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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.70 Natal out./dez 2023  Epub 06-Mar-2024

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n70id33843 

Artigo

Aprendizes de ficção: sobre o ler e o escrever histórias na escola

Aprendices de ficción: sobre la lectura y la escritura de cuentos en la escuela

Gildene Lima de Souza Fernandes1 

Prof.ª Ms. Gildene Lima de Souza Fernandes, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Núcleo de Educação da Infância do Colégio de Aplicação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil), Grupo de Pesquisa Ensino e Linguagem, E-mail: gilfernandes@nei.ufrn.br


http://orcid.org/0000-0002-1348-5399

Alessandra Cardozo de Freitas1 

Prof.ª Dr.ª Alessandra Cardozo de Freitas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil), Centro de Educação, Grupo de Pesquisa Ensino e Linguagem, E-mail: alessandra.freitas@ufrn.br


http://orcid.org/0009-0003-5036-0573

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)


Resumo

O artigo apresenta um recorte de pesquisa qualitativa sobre a elaboração de narrativas de ficção por crianças, realizada numa turma do 5º ano do ensino fundamental, de uma escola pública do Rio Grande do Norte, Brasil. Tem por objetivo refletir sobre os efeitos da leitura de literatura e da interlocução entre os pares no processo de construção de histórias. A investigação fundamentou-se nos estudos sobre literatura (Candido, 2012), leitura de ficção (Amarilha, 2013 e 1997; Jauss, 1994; Eco, 1994), mediação pedagógica e produção textual (Vigotski, 2007; Graves e Graves, 1995; Calkins, 1989). O desenho da pesquisa compreendeu sessões de leitura da obra Fazendo Ana Paz, de Lygia Bojunga, e encontros para escrita, discussão e reescrita de histórias de ficção. A análise dos dados revelou que a leitura de literatura, sob a metodologia da andaimagem, favoreceu a liberdade de criação de histórias pelos aprendizes, que recorreram às referências literárias para escrever narrativas que apresentaram novas escolhas quanto ao tipo de narrador, uso do tempo, desfecho, dentre outros aspectos. A escolha da obra literária (Bojunga, 2007), de caráter metaficcional, repercutiu, de sobremaneira, nos novos sentidos atribuídos pelos aprendizes à atividade da escrita. Também foi constatado o efeito da interação entre os pares e a professora-pesquisadora nos processos de escrita e revisão textual, mediante as investidas das crianças na constituição de suas narrativas de ficção, desencadeadas pelas conferências de escrita.

Palavras-chave: Histórias de ficção; Criança; Mediação de leitura; Leitura de literatura

Resumen

El artículo presenta un extracto de una investigación cualitativa, realizada sobre el desarrollo de narrativas de ficción por niños del 5º grado de la enseñanza fundamental de una escuela pública de Rio Grande do Norte, Brasil. El objetivo es reflexionar sobre los efectos de la lectura literaria y la interlocución entre pares en el proceso de construcción de historias. La investigación se basó en estudios sobre literatura (Candido, 2012), lectura de ficción (Amarilha, 2013; Jauss, 1994; Eco, 1994), mediación pedagógica y producción textual (Vigotski, 2007; Graves e Graves, 1995; Calkins, 1989). El diseño de investigación comprendió sesiones de lectura/escucha de la obra Fazendo Ana Paz (Haciendo Ana Paz), de Lygia Bojunga, y encuentros para escribir, discutir y reescribir cuentos de ficción. El análisis de los datos reveló que la lectura de literatura, bajo la metodología andamiaje, favoreció la libertad de creación de historias por aprendices, quienes utilizaron referencias literarias para escribir narrativas que presentaban nuevas opciones en cuanto al tipo de narrador, uso del tiempo, desenlace, entre otros aspectos. La elección de la obra literaria (Bojunga, 2007), de carácter metaficcional, tuvo un gran impacto en los nuevos significados atribuidos por los aprendices a la actividad de escribir. También se observó el efecto de la interacción entre pares y la profesora-investigadora en los procesos de escritura y revisión textual, a través de los intentos de los niños en la constitución de sus narrativas ficcionales, desencadenadas por conferencias de escritura.

Palabras clave: Cuentos de ficción; Niños; Mediación de lectura; Lectura de literatura

Abstract

The article presents an excerpt from a qualitative research about the development of fictional narratives by children, carried out with in a 5th grade of elementary school at a public school in Rio Grande do Norte, Brazil. It aims to reflect on the effects of reading literature and interlocution between peers on the process of creating stories. The research was based on studies on literature (Candido, 2012), fiction reading (Amarilha, 2013 e 1997; Jauss, 1994; Eco, 1994), pedagogical mediation and textual production (Vigotski, 2007; Graves e Graves, 1995; Calkins, 1989). The research design included reading sessions of the work Fazendo Ana Paz (Making Ana Paz), by Lygia Bojunga, and meetings for writing, discussing and rewriting fiction stories. Data analysis revealed that reading literature, under the scaffolding methodology, favored the freedom of creating stories by apprentices, who used literary references to write narratives that presented new choices regarding the type of narrator, use of time, outcome, among other aspects. The choice of the literary work (Bojunga, 2007), which is metafictional in nature, had a major impact on the new meanings attributed by the apprentices to the writing activity. It was also noticing the effect of interaction among peers and the research teacher in the writing and textual review processes, through the children’s attempts to create their fictional narratives, triggered by writing conferences.

Keywords Fictional stories; Children; Reading mediation; Literature reading

Introdução

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

(Manoel de Barros, 1999)

Em O menino que carregava água na peneira (Barros, 1999), poesia que serve de morada para os versos que abrem este artigo, Manoel de Barros se refere a uma conquista que geralmente é muito esperada pelos meninos e meninas: a aprendizagem do uso das palavras. A escolha por esse texto literário pretende evidenciar a temática que aqui é abordada: o uso das palavras por crianças para expressarem a sua capacidade de criar ficção.

Neste artigo, apresentamos um recorte da dissertação de mestrado Aprendizes de Ficção: a construção de histórias por crianças do ensino fundamental (Fernandes, 2019), realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Temos por objetivo refletir sobre os efeitos da leitura de literatura e da interlocução entre os pares no processo de construção de histórias. O trabalho empírico que deu origem aos dados foi de natureza qualitativa, com a prática de intervenção desenvolvida em 2017, numa turma do 5º ano do ensino fundamental, anos iniciais, em uma escola pública da cidade de Natal/Rio Grande do Norte. Participaram da intervenção 18 crianças, com faixa etária entre 10 e 11 anos, alunas da pesquisadora que realizou a mediação.

A pesquisa foi guiada pelas seguintes questões: a) O repertório literário e a mediação de leitura de literatura podem subsidiar a construção de histórias pelas crianças? b) Qual é o efeito das estratégias de mediação para a construção e o aprimoramento dos textos pelas crianças?

Na expectativa de responder a essas indagações, se configurou o desenho da pesquisa: a) planejamento das sessões de leitura e de discussão do livro Fazendo Ana Paz, de Lygia Bojunga (2007); b) constituição de um banco de histórias de ficção, produzidas pelos sujeitos antes das sessões de leitura; c) apresentação da obra a ser lida, incluindo a biografia da referida escritora e uma discussão sobre o que são textos de ficção; d) desenvolvimento das sessões de leitura e discussão do livro Fazendo Ana Paz; e) produção de uma segunda história de ficção pelos sujeitos, a partir da definição e caracterização prévia de um personagem; f) socialização das histórias produzidas entre as crianças; e g) conferências para troca de ideias, reescrita/aprimoramento das histórias produzidas pelos autores.

Consideramos que a dedicação à temática da produção do texto escrito na escola é uma necessidade de ordem pedagógica, científica e social. Tal necessidade é corroborada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que ressalta o desenvolvimento da autoria como um saber proveniente da reflexão sobre a própria experiência de produção de textos. A BNCC (Brasil, 2018) organiza as práticas de linguagem no currículo em campos de atuação e estabelece, no campo artístico-literário, que as crianças do 5º ano devem ser capazes de produzir narrativas em que utilizem cenários e personagens realistas e de fantasia, destacando a necessidade de observação das convenções da linguagem e de elementos da estrutura narrativa (enredo, personagens, tempo, espaço e narrador). Verificamos a ênfase nos aspectos formais – no caso, o domínio da estrutura da narrativa – e reconhecemos a importância de a escola investir nesse domínio. Porém, queremos chamar a atenção para o potencial formativo da literatura no processo de criação de histórias ficcionais por crianças.

Um aspecto que motiva a pesquisa acerca da formação de leitura e escrita com crianças já alfabetizadas é que muito se discute sobre o processo inicial de aquisição dessas competências, mas consideramos que são ainda restritas as pesquisas sobre como propiciar o desenvolvimento das competências de leitura e de escrita com crianças que já possuem um certo domínio do idioma. Em sondagem que realizamos com os nossos sujeitos de pesquisa, em período anterior à intervenção, eles revelaram que não gostam de inventar suas próprias histórias por se considerarem pouco criativos para tal atividade. Diante disso, percebemos a necessidade de discutir estratégias pedagógicas para desenvolver/impulsionar o potencial criativo das crianças do 5º ano do ensino fundamental.

Sobre a forma como a produção de textos é desenvolvida na escola, concordamos com Calil (2004) quando critica a exigência escolar para que o estudante tenha uma letra bonita, seja criativo, não cometa erros, produza em pouco tempo e volte ao texto somente para “passar a limpo”. Esse contexto não prima pela liberdade de autoria; não considera o “lugar social” do sujeito que escreve, que influencia as condições de produção, e também não considera que o discurso elaborado articula outras vozes, escolares e extraescolares.

Smolka (2008) também tece críticas sobre a contradição que permeia as práticas de escrita vivenciadas na escola, instituição que espera das crianças que ocupem lugares de leitoras e escritoras, ao mesmo tempo em que promove, na maioria das vezes, um trabalho centrado em palavras isoladas, em frases sem sentido – trabalho esse que nega a leitura e a escrita como práticas dialógicas, discursivas e significativas.

Essa reflexão acerca das práticas de produção textual na escola confirma a importância da pesquisa que apoia a análise empreendida neste artigo, que é constituído da seguinte estrutura: inicialmente, apresenta os referenciais teóricos que subsidiam a pesquisa; em seguida, detalha o desenvolvimento da intervenção; depois, tece apreciações acerca das escritas produzidas pelas crianças e, ao final, apresenta considerações construídas a partir do estudo desenvolvido.

Ideias fundantes sobre leitura de literatura, produção de textos e mediação

Este estudo parte do pressuposto de que a leitura do texto literário pode favorecer a autoria das crianças na criação de histórias ficcionais. Esse pensamento está ancorado na dimensão formativa da literatura, expressão artística que assim é definida por Candido como:

[...] manifestação universal de todos os homens em todos os tempos [...] está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco (Candido, 2012, p. 23).

Na definição, a palavra é a matéria-prima, produtora de sentidos na oralidade e na escrita, constitutiva e provocativa da ação do leitor. Fundamentamo-nos na visão de Jauss (1994) para discutir sobre o efeito libertador provocado pela interação do leitor com o texto literário. Jauss assim explicita:

A experiência de leitura logra libertá-lo [leitor] das opressões e dos dilemas de sua práxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepção das coisas. O horizonte de expectativas da literatura distingue-se daquele da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do comportamento social, rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura (Jauss, 1994, p. 5).

Se o texto literário amplia os horizontes do leitor, abrindo o caminho para a experiência futura, é provável a sua contribuição para conduzi-lo a novas experiências de escrita de histórias, ampliando o repertório de leitura e, por sua vez, a imaginação e a criatividade. Considerando que, para escrever, é mister ter o que dizer (Geraldi, 1997), partimos do pressuposto de que as crianças precisam ter um repertório em textos ficcionais para escreverem histórias de ficção.

Em se tratando das narrativas ficcionais, Amarilha (1997) afirma que a literatura constitui uma experiência catalizadora de interesse e de prazer. Nessa experiência, a criança pode vivenciar o processo de identificação estética de modo a projetar-se na trama e vivenciar o jogo ficcional, que, nas palavras da autora, assim se processa:

Esse jogo de entrar na ficção instrui a criança nos procedimentos de ajustamento intelectual para lidar comparativamente com fatos reais e fatos imaginados. Essa habilidade de transitar por dois mundos – que o lúdico proporciona – introduz a criança no conhecimento dos limites das coisas acontecidas e das inventadas. Colabora para que ela desenvolva o discernimento entre o real e o fictício (Amarilha, 1997, p. 54).

Não seria a escola, a instituição social ideal para possibilitar às crianças esse exercício de transição entre os fatos e os imaginados? E não seria também a escola o lugar privilegiado para o exercício da autoria de ficção? Imaginemos as possibilidades de desenvolvimento do potencial criativo das crianças, mediante o seu encontro com o texto literário e, por que não dizer, do encontro com a possibilidade de autoria.

Na fundamentação teórica em torno das práticas de escrita na escola, nos identificamos com as ideias de Calkins (1989). A pesquisadora defende que é imprescindível que a instituição escolar reveja como tem organizado os tempos e os espaços para a prática da escrita, de modo que permita que os estudantes sejam leitores do que escrevem, compartilhem suas produções escritas com os colegas (esboços) e possam revisitá-las e alterá-las quantas vezes desejarem. Os encontros em grupo, nos quais as crianças estabelecem parcerias para escrever, são denominados pela autora de “conferências de escrita”. Entendemos que essa configuração para as atividades de escrita considera a criança como um escritor em potencial, que necessita de apoio para o exercício de criar ficção.

Quando os pares ou o professor oferecem apoio para uma criança avançar na capacidade de realizar determinada ação, como a escrita de uma narrativa ficcional, por exemplo, estão intervindo no que Vigotski (2007) denomina Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). A ZPD consiste na distância entre o que a criança consegue realizar de forma independente (desenvolvimento real) e o que pode ser feito com a ajuda do outro (desenvolvimento potencial). Essa teoria ressalta o papel da interação com o outro para que o indivíduo possa alcançar conquistas que, se estivesse sozinho, não seriam possíveis.

O conceito de ZDP norteou nossas decisões metodológicas por sua relação com a abordagem de leitura por andaimes (Graves; Graves, 1995), escolhida como metodologia de leitura nas sessões desta pesquisa. Os “andaimes” são suportes para o leitor construir uma compreensão mais ampla do texto, de modo que possa “[...] alcançar uma meta que poderia estar além de seus esforços não assistidos” (Graves; Graves, 1995, p. 20). De acordo com a abordagem de leitura por andaimes (Graves; Graves, 1995), o professor deve planejar atividades que ajudem os alunos a alcançar o máximo de entendimento relativo ao texto. Para tanto, a atividade de leitura deve ser constituída pelas seguintes fases: a) pré-leitura – levantamento das expectativas e/ou exploração de conhecimentos prévios; b) leitura – de forma oral, silenciosa, compartilhada; e c) pós-leitura – discussão da obra lida, produção de registros diversos etc.

Tendo como base os fundamentos aqui apresentados, passaremos a discutir e analisar como a intervenção da pesquisa foi desenvolvida.

As sessões de leitura e as conferências de escrita

A intervenção foi planejada considerando a necessidade de promover o contato com o texto literário – momentos que denominamos sessões de leitura – e também a necessidade de promover o exercício da produção de histórias de ficção – momentos que denominamos de conferências de escrita – com base no referencial teórico apresentado.

Para as sessões de leitura, escolhemos a obra Fazendo Ana Paz, da escritora Lygia Bojunga (2007), que foi lida na íntegra e discutida com os sujeitos antes das sessões de escrita. A escolha da obra se justifica por vários motivos: a autora é uma referência, em se tratando de literatura para o público infanto-juvenil; os sujeitos de pesquisa já haviam demonstrado apreço pela escritora Lygia Bojunga em outras ocasiões de sua trajetória escolar nas quais tiveram contato com algumas de suas obras; e, principalmente, pela nossa expectativa de que, vivendo o jogo ficcional proposto por Fazendo Ana Paz, os sujeitos pudessem se inspirar e/ou se sentir motivados a experimentar uma relação promissora com a criação autoral.

Na obra escolhida, a personagem é constituída através de “aparições” de uma menina, uma moça e uma velha para a escritora ficcionalizada, que é a narradora da história. As personagens, a princípio, parecem não ter nenhuma relação entre si, até que, em um dado momento da trama, o entrelaçamento entre elas é compreendido pela narradora/escritora: “É isso! As três são a mesma! Lá num fundão escuro da minha cuca eu já devia ter sacado o que eu só agora estou me dando conta” (Bojunga, 2007, p. 40).

O texto, que consideramos ser uma boa referência literária para nossos “aprendizes de ficção”, evidencia sentimentos que podem ser comuns àqueles que escrevem, como ansiedade, alegria, frustração, identificação, dúvida, cansaço e realização. Ele coloca em pauta a discussão acerca do processo de escrita, favorecendo a desmistificação de algumas crenças em torno da produção literária e de seus autores. Isso porque a história realça aspectos relacionados à experiência vivenciada pelo escritor, sugerindo para o leitor que as narrativas não nascem prontas na cabeça de quem as escreve – que é possível para o escritor ter dúvidas, gostar ou não do que se está produzindo, recomeçar ou até mesmo desistir de finalizar os seus textos.

O trecho abaixo, extraído da própria obra, traduz, com clareza, os “impasses” do processo de criação, quando a narradora se cobra pela definição de como seria o pai da personagem Ana Paz:

E aí começou de novo:

Hoje eu faço o pai;

Segunda-feira sem falta eu vou fazer o pai;

Até quarta-feira esse pai fica pronto;

Quem sabe eu deixo o pai para a semana que vem?

Quem sabe eu tiro o pai dessa história?

Parei de escrever.

Passei algum tempo sem nenhum contato com Ana Paz

(Bojunga, 2007, p. 59).

No intuito de que as crianças, sensíveis aos dilemas vivenciados pela narradora-criadora de Ana Paz, vivenciassem a sua própria experiência de escrita, propusemos uma sequência de situações em que elas lessem, discutissem, planejassem, escrevessem, compartilhassem ideias e reescrevessem, tomando como subsídio as lições de Calkins (1989).

A intervenção com as crianças foi constituída por quinze encontros. Os onze primeiros contaram com a participação das dezoito crianças e os quatro últimos foram realizados com a participação de apenas seis. A necessidade de criar uma condição mais próxima de acompanhamento e mediação da fase final – destinada ao aprimoramento das histórias – motivou a nossa decisão pela redução do número de participantes.

No primeiro encontro da intervenção, orientamos os sujeitos a criarem uma história de ficção, com o intuito de constituirmos um banco de textos, anterior à leitura de Fazendo Ana Paz (Bojunga, 2007). Esse acervo serviu como parâmetro de comparação com as histórias que foram produzidas após a leitura e discussão da referida obra literária.

A partir do segundo encontro, começamos a abordar a obra literária selecionada para a intervenção, dedicando-nos ao estudo da biografia da escritora Lygia Bojunga. Ao conversar com as crianças, foi possível perceber a familiaridade que elas já tinham construído com a referida escritora. Além de citarem obras que elas já conheciam, lidas em anos anteriores, as crianças mencionaram características do estilo da escrita de Lygia Bojunga, especificamente sobre como terminam alguns de seus contos, conforme afirmou Alice (2017): “No final, ela deixa para a pessoa pensar”.

Da terceira até a oitava sessão realizamos a leitura do livro Fazendo Ana Paz (Bojunga, 2007), cumprindo as etapas de pré-leitura, leitura e pós-leitura. A professora pesquisadora realizou a leitura oral, que foi acompanhada pelas crianças que estavam de posse do texto escrito e organizadas em forma de círculo. Ao apreciarem a capa do livro Fazendo Ana Paz, as crianças foram instigadas a pensar sobre o que elas esperavam de uma obra escrita por Lygia Bojunga. Foram socializadas as mais diversas previsões, visivelmente influenciadas pelas leituras e discussões anteriores sobre a vida e obra da autora.

Ao longo das sessões de leitura, estabeleceu-se um clima de curiosidade na turma. Os encontros eram sempre iniciados pela retomada oral do trecho lido na sessão anterior. Após a discussão do trecho lido, o encontro era finalizado com o levantamento das previsões em torno da continuidade da narrativa.

Um dos questionamos que lançamos na pós-leitura da sessão em que se encerra a leitura do livro foi se as crianças achavam que a escritora tinha consciência de que terminava a história de forma repentina, como se o texto ainda não estivesse finalizado. Em resposta, à essa provocação, as crianças expressaram as mais diversas ideias: Melissa considerou que a autora escreveu esse final intencionalmente, por ser essa uma característica do seu jeito de escrever – deixando lacunas para o leitor preencher; Bianca afirmou que a narradora colocou o texto na gaveta, porque não tinha mais vontade de escrever; Joaquim afirmou que quando o escritor inicia o texto, já está com tudo “projetado”; Raíssa defendeu que o autor pode iniciar uma história com uma intenção, mas acabar dando a ela outros desdobramentos e desfechos, que, à princípio, não estavam previstos.

Concluída a leitura e a discussão da obra literária, partimos para a etapa das conferências de escrita (9ª sessão), que foram iniciadas com a proposta das crianças realizarem uma espécie de planejamento de uma nova história de ficção, registrando as ideias iniciais acerca da constituição dos personagens e de uma vida para eles, a partir de um roteiro proposto.

No encontro seguinte (10ª sessão), as crianças revisitaram as suas anotações sobre o novo personagem e começaram a criar as suas histórias, em um exercício individual e sem delimitação de tempo. As crianças também foram esclarecidas de que poderiam alterar ou mesmo produzir algo totalmente diferente do que estava planejado para o personagem no encontro anterior.

Essa configuração para a atividade de produção escrita estava em consonância com a experiência da escritora ficcional que as crianças haviam acabado de experimentar, por meio do texto literário. A mediação implementada para o processo de escrita permitiu que as crianças vivenciassem uma experiência totalmente diferente das práticas predominantes nas escolas, em que, geralmente, se conclui a produção em um tempo curto e determinado.

Na décima primeira sessão, data em que aconteceu a socialização das histórias entre o grupo, boa parte das produções ainda não estavam concluídas em virtude de algumas crianças ainda utilizarem outros tempos e espaços para a escrita – tanto em períodos destinados na escola, como em casa. Em função do entusiasmo dos próprios sujeitos dessa experiência de escrita, verificamos que alguns textos foram bem mais extensos, se comparados às produções que constituíram o banco inicial de textos.

Ainda no encontro de socialização (11ª sessão), deixamos as crianças à vontade para quem desejasse ler a sua história para a turma. Destacamos o caso de Joaquim, que, além de ler a história, ainda em construção, compartilhou como estava se sentindo nessa experiência de escrita. Ele, que geralmente escrevia poucas linhas, revelou que apesar das vinte páginas escritas, ainda estava em pleno processo de constituição da trama vivida pelo seu personagem, um jovem mamute. Joaquim afirmou que estava se sentindo apegado ao mamute e que, por essa razão, estava com dificuldade de fazê-lo perder a vida – o que era sua ideia inicial. Essa revelação de Joaquim nos indica que a atividade criadora não estava dissociada da emoção, tendo em vista que ele, provavelmente, vivenciava um processo de identificação com seu personagem (Jauss, 1994).

Outras crianças, em resposta à nossa provocação acerca de como se sentiram ao assumir o papel de escritoras, indicaram dúvidas, desejo de fazer mudanças no curso da história, vontade de escrever de maneiras ainda não experimentadas, vontade de desistir e até insatisfações com o resultado. A título de exemplo, partilhamos a seguinte fala.

Raíssa: Primeiramente, eu pensava em outras coisas pra fazer, e quando eu fiz esse texto, eu tentei mudar porque eu sempre fazia o narrador e não o próprio personagem falando. E eu também queria escrever sobre um menino, porque eu acho que eu nunca escrevi algum personagem além de menina. Eu achei bem interessante ser uma escritora, mas também um pouco complicado. É, eu acho que eu senti as emoções que Lygia passava pela Ana Paz. Às vezes eu pensava em desistir quando uma das minhas amigas, ela perdeu a história dela e começou de novo, eu tava no meio da minha pensando em desistir, que ela não tava legal, só que eu mesmo assim continuo achando que ela poderia ser melhor a minha história, é... só que mesmo assim ela tá boa (Raíssa, 2017).

Consideramos que tal depoimento recupera o texto literário lido, pois revela que a criança experimentou diferentes sensações com a escrita do texto, dentre elas, a sensação de incompletude, tão propagada por Lygia Bojunga. Fica evidenciada a importância do repertório de leitura para a criação de histórias de ficção pela interferência positiva da obra literária nas crianças.

Para os três últimos encontros da intervenção (12º ao 15º), destinados a um trabalho colaborativo de aprimoramento dos textos, selecionamos seis crianças, que foram divididas em dois grupos. Para a composição destes, consideramos os perfis heterogêneos das crianças quanto à relação com a leitura e a escrita. Nosso intuito foi que as participantes se beneficiassem das ideias e/ou da ajuda daqueles que provavelmente pensassem de forma divergente, em função das distintas experiências e concepções em torno da criação de textos ficcionais. Seguindo esse critério, o grupo 1 foi constituído por Raíssa, Melissa e Diego – este último, declaradamente, não gostava de ler. O grupo 2 foi constituído por Camille, Bianca e Felipe – este último, era aquele que não costumava concluir a escrita dos seus textos.

Começamos as conferências de escrita da última etapa, explicando que o objetivo era promover a troca de ideias/sugestões entre os autores e leitores, com o intuito de tornar as histórias mais claras e/ou criativas. Cada criança foi convidada a fazer a apresentação do seu texto e, em seguida, os pares ficaram à vontade para fazer perguntas e propor sugestões.

Na conferência do grupo 1, tivemos reações de crianças que pareciam desencorajadas a realizar a leitura da sua história e também um caso de uma criança que expressou o desejo de não alterar o texto, mesmo após receber as sugestões dos colegas. Em contrapartida, destacamos a atitude receptiva de Raíssa à proposta de colaboração entre os colegas, que acatou as sugestões recebidas na reescrita do seu texto.

Ao ouvirem atentamente a leitura de Raíssa, os integrantes do grupo 1 sugeriram que ela poderia detalhar mais a caracterização dos personagens, especificando, por exemplo, quem eram os meninos que faziam parte de um grupo que amedrontava o personagem principal. Também sugeriram que ela incluísse uma personagem feminina na história (possivelmente, inserindo um caso de amor), com a finalidade de que a própria autora alcançasse mais satisfação com o seu próprio texto. Essa sugestão estava relacionada à declaração feita pela própria Raíssa, de que não gostava da história, por não ter se identificado com o personagem principal, que era um menino. Conforme a revelação da jovem autora, foi a primeira vez que ela experimentou escrever uma história narrada por uma figura masculina.

A conferência com o Grupo 2 contou com uma participação mais receptiva de seus integrantes. Eles se sentiram mais à vontade para sugerir ideias que pudessem contribuir para um maior detalhamento das tramas, principalmente para Felipe, que apresentou uma história sucinta, em sua primeira versão. Foi significativo acompanhar como ele foi percebendo as possibilidades de ampliação da sua história, na medida em que respondia os questionamentos sobre a vida do seu personagem.

Os encontros seguintes foram destinados à reescrita dos textos, conforme as anotações feitas durante as leituras e discussões nos grupos. Alguns sujeitos preferiram estabelecer parcerias para a revisitação aos textos, enquanto outros optaram por fazer as alterações individualmente. Evidenciou-se, nesse processo de escrita, a coautoria, experiência de reconhecida relevância nos estudos sobre mediação para os processos de ensinar e aprender (Fontana, 2005).

Ressaltamos o nosso esforço em promover uma mediação de escrita que respeitasse a singularidade das crianças em seu processo de criação ficcional, no que se refere ao tempo destinado à escrita, às parcerias estabelecidas e às escolhas das temáticas abordadas (Calkins, 1989). Queremos destacar a liberdade assumida pelas crianças que, assim como O menino que carregava água na peneira, usaram o “disfarce da ficção” (Amarilha, 1997) para criar, viver os papéis que desejavam e, assim, expressar os seus pensamentos e sentimentos. Destacamos, ainda, o exemplo de Bruna, menina que demonstrava grande identificação com o universo masculino e criou um personagem menino; de Lívia, que utilizou a voz da personagem para falar sobre os sentimentos de solidão que a assolavam e também de Jason, menino introspectivo, que escreveu sobre um personagem sem nome, que usava uma máscara para esconder a sua verdadeira identidade.

Sobre o processo vivenciado por Jason, que costumava não concluir as suas histórias, destacamos a revelação que ele nos faz quando elogiamos a sua história de ficção: “E eu ainda não terminei: vou escrever a parte 2” (Jason, 2017). Consideramos que essa é a maior das conquistas da nossa intervenção: ajudar uma criança a acreditar no seu potencial criativo.

Apreciação das produções autorais das crianças

Para guiar a análise das produções das crianças, comparamos as narrativas produzidas em distintos momentos da intervenção: antes da leitura da obra literária e após a sua leitura – versão inicial e versão final. Elegemos verificar os indícios de influências do texto literário lido e também da mediação dos pares na reescrita das narrativas, verificando as escolhas em relação aos seus elementos constitutivos, a saber: a) o papel assumido pelo narrador; b) a escolha por personagens históricos ou fantásticos e suas caracterizações; c) a escolha pelo tempo cronológico ou não; d) a caracterização dos ambientes e transições entre diferentes espaços onde se passa a narrativa; e e) a apresentação do enredo em suas diferentes etapas – exposição, complicação, clímax e desfecho.

Percebemos que as produções realizadas após as sessões de leitura se diferenciaram do padrão que era predominante nas produções que constituíram o banco inicial de texto, como narrador-observador, tempo cronológico, ausência ou fraca caracterização dos personagens, história em um único ambiente, resolução total do conflito (quando existia) e desfecho com o final feliz. São algumas especificidades observadas nas versões finais dos textos: presença de narradores, personagens e observadores; criação de personagens fantásticos, interagindo com personagens humanos, havendo uma maior caracterização destes; uso do tempo não-cronológico (flashback); espaços “reais” e também imaginários e enredos com desfechos inusitados ou mesmo sem desfechos definidos, permitindo que pudessem ser completados pelo leitor.

Vejamos o início da narrativa produzida por Camille como exemplo:

A perseguição do mal

Capítulo I: Onde estou?

Acordei em um lugar estranho, não me lembrava do porque estava ali, quando de repente alguém entrou.

– Até que enfim você acordou – Falou a enfermeira com tom arrogante – você dormiu durante três longos dias.

– Onde estou? – Perguntei meio desorientada.

– Está no sanatório Oswaldo, você veio

para nós há alguns dias atrás – ela explicou – estava com sinais de alucinações (Camille, 2017).

[...]

Logo depois me deu um remédio muito estranho, me disse que era para tomar de três em três horas e foi embora. Após sua saída coisas estranhas começaram a acontecer... vi escrito com sangue na porta: ESTOU VOLTANDO, nas janelas tinham sombras pretas com máscaras de bonecas e no lugar da cama havia uma passagem e um bilhete com a frase ‘VENHA COMIGO’. De repente, apaguei. (Camille, 2017).

[...]

Capítulo II: Sr. Meia Noite

‘Senhor Meia Noite não pegue isso.’

Ei, eu me lembro desse dia, estava eu, meus pais e minha tia May, eu estava sentada quando eles me entregaram uma cesta, depois de abri-la, vi o que estava dentro, era um gatinho, seus olhos eram laranjas como o dia e seu pelo preto como a noite, já sei o seu nome vai ser Sr. Meia Noite. Depois brincamos até tarde, foi um dos melhores dias da minha vida, naquele dia eu ganhei o meu melhor amigo [...] (Camille, 2017).

Como é possível perceber, Camille estrutura o texto em capítulos (doze, ao todo) e nomeia cada um deles – essa foi uma iniciativa própria, que ela não tomou em situações de produção de histórias que antecederam a intervenção. Camille inicia seu texto de maneira inusitada, com uma cena em andamento, no qual a narradora é a própria personagem principal. Escolhe como ambiente inicial para sua história um sanatório, estabelecendo coerência com o teor de mistério e risco que deseja transparecer para o leitor, que é complementado pelos acontecimentos fantásticos que começam a se desenvolver. Ela fornece indícios das características psicológicas das primeiras personagens e realiza um flashback que permite ao leitor conhecer o momento em que a personagem principal ganha o seu gato. Vejamos o que se sucede no capítulo III:

Capítulo III: Cadê ele???

– Marlee, você está bem – essa voz me era familiar.

– Tia May?

– Sim sou eu querida

– Porque estou aqui? E cadê o Sr. Meia Noite?

– Calma. Você estava muito mal ontem então lhe ajudaram. O senhor Meia Noite é seu gato, certo?

– Sim exatamente. Você sabe onde ele está né?

– Infelizmente, ele não foi encontrado.

– O QUÊ????????????

– Me desculpe

– CADÊ O MEU GATINHO, O QUE VOCÊS FIZERAM COM ELE?

– CALMA, nós não fizemos nada com ele, ele deve ter se perdido quando você saiu correndo e ...

– Onde estão meus pais? Eles sabem que estou aqui???

Antes que ela pudesse responder, a enfermeira entrou quarto adentro:

– O horário de visita acabou, por favor, se retire. Marlee hora de dormir.

Elas saíram e tudo ficou escuro… (Camille, 2017).

Verificamos que, no decorrer da história, Camille mantém o clima de suspense e um ritmo acelerado de acontecimentos que prendem a atenção do leitor e alimentam a curiosidade. Um exemplo disso está no capítulo III, quando, por exemplo, a pergunta sobre o paradeiro dos seus pais fica, provisoriamente, sem resposta, assim como não é esclarecido onde se encontra o seu gato.

Os trechos apresentados na história criada por Camille nos fornecem indícios de que as crianças são capazes de produzir textos ficcionais. Para chegarmos a essa afirmação, recorremos à Culler (1999), que define como algumas das características ficcionais dos textos literários: a presença de sujeitos não históricos e as possibilidades de interpretação oferecidas pelo texto, características que são observamos nas narrativas elaboradas pelas crianças. Assim como os avanços nas qualidades literárias do texto de Camille, também nos chama atenção a nova configuração tomada por textos de outros aprendizes, principalmente, após seus autores terem participado dos encontros em pequenos grupos.

Socializaremos as produções de Felipe que também evidencia os resultados obtidos com a intervenção. Diferentemente de Camille, que é uma criança que gosta de ler e participar de todas as atividades, Felipe costumava se dispersar na realização de atividades escolares, demonstrava falta de motivação para escrever e, quase sempre, deixava seus textos incompletos.

A partir do conhecimento que temos da personalidade e da rotina de Felipe, percebemos que ele escreve sobre o seu tempo, lugar e suas preferências, criando um protagonista cujo perfil se confunde com ele próprio. Segue a segunda história de Felipe.

Era uma sexta de noite e Pedro decidiu chamar a família e as amigas, para ir para sua casa de praia lá em Búzios, chegando lá foram direto para as dunas e depois foram dormir. No outro dia eles alugaram dois quadriciclos para andar nas dunas. Depois foram para o parque aquático lá ele recebeu uma ligação de um piloto de motocross famoso mandando ele ir para os Estados Unidos que era um sonho dele. Aí ele foi pegar o avião segunda de manhã levando o irmão e o pai (Felipe, 2017).

[...]

Quando ele ligou para o piloto e o piloto disse onde era a pista e ele chegou na pista ele fez os exames e foi terminar e ele o irmão e o pai virou piloto oficial da km (Felipe, 2017).

Felipe criou uma história sem título, que aparentemente inicia com a intenção de situar o leitor em relação ao tempo do acontecimento, mas sem determinar qual sexta-feira a que se refere. Felipe faz a opção por um narrador observador, com um enredo sem a apresentação de qualquer conflito, sem clímax e com um desfecho aligeirado. O jovem autor não faz a descrição do lugar, como se contasse com o conhecimento prévio do leitor acerca da praia e das dunas a que faz menção e também não detalha os fatos: não se sabe, por exemplo, por que o personagem principal levou o pai e o irmão para a viagem, por que os exames foram feitos, nem tampouco como ele, o irmão e o pai viraram pilotos famosos.

Conforme já mencionamos, na conferência do grupo 2, Felipe se mostrou muito à vontade para receber os questionamentos que foram lançados pelas demais crianças e pela professora-pesquisadora, interessados em entender como alguns fatos da história aconteceram. Felipe passou a conversar sobre a história, como se todo o seu detalhamento estivesse guardado somente para si. Ele revelou particularidades da vida da família do personagem e da modalidade esportiva motocross. Ao externar as suas ideias, que possivelmente estavam sendo mentalmente organizadas naquele momento, Felipe conseguiu inserir fatos que tornaram a história bem mais envolvente. Um exemplo foi um acidente que provocou o afastamento do piloto das competições – um conflito que poderia orientar o enredo para o clímax e para um desfecho mais elaborado. Ressaltamos o empenho das colegas do grupo 2 que, na condição de leitoras do texto, expressaram as suas curiosidades e extraíram do “aprendiz de ficção” aquilo que inicialmente ele não ofereceu.

Felipe revelou que, assim como aconteceu com ele mesmo, Pedro Henrique, o seu personagem, também foi levado pelo pai para praticar motocross. Contou que se inspirou no filme Supercross, no qual um pai se acidentou e morreu na pista de Tóquio – a mesma pista em que seu personagem também sofreu um acidente. Esse detalhamento da história nos remete à discussão sobre a relação entre realidade e ficção, ou seja, o quanto o conhecimento de mundo e o repertório ficcional alimentam a produção autoral. Ele nos faz recuperar a provocação de Iser (2013, p. 31), sobre essa dualidade inquestionável: “Os textos ‘ficcionados’ serão de fato tão ficcionais?”. E ainda a afirmação de Amarilha (2013, p. 80): “[...] a ficção dota o imaginário de certa concretude”.

Em outra sessão, destinada à reescrita dos textos, colocamo-nos à disposição de Felipe, ajudando-o a recuperar os questionamentos dos colegas e as formulações feitas por ele mesmo, antes dele iniciar a reescrita. Ao longo da revisitação do texto, fomos orientando-o a relê-lo e a avaliar se ainda eram necessários alguns ajustes, por percebermos que a inconclusão das suas produções também era consequência da ausência de revisão do que escrevia. Segue recorte da versão final do texto, após as situações de mediação que foram socializadas. Neles, é perceptível o investimento de Felipe no clímax e desfecho:

A superação

Era uma sexta de noite e Pedro decidiu chamar a família e os amigos, para ir à sua casa de praia, lá em Búzios. Chegando lá, foram direto para as dunas brincar e como estavam muito cansados, decidiram ir dormir.

No outro dia, eles alugaram dois quadriciclos para andar nas dunas. Depois foram para o parque aquático. Lá, Pedro recebeu uma ligação de um piloto de motocross famoso chamado James Stuart, fazendo uma proposta para ele ir para os Estados Unidos, o que era o sonho. [...]

O piloto pediu para eles irem para sua casa nos Estados Unidos porque tinha uma pista de treino, onde ele seria avaliado para ser o piloto oficial. Pedro estava muito ansioso para ir para casa e contar para a família. [...]

Pedro fez os exames e deu tudo certo: a saúde dele estava adequada para correr. Ele treinou muito e se dedicou para sua primeira corrida em meio aos pilotos oficiais do MXGP. Nas suas primeiras corridas ele conseguiu chegar em 2º e 3º lugar. Durante todo esse tempo eles estavam morando na casa do piloto.

Quando foi na sua 12ª corrida, ele já estava muito experiente, mas quando fez um salto muito alto, ele já estava muito cansado e desequilibrou no ar, caindo de cabeça nas barreiras de pneus. O pai, que também estava correndo, largou a moto quando viu o filho caído, foi logo socorrê-lo e chamou os médicos.

Pedro passou um mês no hospital e tinha 90% de chance de perder a memória. Na verdade, ele perdeu somente a memória de minutos antes do acidente. Ele também soube da notícia que quebrou a perna e passou uma temporada sem correr, fazendo fisioterapia. [...]

Um ano e três meses depois Pedro foi até a casa de James Stuart e ele ficou muito feliz ao ver Pedro com o mesmo potencial de antes. Daí em diante, esta dupla de pilotos não perde nenhuma corrida. [...] (Felipe, 2017).

Na versão final da sua história de ficção, Felipe define um título coerente com o desfecho da trama e mantém a escolha pelo narrador-observador, que tudo sabe sobre o que acontece. A história tem a preocupação de envolver o leitor, com o desenvolvimento de uma trama em que o protagonista segue uma carreira esportiva, bem-sucedida, após se recuperar de um grave acidente, que poderia afastá-lo desse sonho. Felipe acolhe a sugestão dos colegas na conferência, detalhando melhor cada fato, o que demonstra o impacto das situações de interação propostas para o aprimoramento expressivo da sua produção textual. Felipe mantém o uso do tempo cronológico e emprega marcadores temporais ao longo da narrativa para garantir a continuidade e a progressão dos fatos.

Apesar do seu empenho em dar mais informações ao leitor, Felipe não apura a caracterização dos personagens, nem dos espaços. Sobre o desfecho, constrói um final com uma ideia de continuidade.

Acompanhamos a demonstração de satisfação do jovem autor com o resultado do seu texto, no qual ele mais parece tratar da realização dos seus próprios sonhos. Em confronto com a versão inicial, vimos o emprego da sua criatividade, que precisou ser aflorada pela mediação do outro. Para além de reconhecermos as conquistas alcançadas por Felipe, também fazemos uma autocrítica à nossa mediação, que não favoreceu a percepção do jovem autor aprendiz sobre as incompletudes que poderiam constituir o seu texto – não pela falta de atenção habitual, mas, sim, pela intenção de convocar a participação dos seus leitores no preenchimento dos vazios. Lembramos do que nos ensina Umberto Eco: (1994, p. 55) “[...] o texto é uma máquina preguiçosa que pede ao leitor para fazer parte do seu trabalho”.

Ao considerarmos as crianças como “aprendizes de ficção”, reconhecemos que há um processo a ser continuado, no que se refere à sua condição de investir mais na inserção de recursos literários em suas histórias. Se as crianças são singulares, assim como são singulares as suas vivências com a leitura e a escrita, compreendemos as razões que levaram Camille e Felipe, por exemplo, a permitirem, em maior ou menor proporção, que seus leitores realizem parte do trabalho das suas “máquinas preguiçosas”.

Algumas considerações sobre o processo vivido de ler e escrever histórias

Neste artigo, os dados constituídos nos permitem tecer considerações importantes em termos conclusivos. Sobre o efeito da mediação dos textos literários na produção de histórias de ficção com crianças, constatamos os seguintes aspectos.

O fato de as crianças experimentarem, em suas produções escritas, outras possibilidades de configuração dos elementos narrativos evidencia a influência do repertório de leitura de literatura, especialmente da obra de Lygia Bojunga. Nas narrativas produzidas pelas crianças antes da intervenção, predominavam narradores-observadores, tempo cronológico linear, ausência de clímax, desfechos com finais felizes, dentre outras características que foram modificadas de acordo com a abertura de cada criança para outras investidas, como narradores onipresentes, tempo cronológico não-linear, inserção de clímax e desfechos abertos.

As discussões promovidas a partir da leitura de literatura contribuíram para que as crianças também considerassem os sentimentos que podem estar envolvidos no processo de criação e, consequentemente, pudessem acreditar mais na sua própria condição ou potencial para escrever. A escolha da obra literária (Bojunga, 2007), de caráter metaficcional, repercutiu, sobremaneira, nos novos sentidos atribuídos pelos aprendizes à atividade da escrita. Essa constatação evidencia o “efeito libertador” do encontro entre leitor e o texto literário, defendido por Jauss (1994), no que se refere ao arejamento das ideias na escrita de ficção.

Sobre o papel da interação com os pares e a professora-pesquisadora para o aprimoramento das histórias produzidas, consideramos que: a) a discussão da obra literária em grupo, utilizando a metodologia de leitura por andaimes (Graves e Graves, 1995), favoreceu o compartilhamento de sentidos entre as crianças, ampliando a compreensão do texto e b) as situações coletivas de discussão e aprimoramento das histórias instigaram a criatividade dos “aprendizes de ficção”, fazendo-os perceber novas possibilidades e desdobramentos para os seus textos. Tais resultados, reafirmam a importância do apoio dos pares para a construção/aprimoramento das histórias (Calkins, 1989).

A partir de tais constatações, argumentamos que a intervenção realizada foi pertinente à formação dos aprendizes do 5º ano do ensino fundamental enquanto leitores e escritores, por considerar o seu potencial criativo, a relevância da leitura de literatura e a importância da mediação dos pares. Sem a pretensão de formar escritores de literatura, nem usar a literatura para essa finalidade, esperamos que este estudo possa fomentar a discussão sobre as práticas de produção textual em turmas já alfabetizadas.

Entendemos que o acesso à literatura é algo indiscutível, assim como o direito à expressão do pensamento da criança, o respeito aos seus interesses e a oportunidade de aprimoramento como leitor e escritor de histórias de ficção – direitos que precisam ser assegurados na escola. Que essa instituição seja o lugar privilegiado para as crianças fazerem “peraltagens com as palavras”.

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Recebido: 05 de Setembro de 2023; Aceito: 06 de Novembro de 2023

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