimas décadas, caracterizado pela implementação de políticas neoliberais.

Apesar dos movimentos de resistência das instituições, essa lógica penetra suas estruturas impactando na organização, gestão, valores, forma de produção do conhecimento, teor do currículo, formas de avaliação e formação dos profissionais (Leher & Motta, 2012). A lógica por trás dessas políticas são os interesses ligados à nova ordem econômica mundial, por meio da qual a educação passa a ser uma ferramenta capitalista, orienta-se para o mercado. Nesta concepção, a partir dos anos 80 uma série de reformas começaram a ser implementadas sob as determinações dos organismos internacionais/multilaterais.

Os organismos internacionais, a partir dessa realidade, passaram a determinar as metas que os países devem atingir, também em matéria de educação. Assim é que alguns organismos assumiram de forma velada o papel dos ministérios de educação, sobretudo no caso dos países em desenvolvimento. (Maués, 2003, p. 93).

Neste contexto, a formação de professores vem, com o passar dos anos, sendo influenciada cada vez mais por essas políticas, que tentam, a todo custo, efetivar seu projeto de desintelectualização, desqualificação e despolitização do professor, bem como o aligeiramento, esvaziamento e fragmentação da formação (Shiroma et al., 2017). Tais políticas têm sua incorporação nos projetos de formação docente favorecidas pelo que Shiroma et al. (2017) chamam de reconversão docente. Segundo Rossi (2005 citado em Shiroma et al., 2017, p. 22-23):

[...] reconversão docente significa ‘o conjunto de estratégias adotadas por distintas instâncias e centros de poder para racionalizar os sistemas educativos’ e ajustar as políticas educacionais ‘às pressões econômicas das agências (inter)nacionais’. Chegar-se-ia, assim, a atingir a ‘qualidade da educação’, bordão que subsumia o propósito de subordinar a Educação escolar e a formação docente às demandas do setor produtivo.

Assim, o conceito “reconversão” implica “atribuir novos significados para a formação e conduzir os professores a acreditarem na reforma e realizá-la. De outro lado, significa a adequação das instituições de formação a esse padrão” (Evangelista, 2010, p. 3). Dessa forma, na medida em que diretrizes de formação, como as mais recentes instituídas pela resolução CNE/CP n.2/2019, trazem, por meio da ideia da reconversão, os princípios da ideologia hegemônica e forçam as instituições formadoras a adequar-se a este padrão (logo, relaciona-se ao contexto institucional também), o impacto desse contexto no processo formativo fica evidente.

Logo, o contexto ideológico vigente na nossa sociedade é um exemplo desses contextos mais amplos da formação docente que precisam ser situados, compreendidos e criticados. Um contexto desses em nada se relaciona a uma educação no sentido bakhtiniano, pois nessa concepção não são a uniformização, a centralização, o padrão, o produto final que importam, mas a não-indiferença para com o outro, a amorosidade, a abertura, o processo, o respeito às diferenças.

Em síntese, a dimensão contextual e institucional da formação docente aponta para a necessidade de uma formação orgânica, preocupada com a totalidade e não com fragmentos isolados, com uma formação que precisa ser situada. Situada não simplesmente, mas como exemplo, nos contextos acima citados. Ao proporcionar esta visão mais integral, aclara sua natureza relacional para com as demais dimensões formativas, no sentido de conferir às mesmas mais significado, mais conexão com a realidade e consciência dos fenômenos que intercorrem no processo de formação desses sujeitos.

DIMENSÃO DO CONHECIMENTO DA FORMAÇÃO DOCENTE

Na concepção de linguagem do Círculo identifica-se que a situação e o auditório social irão determinar a forma como se realiza a escolha e ordenação das palavras, isto é, irão determinar o que no pensamento bakhtiniano é chamado de entoação, entonação expressiva, avaliação, acento de valor, apreciação valorativa, que nada mais é do que a questão do valor, o componente axiológico intrínseco ao ser humano, profundamente discutido em Bakhtin (2010), em sua plena correlação com a linguagem. Neste sentido, a entonação aponta para o fato de que:

Qualquer palavra realmente dita não possui apenas um tema e uma significação no sentido objetivo, conteudístico, dessas palavras, mas também uma avaliação, pois todos os conteúdos objetivos existem na fala viva, são ditos ou escritos em relação a certa ênfase valorativa. Sem ênfase valorativa não há palavra. (Volóchinov, 2017, p. 233).

Portanto, não há como haver enunciado sem avaliação, não há enunciado neutro, o mesmo terá sempre uma orientação avaliativa, que determina a escolha e ordem de todos os principais elementos significantes do enunciado, bem como a combinação entre eles. Assim, a entonação funciona como um guia das relações sociais estabelecidas entre o locutor e o ouvinte, podendo ser considerada a expressão fônica da avaliação social, em que fica evidente sua natureza essencialmente social e sua função de estabelecer um elo entre o verbal e o extraverbal. De tal maneira, a entonação, aponta que “enunciar é tomar uma posição avaliativa; é posicionar-se frente a outras posições sociais avaliativas, já que falamos sempre numa atmosfera social saturada de valorações” (Faraco, 2009, p. 74).

Tal saturação axiológica leva a olhar para a linguagem como um fenômeno estratificado, não apenas no sentido mais comum, que envolve estratificações produzidas por variedades sociais, temporais e geográficas, mas, fundamentalmente, “por índices sociais de valor oriundos da diversificada experiência sócio-histórica dos grupos sociais. Aquilo que chamamos de língua é também e principalmente um conjunto indefinido de vozes sociais” (Faraco, 2009, p. 57). Ou seja, a linguagem é heterogênea, constituída por uma multiplicidade de vozes sociais que caracterizam o que se chama de heteroglossia.

O conceito de voz, como outros do pensamento bakhtiniano, é de natureza metafórica, não representando uma emissão sonora, “mas da maneira semântico-social depositada na palavra” (Bubnova, 2011, p. 270). Assim, voz representa os “complexos semiótico-axiológicos com os quais determinado grupo diz o mundo” (Faraco, 2009, p. 56); “se identifica com opinião, ideia, ponto de vista, postura ideológica” (Bubnova, 2011, p. 276); “assume o caráter de visões de mundo ou percepções realizadas através do discurso” (Brait, 1999, p. 25).

Desta forma, é possível destacar, em primeiro lugar, que cada voz possui uma cronotopia que a situa como única e, em segundo lugar, que as vozes devem sempre ser entendidas como relacionadas a outras que são anteriores ao mesmo tempo que se dirigem a outras que virão, sendo, neste processo de confronto dialógico, produtoras de sentido. Todavia, Faraco (2009) aponta que, para o pensamento bakhtiniano, importa menos a heteroglossia do que a relação dinâmica que se instaura entre as múltiplas vozes, isto é, do que dialogização dessas. É neste mundo da heteroglossia dialogizada que tem vida o enunciado. Assim, o dialogismo é, para o Círculo bakhtiniano, o princípio constitutivo da linguagem e a condição de sentido do discurso, constituindo-se pelas relações dialógicas.

Essas relações são profundamente originais e não podem reduzir-se a relações lógicas, ou linguísticas, ou psicológicas, ou mecânicas, nem a nenhuma outra relação natural. É o novo tipo de relações semânticas, cujos membros só podem ser enunciados integrais (ou vistos como integrais ou potencialmente integrais), através dos quais estão (e nos quais exprimem a si mesmos) sujeitos do discurso reais ou potenciais, autores de tais enunciados. O diálogo real (a conversa do cotidiano, a discussão científica, a discussão política, etc.). A relação entre as réplicas de tal diálogo é o tipo mais extremamente notório e simples de relações dialógicas. Contudo, as relações dialógicas não coincidem, de maneira nenhuma, com as relações entre as réplicas do diálogo real; são bem mais amplas, diversificadas e complexas. (Bakhtin, 2011, p. 330-331).

Disso decorre, primeiramente, que a troca de turnos entre os interlocutores é apenas um dos sentidos atribuídos ao diálogo. O diálogo face a face é, portanto, apesar de ser a mais importante forma de interação verbal, o sentido estrito dessa conceituação que, em um sentido amplo, é campo de manifestação das relações dialógicas - mais complexas e elaboradas do que esta simples relação mecânica. Assim, as relações dialógicas não se reduzem meramente a relações lógicas ou linguísticas, são relações semânticas, relações de sentido que se estabelecem entre enunciados (Bakhtin, 2011).

O dialogismo implica que todo enunciado está relacionado ao “já dito”. Não existe palavra primeira, o falante não é um Adão bíblico (Bakhtin, 2011), o discurso é sempre constituído a partir do diálogo com outros discursos, evidentemente, não de maneira mecânica, direta, como reflexo de algo já existente fora dele, acabado. O enunciado é criado a partir de algo já existente, mas nesse processo torna-se algo novo, único, que não existia antes dele (Bakhtin, 2011). Por outro lado, o enunciado não tem apenas elos precedentes, mas também elos subsequentes, isto é, o dialogismo implica também que, além de se orientar pelo já dito, as enunciações se orientam para a resposta: “o enunciado se constrói levando em conta as atitudes responsivas, em prol das quais ele, em essência, é criado” (Bakhtin, 2011, p. 301). Da mesma forma que não existe palavra primeira, não existe palavra última, o enunciado sempre requer uma resposta do outro, que é antecipada pelo autor; o enunciado constitui-se na relação com o outro.

Como o enunciado se posiciona frente a uma resposta, ele exige sempre uma compreensão responsiva (Bakhtin, 2011), isto é, uma compreensão que não seja passiva, que não seja uma simples repetição do pensamento do enunciador em um processo sem relação entre os participantes, no qual ocorre apenas o reconhecimento, a identificação de códigos. “Compreender um enunciado alheio significa orientar-se em relação a ele, encontrar para ele um lugar devido no contexto correspondente” (Volóchinov, 2017, p. 232). Assim, compreensão responsiva/ativa sempre implica uma tomada de posição, implica também procurar a cada palavra do enunciado do autor opor uma contrapalavra própria. Ou seja, a compreensão é uma resposta a signos por meio de outros signos, uma vez que não se compreende o signo pelo mesmo signo. Portanto, como enfatiza Volóchinov (2017, p. 232), “toda compreensão é dialógica”.

Além disso, o dialogismo aponta que todo enunciado é internamente dialogizado, isto é, é o ponto de encontro e confronto de várias vozes. Como destaca Bakhtin, não existem palavras sem voz: “em cada palavra há vozes e às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente” (Bakhtin, 2011, p. 330). Assim, dentro de um enunciado, estas vozes se envolvem em relações dialógicas: “elas vão se apoiar mutuamente, se interiluminar, se contrapor parcial ou totalmente, se diluir em outras, se parodiar, se arremedar, polemizar velada ou explicitamente e assim por diante” (Faraco, 2009, p. 58).

O dialogismo, sem dúvida, é um elemento presente na formação docente. Sendo a formação mediada pela linguagem, dada por processos interativos, as relações de sentido estabelecidas entre os mais diferentes discursos aí presentes são marcadas pelo dialogismo. A partir da linguagem se dá a construção do conhecimento nos processos formativos, a linguagem não como língua, mas como enunciado que depende do contexto, que é permeado por muitas vozes, que responde e é resposta, que é permeado por avaliações, que é dialógico. Logo, o processo de construção de conhecimento é de extrema dinamicidade e representa uma dimensão que não poderia deixar de estar presente nas reflexões sobre formação docente.

O conhecimento que permeia a formação docente é bastante complexo, pois é fruto da dialogização de uma quantidade indefinida de vozes (Faraco, 2009): oriundas dos professores das diferentes disciplinas, dos colegas, dos livros didáticos, das discussões em seminários, dos professores presentes nas salas de aula em que se realizam os estágios, dos artigos, do orientador de iniciação científica, etc. É possível afirmar que esse conhecimento se constrói muito mais pelo confronto de vozes antagônicas do que pelo encontro harmônico destas. Há muito se fala, por exemplo, dos conflitos entre as vozes oriundas das Faculdades de Educação e dos Departamentos Específicos nos processos de formação docente: de um lado são evidenciados os componentes de natureza humanística; de outro, são abordados componentes de natureza específica, normalmente pautados por visões de mundo com traços positivistas.

O conflito entre essas diferentes vozes em si não representa um problema na formação, uma vez que não nos parece equivocado pensar que, à luz do pensamento bakhtiniano, o conhecimento constrói-se de maneira relacional, no confronto de um sentido com outro, de um acontecimento com outro, de uma voz com a outra, etc., entretanto, a forma como o conflito entre as diferentes vozes se estabelece pode ser nociva. Assim, se a dimensão do conhecimento envolve tanto os de natureza específica quando os de natureza pedagógica (e muitos outros, é claro), a forma como estes são construídos e concebidos na formação será crucial, tendo em vista que, assim como prima o pensamento bakhtiniano e mostramos em Deconto (2020), estes deveriam ser constituídos por uma visão totalizante e não fragmentária, por uma visão arquitetônica e não mecânica, como ocorre, por exemplo, se esses componentes do conhecimento são desenvolvidos de maneira desarticulada, como se vislumbra na racionalidade técnica.

Portanto, pensando na oposição entre o que não se deixa penetrar “a unidade de sentido” (Bakhtin, 2011) - mecânico - e o que indica um espaço de construção provisória - arquitetônico, de relações interativas, a dimensão do conhecimento permite apontar para a necessidade de promover a articulação dos conhecimentos que constituem a formação (aqui usamos como exemplo apenas a dicotomia específico x pedagógico, mas com a ressalva de que não são os únicos) implicando-se mutuamente, estabelecendo relações de sentido, estabelecendo um diálogo vivo, sem permitir que algum seja emudecido. Só dessa maneira a formação escapará de “uma forma monológica do saber” (Bakhtin, 2011). Como fruto de um processo de construção, portanto, dialógica, esses conhecimentos precisam ser compreendidos de forma responsiva pelos futuros professores, de forma que possam ser conhecimentos por eles reconhecidos como tais, pois como aponta Bakhtin (2010), o conhecimento não é aquele universalmente válido, mas sim aquele atualizado pelo reconhecimento do ser. Assim,

No interior da concepção de conhecimento de Bakhtin está presente uma crítica à razão instrumental e ao utilitarismo: as ciências humanas são definidas como uma forma científica outra, numa perspectiva histórica (BAJTIN, 1997, 2003). Ao mesmo tempo, o conhecimento se vincula ao ato ou agir ético. Separar a razão da atividade histórica e da vontade seria pura ilusão do racionalismo (1997, p. 34). Aproximando-se da concepção de educação de Paulo Freire, em Bakhtin o conhecimento se relaciona à mudança. A educação como ciência humana e social, como práxis, tem uma dimensão de busca da verdade e ao mesmo tempo uma dimensão de ação. [...] Mudar é vencer a indiferença, estabelecer a diferença, alterar, se incomodar com a situação do outro, dos muitos outros. Nesse processo o conhecimento é marcado pela estética, contribuindo para pensar a vida de professores e estudantes, bem como o papel da universidade. (Kramer, 2013, p. 41).

Diante dessas considerações sobre o conhecimento, seria razoável propor que todos os cursos de Licenciatura, não apenas os de Letras, tivessem algum contato com a perspectiva do Círculo bakhtiniano em seu processo formativo, talvez em disciplinas de fundamentos epistemológicos, uma vez que isso possibilitaria uma compreensão mais ampla sobre a produção de conhecimento e sobre as relações dos docentes com os “outros” dos processos educativos (professores, alunos, pais, gestores, etc.); além de mostrar a necessidade de humanizar a docência e torná-la mais dialógica, mais aberta, dinâmica, imprevisível, menos fechada, menos dogmática, técnica.

Outra questão relevante é que o dialogismo aponta que tudo o que é dito está povoado por palavras do outro, de forma que o enunciado é marcado pela manipulação do que, no pensamento bakhtiniano, é chamado de “discurso alheio”. Este é considerado “o discurso dentro do discurso, o enunciado dentro do enunciado, mas ao mesmo tempo é também o discurso sobre o discurso, o enunciado sobre o enunciado” (Volóchinov, 2017, p. 249). Por isso, falar, como aponta Ponzio (2009), significa empregar peças obtidas da desmontagem de discursos alheios, que são discursos concretos, são materiais já manipulados que possuem não apenas significados gerais, mas também sentido ideológico.

Porém, isso não se dá em uma relação de simples equivalência, uma vez que os discursos se dispõem em relações dialógicas. Isto significa que o enunciado, além da voz do seu locutor, reproduz vozes outras, algumas vezes de forma explícita, bem demarcada e outras vezes de forma velada. No processo de transmissão da palavra de outrem haverá modos distintos de funcionamento das vozes: algumas atuarão como vozes de autoridade e outras como vozes internamente persuasivas. É a partir do embate e das interrelações dialógicas entre estas duas categorias se dará a construção socioideológica do sujeito.

A palavra autoritária, como aponta Faraco (2009, p.84), “é aquela que nos interpela, nos cobra reconhecimento e adesão incondicional”, pois está ligada à autoridade e impregnada da noção de verdade absoluta, assim, assume forma incontestável e hierárquica. Tal status, conferido no processo de reconhecimento e assimilação, impede que esta palavra seja modificada, devendo ser assimilada “como uma massa compacta, encapsulada, centrípeta, impermeável, resistente a bivocalizações” (Faraco, 2009, p. 84). A palavra autoritária circula pelas esferas oficiais da sociedade, representando a palavra da religião, dos pais, da ciência, do professor, da política, entre outras.

Diferentemente, a palavra internamente persuasiva é aquela que “aparece como uma entre muitas outras. Transita, portanto, nas fronteiras, é centrífuga, é permeável às bivocalizações e hibridizações, abre-se continuamente para a mudança” (Faraco, 2009, p. 85). Apesar de carecer de autoridade e ser muitas vezes desprezada publicamente e privada de legalidade, a palavra assim reconhecida pelo sujeito, é determinante no processo de formação ideológica da consciência individual (Vauthier, 2010). Pois, “ao contrário da palavra autoritária exterior, a palavra interiormente persuasiva, no decorrer de sua assimilação positiva, entrelaça-se estreitamente com ‘nossa palavra’” (Bakhtin, 1994 citado em Vauthier, 2010, p. 93).

Desta forma, há uma mescla de palavras, que constituem um discurso metade nosso, metade de outrem. Há um enlace e não um isolamento, uma separação, como é característico da palavra de autoridade. Portanto,

Na corrente da nossa consciência, a palavra internamente persuasiva costuma ser semi-“nossa”, semi-“alheia”. Sua produtividade criadora consiste precisamente em despertar nosso pensamento e nossa palavra autônoma, que organiza dentro das massas das nossas palavras, em vez de residir em um estado de isolamento e de imobilidade. (Bakhtin, 1994 citado em Vauthier, 2010, p. 93).

Assim, enquanto a palavra autoritária busca manter-se soberana às demais vozes, com o objetivo de aluir posições ortogonais e conflitantes, a palavra internamente persuasiva opera em sentido contrário, de abertura, de inacabamento, de apreciação e negociação entre as posições conflitantes. Neste sentido, Freitas (2013), questiona:

Até que ponto o professor ao se fixar nas palavras autoritárias impede a compreensão, a aprendizagem dos alunos? Como as palavras do professor dirigidas a seus alunos podem se tornar internamente persuasivas? Como o professor poderá estabelecer no processo de ensino-aprendizagem relações dialógicas com seus alunos de modo que se libertem das palavras alheias e construam as suas? (Freitas, 2013, p. 100).

Essa dinâmica que se estabelece entre as vozes é um aspecto de extrema relevância no processo de formação docente, pois a maneira como o professor formador exerce sua ação por meio da linguagem tem potencial de contribuir para formações mais profícuas ou, ainda, dificultar o processo, além de, neste último caso, proporcionar uma formação menos rica e dinâmica, como é demonstrado no estudo de Magalhães, Ninin e Lessa (2014). Se o discurso, como é comum nas Ciências Exatas, assumir o caráter de palavra autoritária, quase como uma verdade universal e incontestável, sem muito espaço para vozes conflitantes, questionadoras, problematizadoras, a construção do conhecimento dos futuros professores torna-se limitada, pois estes são praticamente obrigados a aceitar e aderir ao conhecimento que, neste caso, pode ser dito, é transmitido pelo professor.

Desta forma, não há construção de conhecimentos quando o discurso é de autoridade, há transmissão destes; não há interação, negociação de significados, há apenas a simples recepção. Esta situação é evidenciada nos modelos hegemônicos de formação, nos quais o futuro professor não é incentivado a refletir sobre sua aprendizagem, sobre sua prática, sobre os processos de ensino e de aprendizagem. Na formação hegemônica o licenciando apenas precisa se apropriar dos métodos e técnicas que irá aplicar em sala de aula, apropriar-se exatamente como os pesquisadores da academia propõem, a partir de sua autoridade científica, os modelos que julgam adequados a toda e qualquer situação e sujeito.

Em contrapartida, discursos internamente persuasivos podem suscitar o desenvolvimento de perspectivas contra-hegemônicas de formação, uma vez que, por não se colocarem como autoritários, permitem a abertura para a inferência. Nesta concepção, se estabelece uma interrelação entre a palavra do professor e as palavras próprias dos futuros professores, estas se entrelaçam, fornecendo dinamicidade, movimento, tensão, embate, reflexão, questionamento ao processo de formação. Vislumbra-se, portanto, uma perspectiva de negociação de sentidos em detrimento à rigidez, ao dogmatismo, permitindo a construção de conhecimentos ao invés da sua simples aceitação e incorporação “forçada”. É a perspectiva do dialogismo, da interação, da agentividade, da não-indiferença, da alteridade, que dá abertura para uma formação mais crítica, não doutrinadora e que permite o questionamento da ordem vigente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho desenvolvemos algumas reflexões sobre formação docente que o pensamento bakhtiniano permitiu desenvolver, sempre no tensionamento com o modelo hegemônico. Discutimos neste artigo as dimensões política, contextual e do conhecimento, características de parte do que chamamos “formação dialógica-responsável de professores” (Deconto, 2020). Tal construção não tem o objetivo de ser uma teoria de formação docente bakhtiniana, nem um modelo de formação; não estamos aqui estipulando uma prescrição para a formação docente, conteúdos que devem ser contemplados, a forma como deveriam ser contemplados ou como a formação deveria ocorrer. Apresentamos uma perspectiva (dentre outras que podem vir a existir com base nesse referencial) que contém reflexões nossas a partir da visão de mundo apreendida do pensamento bakhtiniano que pode contribuir para a constituição de formações contra-hegemônicas.

Neste processo, a noção de signo trouxe para a discussão, necessariamente, o tema da ideologia, possibilitando a emersão de uma dimensão política da formação dialógica-responsável. Da mesma forma, a visão de língua viva, concreta, entendida como atividade humana fruto da interação social, direcionam para a discussão da necessária vinculação entre enunciado, situação e auditório. Logo, indicam a importância do contexto para a compreensão da linguagem, a importância da situação real, da eventicidade, proporcionando reflexões sobre uma dimensão contextual dos processos de formação docente. Talvez, como conceito mais imediatamente associado ao pensamento bakhtiniano, o dialogismo, não teria como estar apartado das nossas discussões, trazendo entendimentos para as relações estabelecidas no processo de formação de professores, implicando diretamente a emersão da dimensão do conhecimento.

Como forma de sintetizar as discussões desenvolvidas nesta seção, apresentamos no Quadro 1 uma síntese com as dimensões da formação dialógica-responsável de professores aqui apresentadas, dimensões da formação contra-hegemônica que elementos do pensamento bakhtiniano nos permitiram construir.

Quadro 1: Síntese das dimensões da formação dialógica-responsável de professores. Fonte: Deconto (2020). 

Entendemos que essas dimensões da formação dialógica-responsável de professores permitem complementar ou, até mesmo, avançar em relação a outras perspectivas formativas já consagradas. Por exemplo, a dimensão contextual, como apresentada neste ensaio, dificilmente é contemplada em perspectivas mais progressistas de formação docente, diferente das dimensões política e do conhecimento. Todavia, a teorização correlata à dimensão do conhecimento, em grande parte das discussões de formação de professores, fica bastante restrita à importante discussão da articulação dos conhecimentos específicos e pedagógicos, avançando pouco para o entendimento do caráter dialógico, conflituoso, tensionador e responsivo desses conhecimentos que a concepção de linguagem bakhtiniana permite elaborar. Ou seja, a dimensão do conhecimento apresentada não se limita a discutir os conhecimentos da formação, mas a dinamicidade do seu acontecer no processo, destacando seu caráter de (re)construção em detrimento à reprodução/transmissão, que exige um deslocamento do autoritário, dogmático, estável, fechado, monológico, universalmente verdadeiro, muitas vezes característico da educação superior, para o instável, aberto, negociável, imprevisível, maleável.

Essas dimensões aqui discutidas, juntamente com aquelas desenvolvidas em Deconto e Ostermann (2021a) - ética, estética e práxica, entendidas não como prescrições, mas como princípios gerais, permitem repensar, transformar, dar encaminhamentos, estruturar formações que rompam com o modelo hegemônico de formação. Esse entendimento acerca das dimensões construídas se dá, justamente, pelo fato de estabelecerem uma perspectiva fundamentada em um movimento de crítica ao modelo hegemônico, a partir da revisão de seus pressupostos fundamentais. Nesse processo crítico, por meio do tensionamento com outros textos, emergiram insuficiências e contradições que nos permitiram, mesmo que não de forma plena, reconstruir a partir de uma outra visão, originada pela nossa compreensão ativa das ideias do Círculo.

Acreditamos que essa perspectiva traz contribuições relevantes para o campo da formação docente, pois as dimensões que construímos permitem estabelecer uma crítica contundente às anacrônicas diretrizes de formação docente (resolução CNE/CP n.2/2019). Essas dimensões contrapõem-se a concepções de formação estabelecidas nesse documento, como as discutidas e assim caracterizadas por Deconto e Ostermann (2021b): praticista; prescritiva e tecnicista; aplicacionista e reprodutivista; apolítica; e fragmentada. Para cada uma dessas visões, fundamentados nas dimensões práxica, do conhecimento, estética, política e contextual da formação dialógica-responsável, respectivamente, encontramos um arcabouço analítico potente para compreender o tamanho do retrocesso nas políticas de formação docente estabelecido pelas diretrizes de 2019.

Por fim, destaca-se a não arbitrariedade e não mecanicidade das dimensões da perspectiva dialógica-responsável de formação docente, isto é, não são categorias estanques, mas dimensões com organicidade originadas da teorização desenvolvida a partir dos conceitos de linguagem e ato responsável (no caso das dimensões complementares às apresentadas neste artigo) no contexto da formação docente.

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1Ao usarmos a expressão pensamento bakhtiniano não estamos nos referindo ao pensamento do Bakhtin, esta noção deve ser entendida como um corpus de fundamentos provenientes da constante interlocução entre intelectuais constituintes do chamado Círculo de Bakhtin ou Círculo bakhtiniano. Assim, as ideias desse Círculo que, na verdade, não é de Bakhtin, no sentido de ser um “mestre” dos demais intelectuais, devem ser entendidas como sendo do Círculo de que Bakhtin faz parte, constituído por outros intelectuais tão importantes quanto ele, como, por exemplo, Volochinov e Medvedev.

2Memória de futuro (Bakhtin, 2011) aponta para o fato de que é com uma imagem do futuro que se qualificam as ações do presente. É um porvir imaginado que, juntamente com a situação do presente, limita o cálculo de possibilidades a partir do qual será definida/escolhida uma determinada ação do ser, ação esta que, junto com outras que vão se fazendo necessárias, se estabelece no sentido de dar um acabamento ao projetado, àquela memória.

Recebido: 14 de Outubro de 2021; Aceito: 25 de Setembro de 2022

diomar.deconto@caxias.ifrs.edu.br

fernanda.ostermann@ufrgs.br

Diomar Caríssimo Selli Deconto - idealização do estudo; análise de dados; escrita, revisão e edição do manuscrito.

Fernanda Ostermann - análise de dados; escrita, revisão e edição do manuscrito.

Os autores declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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