Introdução
Não me atraía a matemática, muito menos as letras de dona Lourdes. Não me interessava por suas aulas em que contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como o nosso país era abençoado. Não aprendi uma linha do Hino Nacional, não me servia, porque eu mesma não posso cantar. Muitas crianças também não aprenderam, pude perceber, estavam com a cabeça na comida ou na diversão que estavam perdendo na beira do rio, para ouvir aquelas histórias fantasiosas e enfadonhas sobre os heróis bandeirantes, depois os militares, as heranças dos portugueses e outros assuntos que não nos diziam muita coisa (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.137).
É com as palavras de Belonísia, uma das protagonistas da imprescindível obra de Itamar Vieira Júnior, Torto Arado (2019), que inauguramos as nossas reflexões a respeito da necessidade de descolonização da escola neste texto. Na verdade, excertos dessa narrativa ficcional – mas dotada de realismo, atualidade e, sobretudo, sensibilidade no que diz respeito às relações de subalternização que atravessam o Brasil e sua cultura escolar – nos acompanharão neste artigo e explicamos o porquê.
Se em seu livro Vieira Júnior (2019) faz referência a experiências vivenciadas por Belonísia com a chegada de uma escola a uma comunidade do sertão baiano, os dados que analisaremos aqui derivam de uma pesquisa de doutorado que se propôs a analisar a chegada da Escola Municipal Anderson Gomes (EMAG)1 em um território de ocupação urbana na periferia da cidade de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais (RAMALHO, 2019). Reconhecemos, portanto, um ponto de interseção entre o romance e a tese no que diz respeito à presença da escola em territórios historicamente subalternizados e, mais especificamente, no que tange às pistas que essas produções nos oferecem para compreender as experiências dos Outros2 na instituição escolar. Assim, sob essa formulação, pretendemos neste texto analisar as contestações ou as fissuras à colonialidade da educação provocadas pelas presenças dos sujeitos cujo direito à escola foi (e é) amplamente interditado em nosso país.
Para a realização dessa reflexão, é necessário, de partida, sublinhar a existência de pelo menos duas interpretações mais recorrentes a respeito dos efeitos produzidos pelas teimosas presenças (FREIRE, 1992) – sob o ponto de vista das probabilidades estatísticas sociologicamente explicadas (BOURDIEU, 1998; VIANA, 2007; PARADA, 2001) – dos sujeitos não pertencentes às identidades hegemônicas de raça, classe e gênero na escola.
A primeira – que sem dúvida é dominante, mas que pode se manifestar de maneira mais ou menos sutil – sugere que a democratização do acesso à educação é responsável por uma crise institucional que se traduz em altos índices de evasão e repetência escolar e no baixo desempenho dos estudantes. A concepção se alinha à formulação de uma narrativa única para designar “qualidade da educação” e, como consequência disso, às defesas do acirramento da tradicional cultura escolar; da formulação de padrões de desempenho acadêmico; e, claro, do desenvolvimento de mecanismos de controle que possibilitem à escola retomar o seu curso “pré-democratização”.
De outro lado, alinhada aos movimentos sociais, tem-se a defesa de que a chegada dos Outros à escola tem o potencial de produzir profundas contestações à colonialidade da educação (FREIRE, 1974; ARROYO, 2012). Nos associamos a essa compreensão, destacando que tal transformação não constitui uma determinação mas, ao contrário, é resultado de uma deliberada disposição desses sujeitos coletivos à desaprendizagem (WALSH, 2009) de concepções e práticas coloniais profundamente enraizadas em nossa sociedade e, como consequência, em nossas práticas educativas.
O debate aqui proposto é atravessado também pela compreensão de que a descolonização da escola pela presença insurgente dos sujeitos Outros pode, sim, por vezes, ser facilmente identificada ou nomeada. Não raro, entretanto, a contestação à colonialidade, conforme nos lembra Catherine Walsh (2017), ocorre na forma de cotidianas fissuras ou pequenas rachaduras na colonialidade que atravessa a cultura escolar, por esse motivo, exigindo de nós um deliberado exercício de ajuste das lentes, já tão opacadas pelo racismo, pelo patriarcado e pelo capitalismo.
Así, las grietas como las estamos proponiendo y pensando — junto con Holloway, el EZLN, Colectivo Grietas y unx amplix nosotrxs - son el lugar del hacer práctico-teórico y, sin duda, político-peda-gógico, de las esperanzas (esperanzares) pequeñas. Son parte del cómo o de “los cómo” en palabras de Olvera (ver capítulo 5), de las rupturas, transgresiones y desplazamientos de la lógica y del orden capitalista-patriarcal- moderno/colonial, de la re-existencia haciéndose y de estas formas muy-otras constitutivas de - que construyen, hacen, caminan y pedagogizan - lo decolonial. En las grietas es donde empieza a entretejerse, sin duda, lo pedagógico y lo decolonial (WALSH, 2017, p. 87).
É sob essa perspectiva que analisaremos os dados que dizem respeito a exercícios, mais ou menos explícitos, de descolonização de concepções e práticas educativas a partir da resistente e insurgente presença dos Outros na escola.
Antes, consideramos pertinente explicitar o que temos compreendido por uma educação escolar anticolonial ou, em outras palavras, por projetos e ações educativas não alinhados às “fantasiosas e enfadonhas” narrativas únicas, nortecentradas, a que se refere Belonísia em Torto Arado (VIEIRA JÚNIOR, 2019).
Educação (anti)colonial
Poder estar ao lado de meu pai era melhor do que estar na companhia de dona Lourdes, com seu perfume enjoativo e suas histórias mentirosas sobre a terra. Ela não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos, se em suas frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.140).
As teorias anticoloniais se propõem a interpretar o sistema-mundo Moderno, suas instituições, relações e dinâmicas a partir do projeto de dominação europeu inaugurado entre o final do século XV e o início do século XVI. De acordo com essa perspectiva teórica, com a qual nos alinhamos, a configuração profundamente segregada da nossa sociedade é resultado do modo de operação colonial que estabeleceu hierarquias identitárias, as quais não apenas possibilitaram o acúmulo de riquezas por determinados grupos em detrimento de Outros como também a legitimação das desigualdades.
Assim, para compreender a conformação dessa sociedade segregada, é preciso ter em vista duas estratégias próprias do projeto colonial que são, por sua vez, interdependes entre si. A primeira diz respeito à imposição do colonizador e de seus atributos como padrão de humanização e civilidade e, mais do que isso, enquanto ideal de desenvolvimento a ser alcançado por todos e por cada um dos sujeitos e populações planetárias. Trata-se, portanto, do emprego de uma lógica provinciana (SANTOS, 2008) para atribuir às subjetividades, às culturas, aos modos de subsistência e aos conhecimentos da Europa ocidental a exclusiva condição moderna que deve, por sua vez, ser perseguida pela totalidade do globo terrestre.
O “êxito” do empreendimento colonial foi possível também graças a um segundo aspecto constitutivo: a inferiorização e o extermínio das formas de existência, de organização e de pensamento não hegemônicas. Isso foi viabilizado graças à formulação da ideia de raça e de hierarquia raciais.
A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população (QUIJANO, 2005, p. 117).
Embora constitua-se uma reflexão mais tardia entre os autores anticoloniais, além da racialização, também a generificação dos corpos operou - (e opera)- como marcador de diferenças no âmbito do projeto colonial. Afinal, conforme adverte Maria Lugones, “[...] la raza no es ni más mítica ni más ficticia que el género – ambos son ficciones poderosas” (LUGONES, 2008, p. 94).
Sob o entendimento freiriano, em primeiro lugar, as instituições, incluindo-se as escolas, existem na sociedade, e não fora dela, não podendo, por isso, escapar às suas influências estruturais (FREIRE, 1974). Por um lado, essa lente anticolonial nos interessa para a análise da educação escolar e do papel da escola na (re)produção das desigualdades raciais, de gênero e de classe. Sob essa perspectiva temos nos dedicado a denunciar o alinhamento histórico e contemporâneo entre educação formal e projeto colonial, bem como as consequências dessa associação no contexto brasileiro.
Mas os autores e as autoras anticoloniais têm também insistido em anunciar a descolonização não apenas enquanto necessidade e projeto, mas, sobretudo, como possibilidade e ação. A compreensão é especialmente relevante para o debate pretendido neste texto e converge com a análise esperançosa3 de Freire (2000) em relação à escola e ao seu potencial emancipatório.
A matriz da esperança é a mesma da educabilidade do ser humano: o inacabamento de seu ser de que se tornou consciente. Seria uma agressiva contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse num permanente processo de esperançosa busca. Este processo é a educação. Mas precisamente porque nos achamos submetidos a um sem-número de limitações – obstáculos difíceis de ser superados, influências dominantes de concepções fatalistas da História, o poder da ideologia neoliberal, cuja ética perversa se funda nas leis do mercado – nunca, talvez, tenhamos tido mais necessidade de sublinhar, na prática educativa, o sentido da esperança do que hoje. Daí que, entre saberes vários fundamentais à prática de educadores e educadoras, não importa se progressistas ou conservadores, se salienta o seguinte: mudar é difícil, mas é possível (FREIRE, 2000, p. 52).
É verdade que traçar aqui caminhos à descolonização da escola seria dar nova roupagem à arrogante e excludente postura totalizadora própria da modernidade/colonialidade a que temos nos contraposto. Mas é verdade também que, sob a lógica da desaprendizagem (WALSH, 2009), tomando como referencial os pilares do projeto colonial anteriormente mencionados, é possível encontrarmos pistas de uma educação emancipadora para aqueles e aquelas historicamente construídos como Outros.
Assim, diante do que vimos argumentando, entendemos que, para se opor à colonialidade da educação responsável pela reiterada produção de exclusões, faz-se imperativo que a cultura escolar hegemônica se reveja no que diz respeito às formas que histórica e contemporaneamente representa os sujeitos coletivos não pertencentes às identidades hegemônicas e que, portanto, se dedique a um deliberado exercício de expurgação do colonizador (FANON, 1968) com vistas ao reconhecimento.
Dito de outro modo, é preciso que a educação escolar questione o universalismo colonialmente orientado que subsidia o papel civilizatório, evolucionista, desenvolvimentista a que historicamente tem se dedicado. Há que se interrogar, assim, no contexto educacional, a dimensão particular dos saberes, das culturas e dos padrões de existência impostos a toda a humanidade sob a narrativa da modernidade. Como consequência disso, há que se contestar as inúmeras violências – genocídio, epistemicídio, ecocídios, para dizermos apenas de exemplos mais imediatos de extermínios – sobre as quais as concepções e práticas educativas dominantes, que são nortecentradas, se sustentam. Somente a partir dessas insurgências, o Outro que habita as salas de aula passará a ser reconhecido como mulher, indígena, cigano, camponês, preto, pobre, e, sobretudo, como sujeito de direito. Apenas por essa via teremos também a possibilidade de combater o perverso desperdício de suas experiências e conhecimentos (SANTOS, 2006).
Sob essa mesma perspectiva, não há dúvidas de que a contestação da colonialidade na educação escolar passa também pelo combate ao racismo, fundamento do projeto colonial. A compreensão está nas palavras de bell hooks4 que dizem respeito à sua experiência em “escolas comuns”, não segregadas, nos Estados Unidos, entre os anos de 1950 e 1960 e nos ajudam a avançar.
A escola mudou radicalmente com a integração racial. O zelo messiânico de transformar nossa mente e nosso ser, que caracterizava os professores e suas práticas pedagógicas nas escolas exclusivamente negras, era coisa do passado. De repente, o conhecimento passou a se resumir à pura informação. [...] Quando entramos em escolas brancas, racistas e dessegregadas, deixamos para trás um mundo onde os professores acreditavam que precisavam de um compromisso político para educar corretamente as crianças negras. [...] Para as crianças negras, a educação já não tinha a ver com a prática da liberdade. [...] Essa transição das queridas escolas exclusivamente negras para escolas brancas onde os alunos negros eram sempre vistos como penetras, como gente que não deveria estar ali, me ensinou a diferença entre educação como prática da liberdade e da educação que só trabalha para reforçar a dominação (HOOKS, 2013, p. 12).
A análise da escritora e ativista escancara o racismo do qual a padronização escolar – ou, mais especificamente, a orientação universalista abstrata amplamente difundida enquanto sinônimo de equidade, – encontra-se impregnada. Além disso, as palavras de bell hooks nos permitem extrapolar e, assim, interpretar as imensas desigualdades fomentadas pela falta de reconhecimento da diversidade e da diferença nas práticas educativas. Afinal, sob a generalização moderna, a “inclusão” das pessoas negras na escola já seria suficiente para colocá-las em posição de igualdade de condições de aprendizagem em relação aos demais estudantes, compreensão que, como sabemos, fomenta e justifica a cultura do mérito e, como consequência disso, naturaliza as assimetrias que testemunhamos em nosso cotidiano, não apenas, mas também na escola.
A hegemonia do cis-hetero-patriarcado, marcador de diferença como operacionalidade no empreendimento colonial, também assume inúmeras conformações no contexto educacional. É preciso não perder de vista, por exemplo, o tardio acesso das mulheres à educação formal, assim como o endereçamento de práticas específicas a elas ao longo dos séculos (ROSEMBERG, 2011). A exclusão também marca, histórica e contemporaneamente, a experiência escolar da população LGBTQIA+ (MISKOLCI, 2010). Mas uma outra face, talvez mais sutil, do alinhamento entre escola e colonialismo são as estratégias pouco ou nada contestadas de (re)produção das desigualdades de gênero no interior das práticas educativas, conforme Louro (1997) nos provoca a pensar.
A linguagem institui e demarca os lugares dos gêneros não apenas pelo ocultamento do feminino, e sim, também, pelas diferenciadas adjetivações que são atribuídas aos sujeitos, pelo uso (ou não) do diminutivo, pela escolha dos verbos, pelas associações e pelas analogias feitas entre determinadas qualidades, atributos ou comportamentos e os gêneros (do mesmo modo como utiliza esses mecanismos em relação às raças, etnias, classes, sexualidades etc.). Além disso, tão ou mais importante do que escutar o que é dito sobre os sujeitos, parece ser perceber o não-dito, aquilo que é silenciado — os sujeitos que não são, seja porque não podem ser associados aos atributos desejados, seja porque não podem existir por não poderem ser nomeados. Provavelmente nada é mais exemplar disso do que o ocultamento ou a negação dos/as homossexuais - e da homossexualidade - pela escola (LOURO, 1997, p. 66).
Assim, por concordamos com María Lugones (2008) quanto à íntima relação existente entre colonialidade do poder e colonialidade de gênero, compreendemos que a descolonização da educação está também condicionada ao profundo comprometimento da escola com a luta antipatriarcal.
Ainda é preciso ter em vista que a intrínseca relação existente entre identidades raciais e de gênero e o acúmulo de riquezas em nossa sociedade se encontram sob o projeto de descolonização nos contextos educacionais. Nesse sentido, a contestação da colonialidade da educação passa também pelo questionamento da recorrente narrativa de que a cultura escolar hegemônica, profundamente racista e patriarcal, pode constituir uma via de confrontação das desigualdades econômicas. Ao contrário disso, uma educação anticolonial passa, inevitavelmente, pela compreensão de que a pobreza apenas terá chances de ser combatida a partir do reconhecimento dos sujeitos historicamente feitos Outros e, assim, da desestabilização dos mecanismos de exploração e extrativismo responsáveis pelo acúmulo de riquezas.
Por fim, para Frantz Fanon (1968), com quem concordamos, a descolonização apenas será possível a partir da recusa à imitação do colonizador, de sua cultura e hábitos. Segundo o autor,
[...] se queremos levar a humanidade a um nível diferente daquele onde a Europa a expôs, então temos de inventar, temos de descobrir. Se queremos corresponder à expectativa de nossos povos, temos de procurar noutra parte, não na Europa (FANON, 1968, p. 275).
Nesse sentido, entendemos que a descolonização da sociedade e da escola passa tanto pela desaprendizagem de “histórias mentirosas” a que se refere Belonísia no início deste tópico, quanto pela construção a partir de Outros referenciais - não de “soldados, professores e médicos” -, de novos e autodeterminados repertórios. Sob esse entendimento, passamos a analisar algumas contestações à colonialidade observadas no contexto da Escola Municipal Anderson Gomes.
Escola e práticas anticoloniais
Minha apatia vinha também de perceber que havia crianças muito mais novas, algumas mais dispostas a aprender, lendo com muitos erros, mas em voz alta, sendo interrompidas a cada duas palavras por dona Lourdes para lhes corrigir a pronúncia (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.138).
Ratificando a percepção de Catherine Walsh (2017) de que é preciso enxergar e legitimar pequenas esperanças, passamos a compartilhar eventos de contestação à “normalidade moderna/colonial” na Escola Municipal Anderson Gomes (EMAG) e que, em nosso entendimento, resultam da presença insurgente dos sujeitos Outros naquele espaço. Essa instituição, é preciso pontuar, foi construída para atender a estudantes moradores de um conjunto de ocupações urbanas cuja distância do prédio escolar é a largura de uma rua. Nesse sentido, o acúmulo de direitos negados e a pobreza atravessam o cotidiano da escola e as relações ali estabelecidas. Essa realidade nos leva à necessidade de denunciar algumas dimensões que perpassam, de forma concomitante ou não, a educação hegemônica das pessoas pobres.
A primeira é a narrativa ficcional de que a pobreza é resultado da baixa escolarização. Embora reconheçamos o papel da escola no que diz respeito à ascensão social e econômica dos sujeitos individuais e coletivos em uma sociedade escolocêntrica como a nossa, estamos certas de que a pobreza compõe a estrutura colonial de nossa sociedade e de que, por isso, como vimos no tópico anterior, se a educação escolar desejar intervir de fato nesse estado de coisas, precisará se comprometer com debates estruturais os quais, por sua vez, escapam à perspectiva liberal e individualizante que sustenta esse imaginário. Caso contrário, corremos o risco de permaneceremos nos comprometendo, não raro sob certa crença de justiça, com o empobrecimento tecnicista da educação que tem os estudantes pobres como sujeitos.
Outro aspecto a ser destacado é o silenciamento em relação às questões de classe no contexto escolar. Conforme nos lembra bell hooks (2013, p. 235), “[...] desde o ensino fundamental, somos todos encorajadas a cruzar o limiar da sala de aula acreditando que estamos entrando num espaço democrático – uma zona livre onde o desejo de estudar e aprender nos torna todos iguais”. Esse silêncio derivado da crença no universalismo abstrato alimenta a cultura meritocrática sendo, portanto, conivente para a manutenção das desigualdades constitutivas do sistema-mundo Moderno/colonial.
Por fim, ainda que aparentemente soe contraditório, tendo em vista o “não dito” anteriormente mencionado, não raro, a educação escolar hegemônica endereça práticas educativas aos estudantes pobres sob o manto dos estereótipos “menores”, “vulneráveis”, “perigosos” ou mesmo com a ideia de “público-alvo específico”. É isso que Miguel Arroyo (2015) nos ajuda a entender no conjunto de sua obra, e que, de algum modo, sintetiza em seu texto O humano é viável? É educável?
Parto da hipótese de estarmos em tempos de descrença dessas crenças e, consequentemente, de descrença na pedagogia e na docência porque nos invade a descrença na educabilidade da infância e da adolescência pobre, negra, das periferias que chegam às escolas. Estamos em tempos de uma brutal segregação social e racial desses jovens, adolescentes e até crianças, tratando-os como violentos, delinquentes, ineducáveis, logo extermináveis, entregues à justiça penal. Inviáveis como humanos (ARROYO, 2015, p. 22).
É, portanto, em oposição a essas concepções e práticas, faces da colonialidade na educação das pessoas pobres, que lemos a realidade da Escola Municipal Anderson Gomes.
Nessa perspectiva, é preciso pontuar, em primeiro lugar, que a construção da EMAG se deu por uma decisão unilateral do poder público e, portanto, sem que se constituísse uma reivindicação dos moradores das ocupações urbanas que compõem o seu entorno. Conforme sinaliza Helena (2017), as crianças que passaram a frequentar a instituição já se encontravam matriculadas em outras escolas públicas municipais da região. A construção de uma unidade básica de saúde, não de uma nova escola, era a principal demanda da comunidade.
De onde esses meninos vieram? Vieram especialmente das escolas [nomes de quatro escolas públicas municipais da região]. Então, os alunos que moravam mais para este lado vieram para cá. Nesse movimento, algumas escolas mandaram alguns ‘alunos que não estavam muito legais” lá para “viverem uma outra experiência’ aqui [...] (HELENA, 2017).
Trata-se, portanto, de uma inciativa que, em detrimento do pronunciado pelo subalterno (Spivak, 2010), recusa-se a sua escuta e, mais do que isso, intenciona-se a sua “salvação”. Mas esses sujeitos não são passivos e, de diferentes modos, reivindicam o seu reconhecimento, conforme sugerem os relatos de Luiza e Antônio, estudantes da EMAG.
Luiza: As pessoas da escola enxergam nós como pé de Toddy [risos].
Bárbara: Pé de quê?
Luiza: Pé de Toddy. Porque o nosso pé fica tudo sujo. [...] Teve um dia que a menina chegou perto de mim e falou: – Você mora no conjunto habitacional?”, aí eu falei: – “Não, por quê?”. – “Você é tão limpa!”. Aí eu falei: – “O que é isso, gente?! Não é só porque eu moro ali que eu vou ser suja” (LUIZA, 2017).
[...]
Antônio: O governo, “vacilão demais”, economizou dinheiro e aí fez essa escola toda mal-acabada. Se fosse escola particular, ou então escola estadual, meu filho, eu aposto que iam fazer uma escola bonitona. Ia ter até alguns corrimões perto do quadro! Agora aqui, para você ver, olha o quadro como é que é... misericórdia! [...] Eu acho que eles só colocaram essa escola aqui por causa da periferia. [...] Eles fizeram aqui de qualquer jeito: – “É para o público pobre mesmo...”. Eles não ligam não (ANTÔNIO, 2017).
Sob essa perspectiva, observamos no interior da escola um crescente esforço de reconhecimento da comunidade e, como consequência disso, de questionamento da aparente suficiência da cultura escolar hegemônica e de seus objetivos. O relato de Ana, coordenadora pedagógica da instituição, sinaliza para esse movimento.
Ana: Quando eu cheguei, a Manuela me recebeu muito calorosamente, com aquele abraço, e levou lá na Helena e falou: – “Já chegou mais uma para ajudar a gente!”. E eu pensei assim: – “Nossa, realmente, eles estão precisando muito de alguém para ajudar aqui na escola!”. Nunca fui tão bem recebida! Eu me senti mesmo, muito bem recebida! Aquele abraço [...] Mas ela não mentiu para mim em momento algum. Aí, subiu comigo aqui para o terceiro andar, me levou ali na beirada, me mostrou e disse: – “Vem cá, você viu como é que é aqui? Isso aqui é uma ocupação!” (ANA, 2017).
A realização de uma imersão na comunidade ou o atravessamento da rua pelos educadores para conhecerem o território em que os seus estudantes viviam e se educavam aparece nas entrevistas como um importante passo para o reconhecimento dos sujeitos e da comunidade sob novas matrizes.
Eduardo: Falta conhecimento dos professores daquela realidade. A gente entrou, assim, com o grupo de professores, a gente entrou na comunidade [...]. E... foi legal. Tinha professor que nunca tinha entrado na comunidade e tal. Quando a gente foi junto, eu nunca tinha entrado. Mas tinha, tipo assim, uns seis meses que eu tinha entrado na escola, eu acho. Foi ótimo, sabe?! Ver os alunos na casa deles... Assim, eles assustaram porque a gente estava lá. Eles também acham que a gente é gente de outro planeta assim, sabe?! E a gente lá na comunidade deles. Acho que eles se assustaram de uma maneira positiva. Depois disso, eu já entrei várias vezes. Para fazer o projeto de fotografia desse ano, a gente foi lá dentro da comunidade (EDUARDO, 2017).
O deslocamento físico produziu, portanto, fissuras nas representações colonialmente orientadas dos educadores sobre os sujeitos pobres que cotidianamente frequentavam as salas de aula da EMAG. É verdade que essas “rachaduras” podem ou não crescer a ponto de abalar as estruturas educacionais como também podem ser efêmeras. Embora os dados construídos não possibilitem essa extrapolação analítica, as palavras de Tadeu nos permitem esperançar (FREIRE, 1992) quanto a um movimento de giro anticolonial naquele contexto.
O que mais eu posso falar sobre essa comunidade? É uma comunidade com muitas potencialidades! Sobretudo, potencialidades! É incrível como que no meio de tanta miséria eles conseguem! Tudo assim... dança?! Eles dançam muito bem! Esportes: geralmente a nossa escola disputa quase todos os campeonatos. Nós tivemos no campeonato de Taekwon-do e a escola ficou em segundo lugar! Então, eles têm muitas potencialidades! A gente ainda tem muita dificuldade de focar nisso, ao invés das fragilidades. Temos dificuldade de focar nessas potencialidades, que são muitas, que eles têm... [...] Eu acho que quando você entra na casa do menino, você cria outro tipo de relação. Aqui na escola nós fizemos uma inserção uma vez com todos os professores. Eu achei muito bacana. E há essa demanda permanente, esse desafio de conhecer mais. Há uma preocupação da escola em estar inserida na comunidade. Não está muito claro como isto pode ser materializado, mas tem uma sensibilidade. [...] Falta melhorar, na verdade, em termos gerais, como é que a escola vai trazer ao seu dia a dia, seu cotidiano (TADEU, 2017).
Na Escola Municipal Anderson Gomes, o alinhamento entre a educação escolar e o projeto colonial é contestado também nas opções realizadas quanto à abordagem das relações étnico-raciais e, assim, nas práticas antirracistas ali colocadas em curso. Não se trata de ações protocolares ou apenas de observância à legislação vigente (BRASIL, 2008), mas de práticas que partem da percepção de que corpos pretos habitam aquele espaço e da consequente compreensão de que não visibilizá-los seria, além de incoerente, uma forma de violência.
Manuela: aquela escola é negra e isso tem que ser tratado lá, dessa maneira, na minha visão. Porque os meninos são negros e aquele tem que ser o locus do seu reconhecimento, da sua identidade (MANUELA, 2017).
Assim, embora seja ainda uma iniciativa tímida e, sem dúvidas, insuficiente, tendo em vista a abrangência do racismo em nossa sociedade e na cultura escolar, destaca-se aqui a pintura dos muros da escola com rostos de mulheres negras como ação antirracista. Prática que, conforme aponta Cecília, é orientada sob a ótica da representatividade das estudantes, mas também das educadoras que compõem aquela comunidade escolar.
Cecília: Eu acho que a escola tem construído uma positividade nesse pertencimento... de botar as meninas para frente, de colocar a questão de uma identidade racial. Então, por exemplo, a questão de a gente ter as professoras, né, eu brinquei muito com a Laís, eu falei: – “Que bom, agora você está pintada na parede, que bom!” (CECÍLIA, 2017).
Ainda que de modo menos explícito, foi possível observar contestações ao cis-hetero-patriarcado na Escola Municipal Anderson Gomes. A escolha da professora de Ciências em abordar as desigualdades de gênero no que diz respeito à produção do conhecimento na conjuntura de emergência do conservadorismo já seria um indício deste tensionamento. Os desdobramentos dessa atividade e a opção da educadora por replicá-la no ano subsequente com o envolvimento de novos educadores nos permite – incorrendo no risco de um otimismo excessivo - tomar o tema como emergente naquele contexto.
Débora: Eu li um texto com o nono ano que falava das mulheres cientistas. Eu ia só ler o texto das mulheres cientistas e tinha quatro questões. Só que a gente foi para outro lado, que aí começou a questão da desigualdade da mulher e do homem, então houve um debate. Eu achei o máximo! [...] Aí as meninas começaram a falar a questão de casa mesmo: - “Ah, meu irmão faz mais isso, eu não faço isso”. É coisa deles. Sobre a violência contra a mulher, nossa, eles falaram muito! [...] Foi um marco. Nós passamos aquele filme “Estrelas além do tempo”. Ano que vem, eu quero passar para o outro nono ano [do ensino fundamental] (DÉBORA, 2017).
Ao olharmos para as práticas antirracistas e antipatriarcais engendradas no contexto da Escola Municipal Anderson Gomes, identificamos indícios de que elas se associam a uma contestação anticapitalista, como foi percebido na recorrente desconfiança dos educadores quanto à hegemônica forma de funcionamento de uma escola cujos estudantes são pobres e no sentido predominantemente atribuído à educação que tem esses sujeitos como estudantes.
Tadeu: Eu acho que o pedagógico é um desafio aqui. Ele é um desafio em todas as escolas, por mais que você tente avançar, tem sempre coisas que ficam a desejar. Por exemplo, como é que se pensa em um currículo que assegure isso tudo que se coloca no horizonte como necessidade, simultaneamente com a formação integrada com os aspectos da vida? [...] A escola, essa e as outras todas, atropelam a vida, não conseguem conectar com... [...] A escola se preocupa muito em fazer e se pergunta muito pouco sobre aquilo que faz (TADEU, 2017).
[...]
Eduardo: Uma Matemática antiga, não é uma Matemática nova. Uma Matemática totalmente fora do contexto deles. Até do Brasil, assim, né?! É triste, mas... Eu sempre gostei de Matemática e gostava de resolver problemas, eu gostava de fazer exercícios, por isso, eu gostava de Matemática. Eu vejo que não é uma disciplina desafiadora para eles. Os problemas deles são... são diferentes, assim, e são muito mais profundos, do que resolver exercício. Então, é um desafio! (EDUARDO, 2017).
Nas falas de Tadeu e Eduardo, as lógicas salvacionista e de atendimento às demandas do sistema-mundo capitalista Moderno/colonial pela educação são deslocadas. Assim, aparentemente, a presença insurgente dos sujeitos pobres - associada à certa disposição de educadores ao reconhecimento e à centralização dessas identidades em suas práticas educativas – tem o potencial não só de desestabilizar a produção da pobreza, mas também de livrar a educação escolar do pobre utilitarismo a que foi relegada e que é, de algum modo, sintetizada na crítica de Belonísia à preocupação de D. Lourdes com a pronúncia das palavras.
Considerações finais
Um dia inventava uma dor de cabeça, outro dia uma dor de barriga, e aos poucos fui fazendo valer minha vontade de voltar ao trabalho da roça e da casa. Deixei caderno e lápis num canto do quarto e, mesmo percebendo meu pai amuado com o meu desinteresse pela escola, fiz valer meu querer (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.139).
Ao compartilhar a sua experiência escolar, que primeiramente é marcada pela negação do direito de acesso à escola e, mais tarde, por uma série de exclusões diárias vivenciadas nessa instituição, o que resultou na interrupção de seus estudos, Maria, que é moradora de uma ocupação urbana e mãe de uma das estudantes da Escola Municipal Anderson Gomes, formula uma frase que, ousamos dizer, poderia ser também de Belonísia: “[...] se a escola fosse diferente, talvez tivesse sido bem diferente” (MARIA, 2018). Concordando com essa crítica, o presente texto buscou evidenciar a pertinência e a urgência de que a escola seja profundamente transformada no que diz respeito ao alinhamento colonial que assumiu dos jesuítas aos dias de hoje. Em outras palavras, defendemos que, sob uma perspectiva emancipatória, é imperativo que a educação escolar se descolonize e, assim, se transforme a partir do reconhecimento dos sujeitos feitos Outros, de seus saberes e culturas.
As reflexões aqui realizadas se distanciam, portanto, daquelas que são mais recorrentes e que não se cansam de pronunciar a necessidade de as crianças e jovens pobres se adaptarem ou, para sermos mais precisas, assimilarem a cultura escolar hegemônica. Como dissemos anteriormente, não há dúvidas de que em uma sociedade escolocêntrica como a nossa essa perspectiva “inclusiva” poderá, ainda que em forma de exceção, produzir êxitos individuais. Discutir, entretanto, a educação das pessoas pobres, que são sujeitos coletivos, sem centralizarmos o alinhamento existente entre o projeto colonial de sociedade e a educação escolar hegemônica seria, se não perverso, ingênuo. Sob essa perspectiva, a nossa defesa é a de que somente a partir da contestação da colonialidade da educação escolar é que teremos não apenas a chance de Belonísias e Marias permanecerem na escola, mas também de construir uma sociedade que não naturalize os direitos negados a elas e às suas gerações.
Mais uma vez, inspiradas por Catherine Walsh, mas também por Paulo Freire que nos impele a compreender que a educação não é “apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia dominante” (FREIRE, 1996, p. 61), buscamos compartilhar aqui rupturas, a princípio tímidas, iniciais ou pouco evidentes, mas de enorme potência anticolonial. Não nos interessa idealizar estes achados, mas compartilhá-los com a expectativa de que possam, de algum modo, contribuir para que, enquanto sociedade, encontremos, coletivamente, e a partir de repertórios Outros, caminhos alternativos à colonia-lidade para a educação escolar.