Introdução
Na cultura europeia pelo menos, a figura do autodidata é contraditória. Ser autodidata tem sido visto pela elite com uma mistura de indulgência condescendente, suspeita e admiração. O trabalho de Bourdieu (1984) segmentou uma hierarquia de gosto/culturas em que o valor de ser educado e totalmente familiarizado com toda uma gama de códigos socioculturais tendia a posicionar o autodidata como, de certa forma, deficiente, em que o valor de seu conhecimento, em termos tecnológicos formais, estava fora de sintonia com seu entorno cultural. Embora a crítica de Bourdieu tenha surgido da rejeição radical por parte da sociedade do pós-guerra, mesmo quando ela estava sendo transformada em um novo tipo de capitalismo (HARVEY, 2007), de certa forma, representa uma antiga tradição derivada do Iluminismo. Este período mais antigo entendia o “ser educado” em termos de aprender a fazer uma série de juízos morais e culturais, em vez de simplesmente adquirir conhecimento tecnocrático. Isso, como toda uma série de romances do século XIX deixou claro, foi associado a uma forma de ‘vulgaridade’ e entrelaçado com atitudes regressivas em relação à mobilidade social e à manutenção de limites claros baseados em classes.
Por outro lado, por mais que essa atitude elitista europeia em relação à autoaprendizagem tenha dominado os costumes e valores sociais, também é verdade que o crescimento de uma classe média tecnicista, no mesmo período, particularmente na emergente sociedade industrial dos EUA, valorizou um tipo particular de empreendimento, o autodidatismo, e, finalmente, as maneiras com que tais qualidades poderiam levar à celebração do self-made man. As figuras de Benjamin Franklin e Thomas Edison são icônicas nesta segunda tradição, representando o triunfo da engenhosidade sobre os interesses investidos e o sucesso das formas tecnológicas/industriais de conhecimento sobre a visão das humanidades mais antigas. De certa forma, essa oposição cultural ainda é representada hoje nos debates entre os ‘especialistas’ e a população e nas formas com que o populismo de direita se legitima ao rejeitar o elitismo.
Esses debates estão além do escopo deste artigo, que examina o imaginário cultural por trás das versões atuais do autodidatismo digital. O autoensino, na era digital, tornou-se uma forma de autoaprendizagem, mas eu quero posicionar minha discussão dentro do contexto histórico mais amplo, porque alguns dos debates valiosos que acompanham a discussão mais antiga permeiam nossas aspirações, nossas ansiedades e nosso interesse nos supostos ‘novos’ modos de aprendizagem que se presume intrínsecos à era digital. Considerar a representação do autodidatismo na era digital é um caminho para uma discussão aberta por Dorothy Holland e seus colegas em sua análise da educação como uma “narrativa cultural” (LEVINSON; FOLEY; HOLLAND, 1996). Ao invés de pensar a educação em quadros psicológicos ou cognitivos, em termos de aquisição e implantação de conhecimento, ou na perspectiva de Bourdieu, em termos da participação socialmente valorizada ou exclusão dos gostos/culturas (ALBRIGHT; LUKE, 2008), examinar como e por que certas formas da educação são valorizados ou rejeitadas nos ajuda a examinar ansiedades mais objetivamente contemporâneas sobre os propósitos da escola pública e o papel presumido do digital nesses debates (BIESTA, 2011; SELWYN, 2010).
Compreender os novos caminhos do autodidatismo como parte da mudança da ecologia do que significa ser educado em tempos digitais é uma contribuição importante para o debate acirrado, que está ocorrendo em todo o mundo, sobre o papel dos sistemas públicos de educação – a instituição escolar que herdamos – no contexto da mudança das práticas de aprendizagem em casa, na escola e na comunidade. Enquanto os modelos tradicionais de credenciamento, a autoridade do conhecimento recebido, a autoridade do papel do professor e os processos arraigados de transmissão intergeracional parecem estar prestes a se romper e se exporem como profundamente inadequados e injustos numa era de globalização, capitalismo rápido e neocorporativismo digital (GRAHAM, 2005), pode ser que a compreensão da história cultural de determinados modos de aprendizagem, como a figura do autodidata, ajude-nos a entender como imaginamos os propósitos e a natureza da educação no futuro.
A organização comercial e cultural do nativismo digital
Um projeto de pesquisa recente desencadeou essa linha de pesquisa. Uma etnografia, com duração de um ano, das vidas de uma turma de 13 a 14 anos de Londres, na escola, em casa, em suas famílias e com seus amigos, chamada “The Class” (LIVINGSTONE; SEFTON-GREEN, 2016) nos apresentou para Fesse, um jovem envolvente de ascendência africana que passava muito do seu tempo em casa, ensinando a tocar guitarra e a desenhar (SEFTON-GREEN, 2015). Fesse usou o Youtube para aprender sozinho a tocar violão, assistir vídeos do Red Hot Chili Peppers e construir todo um modo de pedagogia doméstica, envolvendo tocar junto e preencher partes de guitarra, criando uma noção de performance e audiência, ensaio e prática. Sua atitude em relação aos desafios clássicos do dedilhado, das posições dos acordes, e assim por diante, foi de autoensino e autoaprendizagem. Da mesma forma, seu trabalho envolvia emular o interesse de seus irmãos mais velhos em tatuagem e design gráfico e contava com a busca de seus interesses em gêneros de desenhos animados e quadrinhos. O professor de arte – e, de fato, o próprio Fesse – reconheceu tanto seu talento como suas limitações, medidas pela disciplina acadêmica convencional em sua técnica: seu uso de materiais era, do ponto de vista do professor, limitado, e por todo seu foco, interesse e motivação, a variedade de obras de arte era determinada por seus interesses culturais, e não pela percepção, por parte do professor, de um currículo mais arredondado.
A formação musical de Fesse estava totalmente ligada ao Youtube – ele próprio, um site sofisticado para uma grande quantidade de oportunidades autodidatas. Como vários acadêmicos observaram (BURGESS et al., 2009), o Youtube se tornou uma plataforma significativa para estruturar muitos tipos de experiências educacionais (HAUGSBAKKEN; LANGSETH, 2014). A plataforma, embora alta e comercialmente mediada e controlada, parece permitir diferentes tipos de relações pedagógicas. No caso de Fesse, proporcionou oportunidades de aprendizagem íntimas, personalizadas, flexíveis e sob demanda, com a enorme variedade de recursos. É claro que é livre e, embora basicamente baseado em vídeo, baseia-se em toda uma gama de métodos e técnicas multimodais instrucionais.
Enquanto Fesse poderia parecer um típico nativo digital (para uma discussão crítica, ver SELWYN, 2009), demonstrando agência e propósito em sua construção de uma espécie de “biografia de escolha” educacional (GIDDENS, 1991), eu diria que a sua autoaprendizagem com o Youtube e a autoaprendizagem em artes gráficas realmente demonstram tipos mais antigos de práticas autodidatas, que antecedem a digitalização. Por um lado, sua atitude exemplifica uma linguagem de agência normativa e individualizada: pais e colegas e, na verdade, leitores de nosso livro, focados em seu envolvimento, motivação e interesse. No entanto, essa lente psicológica pode interpretar erroneamente as tradições embutidas nessas práticas de aprendizagem, já que, por outro lado, tanto a arte quanto a música têm suas raízes em formas mais antigas de participação, aprendizado e tradição filosófica da prática (SLOTERDIJK, 2014).
Fazendo e mexendo
Fesse é apenas um caso, mesmo que ele exemplifique características estereotipadas do autodidatismo digital. Um campo inteiro, que fetichiza a comunidade de autoensino e autoaprendizagem, é o de “fazer e mexer”, making and tinkering. Aqui, os valores da garagem doméstica ou do jardim (apesar de sua curiosa especificidade sociogeográfica no mito da Apple ou dos clubes de computadores caseiros dos anos 1970 – TURNER, 2008) são elevados a práticas e domínios educacionais de pleno direito. Os últimos vinte anos viram uma aliança de ambição econômica, uma nostalgia por uma certa visão da infância e uma versão profundamente tecnocrática do capital humano que se uniam em torno da elevação de fazer e consertar. Parcialmente inspirado por uma análise teórica da economia digital (ANDERSON, 2007) e, em parte, inspirado por ambições mais amplas para a economia criativa (HOWKINS, 2002), o ‘fazer’ decolou como um novo domínio, metade fora do sistema de educação formal e metade aliada a cursos de design e tecnologia, mas concentrando-se em torno de uma comunidade de prática liderada por pares veja, por exemplo, http://makezine.com, makerlab, makerfaire ou tinkering school.
O movimento criador está intimamente ligado às noções de hacking e de consertos. Ambas as práticas são exclusivamente digitais e, se elas têm as suas raízes nas práticas dos jogos, mais pró-sociais, modding, como parte da cultura remix (LESSIG, 2009), ou da cultura hacker, socialmente mais problemática (HIMANEN, 2010; MASON, 2008), ou mesmo derivam da amostragem na música ou em outras formas de arte (MILLER, 2004), todas elas são baseadas em um modo distinto de transação educacional. Significativamente, a aprendizagem ocorre através de interações online em comunidades de pares conhecedores. Raramente existem autoridades credenciadas, embora os indivíduos frequentemente tenham grande influência, por meio de expertise (O’HEAR; SEFTON-GREN, 2004). Não há, naturalmente, programas de estudos ou formas convencionais de avaliação e participação nestes tipos de comunidade, como a de Fesse, motivado pelo interesse e, muitas vezes, por um desejo de pertencimento (ITO et al., 2010). A forte sensação de estar fora das estruturas e sistemas educacionais formais reforça a sensação de autenticidade, integridade e poder desses tipos de experiências de autoaprendizagem dos participantes.
Como sugerido por alguns estudos da linguagem, como a grafia do “faire” em maker faire, há algo novo e antigo nesses movimentos. É novo, na medida em que seu conteúdo está relacionado à tecnologia digital, com forte ênfase em formas de codificação ou mesmo preparação para impressão 3D. Isso sugere uma relevância e propósito econômico atuais. Por outro lado, há algo explicitamente tradicional em seus sinais culturais. Isso remete a uma noção de habilidades plásticas, artesanato e produção artesanal. Esta é a ideologia, em parte econômica, mas em parte também uma maneira de conectar a infância contemporânea com uma tradição mais antiga, que remonta aos presentes de Froebel, na qual uma relação intrínseca entre certos tipos de jogo e desenvolvimento normativo foi inscrita na filosofia educacional do século XX. Em termos de nosso foco, quero sugerir que há muito no movimento de criadores e hackers que confere ao forasteiro tecnológico autodidata um novo tipo de didatismo automotivo – no qual ser um forasteiro, agora, é mais valorizado do que desprezado, e as formas de autoaprendizagem são as melhores e únicas formas de entrar no que constitui uma comunidade educada.
Novas filosofias educacionais
Embora os movimentos de making and tinkering, fazer e manipular, tenham experimentado um renascimento na era digital, em alguns aspectos, como veremos a seguir, eles derivam de outros tipos de práticas educacionais – especialmente relacionadas à perícia artesanal. Esta era atual gerou várias teorias de aprendizado, para tentar explicar a reconfiguração de novos estudantes, o conhecimento especializado e distribuído, o conhecimento de acesso aberto e os canais de transmissão. Estas teorias atuais adotam uma atitude muito diferente em relação ao autodidatismo do que a encontrada no sistema educacional convencional. De fato, para nossos propósitos, o que é interessante é como eles valorizam formas de autodidatismo em contraste com as tradições anteriores, delineadas no início deste artigo.
O conectivismo, desenvolvido mais fortemente por George Siemens (SIEMENS, 2005), baseia-se no construtivismo expandido por estudiosos pós-piagetianos (PAPERT, 1993), através de uma compreensão sociocultural da relação entre o indivíduo, a sociedade e o contexto de aprendizagem em uma teoria mais plenamente desenvolvida de aprendizagem para a sociedade em rede. O conectivismo sugere que a aprendizagem ocorre como consequência da participação em redes frequentemente caóticas e complexas, nas quais o conhecimento é proposto, testado e validado, mesmo quando distribuído em uma série de situações complexas do mundo real. Nessa teoria, os alunos são caracterizados em termos de sua adaptabilidade, abertura e capacidade de resposta para encontrar novas formas de se comportar e compreender em meio à miríade de conexões que são feitas em um mundo digitalmente interconectado. Tipicamente, esse tipo de teoria procura explicar como a mudança da autoridade credenciada em conhecimento técnico e prático para formas de transferência de conhecimento mais acessíveis, compartilhadas e abertas é tanto constituída quanto afetada pela sociedade em rede (CASTELLS, 2000). Embora esse tipo de teoria possa ser útil para explicar o crescimento econômico em termos do seu papel em mudanças da transferência de conhecimento no que diz respeito à produtividade (BALDWIN, 2016), nem sempre é explicitamente direcionada às maneiras pelas quais habitualmente entendemos o que é aprender – e as progressões em qualquer processo de aprendizagem. O conectivismo supõe uma espécie de aprendiz flexível, aberto e conectado, que sabe avaliar, encontrar, interpretar e utilizar o conhecimento como e quando ele pode ser encontrado. Esse tipo de aprendiz possui todo o impulso que podemos associar ao autodidatismo tradicional, mas sugere uma espécie de autossuficiência individualizada – mais uma vez, uma teoria da mente herdada das tradições mais antigas –, a mente inquisitiva plenamente desenvolvida e retida pela falta de acesso ou por credenciais inapropriadas. E, é claro, é apenas através da investigação empírica que podemos avaliar o quão difundida essa experiência é para muitas pessoas ao redor do mundo.
A “sintética” (PENUEL et al., 2016) Teoria da Aprendizagem Conectada (ITO et al., 2013) (à qual eu reconheço uma afiliação), tenta corrigir a Teoria Conectivista, propondo um modelo de aprendizado orientado por interesses. Nesse modelo, presume-se que o aprendiz esteja de alguma forma motivado, mas é através da participação em grupos de afinidades, frequentemente liderados por colegas (GEE, 2004), significativamente online, e através de uma progressão recursiva e estruturada que combina conhecimento acadêmico com essas novas oportunidades de cultura participativa, que ocorre a progressão da aprendizagem. A aprendizagem conectada, parte da noção de interesse, ou de uma faísca, ou motivação, mas constrói compreensão de estrutura, progressão e, até mesmo em seus elementos de design, formas de organização de projetos e intervenções, em uma teoria da aprendizagem engajada, que ocorre principalmente fora das instituições educacionais formais, mas com conexões com domínios do conhecimento que permitem uma transferência de retorno ou formas de cruzamento entre os domínios do conhecimento formal e informal.
Exemplos de aprendizagem conectada em ação podem ser os estudos do metajogo na comunidade de Star Craft1 ou os modos criativos entre os jogadores de Little Big Planet2. Esses estudos baseiam-se no trabalho de fãs e comunidades de fãs (JENKINS, 1992) e explora particularmente a participação em mundos online – especialmente através de jogos –, para examinar o que tem sido chamado de “cultura participativa” (JENKINS et al., 2007), como um ecossistema para o desenvolvimento da aprendizagem e até mesmo outros tipos de participação cívica. A aprendizagem conectada é um exemplo de uma teoria disruptiva produzida para explicar como as formas de aprendizagem ocorridas em uma sociedade em rede altamente digitalizada e informatizada podem funcionar na prática. É também uma teoria calculada para abordar as fraquezas da filosofia educacional convencional, na qual as teorias tradicionais de aprendizagem e as hipóteses por parte do senso comum de como a escolaridade funciona na sociedade não parecem adequadas para abordar as experiências de aprendizagem criativas, produtivas (e às vezes destrutivas e antissociais) que estão acontecendo agora, em toda uma série de novos tipos de ambientes educacionais ao redor do mundo.
Tanto o conectivismo quanto o aprendizado conectado devem muito ao trabalho feito pela Teoria Sociocultural (SCRIBNER; COLE, 1973), ao criticarem uma teoria puramente psicológica da mente.
Teorias Socioculturais da aprendizagem prestam grande atenção em contextos, interações sociais, práticas, discursos, atividades e autocompreensão das tradições, como uma maneira de explicar como a participação em práticas sociais complexas é tanto um tipo de aprendizagem em si como o resultado final da aprendizagem. Talvez uma das exposições mais conhecidas dessa abordagem da educação seja a conhecida “comunidade de prática” (LAVE; WENGER, 1991), uma teoria desenvolvida a partir da observação de toda uma série de diferentes tipos de experiências de aprendizagem anteriores ao digital – mas que preparou o cenário para entender o aprendizado entre os membros e outras formas de aprendizado; todos eles colocaram grande ênfase na progressão do iniciante para o especialista, em práticas educacionais altamente estruturadas, muitas vezes altamente transmissivas, embora encontradas em situações de aprendizagem do mundo real em vez de escolas.
De certa forma, a abordagem das comunidades de prática descreve práticas que são completamente o oposto do autoensino, da autoaprendizagem e do autodidatismo que temos observado até agora. Enquanto o autodidata pode aprender fora da comunidade de prática e ter acesso a conhecimentos e habilidades sem atender a formas tradicionais de aprendizado, os relatos da comunidade de prática geralmente descrevem longos períodos de aprendizado, por meio do “processo de aprender”.
Eu sugeriria, no entanto, que a observação da participação nas culturas digitais, apesar de derivar da tradição das “comunidades de prática”, de fato separa maneiras de sugerir formas de comunidade sem a autoridade reguladora encontrada nos tipos de tradição descritas no parágrafo acima. Aqui, as teorias da aprendizagem na cultura digital talvez reconheçam uma linha de pensamento voltada para o trabalho de Malcolm Knowles (2015) e o conceito de andragogia. Trabalhando no campo dos aprendizes adultos, a teoria de aprendizagem para adultos de Knowles (os andros [homens], substituindo os paedos [crianças], em seu neologismo) pode agora ser lida como uma celebração do aprendiz autodidata independente que já observamos em contas de usuários do Youtube, fazendo, mexendo e ‘hackeando’. O aprendiz adulto é automotivado e tem uma disposição diferente em relação à necessidade de conhecimento; tanto quanto o tecnólogo empresarial autossuficiente ao aprender e ensinar os tipos de práticas necessárias à era industrial.
A popularidade da andragogia e seu papel em toda uma variedade de movimentos de educação de adultos, com seu ataque direto à primazia da escolaridade como o único local para a educação na sociedade contemporânea, claramente alimentou algumas das ambições de aprendizagem aberta, em que uma forma de ensino autodidata e a independência autossuficiente podem ser tomadas como uma maneira de, se não substituir, contornar as formas tradicionais de educação (BROEKMAN, 2014). O movimento de educação aberta, portanto, une os pontos entre o autodidatismo do pré-digital e o aprendiz motivado proposto por essas novas teorias da educação, através do trabalho da andragogia de Knowles. A chave aqui é uma atenção à agência individualizada na pessoa do próprio aprendiz, que é uma maneira muito diferente de formular o que é ser um aprendiz, tanto do racionalista quanto do romântico na história da educação.
Artesanato, código e experiência
O fio final em nossa discussão deriva da recente atenção à tradição da perícia artesanal. Isso fica evidente na discussão em torno das qualidades artesanais presentes na cultura de fazer e mexer, making and tinkering, em que grande parte da autoaprendizagem envolvida nos modos de aprendizagem é frequentemente baseada em uma pedagogia de tentativa e erro e na noção de compromisso e recursividade, sendo as práticas de codificação entendidas como uma prática estética em que qualidades de elegância e parcimônia são valorizadas (COX; MACLEAN, 2012). A codificação – a prática no coração de muitos ‘fazer e mexer’ – é frequentemente caracterizada como uma forma de disciplina artesanal. Isso implica tipos muito específicos de práticas pedagógicas, descritas lindamente pelo autor Vikram Chandra (2014). Em seu livro Geek Sublime, ele compara a escrita do código à prática da escrita artística e, portanto, estabelece uma conexão entre a noção de aprendizado, disciplina e confiança na tradição – muitas vezes envolvendo aprendizagem mecânica, cópia e repetição. Todos eles colocam esse modo de criatividade digital firmemente em tradições mais antigas, em que a habilidade, o cuidado, a persistência, a atenção aos detalhes e toda uma série de valores artesanais são valorizados.
Como observado acima, há uma disjunção emocional entre a valorização dessas habilidades humanas “lentas” – agora mais pejorativamente associadas ao hipster contemporâneo – e a estética rápida, automatizada e impessoal, frequentemente associada ao controle anônimo do digital. Fazer e mexer, em diferentes culturas, foi um longo caminho para conectar as práticas de embarcações antigas às novas. Um bom exemplo disso seria o trabalho em torno dos e-têxteis (BUECHLEY et al., 2013), que explicitamente entrelaça uma cultura digital feminista que enfatiza as continuidades entre as artes têxteis mais antigas e as novas tecnologias digitais vestíveis.
O aprendiz, nestas culturas artesanais, é novamente um tipo de pessoa muito diferente do sujeito produzido pela escola moderna. A aprendizagem artesanal baseia-se na tradição e no aprendizado, mas em contraposição a um pouco do conservadorismo social implícito na abordagem das comunidades de prática e em comum com o motivado por interesses e com o aprendiz ativo, encontrados na tradição da aprendizagem conectada. Valores de prática, participação e o autoensino predominam. Isso foi argumentado com mais fluência pelo sociólogo Richard Sennett (2008), por exemplo. Ao procurar recuperar o tradicional, o plástico e o manual, Sennett também desenha o contraste entre as formas de dignidade e respeito encontradas nas formas mais antigas de trabalho – e ele está interessado nas implicações mais amplas da subjetividade e da consciência de classe, ao invés de simplesmente autorrealização individualizada – e o mundo do trabalho anônimo, impessoal e corporativo que caracteriza a cultura do novo capitalismo (SENNETT, 2007). Essa tela política maior está ligeiramente fora do escopo deste artigo, mas mostra como os interesses mais amplos em formas de aprendizado de artesanato e suas afiliações e desconexões com o ato digital são pedras de toque [“referências”] para reconceitualizar a natureza da aprendizagem na era digital.
Embora possa haver um elemento de nostalgia3 nesta recuperação do ofício artesanal, especialmente no contexto de ameaças tão dramáticas colocadas pela digitalização de tudo, é interessante, do nosso ponto de vista, desfazer o papel do autoaprendizado neste construto. Como popularizado por Malcolm Gladwell (2008), as formas de aprendizado do artesanato estão enraizadas na noção de prática, perfeição, repetição e aprimoramento. O aprendizado musical de Fesse, como descrito acima, poderia muito bem ter sido um exemplo dessa forma de educação, como qualquer outra coisa. Mas de que maneira as figuras do autodidata e do aprendiz de artesanato podem ter pontos em comuns ou pontos de diferença na era digital?
O aprendiz de artesanato está, em grande parte, envolvido em um processo de autoensino através da prática. Acredita-se que o aprendiz de artesanato seja motivado por interesses, automotivado e engajado por meio de formas de participação no desafio de domínio e realização. Essas qualidades correspondem às aspirações do autodidata do século XIX e baseiam-se em qualidades similares de resiliência e, acima de tudo, conhecimento prático e tecnológico que distinguem as tradições industriais das culturais na educação. Claramente, aqui, há diferenças tanto quanto sobreposição. O verdadeiro autodidata é menos interessado em autoridade e tradição e mais em maestria e desempenho. Por outro lado, é provável que o aprendiz de artesanato preste atenção à imitação e à cópia para conseguir entrar em qualquer esfera em que esteja trabalhando. No entanto, de certa forma, essa abordagem da performatividade também é um ponto em comum. Em muitos ofícios, o ingresso no mercado de trabalho tem sido tradicionalmente regulado pelas estruturas corporativas, e isso não é verdade para o hacker, o que ‘faz e mexe’ – embora se deva dizer que os estudos da cultura hacker mostram o crescimento desses meios tradicionais de controle e regulação (HIMANEN, 2010).
Talvez a contribuição mais significativa dessa tradição artesanal para os modos de práticas de aprendizagem, agora mais comuns, através de formas de participação na cultura digital, seja a ênfase na prática individualizada e automotivada. O aprendiz de artesanato é um agente ativo no processo de aprendizado, por meio de repetição, cópia ou o que quer que seja. Isso é igualmente verdadeiro para o autodidatismo em suas muitas encarnações. É também uma característica do conectivismo e da aprendizagem conectada. O aprendiz digital, portanto, deriva de um paradigma diferente do aprendiz construído na educação tradicional – ou seja, o objeto passivo da didática transmissiva. Ela ou ele têm algo em comum com a criança construtivista, que aprende através da reflexão sobre a experiência, mas diferem significativamente em seu controle e independência desta tradição. Entender como o autodidatismo influenciou a construção da “aprendizagem digital” dessa maneira nos ajuda a entender a narrativa cultural específica da educação (LEVINSON; FOLEY; HOLLAND, 1996) que domina nossos tempos.
Histórias culturais da educação
Uma história do autodidatismo, especialmente aquela que presta atenção à forma como a figura do autodidata foi construída nos últimos dois séculos, em oposição ou como complemento aos assuntos normativos da educação escolar, é instrutiva por uma série de razões. Ajuda-nos a contextualizar a fornalha de debate em torno das “novas” práticas de aprendizagem digital e a desvendar a relação entre a autoridade do conhecimento acadêmico, com sua função de credenciamento, e o desafio de democratizar o acesso e a aquisição de formas de conhecimento para além da elite.
Uma história cultural também nos ajuda a prestar atenção a aspectos da linguagem contemporânea utilizados para descrever práticas aparentemente inovadoras que mostram como elas foram imaginadas e, em alguns casos, recontextualizadas do passado. Observar práticas atuais como fazer ou mexer e filósofos contemporâneos da educação como os da Aprendizagem Conectada através das lentes de uma história cultural pode mostrar como, neste caso, a figura do autodidata foi incorporada e modificada no aprendiz supostamente nativo digital. Nesse processo, alguns dos impulsos antiestablishment por trás do autodidatismo tornaram-se agora comuns, assim como, ao mesmo tempo, podemos ver movimentos para recontextualizar seu efeito potencialmente perturbador. Esse movimento retórico se manifesta de maneira tal que a novidade do aprendiz digital reafirma a agência ao mesmo tempo em que mantém os limites.
Parte do impulso antielitista da tradição autodidata veio de suas raízes no interesse por novas tecnologias – no século XIX isso significava, é claro, a ciência e a engenharia da industrialização. Podemos ver como essa abordagem agora resultou em uma “informatização” extrema do ensino. Com isso, refiro-me à atenção renovada, em muitos sistemas educacionais, em todo o mundo, para compreender o ensino e a aprendizagem como a transmissão mais eficiente de informações sem as inquietantes ansiedades epistemológicas sobre quem define as formas de conhecimento e sem um interesse crítico em desenvolver maneiras de pensar, formas de fazer julgamentos e formas de avaliação. A relação cada vez mais informatizada entre currículo, ensino e avaliação, em muitos sistemas escolares globais, reforça que essa tendência à educação seria simplesmente o acesso e a recuperação da informação.
Por outro lado, a atenção na tradição autodidata, voltada à qualidade do interesse, da motivação e da prática, está rompendo alguns dos mecanismos de controle educacional (HUNTER, 1994) que estruturaram a escolarização industrial. Aprender, na era digital, é mais sensível à competência do que à idade ou à estratificação de habilidades. Embora as escolas estejam organizadas de maneira conservadora, dessa forma, o aprendizado baseado em competências, altamente individualizado, de uma aprendizagem mais independente e baseada em projetos, está começando desgastar essa forma de organização social.
No século XIX, conforme descrito no início deste ensaio, um dos principais desafios impostos pelas formas de autodidatismo foi o controle do conhecimento acadêmico formal baseado em classes. O aprendiz digital representa uma ameaça semelhante a esses modos tradicionais de controle social, especialmente ao abrir formas de acesso a muitos, em vez de a poucos. No entanto, como em tempos passados, precisamos ser cautelosos com as afirmações feitas sobre as maneiras pelas quais o acesso ao conhecimento e, na verdade, as comunidades de alunos podem agora significar que a autoridade da escola e da Academia está aberta a questionamentos. Estudos sobre a composição de classes de novos aprendizes digitais sugerem que são formas de capital cultural que continuam a fornecer caminhos para o sucesso econômico e social, em vez de qualquer reconfiguração estrutural em torno do acesso e da igualdade (WATKINS et al., 2018; LIVINGSTONE; SEFTON-GREEN, 2016).
No entanto, a popularidade e o sucesso da cultura de fazer, mexer e “hackear” levaram a um interesse na codificação e, na verdade, à questão mais ampla do que pode estar em jogo em quem aprende a codificar e no que o conhecimento sobre código pode significar para os limites de participação (LUPTON; WILLIAMSON, 2017; ISIN; RUPPERT, 2015; RUPPERT; ISIN; BIGO, 2017). Aqui podemos ver como as formas de conhecimento enquadradas na cultura maker, agora voando sob a bandeira do DIY, do it yourself [faça você mesmo], estão começando a afrouxar alguns dos poderes regulatórios da educação convencional e a desafiar a autoridade da certificação. A natureza exata deste ‘afrouxamento’ está obviamente aberta ao debate, uma vez que também podemos ver como a entrada na Academia destas práticas digitais de fora da escola assume diferentes formas e é frequentemente recontextualizada à custa das suas inspirações originais, mais ‘aberta’.
As lutas e tensões entre formas de práticas educacionais desenvolvidas em contextos fora da escola identificadas neste ensaio e os modos como elas são incorporadas e então recontextualizadas – e eu uso essa palavra da maneira que foi teorizada por Basil Bernstein, (1973), sugerindo formas de incorporação e controle institucional – continuarão. A agência e o desafio demonstrados por pessoas que encontram significado no propósito de aprender e estudar fora da educação formal continuarão a levantar questões sobre as maneiras pelas quais nosso sistema escolar continua a exercer o poder que exerce. Embora a aprendizagem na era digital ainda não forneça o tipo de influência estrutural para produzir o tipo de mudança que muitos de seus defensores prometem, por meio de sua lealdade a essas formas mais antigas de fazer sentido e aprender em comunidades de prática, na tradição artesanal podemos pelo menos ver os germes de uma instabilidade ainda por vir.100