INTRODUÇÃO
O processo de aprendizagem é diretamente influenciado pelas vivências pessoais dos indivíduos ao longo do tempo, sendo, por essa razão, muito difícil estabelecer um modelo único a ser seguido (DURKHEIM, 2011). No contexto do ensino superior, particularmente do ensino médico, a aprendizagem é fortemente influenciada pela volatilidade das percepções dos estudantes ao longo da formação. Fatores físicos, sociais e psicológicos exercem importante papel na assimilação pessoal do estudante, podendo repercutir no seu desempenho e na sua saúde mental (SHOCHET; COLBERT-GETZ; WRIGHT, 2015; COLBERT-GETZ et al., 2016). Aspectos relacionados ao ambiente educacional, como aptidão dos professores, abordagem do ensino, avaliações discentes e qualidade das instalações, podem modificar a visão global do processo de aprendizagem dos estudantes (PEROTTA et al., 2021).
Uma percepção negativa do ambiente educacional pode influenciar direta ou indiretamente a saúde mental e o sucesso acadêmico, já que este é dependente do bem-estar e da satisfação do discente (SHOCHET et al., 2013; GRØTAN; SUND; BJERKESET, 2019). Por essa razão, o perfil do ambiente educacional proporciona uma maneira ímpar de avaliar as qualidades e os déficits de uma instituição, criando análises comparativas dentro e fora da universidade, a fim de promover melhorias no ensino-aprendizagem (MOURÃO; CALDEIRA; RAPOSO, 2009).
De forma geral, a literatura aponta que o ambiente educacional não possui avaliações consideradas excepcionais entre os estudantes de medicina, embora seja visto no geral com mais aspectos positivos que negativos (OGUN; NOTTIDGE; ROFF, 2018; HYDE et al., 2018). Os aspectos com pior avaliação, em estudos internacionais, relacionam-se a questões acadêmicas e ao relacionamento social dentro do ambiente de ensino, exemplificado no desestímulo em relação ao curso, e os com melhor avaliação estão relacionados ao aprendizado e aos professores (SHAH et al., 2019; IRFAN et al., 2019). Estudantes de medicina brasileiros são mais críticos em relação ao ambiente educacional, apontando a necessidade de melhoria em vários aspectos relacionados ao ensino médico, sendo as questões acadêmicas e sociais as mais duramente criticadas (GUIMARAES et al., 2015; ENNS et al., 2016).
Uma estratégia utilizada em algumas escolas médicas nas últimas décadas como maneira de melhorar a percepção dos estudantes sobre o ambiente educacional tem sido a mentoria entre pares (ANDRE; DEERIN; LEYKUM, 2017). Nessa modalidade de aprendizagem, um indivíduo mais experiente em determinada área é responsável por orientar uma outra pessoa, com o intuito de contribuir para o desenvolvimento pessoal e profissional desta (PEYTON et al., 2001). Destaca-se, quando comparada à mentoria tradicional, que ocorre entre professores e estudantes, pois surge como uma estratégia capaz de atender às necessidades dos estudantes, trazendo a filosofia de que nada auxiliará mais o estudante do que o próprio estudante (SULMAZ et al., 2019). Além disso, a mentoria entre pares está associada a uma melhor percepção de suporte social (ACHERMAN et al., 2021), aspecto fortemente relacionado à saúde mental (GRØTAN; SUND; BJERKESET, 2019; SHAO et al., 2020), à uma melhor percepção de sucesso acadêmico (ANDRE; DEERIN; LEYKUM, 2017; CREE-GREEN et al., 2020; SHAFIAAI; KADIRVELU; PAMIDI, 2020) e à melhor adaptação acadêmica do estudante (TANAKA et al., 2016; SULMAZ et al., 2019; SANTANA; SERVO, 2021).
Seguindo essa tendência, no ano de 2013, foi criado, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), um grupo formado por estudantes denominado Grupo de Estudos em Didática Aplicada ao Aprendizado da Medicina (GEDAAM). O propósito do grupo é tornar a formação médica menos desgastante e mais competente. Utiliza como principal ferramenta a mentoria entre pares, além da aprendizagem baseada na autonomia, em que o compartilhamento de conhecimentos, o incentivo ao protagonismo estudantil e o desenvolvimento de habilidades interpessoais propiciam benefícios que ultrapassam a motivação acadêmica (ACHERMAN et al., 2021). O GEDAAM busca avaliar periodicamente os efeitos de sua atuação na vida acadêmica e pessoal dos estudantes que pertencem ao grupo. Nesse sentido, o presente trabalho teve como objetivo avaliar as percepções dos discentes de medicina participantes do GEDAAM sobre o ambiente educacional em que estão inseridos.
MÉTODOS
Sobre o GEDAAM
O GEDAAM organiza sua atuação junto aos estudantes de medicina pautado na estratégia de mentoria entre pares (ANDRE; DEERIN; LEYKUM, 2017). Além da discussão de temas relevantes para o ensino médico e a formação profissional, a equipe envolvida na condução dos grupos visa proporcionar um ambiente acolhedor, entendendo o erro como parte do ensino e da aprendizagem e respeitando as particularidades de cada indivíduo no processo. Tem como objetivo auxiliar o desenvolvimento de habilidades de comunicação, construção de rede de contatos e incremento de conhecimentos, aumentando a satisfação acadêmica e culminando em um percurso profissional mais assertivo.
Cada subgrupo de mentoria é formado por até três mentores (estudantes que participaram do GEDAAM e que fizeram o Curso de Formação de Coordenadores) e oito a 14 mentorandos de períodos variados, com duração de 15 encontros semestrais. A formação de turmas menores tem a finalidade de possibilitar maior interação entre os membros e personalizar os encontros de acordo com as peculiaridades e as demandas dos envolvidos. As discussões envolvem técnicas de Gestão (organização de tempo, metodologias de estudo, técnicas de oratória e apresentação); Casos Clínicos (Saúde Baseada em Evidências e abordagem de conhecimentos de todos os ciclos do ensino médico, permitindo contribuição de todos os membros no processo de aprimoramento do raciocínio clínico) e Saúde Mental (suporte social entre membros e acolhimento de questões individuais, além de formação de vínculos).
A entrada de novos membros ocorre semestralmente, de forma gratuita, mediante participação em evento de abertura organizado no formato de simpósio ou aula magna. É aberto a todos os estudantes da área da saúde e de outras Instituições de Ensino Superior (IES), mas concentra alunos do curso de Medicina da UFMG. Ingressam a cada ciclo de atividades aproximadamente 200 acadêmicos de diferentes períodos.
Fonte de dados e amostra
Os dados analisados no presente artigo são provenientes da fase transversal do estudo “MOTIRÕ - GEDAAM: qualidade de vida, autoeficácia e resiliência de participantes do Grupo de Estudos em Didática Aplicada ao Aprendizado da Medicina”. O objetivo do estudo é avaliar a repercussão da participação no GEDAAM de estudantes de medicina da UFMG na percepção sobre o ambiente educacional. Foram convidados a participar da fase transversal do estudo, realizada entre outubro e dezembro de 2019, todos os estudantes que faziam ou fizeram parte do GEDAAM desde 2013, quando o grupo foi fundado. O critério de seleção para participação no estudo foi ter participado do GEDAAM em algum momento, independentemente do tempo de permanência no grupo.
O estudo respeitou todos os preceitos éticos e todos os participantes consentiram de forma online, após leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), sua participação. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG (COEP/UFMG), CAAE n.º 19756819.0.0000.5149, parecer n.º 3.586.931.
Variáveis utilizadas e análise dos dados
Os estudantes responderam um questionário estruturado pelo Google Forms contendo questões relacionadas à participação no GEDAAM (tipo de participação, tempo de permanência, cargos, técnicas de estudo utilizadas), informações sociodemográficas (idade, gênero, cor da pele, orientação sexual, cidade de origem), relacionadas ao curso (ciclo e situação no curso - regular ou irregular) e percepção do ambiente educacional. O ambiente educacional foi avaliado por meio da escala Dundee Ready Education Environment Measure (DREEM), desenvolvida em 1997 (ABDULLA, 2014). Essa escala permite que os pontos positivos e negativos do ambiente educacional de cada IES sejam identificados e corrigidos (MILES; SWIFT; LEINSTER, 2012). Possui 50 itens em escala Likert de cinco pontos divididos em cinco Domínios: Aprendizagem, Professores, Acadêmico, Atmosfera e Social (ALTAWATY et al., 2020, ABDULLA, 2014). A pontuação global da escala varia de zero a 200 e corresponde à soma simples dos seus 50 itens. A pontuação de cada Domínio varia de acordo com a quantidade de itens: Aprendizado (0 a 48); Professores (0 a 44); Acadêmico (0 a 32); Atmosfera (0 a 48) e Social (0 a 28). Quanto maior o escore, melhor a percepção do ambiente de ensino (ROFF et al., 1997). Itens com escore médio individual < 2 são considerados pontos problemáticos; escores entre 2,1 e 3 são considerados pontos fracos; entre 3,01 e 3,4 são considerados pontos fortes e escores médios > 3,5 são considerados pontos muito fortes (ROFF et al., 1997). A versão brasileira da escala possui bons indicadores de validade (Alfa de Cronbach: 0,93) e confiabilidade que indicam o seu uso nesta população (OLIVEIRA FILHO; VIEIRA; SCHONHORST, 2005).
Foram realizadas análises descritivas (por meio do cálculo das distribuições de frequência, medidas de tendência central e de dispersão) e comparativas utilizando ANOVA One-way de acordo com o número de semestres completos no GEDAAM. Os dados foram analisados no Programa Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 19.0.
RESULTADOS
Participaram do estudo 129 estudantes, sendo 45% (n=58) deles membros atuais do GEDAAM. A maioria dos estudantes estava regular no curso (90,7%) e cursava o ciclo básico (45,7%), que corresponde aos dois primeiros anos da graduação. Mais da metade era do gênero feminino (55,8%), de cor da pele branca (64,3%), orientação sexual heterossexual (75,2%) e tinha idade média de 23,34 anos (mediana=22 anos; desvio-padrão=4,39). Pouco mais de um terço dos respondentes eram provenientes de outro estado que não Minas Gerais (35,7%).
A maior parte dos estudantes permaneceu no GEDAAM por um semestre completo (55,9%), seguido de dois semestres completos (39,0%). Uma menor parte respondeu que já assumiu cargo de coordenação de um dos grupos de mentoria (21,2%) e 53,4% não exerceu cargos administrativos, permanecendo apenas como mentorando em um dos grupos. Cargos administrativos foram relatados por 46,6% dos respondentes, que incluem o cargo de coordenador de grupo e ser membro de alguma diretoria (ensino, científica, coordenação geral, relações externas, marketing).
Entre as técnicas de estudo mais frequentemente relatadas, encontram-se: utilização de resumos (88,4%), leitura (77,5%), perguntas e exercícios (71,3%), esquemas (65,9%) e o método Pomodoro de estudo (63,6%). Menos da metade dos respondentes afirmou utilizar também estudos em grupo (48,8%), Flashcards e mapas mentais (47,3%, cada um). O tempo médio semanal dedicado aos estudos, excluindo-se o tempo de sala de aula, foi de 11,78 horas (Desvio-padrão = 7,98) (dados não apresentados em tabelas).
As Quadro 1 e 2 mostram as análises da percepção sobre o ambiente educacional avaliadas pelo DREEM. É possível perceber uma avaliação ruim para quase todos os itens analisados. Nenhum deles obteve avaliação média superior a 3,5, demonstrando que não há nenhum aspecto do ambiente educacional em que os estudantes estejam muito satisfeitos. O Domínio Aprendizado foi avaliado como mais negativo que positivo (escore total = 23,61). Considerando isoladamente os itens que o compõem, observa-se que 58,3% (n=7) deles obtiveram escore médio inferior a 2, indicando a existência de muitos problemas, e 41,7% (n=5) escores médios entre 2 e 3, indicando que são considerados pontos fracos (Quadro 1). Os acadêmicos compreendem como pontos problemáticos o fato de o ensino ser pouco estimulante (escore = 1,33), coeso e focado (escore = 1,73), o método do ensino não ser voltado para o desenvolvimento da confiança dos discentes (escore = 1,61) e tampouco enfatizar o aprendizado em fatos memorizáveis (escore = 1,58). Ademais, percebem que o tempo despendido para o ensino não é bem utilizado (escore = 1,41). Entre os pontos fracos, destaca-se o ensino pouco centrado no estudante (escore = 2,28), que pouco incita o processo de auto aprendizado (escore = 2,32), com objetivos do curso não tão explícitos (escore = 2,51), que não estimulam o desenvolvimento de competências pelos acadêmicos (escore = 2,16), além de a educação continuada ser pouco enfatizada (escore = 2,71).
A avaliação dos estudantes sobre o Domínio Professores indicou que “eles estão na direção certa” (escore médio total = 24,37) (Quadro 1). Nove das 11 perguntas que compõem esse domínio (81,8%) obtiveram escores médios entre 2,1 e 3. Como pontos problemáticos foram apontados a ausência de bons feedbacks (escore = 1,36), assim como a forma impaciente de lidar com os doentes (escore = 1,88).
Fonte: Elaborada pelos autores.
a. Valores de referência: Escore médio individual < 2: pontos problemáticos; entre 2,1 e 3: pontos fracos; entre 3,01 e 3,4: pontos fortes; > 3,5: pontos muito fortes.
b. Valores de referência: 0-12 (muito ruim); 13-24 (percepção mais negativa que positiva); 25-36 (percepção mais positiva que negativa); 37-48 (totalmente positiva).
c. Valores de referência: 0-11 (muito ruim); 12-22 (precisando de treinamento); 23-33 (estão na direção certa); 34-44 (professores modelo).
Fonte: Elaborada pelos autores.
a. Valores de referência: Escore médio individual < 2: pontos problemáticos; entre 2,1 e 3: pontos fracos; entre 3,01 e 3,4: pontos fortes; > 3,5: pontos muito fortes.
b. Valores de referência: 0-08 (sentimento de total fracasso); 09-16 (muitos aspectos negativos); 17-24 (mais aspectos positivos que negativos); 25-32 (autoconfiante).
c. Valores de referência: 0-12 (péssimo); 13-24 (muitos aspectos têm que ser melhorados); 25-36 (mais aspectos positivos que negativos); 37-48 (bom, de modo geral).
d. Valores de referência: 0-07 (péssimas); 08-14 (não são muito boas); 15-21 (não são tão ruins); 22-28 (muito boas) e. Valores de referência: 0-50 (muito pobre); 51-100 (com muitos problemas); 101-150 (mais positiva que negativa); 151-200 (excelente).
O Domínio Acadêmico obteve uma avaliação geral mais positiva que negativa (escore médio total = 17,49) (Quadro 2). A maioria dos itens (62,5%) apresentou médias entre 2,1 e 3, mostrando-se como pontos fracos. Como pontos problemáticos, foram apontados a percepção da dificuldade de se estudar medicina da mesma forma que se estudava antes (escore = 1,22) e a capacidade de memorizar tudo o que o estudante precisa (escore = 1,72). Apenas o item relacionado à confiança na aprovação no curso obteve escore superior a 3,01 (escore = 3,22).
O Domínio Atmosfera também foi avaliado pelos discentes como tendo mais aspectos positivos do que negativos (escore médio total = 28,14) (Quadro 2). A maioria dos itens deste domínio (83,3%) foram considerados como pontos fracos, sendo que o item melhor avaliado foi relacionado à oportunidade de desenvolver a prática de relacionamento pessoal (escore = 2,74). Os itens considerados problemáticos foram relacionados à prática de colar nas provas como algo comum (escore = 1,32) e o estímulo do ambiente para aprendizagem (escore = 1,99).
O Domínio Social foi considerado pelos estudantes como não sendo muito bom (escore médio total = 14,90) (Quadro 2). Apenas o item “minha vida social é boa” obteve um escore considerado como ponto fraco (escore = 2,21). A maioria dos itens desse domínio (57,1%) foi considerada como tendo muitos problemas (escores variando entre 1,40 e 1,94). Como pontos fortes destacam-se a existência de bons amigos na faculdade (escore = 3,03) e o fato de morar em local confortável (escore = 3,33).
A análise da percepção dos estudantes em relação ao tempo de participação no GEDAAM é mostrada na Figura .1 Observa-se que, para a Escala Global, à medida que se aumenta o tempo de permanência no grupo, mais crítico o estudante se torna. Há um leve aumento no escore após três semestres completos no GEDAAM. Essa tendência de aumento nos escores após três semestres também foi observada nos Domínios Aprendizado, Acadêmico e Social, sendo que neste último o escore foi maior que o obtido no início da participação no grupo. No Domínio Professores foi observada uma diminuição gradual nos escores à medida que o aluno permanecia mais tempo no GEDAAM. Para nenhum dos Domínios e Escala Global tais diferenças foram estatisticamente significativas (valor-p >0,05).
DISCUSSÃO
O ambiente educacional impacta diretamente a performance acadêmica e a carreira médica, uma vez que boas experiências de aprendizagem impulsionam as potencialidades individuais e encorajam os discentes a desenvolver uma boa performance profissional (PAI et al., 2014; MUSHTAQ et al., 2017). Desse modo, avaliar a percepção do ambiente educacional na graduação pode fornecer uma perspectiva ampla acerca do processo de aprendizagem e revelar áreas problemáticas passíveis de reformulação e aprimoramento (PAI et al., 2014; MUSHTAQ et al., 2017; CHAN et al., 2018).
No geral, os estudantes avaliados tiveram uma percepção “mais positiva do que negativa” do ambiente educacional (escore Global = 108,41). Esse resultado foi inferior ao observado em estudo multicêntrico realizado entre 2011 e 2012, envolvendo 22 escolas médicas brasileiras cuja pontuação média total foi de 119,4 (ENNS et al., 2016) e que o encontrado em outro estudo brasileiro realizado em 2013 com 105 estudantes de medicina da cidade de Petrolina (escore Global = 144,4) (GUIMARAES et al., 2015). Foi menor também que o observado em estudo realizado em 2014 com 423 estudantes no último ano de graduação de quatro faculdades de medicina na Arábia Saudita (escore Global = 147,7) (NOUH et al., 2016) e de estudantes de farmácia e medicina do Paquistão (escore Global = 130,1) (ASKARI et al., 2018). Embora numericamente inferior aos valores encontrados na literatura, essa pontuação classifica a percepção dos estudantes sobre o ambiente educacional na mesma categoria de acordo com Roff et al. (1997). Para ser considerado excelente, o escore médio Global deve ser superior a 151, o que denota que os estudantes analisados reconhecem pontos positivos na instituição, mas não deixam de apontar fragilidades.
Ao analisar os achados de acordo com cada um dos domínios, é possível observar que o Domínio Aprendizado e o Domínio Social foram os que obtiveram a pior avaliação. No que se refere ao Domínio Aprendizado, a percepção dos estudantes foi mais negativa que positiva (escore médio = 23,61). Esse resultado foi ligeiramente superior ao observado em estudo realizado entre 2015 e 2016 com 322 estudantes de medicina de Mumbai, Índia, cujos escores médios foram de 23,06 para os estudantes do quinto semestre e 19,77 para aqueles do sétimo (PATIL; CHAUDHARI, 2016). No presente estudo, todos os itens deste Domínio que foram considerados como pontos problemáticos (escore menor que 2) estão de certa forma relacionados à adoção de metodologias de ensino-aprendizagem com cunho tradicional, em que características como a centralidade do ensino no professor e a aprendizagem mecânica ganham ênfase (BES et al., 2019). Dessa forma, a avaliação dos estudantes refletiu a insatisfação com pontos importantes, como a falta de estímulo (escore = 1,61) e a falta de fortalecimento da confiança diante da educação (escore = 1,41).
Em oposição a essas abordagens mais tradicionais e conservadoras, as metodologias ativas conseguem proporcionar ao estudante de forma geral, e também ao estudante de Medicina, uma posição reflexiva da realidade e de protagonismo, em que o “aprender a aprender” ganha contornos de valorização pelas próprias diretrizes curriculares (MACEDO et al., 2018; DIAS-LIMA et al., 2019). Segundo Adada (2017), a IES deve ser regida não apenas por pautas estritamente referentes à matéria a ser ensinada, mas também por temas que abordem o desenvolvimento do discente como pertencente à sociedade, o que não foi observado pelos alunos do GEDAAM que participaram do estudo, cuja percepção considera que o processo de ensino-aprendizagem não é focado no estudante em sua complexidade (escore 2,28). Desta forma, é necessária uma mudança urgente para que as metodologias restritas à transmissão de conteúdos sejam abolidas e deem espaço a formas de ensino centradas no aluno, já que estas permitem a formação de um profissional independente que busca o conhecimento para desenvolver saberes cabíveis em seu contexto de vida e capaz de tecer críticas (BERBEL, 2011; FERNANDES; MELO; VIEIRA, 2015).
O Domínio Social também obteve uma avaliação negativa por parte dos estudantes pesquisados (escore = 14,90). Esse resultado foi pior que o observado por estudo realizado em 2014 com 595 discentes no Sri Lanka, que avaliou as percepções após renovação curricular (escore médio = 16,9), sendo o único Domínio sem declínio após as mudanças no modelo de aprendizagem, que previa maior integração entre as atividades do currículo (ELLAWALA; MARASINGHE, 2021). Além de perceber que as relações sociais, de forma geral, no contexto acadêmico “não estão muito boas", os estudantes avaliados no presente estudo ainda apontaram a presença de cansaço e a falta de um bom programa de apoio aos estudantes mais estressados. Embora não tenha sido possível avaliar uma relação direta entre tais aspectos e a saúde mental, pode-se inferir que de alguma forma tais questões, além de impactarem as atividades sociais em si, podem atuar como coadjuvantes no adoecimento mental, tão prevalente neste grupo populacional.
De acordo com Zaidhaft (2019), a educação médica é permeada pela escassez de prazer devido à ideia (equivocada) de que o “formar médico” implica a anulação do indivíduo e de suas potencialidades exteriores ao ambiente acadêmico, como se, ao escolher cursar medicina, o estudante precisasse abrir mão de toda a sua vida exterior à academia, impactando, por sua vez, sua percepção de suporte social. Além de se sentirem desestimulados com o curso e mais sozinhos, os estudantes chamaram atenção para a necessidade de um bom programa de apoio aos estudantes estressados. A prevalência de sintomas de estresse foi observada em mais da metade dos graduandos (60,9%) em um estudo realizado com estudantes de medicina do primeiro ao oitavo período no Paraná, Brasil (LIMA et al., 2016) e podem estar relacionados à sobrecarga exigida pelo volumoso conteúdo, bem como ao constante estado de alerta e tensão que estudantes de medicina estão condicionados (MOREIRA; VASCONCELLOS; HEATH, 2015).
Muitos estudantes perceberam a solidão como um ponto problemático (escore = 1,94) e reconheceram sua vida social como um ponto fraco (escore = 2,21). Podemos supor que além de a dinâmica do curso como um todo, incluindo a extensa carga horária, a metodologia de ensino de algumas disciplinas, o contato com a morte e o sofrimento, a dificuldade de balancear a vida acadêmica com a vida social exterior ao campus possa impactar a percepção social. Considerando que aproximadamente 36% dos membros do grupo de mentoria do presente estudo são provenientes de cidades diferentes de Belo Horizonte (onde se encontra a UFMG), o distanciamento do círculo familiar, sem a possibilidade de outras estratégias de suporte social, transcende o aspecto físico, adquirindo também um caráter simbólico, personificado no sentimento inevitável de saudade, aumentando a sensação de solidão (CECHET, 2013; TANAKA et al., 2016).
A visão dos alunos que participaram do estudo sobre os Domínios Acadêmico e Atmosfera foram menos negativas, embora não estejam totalmente positivas. No Domínio Acadêmico, a maioria dos itens (62,5%) obteve escores médios entre 2 e 3, sinalizando que tais itens podem ser considerados pontos fracos de acordo com a classificação do DREEM (ROFF et al., 1997), entre os quais destaca-se a percepção da descontextualização do que é ensinado com a prática médica. Já como pontos problemáticos (escore médio inferior a 2), destacam-se a dificuldade de estudar medicina da mesma forma que se estudava antes e a dificuldade de memorizar temas importantes do curso. Tais resultados podem sinalizar tanto uma imaturidade, do ponto de vista de repertório individual relacionado à aplicação de metodologias de aprendizagem adaptáveis ao curso de medicina mais eficientes pelos acadêmicos (COLARES; OLIVEIRA, 2018) quanto uma dificuldade de explicitar a aplicabilidade do conhecimento que está sendo transmitido por parte dos docentes, já que os alunos mostram-se confiantes em relação a sua aprovação no curso, mas sentem-se despreparados para lidar com o exercício da vida profissional.
A formação de médicos generalistas, como é o caso da UFMG, requer a aquisição de diversas habilidades que vão além da medicina em si, como a tomada de decisão em uma conjuntura incerta, o manejo das necessidades dos pacientes e dos recursos disponíveis e o trabalho em conjunto com a equipe multidisciplinar (VIEIRA et al., 2018). Nesse sentido, por vezes, os estudantes encontram-se em um cenário que requer competências complexas que podem ser deixadas de lado no ensino tradicional.
No que se refere ao Domínio Atmosfera, os estudantes avaliados perceberam mais aspectos positivos que negativos, assim como 527 estudantes de medicina indianos cuja média nesse domínio foi ainda mais baixa (26.00) (KAUR et al., 2021). Os estudantes do presente estudo compreendem que o espaço destinado ao estudo não é adequado por ser caracterizado pela falta de concentração dos discentes e pela inibição em fazer perguntas em sala de aula. Esse aspecto foi evidenciado por Ryan e Deci (2000), os quais sinalizaram que o ambiente acadêmico pode motivar ou inibir o discente de acordo com o nível de suporte oferecido. Nesse sentido, a atmosfera acadêmica e as relações interpessoais criadas no ambiente educacional podem facilitar ou dificultar as necessidades de autonomia do estudante (SOBRAL, 2003). Essa percepção, associada à dificuldade de estudar e de memorizar temas importantes, pode justificar a constante prática de colar durante as provas, uma vez que estudantes de medicina tendem a apresentar maior dificuldade na gestão do tempo, o que gera, como consequência, maiores níveis de estresse e sintomas psicológicos em uma fase eventualmente patológica (SANTANA; SERVO, 2021). Esses sintomas, por sua vez, podem gerar um elevado grau de autocobrança, de maneira que haja mudanças no comportamento e na compreensão de valores éticos e morais, impactando a futura vida profissional (FIGUEIREDO et al., 2014; LIMA et al., 2020).
O Domínio Professores foi o único domínio com uma avaliação mais positiva quando comparado aos demais (escore médio = 24,27). Embora esse resultado seja inferior ao observado por estudo realizado em 2016 com 278 estudantes de medicina de duas escolas médicas da Índia (escore = 30,41), se enquadra na mesma categoria de classificação, considerando que os professores estão na direção certa (SENGUPTA; SHARMA; DAS, 2017). A análise dos itens desse domínio separadamente mostrou que 81,8% dos aspectos avaliados foram classificados como pontos fracos e estiveram relacionados à escassez de críticas construtivas e exemplos claros por parte dos professores. Embora os estudantes reconheçam muitas vezes que os docentes sejam referência no assunto lecionado e educadores competentes, não deixam de sinalizar a dificuldade de alguns docentes em utilizar o feedback como ferramenta de ensino, o que também é observado no contexto de programas de pós-graduação (MONTES; RODRIGUES; AZEVEDO, 2019). A necessidade de introduzir habilidades comunicativas dentro da graduação é relativamente recente e tem como ponto positivo contornar déficits de comunicação dos docentes, particularmente aqueles cuja formação foi pautada em um currículo mais conteudista, e criar tal competência nos médicos em formação (TURINI et al., 2008).
A avaliação da influência do tempo de permanência no GEDAAM na percepção dos estudantes sugere que, no geral, quanto maior o tempo no grupo, mais críticos os estudantes se tornam quanto ao ambiente educacional. Mesmo sem haver diferença estatisticamente significativa, a variação nos escores para cada Domínio e escala Global do DREEM de acordo com o tempo sinalizam alguns aspectos importantes. Tanto o Domínio Atmosfera quanto os Domínios Aprendizado, Professores e escala Global apresentaram pequena flutuação nos escores de acordo com o tempo no GEDAAM (em torno de 1,5 em média), mas com escores médios inferiores para os estudantes com três ou mais semestres completos no grupo. Isso sugere que a participação em grupos de mentoria entre pares, como é o caso do GEDAAM, pode tornar os estudantes mais críticos, justamente por ter a sua disposição, uma série de ferramentas de ensino-aprendizagem mais ativas e maior possibilidade de construir competências e habilidades (ACHERMAN et al., 2021).
Embora o Domínio Acadêmico tenha sinalizado uma melhora nos escores entre os estudantes que permaneceram no GEDAAM por mais de três semestres completos, essa melhora não supera a percepção dos estudantes recém-chegados ao grupo para nenhum dos Domínios do DREEM, com exceção do Domínio Social. Participar da mentoria entre pares por mais de três semestres pareceu melhorar a percepção dos estudantes sobre suas relações sociais, ao contrário dos demais domínios. Embora a avaliação geral desse domínio tenha sido classificada como “não muito boa”, ao estratificar pelo tempo de permanência no GEDAAM, observa-se que a categoria de classificação muda para “não são tão ruins”, mostrando o potencial deste tipo de mentoria como fonte de suporte social (ACHERMAN et al., 2021). O suporte social está intimamente ligado à saúde mental dos estudantes e sua falta pode aumentar o risco de sintomas de depressão e ansiedade, como observado por estudo realizado com 2057 estudantes chineses de medicina e farmácia que revelou que os acadêmicos que vivem sozinhos e/ou que têm má relação com os colegas de classe ou amigos têm níveis mais elevados de depressão e ansiedade (SHAO et al., 2020).
A visão mais negativa dos professores com o passar dos semestres no GEDAAM pode estar relacionada à mudança na forma de relacionar-se, cerne da estratégia de mentoria entre pares, que é a ruptura hierárquica e a aquisição de um pensamento mais crítico, contribuindo para que a vivência estudantil seja questionada com maior ênfase (CREE-GREEN et al., 2020; SHAFIAAI; KADIRVELU; PAMIDI, 2020). O mentor, na visão do discente, é menos intimidante e mais acessível que o professor tradicional, por se tratar de uma figura que remove barreiras na comunicação, havendo espaço para o posicionamento (ANDRE; DEERIN; LEYKUM, 2017).
Assim, fica em evidência que o bom ambiente educacional médico é aquele capaz de valorizar o graduando, no qual a empatia e a humanização das relações criam bases para a discussão e a reflexão constantes (COSTA; AZEVEDO, 2010; TAVARES, 2017). A participação do acadêmico enquanto protagonista de sua própria formação favorece o desenvolvimento de uma experiência de aprendizagem mais qualificada que, por meio da avaliação crítica do processo, é capaz de contribuir ativamente para a promoção de melhorias na educação dele e dos seus pares (PAI et al., 2014).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados do presente estudo mostraram que o DREEM pode ser uma ferramenta importante de diagnóstico, indicando as prioridades para a realização de mudanças curriculares a fim de refinar a qualidade do ambiente educacional. Evidenciam a importância da criação e da consolidação de um ambiente de apoio ao estudante, bem como a necessidade de buscar estratégias a serem implementadas para o aprimoramento dos pontos frágeis do ambiente educacional, de modo que se conquiste um espaço de aprendizagem eficiente e mais saudável. Por fim, os resultados do presente estudo mostraram a influência do grupo de mentoria na percepção dos discentes quanto ao próprio ambiente educacional em que estão inseridos.
Estar no grupo de mentoria entre pares parece ter fornecido aos estudantes um olhar mais crítico, sobretudo sobre o próprio desempenho. A participação no GEDAAM pode, de certa forma, estar relacionada à expressão de um olhar mais indagador frente a sua própria experiência acadêmica, voltada para a melhoria no desenvolvimento acadêmico e profissional, em que o membro expande a sua concepção sobre ensino-aprendizagem e passa a reconhecer falhas importantes na metodologia de ensino tradicional, em que a relação discente-docente é habitualmente distante, pouco interativa e pouco centrada no estudante, que se torna elemento passivo no processo (PAI et al., 2014; MUSHTAQ et al., 2017).
Embora não tenha sido possível confirmar estatisticamente a hipótese inicial do estudo, de que o tempo de permanência no GEDAAM influencia a percepção do ambiente educacional de seus participantes, este estudo foi capaz de identificar tendências interessantes. Nossos achados sugerem que um maior tempo no GEDAAM possa favorecer uma percepção mais crítica acerca do ensino médico e uma melhor percepção de suporte social. Acredita-se que a realização da segunda fase do Estudo Motirõ, que prevê o acompanhamento prospectivos dos membros, seja capaz de detectar com maior precisão o papel da mentoria entre pares na percepção dos estudantes de medicina sobre o ambiente educacional.