Introdução
Com o objetivo de analisar as produções acadêmicas sobre migração e refúgio na Educação Infantil brasileira, publicadas entre 1988 e 2021, realizou-se a Revisão Sistemática de Literatura, da qual trata o artigo. O trabalho se insere no âmbito da pesquisa de doutorado em desenvolvimento sobre as crianças migrantes e refugiadas (0 a 5 anos) e as políticas subnacionais relacionadas com a Educação Infantil no Brasil e justifica-se pela crescente presença de crianças migrantes e refugiadas no contexto da Educação Infantil e os fluxos migratório recentes para o Brasil. Os processos migratórios para o Brasil, foram caracterizados, principalmente nos últimos dez anos, pela migração Sul-Sul (senegaleses, congoleses, angolanos, haitianos e venezuelanos) como podemos verificar no Relatório Anual 2020 do Observatório das Migrações Internacionais – OBMigra (CAVALCANTI; OLIVEIRA; MACEDO, 2020).
As crianças, acompanhadas de seus familiares ou não, estão presentes nestes processos de deslocamentos, seja na condição de migrante (com um deslocamento voluntário de seus parentes por diversas razões, entre elas, a busca de trabalho e melhores condições de vida), seja como refugiadas (situações previstas em acordos internacionais com direito à proteção específica e que dificilmente há possibilidade de retorno a seu país de origem). A presença dessas crianças não pode ser ignorada no contexto brasileiro, sendo necessário o atendimento dos diversos direitos: à saúde, à proteção, à educação, entre outros. Quanto à Educação, mais especificamente à Educação Infantil, o Censo da Educação Básica realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) aponta para uma crescente presença de crianças migrantes e refugiadas. Em 2019, o número de matrículas de crianças estrangeiras era de 14.471, passando para 18.007, em 2020.
O artigo está organizado em três seções, além da introdução. Na sequência apresentamos o percurso metodológico, seguido da análise das publicações e por fim, as considerações finais.
Percurso metodológico
Como apontam Ramos, Faria, Faria (2014) e Bento (2012), uma boa Revisão Sistemática de Literatura necessita de um percurso metodológico com o objetivo de estruturar “[...] todos os procedimentos de forma a garantir a qualidade das fontes, logo pela definição de uma equação de pesquisa, de critérios de inclusão e exclusão e de todas as normas que julguem convenientes para o caso” (RAMOS; FARIA; FARIA, 2014, p. 22). Para este trabalho, foi estruturado um protocolo em três etapas: i) definição das informações para busca de dados, ii) levantamento dos dados e iii) sistematização e análise. Apresentamos uma síntese de cada etapa:
i) definição das informações para busca de dados – os bancos de dados utilizados foram Scientific Electronic Library Online (Scielo), Periódicos Capes, Catálogo de Teses e Dissertações e a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD). O recorte temporal teve como período os anos de 1988 a 2021, tendo em conta a atual Constituição Federal (1988) e o fluxo migratório mais recente para o Brasil. Quanto aos descritores, utilizamos palavras que envolvem o tema da migração e refúgio (migração, imigração, migrantes, imigrantes, refugiados/as, estrangeiras/os) que foram cruzados com palavras relacionadas com a Educação e a primeira etapa da Educação Básica (crianças, creche, pré-escola, infância, Educação Infantil, Educação) como apresentado no quadro 1.
Descritores “A” | Operador Booleano | Descritores “B” |
---|---|---|
Crianças | AND | Migração |
Creche | Imigração | |
Pré-escola | Migrantes | |
Infância | Imigrantes | |
Educação infantil | Refugiadas/os | |
Educação | Estrangeiras/os |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2021)
Quanto aos critérios de inclusão, foram considerados os artigos publicados em revistas científicas, trabalhos que tratem totalmente ou parcialmente da Educação Infantil. Excluímos da pesquisa as experiências de brasileiros no exterior e migrações internas.
ii) levantamento dos dados – a pesquisa nos bancos de dados ocorreu primeiramente em 2021 com uma atualização no primeiro semestre de 2022. Os textos selecionados foram organizados, tabulados e eliminamos os duplicados.
iii) sistematização e análise – somando todos os descritores dos diferentes bancos de dados, foram localizados em torno de 2.000 textos (valor sem os duplicados). Após a leitura dos títulos e dos resumos, permaneceram 32 registros dos quais procedemos à leitura e organização das informações para este trabalho.
Análise das publicações
No processo de seleção, localizamos estudos que tratavam de Educação e crianças migrantes em seus títulos, que não foram incluídos neste trabalho, uma vez que ao observarmos os sujeitos ou a etapa de ensino e a Educação Infantil não estava contemplada. Como o ordenamento jurídico brasileiro considera a condição de criança para pessoas com até doze anos de idade incompletos (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), muitos trabalhos apresentam em seu título o termo criança com referência ao recorte acima dos 6 anos de idade, ou à etapa do Ensino Fundamental.
Após a seleção, chegamos aos 32 registros sobre Educação Infantil e crianças migrantes e refugiadas (0 a 5 anos). Um dos aspectos que se destacam é o número recente das publicações, – 26, somente nos últimos quatro anos (2018 a 2021) –, indicando o interesse crescente de pesquisadores e pesquisadoras, principalmente da área da Educação, sobre a temática no contexto dos fluxos migratórios recentes para o Brasil, no cenário internacional e o aumento de matrículas na Educação Infantil. As informações sobre o ano das publicações estão no gráfico 1.
Sobre os programas de pós-graduação dos quais são oriundas as dissertações e teses concentram-se no Sudeste (9) e no Sul (7), seguidos do Centro-oeste (2) e Nordeste (1). As pesquisas foram defendidas em sua maioria nos programas de pós-graduação (gráfico 2).
A abordagem qualitativa predominou entres os estudos selecionados. Quanto aos procedimentos, verificamos um grande uso de entrevistas (com familiares e profissionais da Educação) e de observações nas instituições de Educação. A análise de documentos (legislação, documentos institucionais) foi o método mais empregado. Os adultos são os principais sujeitos envolvidos nas pesquisas. Entre as nacionalidades, destacam-se os estudos envolvendo bolivianos (9), principalmente em São Paulo, e haitianos (9), na região sul.
Com base nos estudos dos textos, sistematizamos as temáticas e os resultados em cinco categorias: a) as famílias e as crianças; b) A língua materna e a língua de acolhida; c) os(as) profissionais de Educação; d) instituições educacionais: acolhida, práticas e situações de racismo e xenofobia; e e) o direito à Educação e as políticas educacionais. Trataremos de cada uma destas categorias a seguir.
As famílias e as crianças
As famílias migrantes e refugiadas valorizam muito a Educação. Alexandre (2019, p. 185), na sua tese “A presença das crianças migrantes haitianas nas escolas de Sinop/MT: o que elas visibilizam da escola?”, relata o esforço das famílias migrantes para participar das atividades, das reuniões da escola, da “[...] relação de respeito e valorização com os professores e as escolas pesquisadas”. Para Freitas e Silva (2015, p. 700 e 699), os pais compreendem a escola como um “[...] forte exemplo de mobilidade social ascendente obtida no deslocamento para o exterior [...], sendo a educação uma das [...] únicas portas para a cidadania, cidadania essa permanentemente vilipendiada nas relações de trabalho a que estão submetidos os familiares das crianças matriculadas”. Neste mesmo sentido, Lorzing (2021, p. 112) percebeu, ao tratar das crianças haitianas na Educação Infantil em Sorocaba, a importância e a valorização da escola pelos migrantes, que, mesmo com todas as dificuldades, prezam que seus filhos e filhas “[...] tenham uma educação escolar no país de destino, pois acreditam na segurança e importância de manter este vínculo”. Os trabalhos de Silva (2018), Joia (2021) e Ludovico (2021) também destacam a valorização da Educação pelas famílias de migrantes e refugiados.
Se por um lado as famílias reconhecem as instituições educacionais como fundamentais, por outro, alguns entraves estão presentes, um deles é a comunicação: família – escola.
O pesquisador Cunha (2020, p. 183), na sua tese, menciona a experiência do pai sírio que se queixa da dificuldade da escola em se comunicar, que a instituição “[...] não falava nada do que acontecia com o filho, que eles não contavam do dia a dia da criança, mesmo quando acontecia problema, que ele só descobria depois que o filho dava pistas por meio dos sentimentos de tristeza”. No artigo de Nascimento e Morais (2021, p. 534), “Sobre migração internacional, crianças pequenas e educação infantil: algumas questões”, as autoras destacam a fala dos pais que “[...] somente uma das professoras enviava bilhetes em português e espanhol e propunha projetos que acolhesse todas as crianças.”
Com todas essas dificuldades, "[...] acessar as instituições educativas para famílias estrangeiras tem estreita relação com sua condição migratória e sua dignidade na sociedade receptora” (NORÕES, 2021, p. 437). A participação das crianças e suas famílias nas instituições e outros espaços públicos é essencial. As crianças precisam ser ouvidas, como apresenta Cabral (2019) na sua dissertação “Políticas públicas de proteção para as crianças na condição de refúgio no Brasil: limites e possibilidades”, além disso precisam ter “[...] suas opiniões consideradas ao longo de todo o processo. Para isso, devem ser assegurados espaços de fala e de participação” (CABRAL, 2019, p. 185).
Como espaços de participação, temos as Conferências Municipais de Políticas para Imigrantes. Waldman e Bretenvieser (2021) estudaram as que foram realizadas em São Paulo (2013 e 2019) e identificaram a falta de participação das crianças nas discussões, bem como pouca presença destas no documento final. As autoras observaram que somente uma proposta foi aprovada na Conferência de 2019, que tratava do “[...] acesso amplo a creche e/ou criação de uma rede comunitária pública de cuidado de filhas/os” (WALDMAN; BRETENVIESER, 2021, p. 642). Para Bordignon (2016, p. 204), ampliar a participação “[...] dos próprios imigrantes na esfera das decisões acerca de seus interesses [pode] ajudar na implementação de programas que, de fato, promovam a integração”. Observamos a necessidade de ampliar a participação das famílias, responsáveis e das crianças, seja no interior das instituições, seja na elaboração de ações que possam colaborar para efetivar seus direitos, como no caso da valorização da língua materna e do acesso à língua de acolhida.
A língua materna e a língua de acolhida
Observamos nos trabalhos que a língua é um dos principais fatores que interferem nas relações e no acesso aos direitos dos migrantes e refugiados. Os pontos mais recorrentes nas pesquisas foram: a discriminação linguística, a falta de valorização da língua materna, a imposição do uso de português nos contextos familiares.
Na dissertação de Silva (2014) intitulada “¡No hablamos español! Crianças bolivianas na educação infantil paulistana”, a pesquisadora aponta como a dificuldade na compreensão da língua do outro gera, em muitos casos, o enfraquecimento das relações: “[...] há um desinteresse pelo outro em si, o que é inaceitável, em se tratando de educação infantil” (SILVA, 2014, p.73). Ainda sobre a questão, Silva (2014) coloca a “[...] intolerância em relação à diversidade linguística e a negação da importância da língua materna como elemento constitutivo dos sujeitos” (SILVA, 2014, p.110). Outro ponto apresentado no trabalho de Silva (2014) foi a insistência, por parte das educadoras, para que os familiares falassem em casa com seus filhos em português, principalmente quando as crianças apresentassem “[...] maiores dificuldades nos processos de socialização e aquisição da língua portuguesa. Neste caso, a responsabilidade do ensino do português é conferida à família, mesmo que esta não possua o domínio do idioma. Outras queixas apresentadas pelas famílias são “[...] a intolerância da escola em relação ao uso do espanhol no ambiente familiar e a inflexibilidade com relação ao tempo que as crianças imigrantes bolivianas levam para a aprendizagem da língua portuguesa” (SILVA, 2014, p. 125).
O artigo de Joia (2021, p. 154) corrobora os indicativos de Silva (2014): “[...] a orientação geral que os pais escutam é que não podem falar espanhol com os filhos, pois isso os impediria de aprender o português”. Para Joia (2021), este processo produz na criança “[...] um significativo efeito de deslegitimação da língua materna e de sua transmissão, assim como também de todo o repertório cultural e simbólico ligado a ela” (JOIA, 2021, p. 154).
Na pesquisa de Silva (2018) intitulada “Eu falo boliviano e brasileiro: A educação linguística de filhos de imigrantes bolivianos em uma instituição de Educação Infantil da Rede Pública no Município de Carapicuíba, Região Metropolitana de São Paulo”, as famílias avaliam que a escola poderia promover o ensino da língua materna, como isso não ocorre, fazem “[...] esforços redobrados para garantir a continuidade de seu uso no seio de suas famílias” (SILVA, 2018, p.101). Silva (2018, p. 102) observa ainda “[...] um apagamento do multilinguismo das crianças, assim como um apagamento também do capital cultural de suas famílias”). Enquanto uma das professoras entrevistadas relata que a escola é um “[...] lugar de falar português [...]”, mas as crianças utilizam a fila do refeitório e o parquinho para interagir em espanhol.
Esse “apagamento” também foi visto na pesquisa de Siller (2011), em seu trabalho “Infância, Educação Infantil, Migrações”, na qual constata que os(as) docentes dos Centros de Educação Infantil têm, em suas práticas pedagógicas, abordagens monoculturais e monolíngues, que “[...] contribuem para apagar as diferenças em nome da assimilação da cultura das crianças pomeranas e das culturas das crianças recém-chegadas a um padrão homo-geneizador” (SILLER, 2011, p. 199). Práticas na perspectiva monocultural e monolíngue também foram registradas por Bezerra (2020, p. 74), que observou, por parte dos(as) professores(as), uma “[...] ideia recorrente de que a língua espanhola dificulta a aprendizagem”. A dificuldade, segundo a percepção dos(as) docentes, é superada à medida que as crianças aprendem o português. Além disso, a percepção dos(as) professores(as) seria que os(as) estudantes bolivianos(as) teriam "[...] vergonha de sua identidade e cultura, não percebendo que essa ‘vergonha’ é fruto do contexto discriminatório, incluindo o próprio contexto escolar” (BEZERRA, 2020, p. 75).
Os(as) professores(as) mais sensíveis ao tema buscam soluções, como observamos na tese de Alexandre (2019), que relata que duas docentes se utilizavam de aplicativos ou outros recursos para facilitar a comunicação com as crianças. A comunicação é essencial para o processo de acolhida, a disponibilidade linguística “[...] do professor em relação à diferença idiomática é um fator decisivo na estabilização emocional das crianças” (FREITAS; SILVA, 2015, p. 690). As dificuldades com a língua materna e a língua de acolhida também foram apontadas nas pesquisas de Alexandre e Abramowicz (2017), Cabral (2019), Thomé (2019), Alexandre (2019), Heiderique (2020), Rosa; Mejía e Périco (2021), Santos e Santos (2021), Tonetto e Gomes (2021), Nascimento e Morais (2021), Borri (2021), Lorzing (2021).
Os(as) profissionais de Educação
Para os(as) profissionais, o trabalho com crianças migrantes e refugiadas constitui um grande desafio, já que a formação continuada é um elemento reivindicado pelos(as) docentes. Freitas e Silva (2015), no artigo intitulado “Crianças bolivianas na Educação infantil de São Paulo: adaptação, vulnerabilidades e tensões”, escrevem sobre a inexistência de formação direcionada para o atendimento a crianças imigrantes e para o sentimento de despreparo, relatado pelas docentes, diante da complexidade do trabalho. A importância da formação continuada está presente nos estudos de Thomé (2019), Santos e Santos (2021), Bezerra (2020). Este processo formativo é fundamental para que as(os) docentes
[...] aprendam a lidar com a diferença de seus alunos, saibam desenvolver um processo educativo baseado na diferença e não na homogeneização e consigam evitar o preconceito e a discriminação, compartilhando saberes e experiências, reconhecendo que a cultura nos diferencia, mas essa diferenciação não precisa estar associada a dificuldade, déficit e inferioridade (BEZERRA, 2020, p. 75).
Silva (2014, p. 119), ao pesquisar a Educação Infantil paulistana, coloca que a Rede Municipal de Educação não realizou orientações ou formação sobre migração e refúgio, originando nas professoras “[...] um sentimento comum de solidão.”
Borri (2021), na sua dissertação “Migração Internacional e Formação de Professores: A Inserção das Crianças Haitianas em uma Escola Pública Brasileira”, evidencia o sentimento de despreparo e o pouco apoio recebido pelas(os) docentes para o trabalho com crianças migrantes. A autora coloca o distanciamento da formação inicial com os temas da diversidade étnico-racial e migração.
Professoras investigadas apresentaram que, em sua maior parte, não tiveram discussões aprofundadas em relação às questões da migração internacional e as questões étnico-raciais durante sua formação inicial. A partir disso, predomina o sentimento de insegurança frente às posturas construídas no meio educacional no que se refere à diversidade (BORRI, 2021, p. 120).
A falta de formação (inicial e continuada) exige que as(os) profissionais realizem um maior esforço e busquem estratégias para o seu trabalho (LORZING, 2021). Como consequência, a falta de (in)formação das(os) docentes sobre as crianças migrantes e refugiadas pode gerar uma invisibilidade desses sujeitos como mencionado nos trabalhos de Alexandre (2019) e Maçaneiro (2021). Na tese de Alexandre (2019, p. 187), a maioria dos(as) professores(as) não tinha conhecimento sobre as crianças migrantes e o seu país de origem, a prática pedagógica desses profissionais “[...] invisibilizava e estigmatizava as crianças haitianas”. Além disso Alexandre (2019, p. 189), observou poucas atividades destinadas ao acolhimento das crianças migrantes, além de relações racializadas, uma vez que, na Educação Infantil, essas relações ocorreram “[...] de forma mais dissimulada e isso visibilizou o quanto as escolas pesquisadas são despreparadas em ajudar as crianças migrantes”.
A formação, mesmo prevista na legislação e em documentos que tratam da migração, não é efetivada como indica a pesquisa de Ibañez (2020) que, ao analisar o Plano Estadual de Defesa dos Migrante do governo paranaense, verificou que a capacitação foi um dos itens do documento que não foi implementado, fazendo com que os(as) professores(as) e os(as) funcionários(as) ficassem sem orientação de como “[...] proceder quando recebem um migrante em sua escola” (IBAÑEZ, 2020, p. 169).
Os(as) profissionais de Educação constituem um elemento fundamental nesta relação entre família, criança e instituição de Educação, dessa forma, torna-se primordial uma sensibilização nesse sentido na formação inicial e continuada “[...] para o reconhecimento à diversidade cultural e racial existente, assim como a ampliação desta discussão por meio de outros trabalhos e pesquisas que possam trazer mais subsídios para a construção de uma possível mudança perante desta realidade” (MAÇANEIRO, 2021, p. 108).
Instituições educacionais: acolhida, práticas e situações de racismo e xenofobia
Entre os principais assuntos presentes nesta categoria temos o acolhimento, as práticas pedagógicas, o racismo e a xenofobia. Iniciamos pela acolhida, um momento importante na entrada das crianças e suas famílias na instituição. A dissertação de Lorzing (2021, p. 132) se refere à acolhida como um “[...] elemento importante e necessário para que o recebimento das crianças haitianas aconteça de maneira que possibilite estreitar os laços das crianças pequenas com os adultos e adultas que irão recebê-la na escola”. Lorzing destaca que o acolhimento envolve, além das pessoas, ações
[...] concretas, documentos objetivos que atendam às necessidades dessas crianças, que, em alguns casos, deixam as escolas por suas famílias sentirem que ali não é o seu lugar e que não serão capazes de traduzir seus sentimentos, por não entenderem o novo idioma, por não se fazerem compreender nem para realizar a matrícula de suas filhas e filhos (LORZING, 2021, p. 135).
Sobre o acolhimento, Ibañez (2020) também indica a necessidade de que as escolas, os(as) professores(as) e os demais profissionais sejam orientados(as) sobre como receber os(as) migrantes. Segundo o autor, uma maneira da escola tornar-se acolhedora é buscar informações quanto à documentação e aos procedimentos para colaborar com a obtenção de visto para que os(as) possam permanecer no Brasil, já que uma parcela significativa de haitianos não possuía a documentação. Esse processo de acolhimento, para Cavalcanti (2020), deve propiciar o desenvolvimento pleno (físico, psíquico e emocional) com a possibilidade de preservar a cultura e a história dos sujeitos. Em sua tese, Alexandre (2019, p. 190) relata que detectou poucas “[...] atividades ou projetos para inserir as crianças migrantes”.
Esse acolhimento precisa ocorrer nos primeiros contatos com as famílias, mas muitos obstáculos são encontrados durante o processo de matrícula. Com relação a esse ponto, Tonetto e Gomes (2021) apresentam a dificuldade das famílias das crianças refugiadas e solicitantes de refúgio, que não conseguem efetivar sua entrada na instituição pela recusa dos documentos apresentados e exigência de certificados que a família não possui, como histórico de frequência da instituição educativa do país de origem. O mesmo foi visto nas entrevistas com as mães refugiadas realizadas por Heiderique (2020), na pesquisa intitulada “‘O que gente passa é normal, acaba sendo normal’: O olhar de mães refugiadas acerca da entrada de suas crianças em escolas dos municípios do Rio de Janeiro e Duque de Caxias”, que ressaltou a dificuldade quanto ao conhecimento das instituições de Educação em relação aos documentos que podem ser aceitos para que suas crianças sejam matriculadas.
Para contornar a escassez de documentos exigidos pela rede pública de ambos os municípios, refugiadas já saem do PARES com uma carta de encaminhamento contendo os respaldos legais para a efetivação da matrícula com a assinatura de uma assistente social e um advogado da instituição. Apesar disso, algumas ainda relatam o encaminhamento errado por parte das secretarias de educação que resulta em dias de busca por pessoas e espaços onde a matrícula possa ser efetivada (HEIDERIQUE, 2020, p. 74-75).
Mesmo com o encaminhamento da organização, muitas mães relataram a necessidade de apoio de uma assistente social ou de alguém que as auxiliasse em relação aos direitos da criança. O processo de entrada/matrícula não é o único problema, as mães apontam na dissertação situações de racismo, xenofobia e até violência física vivenciadas pelas crianças. Isso também foi observado nos trabalhos de Alexandre e Abramowicz (2017), Alexandre (2019), Thomé (2019), Tonetto e Gomes (2021), Braga; Souza Neto e Santos (2021) e Maçaneiro (2021). Ao chegar ao Brasil, as crianças haitianas são racializadas nas instituições educacionais, afirmam Alexandre e Abramowicz (2017) no artigo intitulado “Migrantes do Haiti: um estudo sobre a inserção das crianças nas instituições escolares de Sinop MT”. As autoras observaram que “[...] as crianças haitianas são antes negras do que estrangeiras e deste modo sofrem, tornam-se negras no Brasil, condição que não conheciam em seu país” (ALEXANDRE; ABRAMOWICZ, 2017, p. 194). Alexandre, escreve em sua tese que para a escola
[...] a ‘distinção’ das crianças haitianas denunciava que elas são migrantes e negras, isso é uma condição que marca o lugar que elas devem ocupar na escola. Assim, elas não são como ‘nós” e os ‘outros’, as suas diferenças, mencionadas várias vezes pelos professores, técnicas e bolsistas; remetia a ideia de que nem todos os negros são educados, limpos e inteligentes (ALEXANDRE, 2019, p. 188).
A identidade racial negra, historicamente tratada no Brasil de maneira negativa, pode ser percebida, como apresenta Maçaneiro (2014, p. 108), nas “[...] narrativas das profissionais diante de crianças nativas negras, tornando-se ainda mais impactante em crianças haitianas e/ou filhos(as) de imigrantes haitianos, ou seja, crianças negras e imigrantes de um país pobre e historicamente marcado por estereótipos”. Os dados obtidos pela autora demonstram “[...] que crianças negras e pertencentes a culturas ditas diferentes do padrão estabelecido ainda são comumente invisibilizadas no interior das instituições por profissionais que não visibilizam a diversidade existente” (MAÇANEIRO, 2014, p. 108).
Para Braga; Souza Neto e Santos (2021, p. 576), esses processos de discriminação, de racismo e de xenofobia pedem respostas pedagógicas, pois “[...] não basta à escola saber que ela abriga matrículas de crianças imigrantes, é urgente o reconhecimento dessa multiculturalidade (constatação) e a construção de práticas pedagógicas interculturais (ação social)”. Tais práticas ainda são um grande desafio das instituições, já que a maioria ainda está no início das discussões sobre o tema da migração e da interculturalidade (SANTOS, 2021).
Portanto, é fundamental que as instituições e as secretarias de Educação repensem “[...] a acolhida dos alunos migrantes, pois como podemos observar através dessa tese, a escola não só reproduz práticas discriminatórias e racistas, também reproduz as desigualdades escolares e constrói novas hierarquias entre as crianças” (ALEXANDRE, 2019, p. 191). É preciso pautar as crianças migrantes e refugiadas, as diferenças, o combate ao preconceito, ao racismo e à xenofobia nas práticas pedagógicas (SANTOS; 2018, THOMÉ, 2019). Ações como bilhetes escritos para as famílias em dois idiomas, mostras culturais, cartazes em espanhol são algumas das práticas positivas observadas por Nascimento e Morais (2021) que nos dão uma ideia de como essas possibilidades podem ser incluídas no cotidiano institucional.
Direito à Educação e as políticas educacionais
A Educação é um dos direitos fundamentais previsto para migrantes e refugiados, mas o exercício pleno desse direito é algo complexo, pois perpassa o reconhecimento, a existência da vaga, o acesso e as condições para permanência nas instituições educacionais (WALDMAN, 2012).
Quanto ao acesso, Heiderique (2021) analisa as dificuldades das mães refugiadas em conseguir vagas em creches. Uma das mães entrevistadas relatou que sua filha de dois anos fica sob os cuidados de outras mulheres, a partir de uma rede de apoio organizada por mulheres refugiadas. A falta de vagas em creches não é uma realidade somente das crianças migrantes e refugiadas, mas soma-se às dificuldades das crianças brasileiras, principalmente as periféricas e negras. A dificuldade com o acesso a creches também está presente no trabalho de Silva (2017), intitulado “Política pública para migrantes no município de São Paulo: análise de ações de acolhida”. As assistentes sociais entrevistadas por Silva (2017) relatam as dificuldades das mulheres/mães em entrar no mundo do trabalho, principalmente pela falta de vagas em creches. A mesma questão foi vista na dissertação “A territorialização de migrantes do Haiti em Cambé-PR e Rolândia-PR: as demandas das mulheres haitianas e as ações realizadas”, de Pizaia (2019, p. 123), na qual uma das entrevistadas relata que “[...] nas creches que visitou em Cambé não aceitaram a matrícula após perceberem que se tratava de uma mulher haitiana e sua filha”. O trabalho de Silva (2014) soma-se ao tema da vaga/acesso/matrícula, em que apresenta a situação de migrantes indocumentados que tiveram seu direito ao acesso à Educação negado.
Para Siller (2011, p. 183), a matrícula das crianças migrantes e refugiadas na escola representa o reconhecimento da Educação como direito e, a partir dele é possível “[...] reivindicar e empoderar suas demandas”. Através da escola, segue Siller (2011, 183), outras “[...] agendas de direitos vão se configurando e os movimentos vão alargando processos de participação”. A entrada e a permanência no país, segundo Norões (2021), podem impulsionar os governos a tomar uma posição quanto à temática, através do “[...] acesso universal à educação” as famílias e movimentos sociais “[...] passam a reivindicar, empoderar suas demandas e ratificam a dimensão universal da educação como um direito público subjetivo” (NORÕES, 2021, p. 437). A presença dos migrantes nos espaços educacionais é capaz de promover uma ruptura com uma proposta homogênea e monolíngue de Educação e pode impulsionar um posicionamento por parte dos governos federal, estaduais e municipais sobre o tema da migração e refúgio. Torna-se necessário que, além da matrícula, ocorram “[...] regulamentações, diretrizes e assistência especializada para a realização de um trabalho pedagógico” (NORÕES, 2018, p. 184).
Os trabalhos de Bordignon (2016), Santos I., (2018), Cunha (2020) e Pizaia (2019) indicam a necessidade de uma política pública educacional, que contemple um projeto de acolhida, respeito à diferença e à língua materna e que rompa com a homogeneização. Thomé (2019, p. 198) discute a falta de investimentos públicos e políticas interinstitucionais para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes refugiadas, que respeitem os “[...] aspectos culturais, identitários, sociais, familiares e de trajetórias de vida”.
Cabral (2019, p. 183) levanta a necessidade inicial de identificar esses sujeitos para pensarmos em ações que promovam o atendimento a seus direitos. É necessário, por exemplo, uma plataforma de dados integrados que “[...] indique onde estão as crianças, qual a idade, composição familiar, vulnerabilidades a que estão expostas e demais situações que possam ser acessadas por todos os setores que trabalham no atendimento e acolhimento a essas pessoas” (CABRAL, 2019, p. 183).
A ausência de dados estatísticos também foi constatada na pesquisa de Baena (2020), intitulada “Políticas públicas educacionais brasileiras: a recepção da criança migrantes e refugiada no espaço escolar da rede pública de educação de Curitiba”. Segundo a autora, as poucas informações
[...] sobre crianças migrantes e refugiadas em Curitiba podem indicar a inexistência desses mecanismos de respostas, ou seja, de políticas públicas dirigidas a elas. Pode, inclusive, apontar a invisibilidade do debate sobre o tema, tanto na sociedade em geral como nas instâncias responsáveis pela garantia e pela implementação do direito à educação das crianças, bem como pelos órgãos de fiscalização e controle das ações do executivo (BAENA, 2020, p. 123).
Além da falta de dados, Baena (2020) destaca a falta do tema na Deliberação 01/2029, do Conselho Municipal de Educação, que trata das Normas e Princípios para a Educação Infantil no Sistema de Ensino de Curitiba.
Com a ausência de ações do poder público e com a presença crescente de migrantes e refugiados(as), quem atua na orientação dos recém-chegados? Os trabalhos de Cabral (2019), Pizaia (2019) e Thomé (2019) respondem a esse questionamento. Ao chegar no Brasil, para muitos migrantes e refugiados(as), os primeiros contatos e orientações sobre procedimentos ocorrem através de organizações sociais, entidades religiosas e outras instituições, que contam com uma rede de apoio composta por organizações não governamentais (ONGs), pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE). Essas organizações de apoio colaboram com a obtenção dos documentos e procedimentos para o acesso aos recursos básicos, além de realizarem relatórios e manuais. Os serviços de acolhimento observados por Pizaia são, em sua maioria, compostos por mulheres brasileiras.
Nos órgãos e entidades que oferecem auxílio humanitário, ficou perceptível que quase a totalidade das pessoas que se mobilizam e se prontificam para ajudá-las (os) são as mulheres brasileiras. Nestes espaços, grande parte ligados aos templos religiosos, os atendimentos e serviços de acolhimento são realizados em um esforço conjunto realizado por brasileiras que buscam acolher e oferecer melhor qualidade de vida às haitianas e haitianos, uma prova de empatia e solidariedade (PIZAIA, 2019, p. 134).
Segundo Cabral (2019, p. 183), grande parte das políticas destinadas às crianças refugiadas são pontuais e realizadas pelo setor público ou “[...] por organizações não governamentais, entidades religiosas, empresas privadas, instituições e associações da sociedade civil”. Esses grupos não governamentais estão se espalhando por diversas localidades com o objetivo de auxiliar no “[...] atendimento, acolhida, proteção e integração, como para pleitear direitos para solicitantes de refúgio e refugiados infantojuvenis, e que se deslocam sozinhos ou em família” (SANTOS I., 2018, p. 243). O trabalho de Bordignon (2016) também evidencia o surgimento de iniciativas de ONGs e de grupos religiosos.
Esse aumento no número das ONGs e iniciativas de grupos privados no acolhimento de migrantes e refugiados, segundo Thomé (2019, p. 195), demonstra a precariedade dos serviços públicos e a necessidade de “[...] uma regulamentação de um fluxo de atendimento com relação aos refugiados entre os diferentes atores governamentais e não governamentais”.
Neste conjunto de trabalhos, observamos a urgência da reformulação das políticas públicas, principalmente as destinadas à Educação, visto que a quantidade de políticas é maior para os migrantes e refugiados do que as destinadas às crianças (NORÕES, 2018).
Considerações finais
O levantamento proposto buscou localizar as publicações que tratam do tema da migração e refúgio no âmbito da Educação Infantil brasileira, produzidas entre 1988 e 2021. Ao analisar as 32 publicações (10 artigos, 15 dissertações e 7 teses), destacaram-se questões relativas à língua materna e a língua de acolhida; à relação das instituições educacionais com as famílias e às crianças migrantes e refugiadas; às práticas pedagógicas e à formação dos(as) profissionais da Educação; às instituições (suas práticas, acolhida e situações de racismo e xenofobia) e à necessidade de políticas públicas educacionais (como o acesso e diretrizes para o trabalho pedagógico).
Quanto às famílias e às crianças migrantes refugiadas, esses sujeitos valorizam muito a Educação, mesmo encontrando dificuldades quanto à comunicação com as instituições e à necessidade de mais espaços de participação. Em relação à língua materna e de acolhida, as pesquisas observaram aspectos de discriminação, falta de valorização da língua de origem e a imposição do uso do português no ambiente familiar. Entre os temas relacionados com os(as) profissionais de Educação, temos a ausência de formação sobre migração e refúgio, a falta de apoio das instituições e a falta de conhecimento sobre as crianças migrantes e seu país de origem.
As pesquisas também evidenciaram que as instituições não estão preparadas para o acolhimento das crianças migrantes e refugiadas, a começar pelo processo de matrícula que, por vezes, é dificultado com a solicitação de documentos que as famílias não possuem. Destaca-se ainda as situações de racismo e xenofobia vivenciadas pelas crianças, principalmente as negras. Outro aspecto observado é a falta de vagas nas creches que, além de ser um direito da criança, está relacionado com a entrada da mulher migrante e refugiada no mundo do trabalho.
As situações apresentadas demonstram como o direito à Educação, garantido pela legislação nacional, ainda precisa ser efetivado com políticas educacionais que considerem as crianças de 0 a 5 anos, migrantes e refugiadas, na Educação Infantil.
A criança na condição de migração internacional precisa ser pautada nas discussões nacionais e internacionais. A pesquisadora Bhabha (2006, 2014) indica a urgência de particularizar as crianças nas políticas migratórias, colocando-as no centro do debate. No artigo de 2006, “The child - what sort of human?” (A criança – que tipo de humano?), ao analisar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Bhabha problematiza que “tipo” de humano é a criança e o seu lugar nas práticas e políticas globais de proteção e direitos humanos. A autora discute sobre os atores da migração infantil: o Estado, a criança e os adultos da família (BHABHA, 2006).
Em consonância, o campo dos estudos da Sociologia da Infância contemporânea apresenta a importância e um novo lugar das crianças ao questionar o adultocentrismo, o patriarcado, as desigualdades e a ausência dos(as) bem pequenos(as) nos estudos sociais (SARMENTO; MARCHI, 2008; SARMENTO, 2013). Segundo Sarmento e Marchi (2008), ainda temos a ausência (poucas pesquisas) com/sobre crianças como no caso das crianças migrantes.
Assim, indica-se a necessidade de uma maior realização de pesquisas com foco nas crianças migrantes e refugiadas, nas práticas pedagógicas, nas relações institucionais entre adultos crianças e adultos e entre crianças nas situações de racismo e xenofobia.