Introdução
O artigo discute e tensiona tanto limites quanto possibilidades de articulação e “usos” das categorias mulher, gênero, violência e crime no desenho teórico-metodológico de uma pesquisa sobre relações de gênero em escolas localizadas em regiões de alta incidência de denúncia de crimes contra mulheres, em um município do Rio Grande do Sul/Brasil.
A seleção das escolas foi feita com base em um mapeamento (figura 1) produzido com denúncias registradas na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), registros esses circunscritos ao que se define por violência contra as mulheres, fundamento sobre o qual a Lei Maria da Penha (11.340, de 7 de agosto de 2006) e a Lei do Feminicídio (13.104, de 9 de março de 2015) foram produzidas. A categoria “violência contra a mulher”, entretanto, coloca alguns desafios de ordem teórico-metodológica, uma vez que o referencial teórico, no qual se inscreve a pesquisa – estudos de gênero pós-estruturalistas que se articulam às teorizações foucaultianas –, questiona fortemente seu caráter universalizante e essencialista.
Outro aspecto a ser problematizado envolve a relação unívoca que se estabelece entre crime e violência (DEBERT; GREGORI, 2008), um ponto de atenção para estudos que se articulam com instâncias jurídicas. Em síntese, a produção de um mapeamento que intenciona particularizar regiões a partir do que a legislação propõe como denúncia de crimes de “violência doméstica e familiar contra a mulher” nos colocou diante de importantes questões a serem discutidas e tensionadas, a partir do arcabouço conceitual que assumimos no projeto.
No escopo dessa problematização, produzimos dois arranjos denominados aqui como categorias “endógenas” e “exógenas” referentes ao eixo teórico-metodológico a que se circunscreve o projeto de pesquisa. Assim, endógenas seriam as categorias fundamentadas no referencial teórico que permitiram delimitar, no âmbito do projeto ao qual este artigo se vincula, as questões, bem como o percurso metodológico e analítico da investigação. Exógenas são categorias que se constituem a partir de referências que, embora sejam colocadas sob suspeita e rasura no âmbito desse referencial teórico, constituem-se como aquelas fundamentais para algumas etapas do estudo – especialmente a produção dos mapas de Kernel.
Nosso foco, neste artigo, portanto, é a discussão teórico-metodológica que localiza e tensiona esses dois arranjos, uma vez que são eles que possibilitam construir pontes e dar coerência ao trabalho de campo e às anáises a serem realizadas em outra etapa, mediante investigação nas escolas.
Mulher, família, domicílio e crime: tensionamentos teóricos das categorias exógenas
A Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio dão relevo e reificam, em sua formulação, a centralidade da categoria mulher. Ainda que a Lei Maria da Penha, atualmente de forma mais pacífica , e a Lei do Feminicídio, de forma ainda bastante controversa , tenham colocado em pauta a inclusão de mulheres trans como agentes passivos previstos nas leis (MESSIAS; CARMO; ALMEIDA, 2020), tais legislações nomeiam a mulher como figura jurídica de pretensão universalizante, cuja condição de aceitabilidade incontestável diz respeito a um conjunto de marcadores biológicos em seus corpos.
Cabe ressaltar que a figura jurídica “mulher”, sujeito de direito, “vítima de violência”, emerge como resultado de um processo histórico em que movimentos feministas e de mulheres têm denunciado e colocado em pauta a condição de abuso e de assassinato de mulheres, fruto das relações de poder de gênero vigentes em nossas sociedades. Com maior ênfase, a partir dos anos 1980, os números que circunscrevem a violência contra as mulheres foram sendo registrados e ações de enfrentamento reivindicadas pelos movimentos organizados que denunciavam a impunidade da violação dos direitos das mulheres (SANTOS; IZUMINO, 2005). Os “crimes da honra” (legítima defesa da honra masculina) ou “crimes da paixão” e a visão “privatista/ familista”, muito comuns e socialmente aceitos naquele período, permitiam a não punição dos abusos vividos (CAMPOS, 2015). O termo violência contra as mulheres, portanto, evidenciava a opressão feminina pela condição de seu sexo, um entendimento articulado com os pressupostos do patriarcado, referencial alinhado às discussões feministas internacionais e aos pactos globais de erradicação da discriminação contra a mulher . Assim, no início da década de 1980, a compreensão de violência contra a mulher vai tomando contornos no Brasil, reiterando a noção de mulher “vítima/subordinada” (SANTOS; IZUMINO, 2005), cujas experiências de abuso constituiriam uma constante, independente do momento histórico e dos contextos sociais (DEBERT; GREGORI, 2008).
Do ponto de vista da organização das políticas, o termo “violência contra as mulheres”, ao recorrer ao caráter universalizante e essencialista da categoria, foi efetivo em visibilizar os abusos baseados em gênero. Ao produzir a compreensão das mulheres como dominadas e vítimas, serviu ainda para sensibilizar os órgãos do Estado, que, segundo Santos e Izumino (2005), tendiam/tendem a não compreender como crime a violência vivida por mulheres, bem como a culpabilizar a vítima pela agressão sofrida. Em síntese, a noção de “violência contra a mulher” torna públicos e reconhecíveis não só os abusos vividos, mas também uma compreensão de violência nas relações vigentes entre homens e mulheres. Em 2006, a terminologia foi ratificada na Lei Maria da Penha , e os sentidos por ela produzidos e a ela atribuídos se articulam ainda mais fortemente a outras duas categorias: família e domicílio . Assim, família, mulher e domicílio, além de fundamentarem as alterações do código do processo penal, tipificando os crimes , organizam as Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres e circunscrevem as pessoas e os tipos de denúncia que serão acolhidas nessas instituições.
Cabe ressaltar, entretanto, que a articulação entre mulher, família e domicílio não foi inaugurada pela Lei Maria da Penha e parece ter sido produzida num processo que envolve as próprias demandas políticas dos movimentos sociais organizados. A partir de 1985, com as implementações das primeiras Delegacias de Defesa das Mulheres (DDMs), o atendimento às vítimas passou a evidenciar alguns perfis de queixas que se repetiam, gerando um índice de registros em que se destacavam situações e ações de abuso vividas por mulheres no ambiente doméstico e praticadas, majoritariamente, por seus cônjuges ou companheiros. De modo geral, o fenômeno relacionado às queixas nas DDMs passou a ser considerado como efeito de uma organização familiar disfuncional, cujos lastros parecem ter contribuído, segundo Debert e Gregori (2008), para algumas compreensões que produzem um efeito homogeneizante do que se entende por violência doméstica e familiar contra a mulher.
No estado de São Paulo, em 1996, houve uma ampliação do escopo de atuação das DDMs para também investigar crimes contra crianças e adolescentes no sentido de contemplar, além da proteção às mulheres, a proteção à família. Essa ampliação da atuação das DDMs contribuiu para a compreensão de violência familiar como sinônimo de violência contra a mulher, contra o idoso e contra a criança e ao adolescente. Esse deslocamento semântico produziu, ainda, a compreensão de violência contra a mulher como abusos perpetrados contra a esposa ou companheira, restringindo o problema ao âmbito doméstico e familiar e reduzindo, assim, a ênfase da violência produzida pelas assimetrias de gênero (DEBERT; GREGORI, 2008).
Do ponto de vista desta investigação, a Lei Maria da Penha, os crimes por ela tipificados, bem como suas agências e mecanismos, vão produzir os sujeitos do crime e os abusos passíveis de serem denunciados. Parece razoável, pois, compreender que os estudos que tomam as denúncias nas DEAMs como parte do material empírico são afetados pelos agenciamentos dos processos pelos quais mulher, família e domicílio passam a se constituir como categorias que marcam e (de)limitam aquilo que se entende por violência contra as mulheres e violência de gênero.
Gênero e violência: ferramentas para análise de dinâmicas conflitivas
A noção de “mulher” como sujeito universal que, em maior ou menor grau, partilha um conjunto de características, traços de personalidade e experiências, está apoiada no pressuposto de que a materialidade do corpo produz efeitos sobre os fenômenos sociais. Ora entendido como causa determinante de comportamentos masculinos e femininos, ora como base sobre a qual a sociedade constrói sentidos sobre ser homem e mulher, o corpo sexuado, nesses casos, é concebido como elemento pré-discursivo para a construção social do gênero (NICHOLSON, 2000).
Apesar de ser fortemente contestada e estar localizada na exterioridade do arcabouço teórico deste estudo, “mulher”, enquanto figura jurídica, agente passivo previsto nas leis, constitui a categoria que permitiu fazer o mapeamento e identificação das regiões de alta incidência de denúncia de crimes perpetrados contra mulheres. Aquilo que circunscreve a categoria “mulher” pode ser ao mesmo tempo compreendido como limite – porque fixa e essencializa – e como possibilidade, uma vez que permite, nos agenciamentos das relações entre mulher, família, crime e domicílio, mapear e produzir um conjunto de perguntas centradas em gênero.
Adotado como conceito central de nosso estudo desde a perspectiva pós-estruturalista, gênero problematiza e opõe-se às noções essencialistas e universalizantes que se sustentam, em maior ou menor grau, na biologia dos corpos para, então, se constituir como categoria que permite compreender mecanismos a partir dos quais os indivíduos se constituem como sujeitos corporificados e generificados (MEYER; SILVA, 2020). Gênero seria, nessa abordagem, “[...] uma forma primária de dar significado às relações de poder [...]” (SCOTT, 1995, p. 86), aqui articulado à analítica do poder de Michel Foucault.
Nesses termos, o poder é tomado como uma força produtiva que atravessa e modula todo o tecido social e, como tal, se exerce em relação, como uma “ação que incide sobre a ação” dos indivíduos e da coletividade com a finalidade de gerir a vida e as condutas. Nas relações de poder, as coisas, as instituições, os preceitos e as subjetividades são valorados, os saberes são acionados, sustentados e deslegitimados, os indivíduos se tornam sujeitos e modos de se relacionar são produzidos (PASSOS, 2010). Como relação de poder, gênero se inscreve nos corpos (e os produz) por meio de tecnologias disciplinares e regulamentares que constituem e atravessam, também, os processos de formulação e organização de doutrinas, conhecimentos, instituições e políticas. Gênero, portanto, pode ser entendido como “[...] um organizador do social e da cultura [...]” (MEYER, KLEIN, DAL'IGNA, ALVARENGA, 2014, p. 898), causa e fundamento de desigualdades naturalizadas nos corpos. Nessa direção, Scott (1995, p. 2) sinaliza que “[...] gênero é o conhecimento que estabelece significados para diferenças corporais. Não podemos ver as diferenças sexuais a não ser como uma função de nosso conhecimento sobre o corpo”.
Gênero pode ser definido, pois, como um modo de conhecer que atravessa e constitui diferentes discursos. Sua potência, em termos táticos e estratégicos, reside na sua capacidade de ser tomado como natureza essencial e universal e, portanto, não problematizável. Uma vez que os indivíduos se tornam sujeitos de gênero na cultura, é nesse campo de lutas por significação que diferentes discursos vão nomear o que é próprio e adequado para homens e mulheres e produzir pedagogias de gênero e sexualidade. Fundamentados pela naturalização do par binário masculino e feminino e pela heterossexualidade como forma normal de exercício da sexualidade, determinados modos de viver a vida são produzidos como desejáveis, normais e legítimos. E, nessa dinâmica, que torna inteligível a ação social, são produzidos lugares, práticas e subjetividades que legitimam e tornam possível a violência de gênero. De acordo com Meyer (2009, p. 39): “[…] é no contexto de relações de poder de gênero e sexualidade naturalizadas, sancionadas e legitimadas em diferentes instâncias do social e da cultura que determinadas formas de violência tornam-se possíveis”. Nesses termos, para Meyer (2009), a violência de gênero encontra-se fundada sobre práticas discursivas e não discursivas que, ao instituírem e prescreverem o desejável e o inaceitável criam condições para que a violência aconteça, argumento que permite profícuas articulações com a compreensão de violência desenvolvida por Tereza de Lauretis (1994; 1989) acerca das “tecnologias de gênero”.
Produzidos para/pelo poder, as tecnologias de gênero constituem-se em “[...] técnicas e estratégias [...] pelas quais o gênero é construído [...]” (LAURETIS, 1989, p. 38) e, como mecanismos orientados por uma dada racionalidade, articulam-se a outras tecnologias, coordenam e compõem saberes, instrumentos, instituições, produzem e organizam espaços, distribuem objetos e pessoas. Fundadas e legitimadas pelas “normas de gênero”, as tecnologias a elas associadas produzem e incorporam mecanismos de regulação, nomeados por Butler (2004) como “regulações de gênero”, tecnologias que visam normaizar os sujeitos a partir de parâmetros de regularidade. Nessa mecânica que incide sobre o indivíduo e sobre a população com vistas ao governo das condutas, Lauretis e Butler incorporam a violência como mecanismo de regulação na ordem das relações de poder.
Enquanto crime é entendido como produto da tipificação penal, a violência configura uma noção mais ampla que envolve o reconhecimento socia do abuso, o que a caracteriza como uma prática histórica e culturalmente situada (DEBERT; GREGORI, 2008; MEYER, 2009). Em outros termos, desde estudos como os de Fonseca (2000) e Schraiber, Oliveira, Hanada, Figueiredo, Couto, Kiss, Durand, Pinho (2003), é possível conceber que a violência é produzida na ordem da linguagem que nomeia certos comportamentos e eventos como violentos, construindo sujeitos, objetos e, portanto, a própria violência como um fato social. Assim, a compreensão de relações que, em alguma medida, sejam permeadas por violência, envolve a necessidade de entendimento das dinâmicas sociais que as tornam possíveis (ARAUJO, 2008), o que demanda um conjunto de ferramentas teórico-metodológicas e ético-políticas que permitam “enxergar” os processos relacionados aos abusos enquanto práticas socialmente reconhecidas como tal.
Nesse sentido, violência também é uma categoria formulada no interior de um dado referencial teórico que, no caso deste texto, toma o poder como conceito-chave. Apesar de significada e apropriada de diversos modos (SANTOS, IZUMINO, 2005), a noção de violência de gênero que adotamos se apoia nas seguintes premissas: é produzida nos agenciamentos das relações de poder, marcada por assimetrias e pela intersecção de gênero com outros marcadores sociais; o gênero é uma norma regulatória que produz sujeitos e os posiciona em múltiplos arranjos e, como tal, não está circunscrito somente nas relações entre mulheres e homens.
Argumentamos que o poder constitui um campo de relações que: 1) produz um conjunto de condições mais ou menos compreensíveis e justificáveis para que a violência aconteça (MEYER, 2009); 2) faz uso dos efeitos da violência nos processos de condução das condutas, marcando diferenças, reiterando desigualdades e incidindo sobre o corpo daqueles e daquelas que resistem ao instituído (BUTLER, 2004). Contudo, desde a teorização foucaultiana, as relações de poder, ao mesmo tempo em que oferecem um vigoroso campo para compreender as dinâmicas entre violência e gênero, colocam alguns desafios teóricos ao estabelecerem a violência como algo que se dá no limite exterior dessas relações.
Para Foucault (2012), as relações de poder não operam na ordem da repressão ou da coação. O poder se estabelece nas relações, portanto, é exercido pelos sujeitos com o objetivo de conduzir as práticas e as condutas pelas vias do convencimento . Desse modo, para que o poder se estabeleça, é fundamental que o outro da relação também seja concebido como sujeito que dispõe de um campo de possibilidades de reações, invenções e respostas diversas. A resistência, nesses termos, emerge como um constituinte dessas relações, um modo de escape, mesmo que temporário, uma resposta inimaginada que emerge nesse vasto campo de possibilidades (FOUCAULT, 2012). Esses pressupostos dão a ver uma outra condição para o exercício do poder: a iberdade. Para Foucault, na ausência de liberdade as relações de poder são substituídas por relações de dominação e o indivíduo, impedido de agir, torna-se objeto (FOUCAULT, 2012) .
Contudo, a violência não está dissociada das práticas de governo, sendo acionada como recurso último em seus procedimentos, uma ação que, apesar de coagir e dominar, é colocada em funcionamento por uma dada racionalidade, gerando efeitos por ela desejáveis. Entendida como “[...] elemento móvel que adquire várias expressões [...]”, a razão, em sua pluralidade e diversidade de formas, orienta e atua em inúmeras relações de poder (COSTA, 2018, p. 161 ). Inscrita na biopolítica, a razão que orienta o governo se sustenta em um conjunto de saberes que refinem os mecanismos do poder e tornam a violência possível e seus efeitos desejáveis. De acordo com Foucault (2012, p. 312) “[...] a violência encontra sua ancoragem mais profunda e extrai sua permanência da forma de racionalidade que utilizamos. Entre a violência e a racionalidade não há incompatibilidade”.
Desde os apontamentos de Foucault, é possível pensar os usos da violência como ação que visa a adequação da conduta a uma dada normalidade, um tipo de procedimento de governo que perpassa manobras coativas. Centrada na vida, a racionalidade que acopla a violência deve ser compreendida em sua capacidade de normalizar os modos de viver, morrer e procriar (COSTA, 2018).
Nesse mesmo sentido, mas a partir de perspectivas diferentes das de Foucault (2012), Breines e Gordon (1983) problematizam a tese que caracteriza a violência como suspensão ou quebra da ordem, prática decorrente da irracionalidade ou da anomalia social. Para essas pesquisadoras, a violência (familiar) e, portanto, de gênero é, antes, um indicativo de busca da manutenção de um tipo de funcionamento social que normaliza ao reafirmar expectativas, submissões e dependências de gênero. Lauretis (1989) não somente endossa a compreensão de Breines e Gordon como parece tensionar os limites estabelecidos por Foucault entre poder e violência ao afirmar que gênero é construído pelas tecnologias de gênero e que a violência é generificada e generificante. Ao conceber a violência e seus efeitos nas dinâmicas da tecnologia de gênero, Lauretis assume, nos marcos da teoria foucaultiana, os argumentos apresentados por Breines e Gordon (1983, p. 492) de que “[...] a violência não é necessariamente desviante ou fundamentalmente diferente de outros meios de exercer poder sobre outras pessoas [...]”; ela é, antes, um mecanismo da própria tecnologia de gênero.
Nesses termos, nos parece possível acrescentar o argumento desenvolvido por Butler (2014) que define gênero como uma norma que, como tal, além de governar a inteligibilidade social, produz mecanismos de regulação que fazem uso da violência de gênero como ação que intenciona conduzir os sujeitos para uma dada zona de normalidade.
Entendida como uma medida que estabelece princípios de comparação, a norma instaura ações que homogeneízam e, ao mesmo tempo, evidenciam diferenças. Relacionada ao poder, atua menos pelo uso da força e mais por uma capacidade de (re)orientar as próprias estratégias e táticas, refinando suas ações e objetivos com vistas à persuasão. Na medida em que as normas são acionadas, o próprio acionamento e seus efeitos são capazes de rearranjar o seu curso. Assim sendo, as normas de gênero só se constituem como tal na medida em que produz uma realidade social (re)idealizada e (re) instituída nos e por meio dos arranjos da vida cotidiana. Como norma que estabelece o próprio regime disciplinar e regulamentar, gênero constrói por meio de suas tecnologias, regularidades, modos de individualização, assim como parâmetros classificatórios de pessoas (BUTLER, 2014). Os mecanismos de regulação que tomam por base as normas de gênero estabelecidas são acionadas tanto no processo de avaliação das condutas quanto na ação dos aparatos coercitivos. Fundadas e legitimadas na norma, as violências de gênero, enquanto mecanismos de regulação, funcionam relacionalmente nas dinâmicas conflitivas.
Apoiada no entendimento de gênero como norma regulatória, Butler toma a violência como forma de punição social daquelas e daqueles que transgridem relações de gênero instituídas e naturalizadas, argumento que nos permite considerar os efeitos dessas violências nos processos de hierarquia e manutenção da ordem baseadas em gênero e sexualidade.
Assim, violência de gênero é concebida como ação sustentada em diferentes discursividades que designam, estabelecem e sistematizam as normas de gênero e sexualidade e, com isso, produzem um conjunto de condições que tornam os abusos possíveis. Nos termos das normas regulatórias, a violência de gênero é acionada como mecanismo que normatiza, regula e determina a vida no detalhe. Assim, em meio às dinâmicas conflitivas que se transformam em violência, a assimetria e a reificação das desigualdades de gênero não só são levadas ao extremo como produzem efeitos nos processos de governo de si e dos outros.
Os mapas de Kernel, as perguntas possíveis e as problematizações necessárias
O mapeamento das regiões com histórico de altos índices de denúncias de crimes de “violência doméstica e familiar contra a mulher” foi produzido a partir do acesso aos endereços indicados nas ocorrências registradas na DEAM de um dos municípios com maiores taxas de feminicídio da Região do Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul.
Historicamente, o município em questão contabiliza, por mês, uma média de aproximadamente 200 ocorrências de crime contra mulheres, das quais foram registrados os endereços referentes a três tipos: 1 ) estupro e estupro de vulneráveis; 2) lesão corporal; 3) feminicídio e tentativa de feminicídio – crimes contra a pessoa e contra a liberdade sexual que têm no corpo o suporte para a ocorrência do fato jurídico. Referentes aos anos de 2017, 2018 e 2019, os endereços foram agrupados por tipo de crime e, individualmente, geraram demarcações pontuais no software “Google Earth”, as quais foram importadas no software “ArcGIS” e transformadas em três arquivos vetores empregando o Datum WGS 84 e projeção UTM. Para analisar os dados, optou-se pela criação de mapas de superfície Kernel, os quais têm a finalidade de estimar a densidade de um evento numa determinada área de estudo.
Os mapas de Kernel podem ser entendidos como uma grade regular, onde cada célula apresenta um valor de densidade. Esse valor é obtido através de um raio previamente determinado, gerado em torno de cada ponto do mapa, no qual os resultados da função Kernel são somados produzindo o valor de densidade de cada ponto. O resultado é a plotagem de um mapa representado por uma escala de cor, o qual reflete a intensidade dos eventos nas áreas adjacentes (BEATO; ASSUNÇÃO, 2008).
Para a obtenção de um mapa que considere, ao mesmo tempo, os três tipos de delito, foi utilizada a ferramenta “Kernel Density” que permitiu o cruzamento das informações com base na importância de cada incidência de crime. A construção de um mapa que levasse em conta somente os pontos ocultaria casos de estupro e feminicídio, em função do menor número de ocorrências destes crimes, se comparados com os de lesão corporal.
Os resultados foram classificados em uma escala categórica e, depois, foram cruzados utilizando a ferramenta “Raster Calculator”, que considera a classificação das superfícies analisadas de forma individual e não a quantidade de pontos obtidos pelo número de denúncias. Por fim, foram destacadas como zonas “críticas” as regiões que atingiram o maior valor de incidência relativa aos três tipos de crime.
A última etapa da produção dos mapas refere-se à identificação das escolas situadas nas imediações das zonas críticas de incidência de denúncia. Para tanto, os endereços das escolas da rede pública municipal de ensino foram cadastrados e pontuados no software Google Earth e, posteriormente, incorporadas como um shape no software ArcGIS”, que gerou a identificação das escolas como pontos no mapa.
O mapa parte do pressuposto de que os exercícios de poder inscritos nas relações sociais são condições para que tanto as dinâmicas conflitivas quanto as denúncias de crimes aconteçam.
Nos inquéritos policiais registrados na DEAM, majoritariamente, os endereços indicados como lugar de ocorrência dos crimes são também os endereços das residências de pelo menos um dos envolvidos no crime denunciado. Profundamente marcados pela categoria “domicílio”, os locais destacados no mapa são tomados como territórios.
Entendidos como “[...] objeto dinâmico, vivo e repleto de inter-relações [...]” (LIMA; YASUI, 2014, p. 596), os territórios são marcados por exercícios de poder e resistência. Frutos de processos históricos e socioespaciais que sustentam as relações sociais, “[...] não deve[m] ser visto[s] simplesmente como um objeto em sua materialidade [...]” (HAESBERT, 2003, p. 13), mas como recortes territoriais vivos, porosos, de limites não fixos com significados plurais e historicamente datados. O território é, portanto, o lócus dos acontecimentos, das manifestações, das hierarquizações e das práticas cotidianas em que a partilha de sentidos produz compreensões, ainda que arbitrárias, contraditórias e múltiplas, sobre o lugar. Assim, ao tomar o território como “[...] produção contínua dos modos de vida [...]” (LIMA; YASUI, 2014, p. 598) compreende-se que esses mesmos modos de vida também são produzidos nas relações de gênero. Nos limites do exercício de poder de gênero, a violência de gênero se interpõe enquanto elemento igualmente constitutivo dos territórios, uma prática possível pela partilha e reificação dos sentidos manifestos nas normas de gênero.
Nesse sentido, localizar escolas nas regiões indicadas como “críticas” pelo mapa permite produzir um conjunto de perguntas sobre os modos como as relações de gênero se constituem naqueles contextos. Tomar os territórios como elementos vivos que são atravessados e atravessam as relações sociais e, portanto, a cultura, permite considerar as escolas ali localizadas como espaços onde diferentes discursos produzem um complexo e intricado campo de disputa por significação. Assim, a escola não é só o lugar onde coisas acontecem, é um território que produz sentidos, articula saberes, muitos dos quais conflitantes e aparentemente divergentes. Compreendida como instituição pretensamente criada para produzir determinadas subjetividades, a escola aciona e produz mecanismos normalizadores no processo de produção de sujeitos de gênero e sexualidade (cf. LOURO, 1999), mecanismos estes profundamente articulados às condições contextuais e aos princípios morais, éticos e estéticos da comunidade onde está inserida.
Nesse sentido, ao selecionar as escolas a partir de um instrumento que localiza desde as denúncias zonas críticas de incidência de crimes, consideramos os mapas como ferramentas que sugerem certos contextos como particularmente profícuos para, desde a categoria violência de gênero, produzir questões como: Que pedagogias de gênero e sexualidade são acionadas pelas escolas nesse contexto? Como gênero e sexualidade se interseccionam com outros marcadores sociais nos processos de produção de sentido sobre o consentido e o inaceitável para alunas e alunos? De que modos agressividade, força, violência e dinâmicas conflitivas são significadas e apropriadas pelas masculinidades e feminilidades em curso?
Entretanto, se a partir dos mapas é possível produzir um conjunto de perguntas, a materialidade que informa sobre zonas de incidência de crime e sobre as pessoas que lá vivem precisa ser discutida, considerando os efeitos de verdade gerados por sua visualidade e pelos procedimentos técnicos utilizados. O processo de quantificação dos fenômenos sociais, de acordo com Santos (2002), funciona como estratégia capaz de atribuir cientificidade, neutralidade e isenção ideológica e, portanto, um estatuto de verdade, a processos de gestão da vida e da morte, pelo menos, desde o século XVIII. Especialmente apropriados pelas sociedades de normalização e controle, os dados estatísticos traduzidos como porcentagens, índices, gráficos e tabelas, ao dizerem sobre uma dada coletividade, também a produzem.
Sendo assim, espacializar a violência de gênero sem levar em conta seus efeitos de verdade e sem questionar seus limites metodológicos e éticos pode contribuir para – na intersecção com classe, raça, escolaridade, dentre outros marcadores – produzir zonas de criminalidade, sujeitos e objetos de violência como uma “verdade” revelada por meio da “isenção técnica. Assim, evidenciar esses limites, e compreender essa materialidade e metodologia como mecanismos produzidos e sustentados por regimes de verdade instituídos no tempo presente significa compreender a técnica e a quantificação como instrumentos que posicionam sujeitos e discursos que, por meio do exercício de poder, nomeiam e subjetivam não só os desvios de conduta, mas também os sujeitos da vulnerabilidade .
Em síntese, os mapas são o resultado da utilização de uma técnica que, a partir das denúncias de abusos e de violências praticadas, delineia um possível território . E, mesmo com os limites acima destacados, o zoneamento em relevo permite elaborar um conjunto produtivo e potente de questões sobre sistemas e códigos de significação nos quais se assentam as relações e as pedagogias de gênero e sexualidade, bem como os mecanismos acionados nessas instâncias e suas finalidades. Enfim, permite questionar o que é possível, pensável e vivível como gênero e sexualidade nas escolas situadas nessas regiões de alto índice de denúncia de crimes de “violência doméstica e familiar contra as mulheres”.
Considerações finais
As discussões e tensionamentos colocados em pauta neste texto funcionaram como processo de reflexão que, apoiado numa dada matriz teórico-metodológica, permitiram reconhecer limites e possibilidades das categorias endógenas e exógenas à pesquisa.
Apesar dos limites estabelecidos pela produção de sentidos sobre o que e como se constitui a noção de “violência doméstica e familiar contra a mulher”, sua compreensão e seus efeitos têm produzido, em termos jurídicos, o reconhecimento dos abusos como crimes, bem como os sujeitos e objetos da violência. Nesse processo, dados são produzidos e apropriados para informar sobre a violência de gênero, recurso adotado nos encaminhamentos da investigação em curso, para se produzir mapas de incidência de denúncias de crime a partir de sistemas de georreferenciamento.
Ao colocar as categorias mulher, crime, família e domicílio (exógenas) em discussão, foi possível compreender na especificidade de cada conceito, um conjunto de marcadores que não só os diferenciam das categorias gênero, violência, poder e violência de gênero (endógenas), mas, também, delimitam (im)possibilidades de suas articulações. Se as categorias exógenas se mostraram insuficientes do ponto de vista analítico, porque fixam e universalizam, tal compreensão coloca em relevo as especificidades dos mapas de Kernel, circunscrevendo e refinando as perguntas possíveis a partir de sua materialidade e dos pressupostos que ancoram as categorias endógenas.
Ao reconhecer as implicações dos usos das categorias mulher, crime, família e domicílio na produção dos mapas, tornou-se fundamental ainda tensionar os efeitos de verdade que produzem. Ao mesmo tempo em que a visualidade e os recursos técnicos dos mapas se apresentam como ferramentas potentes para analisar as relações de gênero e seus atravessamentos na dinâmica social de dadas territorialidades, também produzem regiões, sujeitos e objetos nomeados e reconhecíveis como violentos, uma implicação ética cujos efeitos precisam ser considerados nos encaminhamentos metodológicos e na divulgação dos resultados da investigação.
Os tensionamentos produzidos na articulação entre os conceitos de gênero, poder e violência ainda permitiram pensar os processos a partir dos quais a violência se torna possível, bem como tomar a violência de gênero como mecanismo de regulação das condutas, movimento que parece ampliar a potência analítica dessa categoria.
Entre aproximações e distanciamentos, foi possível estabelecer certo alinhamento entre categorias exógenas e endógenas à pesquisa e, assim, reconhecer e indicar alguns de seus efeitos (éticos, teóricos e metodológicos) nos instrumentos e técnicas de investigação. Esse processo dará sustentação às próximas etapas da pesquisa, nas quais analisaremos relações de poder de gênero que se estabelecem nas escolas indicadas pelos mapas de incidência de denúncias.