As palavras do prefaciador Juremir Machado da Silva sintetizam bem o livro objeto dessa resenha. “Alguém poderia imaginar que todo procedimento científico é complexo por definição e necessidade. Deveria ser. Em certo sentido, sempre é. Mesmo assim, ao longo dos séculos, nesses tempos da modernidade arrogante, a ciência foi sendo mutilada por processos de simplificação. Fagner Torres de França e Maria da Conceição de Almeida, em Sociologia do presente, ciências da cultura, complexidade, traçam uma arqueologia desse reducionismo e, inspirados pelo pensador da complexidade, Edgar Morin, defendem uma ciência aberta, sensível, compreensiva, generosa e complexa” (SILVA, 2019, p. 9).
Dividido em três partes: “Para uma sociologia do presente”, de autoria de Fagner Torres de França, “Para uma antropologia fundamental”, de autoria de Maria da Conceição de Almeida e “Experiência mestiça” - um ensaio escrito a quatro mãos -, o livro é composto por doze ensaios e apela para uma ciência e um pesquisador que têm o que dizer ao mundo no tempo presente. Um mesmo propósito transversaliza todo o livro: afastar-se dos critérios canônicos tidos como protocolos garantidores da leitura rigorosa sobre os fenômenos investigados. Isso porque, como sabemos, especialmente, nas Ciências Humanas e Sociais, é sempre esperado que o corte temporal para estudar um fenômeno atenha-se ao passado. Assim, as pesquisas possuem, quase sempre, uma natureza diagnóstica, uma leitura dos fatos sociais a posteriori. Dessa perspectiva, o pesquisador se assemelha ao médico legista que faz a autópsia de um cadáver.
Uma Sociologia do presente, ao contrário, vale-se de uma estratégia de método que privilegia o fenômeno “vivo”, enquanto se desenrola, flui; enquanto se modifica. Daí o porquê da denominação de Edgar Morin de “método in vivo” em contraposição a um método “in vitro”. Essa perspectiva permite ao pesquisador observar o “detalhe revelador”, a “enzima”, o “fermento” de onde possa emergir outra sociedade, outra forma de viver, de fazer ciência e educação.
É disso que trata, mais substancialmente, Fagner França, na parte I do livro, tendo por referência três importantes registros de pesquisa de Edgar Morin na década de 1960: a pesquisa em uma comunidade de pescadores na região da Bretanha, França (MORIN, 1967), o movimento de revolta estudantil nas ruas de Paris (Maio 68: La Bréche [MORIN, 1968]), em colaboração com Claude Lefort e Cornelius Castoriadis e La Rumeur d’Orléans (MORIN, 1969).
Conforme Fagner França, no caso da pesquisa com pescadores, Edgar Morin afirma que, ao estudar um acontecimento circunscrito a um local, a uma comunidade, era possível, por meio daquele fragmento, relacioná-lo à História geral da França. No caso da pesquisa sobre O rumor de Orleans, trata-se de observar como, por meio de um boato sobre o desaparecimento de mulheres nos provadores de roupas em lojas de judeus, torna-se possível investigar a perseguição desse grupo social na Europa.
É, pois, na perspectiva de uma Sociologia do presente que é possível afirmar o método “in vivo” como uma prática de pesquisa que politiza a construção do conhecimento nas áreas das Ciências Humanas e da Educação. O livro sinaliza conceitos de “acontecimento” e “emergência” como operadores cognitivos importantes acerca de uma Sociologia do presente. Tais conceitos, trabalhados por filósofos como Gilles Deleuze e Félix Guattari, por vezes foram vulgarizados pela linguagem comum, no interior da própria Ciência e Filosofia. O conjunto de textos da parte I detém-se nesses conceitos, repondo a sua potência e chamando a atenção dos cientistas sociais e, de modo geral, dos pesquisadores das áreas das Humanidades e da Educação para a importância das pesquisas que interagem com o fato enquanto acontece, uma vez que é quase sempre do improvável, acidental, aleatório e singular que emergem outros devires sociais.
Na parte II do livro, “Para uma antropologia fundamental”, Conceição Almeida recupera, por meio de temas diversos, a importância do pensamento francês no Brasil como enzima da desordem esquecida nas Ciências Humanas; a potência da imaginação criadora e radical; a concepção de complexidade como uma estética da vida instauradora de uma ética da incerteza; as coleções científicas como exemplos de reatualização das emergências da condição humana; a relação de simbiose entre arte e espiritualidade; a indissociabilidade e ambiguidade entre o pesquisador e o tema-fenômeno por ele estudado - objetos que podem ser entendidos como fundamentos do pensamento complexo, edificado, sobretudo, por Edgar Morin e no interior do qual faz sentido uma Sociologia do presente.
Para Conceição Almeida, a pesquisa supõe uma atitude política e requer a imersão do pesquisador no fenômeno, trata-se de um ato terminal, uma atitude que impõe a coragem de superação e a metamorfose permanente do pesquisador. Esse é o meta-argumento que religa o conjunto dos textos da segunda parte do livro.
“Experiência mestiça”, última parte do livro, apresenta um ensaio escrito a quatro mãos sobre o filme Crônica de um verão, dirigido por Edgar Morin e Jean Rouch na década de 1960, momento em que o cinema é visto como uma experiência sociológica.