Este texto se propõe apresentar práticas de experimentação e invenção da relação entre pesquisa e formação a partir de experiências de leitura e escrita ensaiadas na universidade. Trata de uma certa ideia de pesquisa e de uma certa ideia de formação: uma pesquisa e uma formação pensadas a partir das marcas da subjetividade, a partir das marcas da experiência e de uma certa forma (im)produtiva, no sentido de inoperante (NANCY, 1991; BLANCHOT, 1988; AGAMBEN, 2017), de habitar o mundo da educação. É, deste modo, um convite a pensar além dos sentidos habituais dos dois conceitos: pesquisa entendida como resposta a necessidades urgentes ou problemas práticos no campo da educação, organizada num conjunto de procedimentos que permitiriam aceder ou contribuir para um melhor conhecimento do "fenômeno" educativo através do domínio de determinados procedimentos metodológicos; formação entendida como interiorização dessas regras e procedimentos, em função de um perfil de pesquisador estabelecido a priori.
Quero discutir estes sentidos, suspendendo o hífen que separa os dois termos, através de uma tentativa de resgatar a centralidade da leitura e da escrita para o campo da educação, mediante um gesto de profanação. Esse gesto se constituiria num movimento de dessacralização que permitiria, no sentido agambeniano, devolvê-las ao uso comum (AGAMBEN, 2012). Dito de outra forma, tratar-se-ia de um gesto que as tornaria um pouco menos para que pudessem ser um pouco mais. Uma tentativa de dessacralizar a leitura e a escrita para que elas possam ser um pouco mais na pesquisa e na formação. Trata-se de pensar o que se produziria no campo da pesquisa em educação se libertássemos a leitura e a escrita de certos usos que as separam e as privatizam para, assim, as abrir ao acontecimento.
Começarei por explorar um certo sentido de pesquisa e um certo sentido de formação para pensar, em seguida, o que seriam as condições e implicações da experiência da leitura e da escrita na invenção desses sentidos através da construção do comum. Os movimentos produzidos por exercícios de leitura e escrita, ensaiados na formação de pedagogos, serão aqui pensados como uma composição que, colocando em jogo as subjetividades, se desenvolve numa relação de alteridade produtora de incômodos e desassossegos a partir dos quais se constrói um corpo comum de pesquisadores, um corpo de trabalho que creio formativo ao instaurar um espaço/tempo comum. Trata-se de um tatear pelos meandros de uma proposta de formação de pesquisadores em educação, buscando vestígios do que poderia ser uma pesquisa formativa.
Estudo, pesquisa e formação: composições possíveis
Num texto de 2017, intitulado Os Estudantes, Giorgio Agamben apresenta − numa análise terminológica que é comum no seu pensamento − o que entende ser a progressiva substituição do termo "Estudo" pelo termo "Pesquisa" no campo acadêmico. O autor critica o que considera ser uma transferência indevida do termo do campo das ciências da natureza para o campo das ciências humanas e argumenta pela "restituição das ciências humanas ao estudo que as caracterizou por séculos" (s/n). Para Agamben, a pesquisa é apenas uma fase temporária do estudo - sempre tem em mira uma utilidade concreta - ao passo que o estudo é uma condição permanente, uma forma de vida, que, como tal, dificilmente pode reivindicar uma utilidade imediata.
Pretende assim "[...] inverter o lugar comum segundo o qual todas as atividades humanas são definidas por sua utilidade [...]" (AGAMBEN, 2017, s/p), salvaguardando as coisas inúteis de uma lógica utilitária que se foi tornando hegemônica. O estudo seria, então, uma das coisas inúteis a salvaguardar e, com ele, a condição de estudante, que, para Agamben, é "[...] a única ocasião para fazer essa experiência, hoje cada vez mais rara, de uma vida que se subtrai aos fins utilitários." (AGAMBEN, 2017, s/p). Já num texto anterior que compõe o livro Ideia da Prosa (1999), Agamben, evocando a personagem de Bartleby de Melville, havia-a colocado como o arquétipo da figura do estudante "que está sentado numa moradia de abóboda baixa, em tudo semelhante a uma tumba, com os cotovelos sobre os joelhos e a fronte entre as mãos" (AGAMBEN, 1999, p. 46). A condição de estudante implicaria, assim, uma atenção, uma concentração, uma escuta e um ensimesmamento que o alheariam de tudo o que não é, ainda e agora, estudo.
O estudo seria aquilo que interrompe certas formas instituídas de relação com o mundo, produzidas pelos dispositivos que capturam, orientam, controlam, determinam e asseguram os gestos, as condutas e os discursos. Que estabelecem relações de causalidade entre meios e fins, entre ato e potência, entre processos e resultados, para possibilitar uma relação (im)produtiva e, nesse sentido, mais potente, com a inspiração, a paixão que move o estudante. Trata-se, por isso, de liberar o que foi capturado e separado pelos dispositivos para restituí-los ao uso comum, de liberar o estudante para o jogo do estudo. Afinal,
O fim do estudo pode eventualmente nunca ser alcançado - e, neste caso, a obra ficará para sempre em estado de fragmento, de fichas -, ou então pode coincidir com o momento da morte, no qual aquilo que parecia uma obra acabada se revela como simples estudo (AGAMBEN, 1999, p. 55).
Não pretendo reivindicar uma substituição da palavra pesquisa pela palavra estudo, através da referência que faço aos textos de Agamben mas, antes, de pensar o que seria uma formação de pesquisadores composta pelos elementos que Agamben atribui ao estudo. Não se trata de entrar no jogo terminológico, mas de considerar a possibilidade de pensar o par pesquisa/formação como um contínuo - suspendendo o hífen − através da recuperação de alguns elementos que Agamben atribui ao estudo: o prazer, a inutilidade, a intrínseca relação entre vida e pensamento. Para tal, seria necessário, não só desnaturalizar os entendimentos de pesquisa que têm povoado a universidade, como também repensar o que entendemos por formação, ou melhor, por pesquisa formativa em educação.
Ainda em Agamben, num outro texto, o ensaio O que é o contemporâneo? (2009), se destacam alguns elementos que permitem adentrar mais profundamente nas questões da pesquisa e da formação. Um desses aspetos prende-se com a própria natureza do texto: ele foi escrito como lição inaugural de um curso de filosofia teorética, portanto, é um texto de formação. Nele, Agamben apresenta as questões que estariam na base do seminário: "De quem e do que somos contemporâneos?" e "O que significa ser contemporâneo?" ; os textos a serem lidos: "No curso do seminário devemos ler textos cujos autores de nós distam muitos séculos e outros que são mais recentes ou recentíssimos"; assim como a chave do curso, ou do exercício de leitura que propõe: "[...] essencial é que consigamos ser de alguma maneira contemporâneos desses textos" (AGAMBEN, 2009, p. 57).
O êxito do seminário será medido pela capacidade de os participantes estarem à altura dessa exigência. Este seria um dos aspectos a destacar em O que é o contemporâneo?: ele se apresenta desde o início como um texto de formação, uma vez que explicita as questões que guiam o curso, a natureza dos textos a serem lidos, assim como as linhas orientadoras da leitura a ser empreendida. Todos estes aspectos são passíveis de serem transpostos para outras propostas de formação, como é o caso da proposta de formação de pesquisadores em educação sobre a qual se debruça este texto.
Outro aspecto a destacar no referido ensaio, é a tentativa de resposta à segunda questão - "O que significa ser contemporâneo?". Através dela, Agamben nos apresenta a possibilidade de um modo de relação com nosso próprio tempo que se distancia daquela a que tendemos aderir comumente. A primeira definição do contemporâneo, ensaiada no texto, segue esse sentido:
Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. (...) Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente (AGAMBEN, 2009, p. 62-63).
Nesta formulação, ao contrário de identificar o contemporâneo ao que evidentemente pertence ao tempo corrente, Agamben anuncia a intenção de sintonizá-lo com certa capacidade de embate contra o tempo. Em vez de pensar o contemporâneo como aquilo que traz as marcas evidentes e incontestáveis de um certo presente e, portanto, como aquilo de que estaríamos mais próximos, o autor propõe "um sentido forte" para o que seria a singularidade da contemporaneidade, identificando-a a certa capacidade de se distanciar e divergir do que é corrente. Todo o texto é tecido a partir de formulações paradoxais que remetem o que seria a singularidade dessa relação com o tempo aos signos da desconexão, da dissociação, do deslocamento, da fratura, da quebra e também da sutura. Afinal, díspares são as perceções e os afetos que atravessam aquele que, imerso em seu tempo, é capaz de submeter a perceção do que nele há de negativo à uma afirmativa atividade de radical divergência.
Nada há de confortável no reconhecimento da pertença a tempos obscuros, mas, em pleno desconforto, podemos reconhecer certa vitalidade nessa capacidade de neutralizar os efeitos das supostas luzes do presente, de nos libertarmos de uma certa tirania da atualidade, para, assim, perceber o que nela há de obscuro. E é essa vitalidade em radical divergência com o seu tempo que, no ensaio em questão, se procura afirmar como contemporânea.
Importa referir que um dos aspetos centrais do texto de Agamben é a identificação do contemporâneo com o intempestivo, o extemporâneo, termo cunhado por Nietzsche, que é lido no ensaio como uma incitação ao estabelecimento de diferentes modos de relação com o tempo. Incitação que implica que se opere com categorias muito diferentes daquelas mobilizadas pelo pensamento histórico do seu (do nosso?) tempo. Chaves de interpretação que abrem a possibilidade de divergir daquilo que o nosso tempo insiste em colocar em primeiro plano. A investida no sentido de se criar uma outra relação com o tempo leva à criação de uma outra relação com a escrita, de uma outra relação com a leitura e, argumentamos, uma outra relação com a formação.
O entendimento agambeniano do contemporâneo, transposto para o campo da educação, permite-nos pensar que a formação se inscreve nesse processo paradoxal de desnaturalização da relação com o tempo: divergir do tempo corrente como forma de com ele estabelecer alguma possibilidade de relação ainda mais potente, este seria o paradoxo propriamente contemporâneo. Na esteira de autores como Deleuze ou Larrosa, esse entendimento agambeniano da experiência do/no contemporâneo possibilita um entendimento da experiência de formação como a imersão no acontecimento, este, extemporâneo, parece gerar brechas em linearidades temporais e narrativas que comummente travessam os quotidianos dos processos de ensino. A formação estaria ligada a essa desconexão, a esses deslocamentos, a essas fraturas que escapam à linearidade do previsto, do planejado, do previsível - a essa abertura ao intempestivo.
A formação poderia, então, ser pensada como um espaço de experimentação, de devir, como a criação de um conjunto de condições que tornam a experiência possível (LARROSA, 2014). A questão que se coloca, neste momento, é o que seria uma pesquisa com um sentido educativo ou formativo? Como atentar, especificamente, para a produção de rupturas que promovam tal tensionamento com aquilo que a nós se torna, de algum modo, ordinário, no que diz respeito à formação de pesquisadores em educação?
Também Jan Masschelein e Marteen Simons (2014), no texto intitulado Sobre o preço da pesquisa pedagógica, propõem que nos afastemos de uma leitura da pesquisa como remetida a um campo - a educação - para nos deslocarmos para a natureza da pesquisa, para a dimensão educativa ou formativa da própria atividade de pesquisa − tanto para o próprio pesquisador, como para os demais, estudantes ou educadores. Trata-se, portanto, de uma ideia de pesquisa não como apropriação de um conhecimento ou de um saber sujeito a determinadas condições, mas de uma pesquisa formativa, quando implica a transformação do eu. Já não se trata da pesquisa como "produção de conhecimento", que resulta num produto, num "conhecimento válido", de acordo com determinadas condições internas - metodologia e estrutura do objeto de conhecimento que se pesquisa - e externas - regras sociais, normas e valores que determinam a fiabilidade do conhecimento.
Não se trata de uma pesquisa útil, nos termos de Agamben, de uma pesquisa voltada para a otimização da prática educativa a partir desse conhecimento válido. Trata-se de uma pesquisa inútil, (im)produtiva, inatual, intempestiva, contemporânea, no sentido em que ela abre "um espaço para respirar" das exigências do presente, da tal tirania da atualidade citada anteriormente. Uma pesquisa vivida a partir dessa fratura, dessa tensão, que Agamben associa ao sentido forte do contemporâneo. É, por isso, uma figura difusa, fragmentada que apenas podemos vislumbrar a partir de alguns movimentos que ensaiamos.
Masschelein e Simons (2014), inspirados pelo trabalho de Foucault, deslocam a questão da pesquisa pedagógica de uma certa relação com o conhecimento para o plano existencial, na medida em que ela implica a transformação do eu. Segundo os autores:
Nesta tradição, a pesquisa e o estudo têm a ver, em primeiro lugar, com a mudança de uma condição de existência do pesquisador, isto é, são uma questão existencial. Em segundo lugar, nesta outra tradição, não é apenas a relação entre conhecimento e verdade que desempenha um papel básico, a relação entre ética e verdade também o faz (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 61).
Esta leitura existencial e ética nos leva de novo à ligação estabelecida por Agamben (2009) entre vida e pensamento, no que se refere ao estudo, embora Masschelein e Simons (2014) utilizem, para a explicitar, o conceito de "cuidado de si" de Foucault, que implica "[...] uma determinada atitude: relacionar-se de certo modo consigo próprio, mas também com os demais e com o mundo" (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 62). Uma atitude de atenção, consigo próprio, determinados exercícios (entre os quais se incluem a escrita e a leitura), uma ascese, entendida como uma série de práticas que têm como efeito a transformação do eu, "[...] o domínio de si, um domínio que deve se alcançar mantendo uma atitude atenta para consigo (e os demais)" (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 63). A questão da pesquisa formativa desloca-se de uma relação com a verdade como objeto - entendida como exterior ao sujeito - cujo acesso representaria uma "salvação" ou um "esclarecimento", para uma verdade "incorporada" ou "encarnada". Trata-se de um convite, uma inspiração em nome do cuidado de si, mostrando o que significa cuidar de si próprio e propondo exercícios e técnicas em que esse cuidado pode tomar forma. Significa colocar-se à prova, e, esse colocar-se à prova implica uma relação com o presente, um cuidado e atenção, que é ao mesmo tempo, uma relação paradoxal com o nosso tempo, como a proposta por Agamben em relação ao contemporâneo. Trata-se de uma forma particular de viver o presente:
[...] implica uma atitude de cuidado e atenção para com a realidade educativa e para com o mundo do qual se faz parte como pesquisador. Trata-se de um olhar agudo e concentrado na realidade, no que acontece (hoje) no presente, e trata-se também de uma disponibilidade a não tomar como fato já pré-estabelecido quem somos e o que fazemos (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 71).
Uma disposição a se expor a um saber desconhecido. Isto implica se confrontar com o que impede o cuidado de si, como, por exemplo, as obviedades do campo ou dos conhecimentos adquiridos e assinalar possibilidades para o cuidado e o domínio de si.
Pensar as propostas de Agamben junto com o entendimento da pesquisa pedagógica de Masschelein e Simons, nos coloca ante à possibilidade de uma relação com o presente que nos confronta com o que se nos apresenta hoje, aqui e agora, e que liberta o pensamento e a ação para a experimentação e a invenção de outras formas de leitura e escrita, de outros modos de pesquisa e formação. Como afirmam os autores, num texto anterior sobre a universidade: "Não são só o passado ou o futuro que dirão sobre o que é ou deve ser a universidade, mas os experimentos e invenções que hoje procuram se dirigir ao presente" (SIMONS; DECUYPERE; VLIEGHE; MASSCHELEIN, 2011, p. 7). É nesse sentido que aqui apresento os exercícios de leitura e escrita experimentados na formação de pedagogos.
Leituras
Os exercícios de leitura de que vos quero falar, tal como os de escrita de que falarei a seguir, acontecem numa disciplina de pesquisa em educação do curso de Pedagogia. Nela, promovo a leitura de textos a partir dos quais pensamos a pesquisa em educação: textos da filosofia, da literatura, da pedagogia. São o que costumo chamar de "textos excêntricos": tanto porque quase todos são excêntricos, no sentido de estranhos, ao campo da educação, como porque, consequentemente, têm um descomprometimento face aos "enredos da literatura especializada, uma independência face aos hábitos mentais, aos lugares comuns, às verdades inquestionadas com que essa literatura se pretende se legitimar" (POMBO, 2000, p. 9), são, portanto, textos contemporâneos. Como tal, permitem inventar um fora da pesquisa em educação para pensar a pesquisa em educação, permitem ensaiar um pensar fora do "campo". Alguns exemplos desses textos são: Começar e acabar, de Italo Calvino (1998); o já referido Os estudantes, de Giorgio Agamben (2017); Pensamento, corpo, devir. Uma perspectiva ético/estético/política do trabalho acadêmico, de Suely Rolnik (1993), e Experiência e alteridade em educação, de Jorge Larrosa (2011). São, portanto, textos que deslocam, que tensionam os limites do que entendemos por pesquisa, por formação, por escrita acadêmica. Acompanhemos os exercícios leitura.
As aulas decorrem em torno da leitura, cada semana um texto, cada texto um conjunto de questões que cada aluno deve colocar explicitando a sua relação com a pesquisa e com os seus interesses de pesquisa. Inspirados nas questões de Jacotot (RANCIÈRE, 2011, p. 44), a discussão desenrola-se em torno às questões do mestre: "o que você vê?", "o que pensa disso?" e "o que poderia fazer com isso?". A aula começa com as questões e comentários dos alunos em relação ao texto, são lidos os trechos que se relacionam com essas questões, os alunos leêm, a professora lê, discute-se, comenta-se. Discutem-se sentidos, confrontam-se leituras, pensamos juntos "o que acontece se relacionarmos o texto com a pesquisa em educação?". Instala-se um certo sentido de transgressão que a leitura daqueles textos permite (assim como a escrita a partir deles).
A natureza dos textos provoca estranhamentos vários. Eis alguns comentários dos estudantes: "O texto é difícil!"; "Não sei se entendi completamente o texto mas gostei de ler."; "É uma linguagem muito diferente da que estamos acostumados.", "É um texto que contraria tudo o que nos ensinaram sobre o que deve ser a escrita acadêmica", "O que é que este texto tem a ver com a pesquisa em educação?", "Em que é que este texto me ajuda a fazer a minha monografia?". Estas reações nos confrontam com duas questões: por um lado, como certos modos de ler, certas linguagens vão sendo instituídas na formação de pedagogos e se constroem como modelos de leitura, definindo tanto certas formas instrumentalizadas de relação com o texto como com a própria pesquisa em educação - a ideia de leitura como compreensão e interpretação, a leitura a serviço da realização de uma determinada tarefa −; por outro lado, ao provocar estas reações, os textos excêntricos permitem um deslocamento dos modos de ler, uma experiência de leitura que abre outras possibilidades para a formação de pesquisadores em educação.
Em vez do "para que serve?" podemos pensar, a partir das perguntas do mestre ignorante, como esses textos podem instaurar uma outra relação com a pesquisa e a formação mais próxima da ideia do cuidado de si, da pesquisa formativa que cria uma disposição, um deslocamento, uma atitude de atenção e abertura à experiência entendida como "transformação do eu" e pressupõem, como tal, uma outra relação com o conhecimento e, consequentemente, uma outra relação com o texto.
Outros comentários dos estudantes nos colocam questões relativas à leitura como estudo, ao tempo e espaço da leitura: "Vamos ficar mais tempo com este texto!", "São poucos textos!", "Os textos formam um todo...existe uma articulação/relação entre os textos que a gente vai percebendo ao longo do semestre." É através do movimento da leitura, na turma, que vai se definindo o espaço/tempo próprio para a leitura e discussão de cada texto. São textos estranhos e são poucos textos, propositadamente, para que possamos criar o espaço/tempo necessários para lidar com esses estranhamentos, para que leituras outras possam acontecer. Para isso, é preciso criar um clima, um ambiente, uma temperatura que tornem possível a experiência da leitura. Para experimentar a lentidão, o silêncio, uma outra temporalidade, que não a produtiva, a da utilidade. No livro Se um viajante numa noite de inverno, Italo Calvino nos fala dessas condições:
Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. [...] Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz. Escolha a posição mais cômoda: sentado, estendido, encolhido, deitado. Deitado de costas, de lado, de bruços. Numa poltrona, num sofá, numa cadeira de balanço, numa espreguiçadeira, num pufe. Numa rede, se tiver uma. Na cama, naturalmente, ou até debaixo das cobertas (CALVINO, 1990, p. 8-9, grifo do autor).
O escritor nos fala da literatura, de uma leitura individual, do ato solitário que implica, além da atenção, uma certa reclusão, um certo isolamento como condições que tornam a leitura possível. No caso da disciplina, trata-se também, depois de uma primeira leitura individual, de um exercício coletivo de leitura na aula, que acontece em torno a estes textos incômodos, que deslocam, que transformam e, portanto, nos formam. Requer, por isso, a criação de determinadas condições que tornem possível uma relação que se vai construindo na turma através da leitura dos textos, num movimento que pretende preservar as marcas da experiência individual e, a partir delas, construir uma relação no grupo em torno do texto, de uma certa relação com a leitura.
O texto é o comum, a leitura é posta em comum. É neste sentido que falamos de uma profanação, uma restituição da leitura ao uso comum através dos textos que todos lemos e discutimos na aula, que todos experimentamos, dessacralizando certas práticas de leitura que instauram uma suposta verdade no texto que o leitor teria que alcançar para poder legitimar a sua própria leitura. Trata-se de nos afastarmos de modos convencionais de leitura, que colocam como tarefa do leitor desvendar uma suposta essência do texto, para nos colocarmos em contato com o que está fora do texto, para acompanharmos os fluxos que se geram a partir da sua leitura, para tornar a leitura em uma série de experimentos de cada leitor, colocando-o em meio dos acontecimentos que o atravessam - aquilo que Deleuze (1992) designa como uma leitura intensiva.
Na sua Carta a um crítico severo, publicada no livro Conversações (1992), Deleuze fala de dois modos de leitura. A primeira, corresponderia a uma leitura convencional, a segunda a uma leitura em intensidade ou amorosa:
É que há duas maneiras de ler um livro. Podemos considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar o seu significado, e aí, se formos ainda mais perversos ou corrompidos, partimos em busca do significante. E trataremos o livro seguinte como uma caixa contida na precedente, ou contendo-a por sua vez. E comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos o livro do livro, ao infinito. Ou a outra maneira: consideramos um livro como uma pequena máquina a-significante; o único problema é: "isso funciona, e como é que funciona?". Como isso funciona para você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro livro. Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica. Corpo sem órgãos. [...] Essa maneira de ler em intensidade, em relação com o fora, fluxo contra fluxo, máquina com máquinas, experimentações, acontecimentos em cada um que nada têm a ver com um livro, fragmentação do livro, maquinação dele com outras coisas, qualquer coisa... etc., é uma maneira amorosa (DELEUZE, 1992, p. 17-18).
É do primeiro modo que tentamos escapar em nossos exercícios, para experimentarmos nas intensidades da leitura amorosa. Profanar implica aqui também, que o leitor sempre trai o texto, a leitura implica esse ato de traição, esse gosto perverso de que também fala Deleuze (1992, p. 15) "[...] o gosto para cada um dizer coisas simples em nome próprio, de falar por afetos, intensidades, experiências, experimentações". A profanação se dá precisamente na transgressão das regras mais elementares da hermenêutica, como refere Agamben (2009) no texto O que é um dispositivo?, quando nos damos conta de que não podemos avançar sem essa transgressão, no momento em que o texto alcançou um ponto de indecidibilidade no qual se torna impossível distinguir entre autor e intérprete. É o momento em que o leitor-intérprete abandona o texto para proceder por conta própria. Como falamos em relação à pesquisa formativa, trata-se antes aqui de exercícios orientados para uma leitura que transforma o eu, uma leitura "encarnada".
Acompanhamos os textos com as suas marcas, repetições, inflexões, explicitações, num exercício de imersão na leitura que implica uma outra temporalidade - uma temporalidade instaurada pela leitura do texto como algo que resiste a uma apropriação imediata. Um exercício em que é experimentada a dificuldade da leitura, a resistência do texto à interpretação automática e à necessidade de uma insistência, de um esforço, de releituras que escapam aos modos e dispositivos comuns de relação com o texto na atualidade.
A leitura como experiência, entendida nesse sentido de transformação do eu, implica aqui um gesto de interrupção de uma certa relação com o texto, com a leitura, com o tempo e com os modos acadêmicos convencionais. Pensar a leitura, e a formação, na modalidade da interrupção, implica pensá-la na relação com a alteridade, na experimentação de formas de modalidades de leitura que difiram do que está normalmente "ali", do que está posto. Ler textos excêntricos implica um movimento de confiança para seguirmos o que não entendemos de imediato e assumir o risco do desconhecido. Larrosa (2014) nos fala da interrupção como condição de possibilidade da experiência:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2014, p. 25).
Estas seriam as condições de leitura na aula, de uma leitura entendida como interrupção, como profanação. Uma leitura que interrompe a necessidade instaurada pelas formas instituídas de leitura, que se afasta de certas lógicas de produção, de cumprimento de regras e objetivos pré-definidos para acontecer na fragmentação, na suspensão do que está posto, experimentando, ensaiando, compondo outras formas de relação com a leitura na universidade.
Num outro texto sobre experiência e alteridade, Jorge Larrosa (2011) usa o exemplo da leitura para falar da experiência, do que seria uma leitura entendida como experiência; como, o que nos passa, o que nos acontece, e não o que se passa, ou o que acontece. O que está em causa na leitura não é o texto, mas a relação que estabelecemos com o texto. O texto é, portanto, o acontecimento que nos coloca em relação com uma exterioridade, uma alteridade, um ilgevível. Por isso, a leitura como experiência só acontece na relação do texto com a subjetividade do leitor, numa relação que não se esgota, ou não passa, pela compreensão, mas pela transformação do eu. Para o autor, trata-se de "[...] formar leitores abertos à experiência, a que algo lhes passe ao ler, abertos, portanto, a não se reconhecer no espelho" (LARROSA, 2011, p. 9). Compreender o texto, dominar as suas estratégias de compreensão, responder a todas as questões sobre o texto, não garante a experiência da leitura entendida neste sentido. Não se trata de um modo técnico. Tem que haver uma relação íntima entre o texto e a subjetividade, uma relação de não-apropriação, uma relação que mantém a alteridade.
A questão é como a leitura pode
[...] ajudar-me a dizer o que ainda não sei dizer, o que ainda não posso dizer, ou o que ainda não quero dizer. (...) ajudar-me a formar ou a transformar a minha própria linguagem, a falar por mim mesmo, ou a escrever por mim mesmo (LARROSA, 2011, p. 11).
A leitura, estaria, assim, ligada com aquilo que nos faz ser o que somos, a chegar a ser o que se é (como na formulação de Nietzsche no subtítulo do Ecce Homo).
A experiência da leitura, se é um acontecimento, não pode ser causada, não pode ser antecipada como um efeito a partir das suas causas, só o que se pode fazer é cuidar de que se deem determinadas condições de possibilidades: só quando confluem o texto adequado, o momento adequado, a sensibilidade adequada, a leitura é experiência (LARROSA, 2011, p. 14).
É a partir desta ideia da leitura como acontecimento que trabalhamos. O que fazemos é criar um espaço comum onde a singularidade e pluralidade da experiência da leitura possa acontecer, não como um objetivo pré-determinado, uma meta antecipada, mas como uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar ou prever. Abrir a pesquisa ao acontecimento é o que entendemos por pesquisa formativa. Trabalhamos com inquietudes, formas de atenção, relações com o texto, escutas, aberturas. No espaço comum da aula se colocam uma experiência junto com outra experiência, um interesse junto com outro interesse, um desassossego junto com outro desassossego, uma marca junto com outra marca. Trata-se de uma experiência de leitura próxima do que Agamben entende por estudo, no sentido de se colocar em relação a algo, de um cuidado, uma atenção, uma disposição, um afeto, mas também de uma dimensão material da leitura que implica insistência, repetição, discussão e que fazem da aula um tempo e espaço próprio que possibilita e sustenta essa atividade.
Escritas
Os exercícios de escrita propostos na disciplina seguem um duplo movimento: a escrita de si, como experiência de pesquisa, trabalha a experiência da escrita a partir da escrita da experiência; e de como podemos projetar, e projetar-nos, na pesquisa em educação nessa experiência. Os textos propostos e as leituras que fazemos na aula já fazem parte, na sua excentricidade, dessa experiência da escrita, pois colocam sobre a mesa formas e estilos de escrita que, de certa forma, se aproximam, ensaiam processos de escrita de si que trazem uma marca existencial para a escrita acadêmica e a deslocam das suas formas mais comuns. A primeira proposta de exercício consiste na escrita de um memorial de pesquisa construído a partir das marcas da experiência, a segunda, trata da elaboração de um projeto de pesquisa, feito a partir do primeiro exercício do memorial, que permita pensar a proposta de pesquisa de cada aluno a partir dessa escrita de si, que é uma escrita com relação à alteridade, com o outro da experiência, com o que me transforma.
A escrita do memorial é feita a partir da leitura do texto Pensamento, corpo e devir. Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico, de Suely Rolnik (1993, p. 241). Esse texto é, também ele, um memorial, mas um memorial que escapa ao comentário habitual de uma trajetória acadêmica, fugindo de uma memória cronológica, mergulhando naquilo que a autora chama de "[...] memória do invisível feita não de fatos, mas de algo que acabei chamando de marcas". As marcas são fluxos que fazem tremer os contornos da nossa atual figura. São a experiência, o acontecimento. São fluxos que, conectando-se com nossa composição atual, esboçam outras composições, formam estados inéditos, estranhos, que violentam, desestabilizam o nosso corpo na sua forma atual, criando a exigência de um novo corpo, de nos tornarmos outros, neste sentido, as marcas são sempre gênese de um devir. O exercício que proponho aos alunos trata de pensar os seus interesses de pesquisa a partir das marcas, fazer o seu memorial atualizando as marcas da experiência que constituem os seus interesses de pesquisa. A sua relação com a pesquisa se vai tornando uma relação a partir das marcas, da experiência, do que os forma e transforma.
Encontramos vestígios desses estranhamentos na escrita dos memoriais dos estudantes, do devir produzido pelas marcas, quando falam em "resgatar memórias de acontecimentos que me fizeram desenvolver um olhar mais sensível para o tema" (Uma estudante, 2018), ou de "um despertar que me fez compor um interesse de pesquisa" (Outra estudante, 2018), ou o momento em que "escolhi me abrir à experiência e conhecer mais sobre os caminhos que poderia percorrer"(Ainda outra estudante, 2018), "as dúvidas me acompanharam por um tempo, e me fizeram estar sempre atenta a novas possibilidades que poderiam surgir" (Outra estudante ainda, 2018). As ideias de acontecimento, de composição, de atenção e de experiência aparecem nos memoriais dos estudantes. Suas escritas são guiadas pelas marcas, algumas, numa lógica cronológica, seguem uma linha temporal que começa na sua experiência no ensino fundamental e vai até a experiência na graduação em Pedagogia, sempre em torno de acontecimentos marcantes. Noutros, a escrita se foca num acontecimento singular, mais próximo ou mais remoto cronologicamente. Em todos as marcas, vão reverberando nesses exercícios de escrita de si.
É uma escrita que procede por intensidades. Os estudantes ressaltam acontecimentos que reverberam na definição de seus interesses de pesquisa. "Essa experiência para mim foi ímpar" (Um estudante, 2018), "fiquei impactado por essa leitura" (Outro estudante, 2018), "essa situação me causava bastante inquietação, me deixava bem pensativa, e posso dizer, até bem indignada!" (Uma estudante, 2018), "inconformada em presenciar o mesmo cenário todos os dias..." (Outra estudante, 2018), "posso dizer que certamente essas marcas têm definido minhas escolhas desde o início da graduação" (Mais outra estudante, 2018), "as marcas me perseguiam" (Ainda outra estudante, 2018). Uma estudante identifica a sua marca na relação com a leitura:
Seja como for, nunca superei de todo o deslumbramento e libertação que a capacidade de ler (...) me trouxe desde aquele primeiro momento. Esta foi a maior sensação de poder que consigo me lembrar, um poder que ainda me surpreende e fascina, tantas linhas e idiomas depois. É nesse sentimento - ou quem sabe em sua racionalização - que encontro meu interesse [de pesquisa] (OUTRA ESTUDANTE AINDA, 2018).
Nestes exercícios de escrita, se promove uma relação consigo mesmo, através dela, o estudante se abre a uma experiência de transformação do que pensa, do que é, através do estreitamento de relações entre escrita e vida que escapam aos modos prontos da escrita acadêmica convencional. Estes movimentos permitem experimentar uma pesquisa formativa que põe em jogo as subjetividades, deslocando a escrita acadêmica das suas formas e funções habituais de categorização, acabamento, explicação, verificação, avaliação para as práticas de cuidado, de transformação do eu, de concentração e acompanhamento de processos de pensamento. É a própria vida e seus itinerários que se tornam a matéria-prima da escrita, afastando-a das formas de normalização, policiamento e enquadramento que frequentemente povoam a escrita acadêmica. Trabalhamos com a possibilidade de uma escrita não-representacional e não-cientificista, que, libertando-se da obrigação de descrever a verdade das coisas (AQUINO, 2011), possa ensaiar outros modos de relação entre leitura e escrita, entre pesquisa e formação.
A escrita a partir das marcas nos permite explorar outras formas de relação com o mundo, experimentar com conceitos e estilos de escrita que se materializam a partir da violência, do desassossego produzido pelas marcas. É, tal como a leitura, uma escrita encarnada, que configura a criação de modos de existência, de devires e, como tal, de uma certa relação com a alteridade: "[...] que a gênese do devir é sempre uma diferença e que o devir é sempre um devir-outro" (ROLNIK, 1993, p. 244). Para Suely Rolnik, as práticas acadêmicas - o estudo, a escrita, o ensino - são formas de corporificação das marcas:
O pensamento é uma espécie de cartografia conceitual cuja matéria-prima são as marcas e que funciona como universo de referência dos modos de existência que vamos criando, figuras de um devir (ROLNIK, 1993, p. 244).
Não se trata de procurar uma verdade, uma essência de si mesmo através da escrita, mas da possibilidade de se colocar em questão, de se deslocar de si mesmo, da sua posição, de testar a sua relação consigo mesmo e com a verdade. Trata-se de libertar-me de mim mesmo, evitando ser o mesmo, continuar o mesmo. Se é a experiência que torna a escrita possível, esta experiência não é verdadeira nem falsa. Nas palavras de Foucault "A experiência é sempre ficção: é algo que se fabrica para si mesmo, que não existe antes e que poderá existir depois" (FOUCAULT, 2010, p. 293). Experiência como palavra e não como conceito (não é fonte de uma verdade essencial). É isso que torna o exercício da escrita, como experiência, singular. Escrever é tatear no escuro. Como os livros-experiência de Foucault. São autoexplorações experimentais, a que cada um se entrega sem saber onde findarão. Como observa Deleuze (1988), a propósito da escrita para Foucault, ela nunca foi encarada como um objetivo, um fim, mas como um modo intensivo de conduzir a própria existência, uma experiência de transformação, do que se pensa, do que se é, neste sentido, escrita e vida se confundem. Existe uma vitalidade na escrita assim entendida que resiste aos protocolos normativos e aos jogos de subjetivação típicos das práticas universitárias.
Como na escrita das marcas de Suely Rolnik. A escrita me transforma e transforma o que eu penso, por isso, não posso saber o que penso antes de começar a escrever sobre aquilo sobre que quero pensar. Trata-se de manter a abertura do pensamento através da escrita, escrever e pensar na tensão, na alteridade, no devir e não na sua superação.
A pesquisa, e particularmente a pesquisa em educação, como trabalho de escrita, está sujeita a diversas formas de normalização, de controle, de enquadramento que necessitam ser questionados, tensionados no sentido de se constituir como um campo de luta que force a potencialização dos modos de existência que nela estão em causa (AQUINO, 2011). O exercício da escrita acadêmica da forma que defendemos pode constituir uma frente de luta nesse campo, nos afastando dos formatos e lógicas estabelecidos e também aproximando a pesquisa formativa da sua inutilidade, da sua (im)produtividade.
Entende-se esta (im)produtividade como uma forma de transgressão, inspirada no conceito de unworking (désoeuvrement), que poderíamos traduzir por inatividade, ociosidade, proposto por Blanchot (1988) em The unavowable community (La Communauté Inavouable) − ou comunidade inconfessável, profana − como um vaguear, uma forma de questionamento de si-mesmo e no sentido quase paradoxal que aí é dado ao trabalho da escrita. Unworking (désoeuvrement) é uma forma de trabalho que não é produtivo, um trabalho que se produz a si mesmo como falta/ausência de trabalho (worklessness), como indeterminação. Escrever, entendido como falta/ausência de trabalho (worklessness), é um movimento que passa através, mas é independente do seu produto - o livro, o texto. No seu sentido comum unworking (désoeuvrement) é entendido como ociosidade, indolência, preguiça, estar desocupado, sem objetivo, sem nada para fazer. Para Blanchot, essa indolência é uma "tarefa", uma forma de estar "ocupado" e, também, mais significativamente, evoca fome, necessidade de vaguear, de ir mais longe, uma forma de questionamento de si mesmo (de autoquestionamento). Neste sentido, a ausência de trabalho tem uma conotação positiva, ativa, criativa.
Com essa perspetiva, podemos explorar a possibilidade de pensar a pesquisa em educação, não como um trabalho produtivo, mas como ausência de trabalho (worklessness) no sentido positivo, ativo e criativo proposto por Blanchot através do conceito de unworking. Este unworking é um movimento que implica a abertura do mundo e ao mundo, criando, assim, a possibilidade do comum, tal como a escrita, para Blanchot, cria a possibilidade da comunicação (e não do livro). Trata-se de experimentar a indeterminação constitutiva do exercício da escrita, entendida no sentido que exploramos. A pesquisa seria, assim, o que se manifesta através desse movimento, aquilo que vem à presença, que se expõe tornando-se público. Essa possibilidade é um movimento - o movimento de um devir comum. Este movimento é um movimento relacional, implica a alteridade para se constituir como comum, como comunidade. Nesta perspetiva, o pesquisador é aquele que assume o unworking da sua tarefa, a sua natureza improdutiva, indeterminada e imprevisível, assumindo o seu compromisso com a possibilidade do comum e o caracter público do seu trabalho - como relação, como processo, e não resultado ou produto.
Devir comum
O comum é o da singularidade das experiências produzidas a partir da leitura e da escrita do texto. É um comum plural, não o comum racional. Emerge de uma experiência singular mas comporta todas as outras experiências vividas por cada estudante nesse exercício. É constrangido por uma certa quantidade de leituras e escritas e coloca a pessoa que lê, a pessoa que escreve em face da alteridade. Os textos dos estudantes são lidos e discutidos na turma e, quando os colegas e a professora leem, dão sugestões, dando lugar a um processo de escrita e reescrita ao longo do semestre, que envolve todos no processo de escrita próprio e alheio. É um movimento de pensar em comum, um texto, uma escrita que é colocada à disposição de todos para o uso comum. Há olhares, comentários, gestos, inquietações, desconfortos, resistências, entusiasmos, estranhamentos no ar. Um gaguejar comum, em comum, uma gagueira criadora: exercitar os começos e abrir os fins a novos começos, uma forma de começar pelo meio (DELEUZE, 1997).
Entende-se o comum não como um a priori racional, homogeneizador, mas como uma construção no movimento dos encontros que nele se dão. O comum como uma força de composição e não como uma pressuposição, ou um resultado, ou um produto. Se a força ou movimento deixam de existir o comum se desvanece. Este comum não é objectificável ou produzível, é o que emerge da interrupção, da fragmentação, da suspensão provocada pelos exercícios de leitura e de escrita, do unworking (désouvrement) como relação entre o trabalho da escrita e a sua negação (BLANCHOT, 1988). O comum nasce da tensão, do encontro, da finitude, daquilo que, na experiência de ler e escrever, me coloca mais radicalmente em questão. Implica uma ex-posição na relação com o outro, com o texto, com a escrita, com a alteridade que, simultaneamente, expõe a fragilidade do conhecimento. Segundo Blanchot (1988), a experiência da comunidade requer esta exposição aos outros e, ao mesmo tempo, se constitui numa relação paradoxal com a comunidade, uma pertença que implica uma separação, uma solidão vivida em comum.
Entendida como tal, a comunidade está fora da ordem produtiva, suspende a objetificação e formalização subjacente ao processo produtivo. Introduz uma brecha que permite a emergência do comum como ser-em-comum, como comunicação, com a sua imprevisibilidade e a sua própria impossibilidade. Tal como para Agamben o contemporâneo existe apenas na relação paradoxal com o seu próprio tempo, em Blanchot, a relação com a comunidade é sempre paradoxal, trata-se de uma pertença que implica separação, uma pré-existência que é, ao mesmo tempo, já póstuma, é, portanto, um comum que se produz num movimento de permanente impermanência. A experiência da comunidade implica uma relação com a alteridade que interrompe a particularidade do ser singular, expondo-o a um outro, é uma abertura ao exterior e, ao mesmo tempo, essa mesma abertura provoca "uma violenta dissimetria" (BLANCHOT, 1988) entre eu e o outro. A esta tensão Blanchot chama de "fissura" presente na comunicação e é nesta fissura que o evento da comunidade pode se dar. A pesquisa formativa acontece nessa fissura, nesse entre que suspende evidências e abre a possibilidade de relações inéditas entre método e conhecimento, leitura e escrita, pesquisa e estudo. Além dos métodos que prescrevem, das métricas que ajuízam e dos planos que enquadram.
Trata-se, portanto, de uma valorização das experiências singulares que emergem no grupo turma e em suas pesquisas e que produzem um pensamento passível de ser sistematizado a partir de lógicas que escapam a modelos funcionalistas pautados na produção de figuras supostamente explicativas como o pesquisador, os métodos de pesquisa, os conhecimentos científicos, etc. É, então, a partir sobretudo da experiência, que podemos falar em pesquisa formativa. Entendida como tal, a comunidade está fora da ordem produtiva, suspende a objetificação e formalização subjacente ao processo produtivo. Introduz uma brecha que permite a emergência do comum como ser-em-comum, como comunicação, com a sua imprevisibilidade e a sua própria impossibilidade. A comunidade é o com, o ser em comum. Está sempre chegando no meio de um coletivo, é uma comunidade não comunitária, por isso, é inconfessável, como escreve Blanchot (1988), ou inoperante e (im)produtiva, como escrevem Nancy (1991) e Blanchot. Neste sentido, a sua lógica é a da singularidade, do entre dois.
Nossas leituras e escritas implicam uma obsessão, uma cumplicidade, uma entrega e, ao mesmo tempo, uma insolência de trabalhar com o mesmo não saber, com o aleatório. Trabalhar fluxos, intensidades, devires a partir da escrita e da leitura numa disciplina de pesquisa em educação. Habitar uma comunidade de pesquisadores em educação a partir de exercícios de leitura e de escrita (im)produtivos, contemporâneos, intempestivos, a partir do que sempre chega no meio. A pesquisa formativa se pode constituir assim como um continuum onde as intensidades da escrita, da leitura, da experiência, das marcas se mantêm, se atualizam, resistem aos dispositivos que capturam e fecham as possibilidades e a potência do devir, de certas formas de relação com o mundo.