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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.70 Natal out./dez 2023  Epub 06-Mar-2024

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n70id34015 

Artigo

Festas escolares em Brasília: o olhar da jornalista Yvonne Jean (1962-1968)

Fiestas escolares en Brasilia: la perspectiva de la periodista Yvonne Jean (1962-1968)

Juarez José Tuchinski dos Anjos1 

Prof. D r. Juarez José Tuchinski dos Anjos, Universidade de Brasília (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Grupo de Pesquisa em História e Historiografia da Educação, E-mail: juarezdosanjos@unb.br


http://orcid.org/0000-0003-4677-5816

Betânia de Oliveira Laterza Ribeiro2 

Prof.ª Dr.ª Betânia de Oliveira Laterza Ribeiro, Universidade Federal de Uberlândia (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Fundamentos da Educação, Núcleo de Estudos e Pesquisas em História e Historiografia da Educação Brasileira, E-mail: betania.laterza@gmail.com, Bolsista de Produtividade em Pesquisa Nível 02


http://orcid.org/0000-0002-3708-4506

Elizabeth Figueiredo de Sá3 

Prof.ª Dr.ª Elizabeth Figueiredo de Sá, Universidade Federal do Mato Grosso (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória, Grupo de Pesquisa Educação de Mulheres nos Séculos XIX e XX, E-mail: elizabethfsa1@gmail.com


http://orcid.org/0000-0002-5861-7535

1Universidade de Brasília (Brasil)

2Universidade Federal de Uberlândia (Brasil)

3Universidade Federal do Mato Grosso (Brasil)


Resumo

O artigo adentra o universo de temas escolares abordados pela jornalista Yvonne Jean no jornal Correio Braziliense. O objetivo é analisar algumas festas escolares em Brasília, conforme foram descritas e comentadas em colunas da jornalista entre os anos de 1962 e 1968. Foram identificados dois tipos de festas escolares: 1) as que celebravam personagens da escola e da família - professoras, crianças e mães; e 2) as que comemoravam tradições da cultura brasileira (festas juninas). O valor histórico-educacional dos textos de Yvonne Jean se evidencia à medida que se faz deles uma leitura histórica, fundada na contextualização das fontes e em sua leitura analítico-interpretativa. É dessa leitura que tende a advir a compreensão da educação segundo a lógica das normas e práticas (Julia, 2001), das estratégias e táticas (Certeau, 1999), dos comportamentos e das apropriações (Chartier, 2002), seja de professores, seja de alunos e demais indivíduos que atuam no processo educacional intraescolar.

Palavras-chave: Escolas; Jornal Correio Braziliense; Festas escolares

Resumen

El artículo profundiza en el universo de temas escolares tratados por la periodista Yvonne Jean en el periódico Correio Braziliense. El objetivo es analizar algunas fiestas escolares en Brasilia tal como fueron descritas y comentadas en las columnas de la periodista entre 1962 y 1968. Se identificaron dos tipos de fiestas escolares: 1) las que celebraban personajes escolares y familiares: maestros, niños y madres; y 2) las que celebraban tradiciones de la cultura brasileña (fiestas de junio). El valor histórico-educativo de los textos de Yvonne Jean se hace evidente en la medida en que son leídos históricamente, basada en la contextualización de las fuentes y su lectura analítica-interpretativa. Es a partir de esta lectura que tiende a emerger la comprensión de la educación según la lógica de las normas y prácticas (Julia, 2001), las estrategias y tácticas (Certeau, 1999), los comportamientos y las apropiaciones (Chartier, 2002), ya sean de profesores o estudiantes o de otros individuos que actúan en el proceso educativo intraescolar.

Palabras clave: Escuelas; Periódico Correio Brasiliense; Fiestas escolares

Abstract

The article delves into the universe of school themes covered by journalist Yvonne Jean in the Correio Braziliense newspaper. The aim is to analyze some school parties in Brasília, as described and commented on in the journalist’s columns between 1962 and 1968. Two types of school parties were identified: 1) those that celebrated school and family characters - teachers, children, and mothers; and 2) those that celebrated traditions of Brazilian culture (June festivals). The historical-educational value of Yvonne Jean’s texts becomes evident as they are read historically, based on the contextualization of the sources and their analytical-interpretive reading. It is from this reading that tends to emerge the understanding of education according to the logic of norms and practices (Julia, 2001), strategies and tactics (Certeau, 1999), behaviors and appropriations (Chartier, 2002) whether of teachers or students or other individuals who work in the intra-school educational process.

Keywords Schools; Correio Braziliense newspaper; School parties

Introdução

Com a inauguração de Brasília como nova capital federal, foi preciso constituir e instalar escolas de todos os níveis para suprir as demandas da população que se formava na cidade planejada. Uma das primeiras ações nesse sentido coube a Anísio Teixeira, então diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, que idealizou um “conjunto de escolas” para Brasília (Anjos, 2022a). O projeto presumia oferta de escolarização do jardim de infância ao ensino superior. O nível primário – a ser dado em turno integral – seria ofertado nas chamadas escolas classe e escolas parque. O desejo do idealizador era que tais modelos “[...] pudessem constituir exemplo e demonstração para o sistema educacional do país” (Teixeira, 1961, p. 195). A concretização de tal ideal de escola teve cobertura ampla do recém-criado jornal Correio Braziliense, órgão dos Diários Associados de Assis Chateaubriand (Anjos, 2022b). Em especial, o assunto foi objeto de uma jornalista colunista, Yvonne Jean, uma belga naturalizada brasileira, que veio para o Brasil em 1940 e para Brasília em 1962, após vinte anos de atuação na imprensa carioca e paulista.

Em momentos distintos da década de 1960, Yvonne Jean assinou, no Correio Braziliense, colunas que apresentavam um conhecimento acurado do que se passava nas escolas primárias de Brasília. Com nomes, tais como “Correio estudantil”, “Ensino dia a dia” e “Esquina de Brasília”, expunham uma compreensão advinda do contato direto com o cotidiano escolar mediante visitas. Das observações in loco, a jornalista extraía matéria para escrever as colunas. De tal modo, em seus textos se inscrevem vestígios do início de uma cultura escolar que são valiosos à história da educação brasileira. Dizem das “[...] normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar e um conjunto de práticas que permitem a transmissão destes conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas que podem variar segundo as épocas” (Julia, 2001, p. 10); revelam representações, práticas e apropriações (Chartier, 2002), táticas e estratégias (Certeau, 1999), seja de professores, seja de alunos no processo de escolarização.

Dito isso, este artigo adentra o universo de temas escolares abordados por Yvonne Jean. O objetivo é analisar algumas festas escolares em Brasília conforme foram descritas e comentadas em textos de colunas da jornalista entre os anos de 1962 e 1968.

Com efeito, conforme aponta um balanço recente (Oliveira; Anjos, 2022), as festas escolares constituem uma temática não só consolidada, mas bastante explorada pela pesquisa histórica recente sobre a educação. Ainda assim, o balanço constatou a necessidade de mais estudos sobre as festas escolares após 1960 - como faz esta reflexão. Carla Chamon também se referiu às festas escolares como objeto da história da educação:

[...] o seu ritual e a sua simbologia, mesmo que desprovidos de uma regulamentação, têm muito a dizer aos historiadores, que deixam de apenas narrar estas festas para buscar compreender os comportamentos a elas ligados, as representações coletivas que elas encerram e a sua ressonância social (Chamon, 2002, p. 13).

Igualmente, Marcus Bencostta se refere às festas escolares como elemento integrante das culturas da escola:

[...] são compreendidas como emissoras de uma linguagem coletiva que não deixa de lado sua característica primaz: expressar planos simbólicos diversos, apreendidos por aqueles que delas têm algum tipo de participação, como organizadores, personagens ou expectadores [...]. [São] produções do seu cotidiano, com uma ação, um tempo e um lugar determinado, o que resulta na concentração de afetos e emoções em torno de um assunto que é celebrado e comemorado, cujo principal produto é a simbolização da unidade dos participantes (Bencostta, 2010, p. 248).

A consulta a edições do jornal Correio Braziliense disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional foi um dos procedimentos metodológicos adotados para a pesquisa subjacente a este estudo. Foi feita uma busca inicial com a palavra-chave “escola”. Das menções resultantes, foram selecionados textos cujos títulos e subtítulos indicavam o assunto festas escolares. Em nova seleção, foram localizadas as colunas subscritas por Yvonne Jean.

Com base na leitura das colunas identificadas seguindo o protocolo de pesquisa, foram reconhecidos dois tipos de festas escolares: 1) as que celebravam personagens da escola e da família - professoras, crianças e mães; e 2) as que comemoravam tradições da cultura brasileira (festas juninas). Entendemos que cada tipo tem características próprias, mas havia um ponto comum: fazer da escola o seu vetor de propagação e celebração, marcando não apenas a cultura escolar, mas também as demais culturas com que a instituição se relacionava então; por exemplo, a cultura familiar: os modos de vida, a relação com a escola e as expectativas quanto à educação da prole.

Escola e família: personagens da festa

As professoras primárias foram os primeiros personagens homenageadas nas escolas de Brasília. A festa ocorreu na Escola Classe 106, numa comemoração comentada e resumida por Yvonne Jean em 15 de setembro de 1962.

Os alunos da escola classe 106 resolveram, por iniciativa própria, organizar uma série de festinhas de homenagem às suas professoras. A iniciativa chamou nossa atenção porque foi espontânea. Não foi ditada por nenhum aniversário, festa cívica ou outro acontecimento, representando uma simples prova de amizade para com as professoras. Não mereceria maiores comentários se não concretizasse a integração da escola ao lar - preparo minucioso dos presentes, ajuda das famílias pelo oferecimento de salgados e doces - e uma ação planejada entre colegas com o aparecimento de líderes, divisão das tarefas, trabalho organizado num microcosmo de sociedade. Sendo um dos princípios do plano educacional inicial de Brasília a integração da escola à vida, felicitamos os alunos da escola primária 106 pelas suas tão bem-sucedidas festas nada tradicionais nem compulsórias que foram um grito de alegria num ambiente de camaradagem total (Jean, 1962a, p. 9).

Conforme a historiografia tem assinalado (Pereira, 2011), nos primeiros anos, a orientação pedagógica das escolas de Brasília era a da escola ativa, propugnada por Anísio Teixeira. Como se sabe, essa corrente de pensamento pedagógico valorizava a centralidade da criança nos processos educativos (Carvalho, 2002) e concebia a escola como um “[...] ambiente social simplificado [...] propício ao desenvolvimento dos aspectos sãos da vida moderna [...]”, conforme escreveu Teixeira (2006, p. 34), em alusão a escolas dos Estados Unidos na década de 1920.

Com efeito, a festa descrita pela jornalista e colunista Yvonne Jean condensava alguns desses elementos centrais do que ficou conhecido entre nós como pedagogia da Escola Nova. A festa é descrita como um gesto espontâneo dos alunos de 7 e 14 anos de idade (Teixeira, 1961); ou seja, algo que não partiu de planejamento nem de calendário regular de comemorações cívicas ou de outros acontecimentos. Mas foi organizada o bastante para se desdobrar em festinhas para homenagear professores. Vale dizer que ocorreu em meados de setembro, o que afasta a ideia de intenções derivadas da data oficial de comemoração do Dia do Professor (15 de outubro). A decisão de fazer a festa nasceu das relações travadas entre docentes e discentes, em que estes últimos sentiram - por razões não tratadas pela jornalista - a necessidade de homenagear suas educadoras sem fazer dessa festa um ato oficial ou oficioso, conforme tendia a ser o 15 de outubro (Vicentini, 2004).

Para a jornalista, a festa mereceu destaque porque integrava a escola e a família ao presumir a preparação de prendas e a ação de familiares no preparo de comidas. Também teve destaque porque, embora fosse gesto espontâneo do alunado, pressupunha a conciliação de forças e trabalho na organização e execução de tarefas. Tais demandas eram circunstâncias para despertar no alunado atitudes de liderança na condução da divisão do trabalho como microcosmo: relações sociais localizadas que espelham as relações sociais da sociedade em geral.

É significativo que Yvonne Jean tenha destacado a ação de crianças na preparação, organização e realização da festa, ainda que coadjuvadas pela família. Era o tipo de manifestação educacional que interessava ao jornal como matéria a ser noticiada porque era um testemunho de que os princípios pedagógicos da educação na nova cidade estavam, de fato, se concretizando. A educação ganhava forma e sentido no ritmo em que Brasília se desenvolvia como urbe. Daí o desfecho dado ao texto pela jornalista: uma felicitação aos membros da escola por conduzirem, com sucesso, festas que não eram tradicionais nem compulsórias; antes, eram gritos de alegria num ambiente de integração e harmonia totais.

Convém observar um deslocamento significativo de sentidos produzido pelo relato de Yvonne Jean: o que era uma festa para celebrar as professoras acabava como uma celebração de integração da família com a escola e de relações harmoniosas entre docentes e discentes. Nessa lógica, as práticas engendradas na Escola Classe da quadra 106 Sul se caracterizavam como exitosas; e a coluna de jornal funcionava como vitrine para as realizações da novíssima estrutura escolar da nova capital federal.

Da homenagem festiva das crianças às professoras, passamos à festa de homenagem às crianças, também destacada pela jornalista colunista Yvonne Jean. Esse outro personagem ensejou a festa na Escola-parque de Brasília, por ocasião do Dia da Criança, então, já celebrado no país a 12 de outubro. O texto não enfoca a realização da festa em si, mas, sim, a preparação da comunidade escolar. Naquele outubro de 1962, haveria eleições e isso fez que a comemoração não ocorresse no dia 12, mas nos dias 20 e 21. A jornalista se referiu ao evento na coluna de 28 de setembro.

A escola parque comemorará o dia da Criança oferecendo sua festa das danças a pais e crianças. Estão ensaiando danças típicas de todos os países. Roupas tradicionais já estão sendo confeccionadas. Devido às eleições e a ausência de muitas pessoas nos dias subsequentes, a escola parque resolveu festejar a criança com uma semana de atraso. Os bailarinos oferecerão um espetáculo aos pais no dia 20 às 8 horas da noite e outro aos colegas no dia 21 às 4 horas (Jean, 1962b, p. 9).

A Escola-parque era a menina dos olhos das escolas de Brasília. O plano de seu expediente letivo incluía atividade escolar em contraturno, além de disciplinas de educação artística, física e manual às crianças do Ensino Primário (Teixeira, 1961). De acordo com o plano educacional, haveria uma escola para cada quatro superquadras (divisão urbanístico-residencial), mas apenas as quadras 307 e 308 Sul tiveram Escola-parque (Martins, 2011) até o fim dos anos 1960. Ainda assim, a que chegou a ser instalada se tornou polo de atividades artísticas e culturais não só para seus estudantes como também para toda a comunidade local, ainda carente de opções de lazer e divertimento (Wiggers; Marques; Frazzi, 2011).

Yvonne Jean se ocupou dessa escola e da festa que preparava para o Dia das Crianças. Segundo ela, a festa contaria com participação das crianças, que já ensaiavam “danças típicas de todos os países” e contaria com indumentária a caráter (“roupas tradicionais já estão sendo confeccionadas”).

Seguramente, a opção pela dança como forma de realizar a festa se aliava a conteúdos curriculares da Escola-parque, de modo que a comemoração era uma ocasião para expor à comunidade os resultados obtidos pelo alunado. Também ia ao encontro do que recomendavam programas de educação física para o ensino primário de meados do século passado organizados pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos; a dança era considerada fundamento de expressão física e artística (Anjos; Souza, 2022).

Assim, podemos afirmar que a festa se tornava, mais uma vez, um momento de não só celebrar, mas ainda de demonstrar o que a escola fazia. A celebração ocorreu em duas ocasiões: no dia 20, às 20h, em espetáculo direcionado aos pais, que poderiam apreciar o resultado do trabalho desenvolvido pelos filhos; e no dia 21, às 16h, horário apropriado ao público ao qual se destinava o evento: colegas dos alunos-bailarinos. Desse modo, estes poderiam prestigiar os/as colegas e, talvez, se sentirem motivados a frequentar as aulas de dança oferecidas pela Escola-parque.

Dos filhos se passa às mães, igualmente projetadas como personagens da festa escolar por ocasião do Dia das Mães. O evento não passou despercebido por Yvonne Jean.

A Escola Classe 106 festejou com atraso o dia das mães. Não queria esquecer a data, apesar da greve que interrompeu as aulas no começo do mês. As crianças deram com algum atraso, mas muita ternura, presentes feitos por eles às mães. – ‘Fiz um chinesi-nho de sabão e bucha, conta Solange Gomes Fernandes. ‘Uma beleza. É enfeita para o banheiro. É gostoso esculpir sabão.’ O porta-chaves de José Augusto da Costa e Silva, o “livrinho’ (livro que só imprime uma frase de parabéns para a mamãe) de Maria Helena Ribeiro, o alfineteiro de pano em forma de chapéu de Alcione Silva e o porta-caixa de fósforos de madeira (‘Queimei mamãe na madeira. Não imagine como ficou bonito!’) de Ney Pereira, foram alguns dos presentes feitos na escola com jeito e entusiasmo (Jean, 1962c, p. 5).

Outra festa, realizada na Escola Classe 106, foi destacada pela jornalista em função do modo peculiar de comemorar as datas em vermelho do calendário. Ela enfocou as comemorações por ocasião do Dia das Mães de 1962, ano agitado na cidade por conta de uma greve de professores. Por isso, “a Escola Classe 106 festejou com atraso o dia das mães”. Como se sabe, a dia de celebrar a maternidade no Brasil, desde 1918, é o segundo domingo de maio por diligência da Associação Cristã de Moços (Amorim; Abreu Júnior, 2012). Noutros países, a comemoração é mais antiga, pois remonta aos Estados Unidos de 1864, quando, “sensibilizada pela perda da mãe”, Ana Jarvis iniciou um “movimento de conscientização e valorização das mães, obtendo apoio popular e da Igreja Episcopal de Grafton, no Estado da Virgínia” (Santos, 2022, p. 39). A comemoração aqui foi incorporada ao calendário civil pelo presidente Getúlio Vargas, via Decreto 21.366 de 5 de maio de 1932 (Santos, 2022), como se lê no artigo 1º.

[...] o segundo domingo de maio é consagrado às mães, em comemoração aos sentimentos e virtudes que o amor materno concorre para despertar e desenvolver no coração humano, contribuindo para o seu aperfeiçoamento no sentido da bondade e da solidariedade humana (Brasil, 1932, art. 1º).

Com base nesses apontamentos, podemos afirmar que a celebração escolar do Dia das Mães é resultado de um processo de apropriação (Chartier, 2002) de um elemento da cultura dos Estados Unidos e de uma tradição religiosa transformada em data quase cívica para celebrar os sentimentos e virtudes que a figura da mulher-mãe seria capaz de despertar nos cidadãos. Nesse caso, importa saber como essa data — objeto de representações múltiplas (Chartier, 2002) – foi celebrada na Escola Classe 106.

Com efeito, operando um corte na realidade, Yvonne Jean não se ateve aos ritos e às práticas que tiveram lugar e, sim, aos presentes confeccionados para ser oferecidos às mães. Tratam-se de objetos que, ao serem postos em circulação no ambiente escolar, tornaram-se parte de sua cultura, a cultura material ou empírica da escola (Escolano, 2010). Ou seja, são utensílios que contêm, em si, finalidades e que podem, assim, ser reveladores do tipo de figura materna que as crianças queriam celebrar e exaltar.

Os presentes podem ser reunidos em dois grupos: 1) os relativos a afazeres do lar; e 2) os relacionados a dimensões do papel educativo da mãe. No primeiro grupo, temos o boneco de sabão e a bucha, confeccionados por Solange Gomes Fernandes, para enfeitar o banheiro de sua casa; um porta-chaves, de José Augusto da Costa e Silva, e o porta-caixa de fósforos da madeira, com a palavra “Mamãe” grafada mediante a técnica da queima - feita por Ney Pereira. No segundo grupo, encontramos um livrinho contendo impressa a palavra “Mamãe”, feito por Maria Helena Ribeiro, e o alfineteiro de pano em forma de chapéu, presente de Alcione Silva.

Assim, podemos inferir que a ideia de mãe, que as crianças queriam exaltar, não era só aquela que cuidava, que tinha seu lar organizado e que zelava pelo bem-estar familiar, mas também a mãe que sabia ler e costurar: habilidades que poderiam ser transmitidas a filhos e filhas. Sobretudo, era uma mulher para o lar, para os filhos e para a família. Por essas suas qualidades, merecia ser celebrada, festejada e presenteada, inclusive com mimos que reforçavam esse papel social desejado. Ao celebrar a figura materna, a escola, mais uma vez, funcionava como vetor de ressonância desse conjunto de representações na cena social ampla da capital federal.

Mais que noções como a de representações (abstratas), as celebrações escolares deixavam entrever problemas mais mundanos que afetavam o cotidiano das escolas. É o caso da existência do caixa escolar e da necessidade de arrecadar fundos para mantê-lo. Por um lado, se pode pensar na fragilidade das escolas, ainda dependentes da comunidade escolar para assegurar oportunidades educacionais a todas as crianças da nova cidade. Essa compreensão se exemplifica e se sustenta nos eventos afins às tradicionais festas juninas como parte do calendário escolar.

Festas juninas: entre celebrar e arrecadar

As festas juninas são parte do que se conhece e se pode chamar de cultura popular (às vezes do meio rural) e que penetrava no meio escolar (urbano), assim como penetra a cultura erudita (dos livros, do conhecimento...). Esse fato suscita reflexão sobre a condição de Yvonne Jean como estrangeira, quer dizer, estranha às manifestações culturais do Brasil de ocorrência mais interiorana e rural. Algumas considerações de ordem conceitual-sociológica se fazem pertinentes para compreendermos não só a posição da autora, mas ainda sua percepção desse traço da cultura brasileira.

Com efeito, das fontes conceituais que abordam a tradição e caracterização das festas brasileiras, Luís da Câmara Cascudo é uma das vozes mais recorrentes. Nesse sentido, convém considerar sua compreensão das festas juninas.

Consideradas ocasiões de reencontro de amigos e parentes, as festas juninas em Parati são bastante concorridas. Fogueiras, fogos de artifício iluminam as noites e animam a população com os casamentos caipiras, as quadrilhas, as leituras de sorte, sempre acompanhados das comidas e bebidas típicas. Nas ruas, nas fazendas, nos engenhos, nas escolas e nas casas, São João é muito festejado [...] (Cascudo, 2000, p. 232, grifos nossos).

Por outro lado, em seu estudo sobre festas no Brasil, Rita de Cássia Amaral (1998) aponta a comemoração das festas juninas como uma herança da cultura portuguesa acrescida de costumes da cultura francesa, numa mescla instaurada na Europa. Ou seja, remontariam à região da França no século XII, onde, nos dias 22 ou 23 de junho - pouco antes da época de colheita -, já se celebrava o solstício de verão, quer dizer, o dia mais longo do ano. A sua versão no hemisfério sul seria o solstício de inverno, isso é, a noite mais longa do ano. Segundo a autora, tais festas - “de origem pagã” - foram incorporadas e assimiladas pela lógica católico-cristã, de modo a se associarem ao calendário religioso - vide os dias de santos.

Uma vez trazidas ao Brasil pelo clero e serem realizadas regularmente, as festas juninas passaram a se relacionar a três datas: 13 de junho - dia de Santo Antônio; 24 de junho - dia de São João; e 29 de junho -dia de São Pedro. “De norte a sul do Brasil comemoram-se os santos juninos, com fogueiras e comidas típicas”, numa comemoração que dura o mês todo, não apenas no dia do santo; mas é especialmente na véspera da data que ocorrem

[...] sortilégios e simpatias, a parte mágica da festa, típica do catolicismo popular. Inúmeras adivinhações a respeito dos amores e do futuro (com quem se vai casar, se se é amado ou amada, quantos filhos se vai ter, se se vai morrer jovem ou ganhar dinheiro etc.) são feitas nas vésperas do dia dos santos, em geral de madrugada (Amaral, 1998, p. 160, grifos nossos).

Essa passagem também sugere que a autora caracteriza as festas juninas pelas práticas e pelos rituais como as interações orais em dado dia e em dada hora (o que indica as disposições dos festeiros, pois a festa rompe a madrugada). Por trás delas, há “a imaginação popular” que espera a ação de “poderes milagrosos”, da intervenção divina que pode “[...] aproximar os sexos, fecundar mulheres, proteger a maternidade, como Santo Antônio, São João, São Pedro, o Menino Jesus, N. Sra. do Bom Parto etc.” (Amaral, 1998, p. 162).

Citando Gilberto Freire, Amaral (1998, p. 164) endossa o argumento de que as festas juninas fazem parte de culturas diversas, ao mesmo tempo em que nelas se reúnem manifestações de culturas distintas. Nesse sentido, se abrem à “[...] inserção nela de múltiplas regras, a mediação entre as culturas e movê-las em direção ao objetivo comum de construção da sociedade brasileira”. Em alguns lugares, sua importância excede até a de comemorações como o Natal, tal qual ocorre no Nordeste, onde “[...] as festas juninas prevalecem como as mais atrativas e de maior investimento popular”.

De fato, para Amaral (1998, p. 166) mais do que a religiosidade, o que atrai todos - até não adeptos do catolicismo - para comemorarem as festas juninas “[...] são, de fato, as fogueiras, batatas-doces assadas, canjica, quentão, milho verde assado, pipocas, quadrilhas, bumba-meu-boi, simpatias, fogos de artifício, bombinhas e brincadeiras, enfim, toda a alegria que envolve estas festas”. A autora se refere à relação entre o “desenvolvimento dos meios de comunicação” e as “grandes festas populares brasileiras”, que foram descobertas pela mídia e projetadas de tal modo que atualmente motivam a destinação de subsídios dos estados para sua realização “como evento oficial”. Esse é o caso das festas juninas de regiões do Nordeste, como Caruaru e Campina Grande, onde a tradição passa por transformações que as “moderniza”, ou seja, que as fazem absorver novos quesitos como mediadores das “[...] relações entre tradição e modernidade, urbano e rural, entre muitas outras”.

Nessa lógica de entendimento mais analítico das festas juninas, a compreensão da quadrilha se faz pertinente porque se integra às festas de junho como traço fundamental, mas que não se inscreve em suas origens. Cascudo (2000, p. 587) tratou da quadrilha de modo que se faz pertinaz aqui. Por um lado, ele a destacou como prática dos estratos elitistas, de prestígio social - a aristocracia. Ou seja, seria “dança palaciana do século XIX, protocolar, que abria os bailes da corte em qualquer país europeu ou americano, preferida por toda a sociedade”.

No Brasil, em todo lugar se dançou a quadrilha [...]. Apareceu no começo do século XIX, e na época da Regência [1830–1840] fazia furor no Rio, trazida por mestres de orquestras de dança francesas, como Milliet e Cavalier. [...] Foi cultivada por nossos compositores, que lhe deram acentuado sabor brasileiro, a começar por Calado. [...] Hoje é dança desaparecida em quase toda parte, com as suas variantes inglesas, “lanceiros” e ‘solo inglês’. A quadrilha não só se popularizou como também dela derivaram várias no interior: a ‘quadrilha caipira’, no interior paulista; o ‘baile sifilito’, na Bahia e em Goiás; a ‘saruê’ (deturpação de soirée), no Brasil Central (Cascudo, 2000, p. 577-578).

Segundo Amaral (1998, p. 180), as quadrilhas conjugam tradição com modernidade e se firmaram como “[...] espetáculo por excelência [...] de qualquer São João do Brasil”. Analogamente, passaram a ser relevantes nas festas como, por exemplo, “os blocos de afoxé baianos” no carnaval. Como tal, a quadrilha passou a ser “dança típica das festas juninas”, embora tenha “herança do folclore francês acrescida de manifestações típicas da cultura portuguesa”. A autora reitera a inspiração “na contradança francesa” e a origem no Brasil, situada na “chegada da corte real portuguesa”, em 1808, que se incluía nos “modismos da vida europeia, dos quais um dos favoritos era a quadrilha, dirigida por mestres franceses da contradança”. Igualmente, a autora reitera a ideia de transformação da dança de modo a se desdobrar em modalidades como a “quadrilha ‘caipira’”; em suas palavras,

[...] tendo se popularizado [a quadrilha foi] reinterpretada pelo povo, que lhe acrescentou novas figuras e comandos, constituindo o baile em sua longa e exclusiva execução, composta de cinco partes ou mais, com movimentos vivos e que terminava sempre por um galope (Amaral, 1998, p. 180).

Essas observações criam uma base de compreensão conceitual sobre a qual se pode contrastar os textos de Yvonne Jean sobre escolas de Brasília no quesito festividades. Ao enfocar as escolas e suas práticas internas, a colunista não só adentrava a cultura escolar, mas ainda lidava com manifestações do encontro de culturas que é a festa junina, sobretudo na escola, lugar da cultura erudita. Como comemorações escolares, as festas juninas supõem quesitos, atitudes e gestos que, por exemplo, não se repetem até o ano seguinte, pois se vinculam à festa e ao seu dia. Portanto, ao buscar dados da festa in loco e recriá-la mediante uma descrição, a jornalista estrangeira imergia ainda mais na cultura brasileira.

Com efeito, em junho de 1962, Yvonne Jean se envolveu a fundo com as celebrações escolares. Ela se ocupou do assunto entre, mais ou menos, 20 de maio e 20 de junho, período em que escreveu quatro colunas expondo impressões, comentários e informações. As passagens a seguir são expressivas nesse sentido.

A Escola Classe 403 (chamava-se, antes, Escola-Classe N. 1), prepara, com entusiasmo, uma quermesse [...]. Os alunos recortam papéis coloridos, preparam enfeites festivos. Uma máquina de lavar será rifada. A Banda de Música do Posto Policial tocará durante os 4 dias dos festejos; preparam-se jogos, brinquedos, barracas, 100 mesas foram emprestadas à escola. A festa está sendo organizada em conjunto pela escola e pelo padre José Bertolo (Jean,1962c, p. 5).

[...]

As crianças da Escola Classe 114 aprendem canções de danças enquanto as professoras preparam barracas e tudo o mais para uma festa [...]. As crianças esperam, todos os dias, com maior impaciência, a professora Julimar Nunes Leal e seu acordeão pois adoram os alegres ensaios de canto (Jean, 1962d, p. 9).

[...]

Grandes fogueiras já foram colocadas nos jardins e as mesmas fogueiras, em miniaturas, enfeitarão as mesas. Taquinhos de madeira e papel vermelho picado e iluminado darão ambiente. Cada sala jardim da linda escola terá a sua barraquinha [...]. Dez ‘garçons-mirins’ cuidarão cada um de cinco mesas. Meninos e meninas já prepararam seus talões de encomendas e notas para que não haja enganos. Todos são ativos e agitados. Querem uma festa digna da bela escola de Wilson Reis (Jean,1962e, p. 9).

Tal qual se infere das datas de publicação, a colunista começou a visitar as escolas possivelmente na última dezena de maio para findar as visitas na segunda dezena de junho. Embora se possa cogitar que tenha se valido do telefone para obter informações, seus textos deixam entrever que fez observações in loco. Ela viu de perto a preparação e organização da festa para conhecer e descrever o ambiente - decoração e mobiliário - e detalhes das ações executadas - vide a informação sobre alunos recortando papel. Também se pode presumir que a jornalista tenha dialogado com pessoas, possivelmente da direção da escola, para saber sobre os prêmios de rifa e a banda de música. Também pode ter consultado alunos, para saber se tinham desejo de que a festa tivesse certo resultado.

Portanto, os textos de Yvonne Jean sugerem que ela ia às escolas e observava com olhar multifocal: panorâmico, em close, atento ao ambiente e à sua composição, voltado às pessoas, às suas ações e aos resultados. Conversava e ouvia para saber sobre as intenções e expectativas, desejos e vontades, além de outros sentimentos e informações fatuais. Essa visão com muitos focos parece sugerir um desejo de retratar o todo do evento escolar e a sua construção coletiva; ao menos podemos ler isso na exposição das suas impressões.

Se à colunista interessavam os antecedentes das festas comemorativas, a participação da festa também era parte das atividades da cobertura jornalística. A passagem seguinte é expressiva nesse sentido de visita a uma escola em época de festa junina, mas já em 1968.

Quem chegou ao pátio, no auge da festa [da Escola Classe 308 sul], ficou tonto e contagiado pela alegria do que parecia um milhar de crianças, pulando, dançando, cantando, gritando, distribuindo doces, chamando para a pescaria e jogo de anéis, e tudo o mais. Tudo isso numa escola cheia de afrescos coloridos nas paredes, bandeiras multicores penduradas por toda parte e no meio de crianças fantasiadas com gosto e sem ostentação. Nada de fantasia de luxo para concurso, que impedem de pular e ficar à vontade (Jean, 1968, p. 14).

A descrição deixa entrever um sentido de apreensão sensorial próprio de quem teria estado na festa. Refere-se aos efeitos na disposição dos presentes, sobretudo à espontaneidade das crianças, brincando entre si e interagindo com demais participantes, como na distribuição de doces e nos convites para jogos. Ao mesmo tempo, o ambiente se destacou aos olhos da jornalista, sobretudo a decoração do lugar, que ela chamou de “afrescos”; igualmente, a indumentária de fantasia das crianças, coerente com a ocasião festivo-infantil, pois estavam vestidas de modo que pudessem agir como criança, ou seja, pular e ficar à vontade.

Lindas Maria Chiquinhas de roupas de algodão estampado e orgulhosos Joãos cujo enfeite mais importante era o enorme bigode que deles fazia gente grande. No turbilhão de vozes e andanças, e risos senti-me bem, empolgada, pois era uma festa verdadeira, uma festa para crianças que a prepararam na escola [...] (Jean, 1968, p. 14, grifos nossos).

Além de endossar a capacidade de observação de Yvonne Jean, a passagem deixa entrever um vocabulário indicativo de que ela havia assimilado bem a cultura brasileira, ao reconhecer personagens como a Maria Chiquinha e o menino de bigode pintado. São expressões afins ao campo semântico da festa junina, mas o é, sobretudo, da quadrilha e de seus movimentos, como a formação de pares e o casamento caipira. A referência à estampa da roupa parece evocar a imagem da chita, tecido cuja característica é ser estampado e difundido em meio a populações rurais e a outros estratos tidos como parte da cultura popular (Duarte, 2021). Assim, mais que ao penteado Maria Chiquinha e ao bigode de mentira, a colunista parece ter se referido a personagens da quadrilha: crianças prontas para a dança.

De fato, a jornalista não usa a palavra quadrilha para descrever o que viu. Apenas aludiu ao que atraiu seu olhar. Nesse caso, uma vez que sua visita pode não ter sido demorada, uma possibilidade de compreensão da falta de referência à dança tradicional é que a jornalista, talvez, tenha captado um momento da festa pré-dança, ou seja, quando as crianças, vestidas a caráter, se engajavam noutras atividades. Também pode ser que, embora conhecesse muito da cultura do Brasil, a colunista belga ainda não tivesse repertoriado muitas nuances do espectro da cultura brasileira, sobretudo manifestações mais interioranas, mais localizadas, como a quadrilha e sua tradição. Convém lembrar que de 1940 a 1960 ela viveu no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde foi intensa sua circulação em ambientes mais letrados - aristocráticos. Também vale dizer que, conforme Campos (2007), as festas juninas foram integradas às festividades escolares do estado de São Paulo só na década de 1970. Se assim o for, então, se pode pensar na possibilidade de que a quadrilha ainda fosse uma manifestação um tanto estranha à jornalista estrangeira, mesmo após quase três décadas de imersão cultural no Brasil. Se os festejos em junho fossem familiares a Yvonne Jean como europeia, não se pode dizer o mesmo da quadrilha.

Com efeito, o desafio de conhecer a cultura brasileira foi intuído por Yvonne Jean desde 1941, cerca de um ano após chegar ao Rio de Janeiro. Sua integração já era tal que falava e escrevia o português brasileiro com fluência. Tal capacidade foi destacada até em um parágrafo editorial-introdutório de um artigo seu, cuja intenção foi apresentá-la ao leitorado brasileiro. Nesse artigo, ela se refere à forma idealizada como via o Brasil na condição de europeia e o quanto se envergonhava ao enxergar o quão distante eram sua imaginação e a realidade que viu. Ao mesmo tempo, estava ciente de que não era fácil apreendê-la sem dar tempo ao tempo: à experiência de viver no país, de imergir na cultura e se deixar tomar por ela, conforme se lê a seguir.

Nós [os exilados] não podemos conhecer o Brasil em um ano. Poderemos no máximo estar no caminho (começando a amá-lo), mas não podemos tocar com os dedos a causa de tantas contradições aparentes. Podemos observar, por exemplo, a vizinhança, direi mais, a promiscuidade do luxo e da miséria, dos palácios e das favelas. Não podemos falar disso. Não pensamos tanto em tal assunto, aliás, depois de algum tempo, porque aqui a magia do sol tropical funde tudo, afasta o medo, dissipa a fealdade (Jean, 1941, p. 1, grifos nossos).

Como se não bastasse o desafio de conhecer a cultura, ela tinha “crises de saudade” e resistia a crer que “estão destruídos” os lares de origem - achez nous”. Tudo gerava um misto de sentimentos em que “[...] a saudade nos enche periodicamente e põe uma tela entre a nossa alma e a vida, faz parecer incompatível o que é apenas diferente” (Jean, 1941, p. 1). Uma consequência dessa resistência pode ter sido, justamente, a assimilação mais demorada da cultura brasileira. Mas, em vinte anos, Yvonne Jean faria muito para se embrenhar cada vez mais no país que a acolheu. Não só se casou com um brasileiro, mas ainda passou - cabe lembrar - a trabalhar em várias frentes. No início, em laboratórios médicos como histologista, depois escrevendo intensamente para vários veículos da imprensa do Rio de Janeiro, em que tratou de assuntos ligados à cultura letrada, às artes e, em especial, à educação da capital federal.

Com efeito, se tiver ficado claro até aqui que Yvonne Jean visitava as escolas de Brasília, esse fato se reforça ainda mais com base em informações sobre a sua atuação na imprensa carioca. No Diário de Notícias da década 1940, ela publicaria uma série de reportagens - “Visitando escolas...” -onde relatou impressões (críticas) das escolas da cidade após vê-las com seus próprios olhos e conversar com as pessoas (Amaral, 1998). Portanto, o que fez em Brasília era o reflexo de uma experiência prévia em prol do conhecimento sobre a educação e as escolas, sobretudo a sua precariedade. No primeiro texto da série, ela deu o tom de suas observações, conforme se lê no recorte a seguir.

Há problemas que são comuns a vários países. Outros decorrem do modo de vida de cada região. Entre nós há muito a fazer, porque não se trata somente de melhorar o sistema educativo, mas também de criá-lo, desde o princípio, em muitos lugares. [...] estas rápidas reportagens [...] bastam para apontar falhas gritantes, que reclamam urgentes providências (Jean, 1947, p. 1).

A passagem sugere que a jornalista via a educação como uma questão de todo: de sistema educacional (apesar de a história da educação rechaçar a existência de um sistema naquele momento). Ainda: ateve-se à parte, à unidade escolar: prédio, alunado e professorado. Ou seja, se referiu a instalações arcaicas, inapropriadas e sem conforto, a crianças com necessidades alimentares mínimas e faltas escolares máximas por causa do apoio laboral aos pais e a professoras com salários baixos. Nesse sentido, são expressivos seus comentários a seguir sobre as festas juninas das escolas de Brasília como forma de arrecadar fundos.

A diretora só sonha em pescarias que lhe permitirão encher a caixa escolar para poder comprar tudo o que falta a uma escola perfeita e ajudar todos os alunos que precisam de roupas e materiais (Jean, 1962e, p. 9).

[...]

A Escola Classe 403 (chamava-se, antes, Escola-Classe N. 1), prepara, com entusiasmo, uma quermesse, destinada a angariar dinheiro para a merenda escolar. Graças a uma intensa campanha, está recebendo, afora leite do Ministério da Educação, açúcar da Fundação Educacional e farinhas das famílias dos alunos. É preciso comprar um liquidificador, vasilhames, louça, talheres, etc (Jean, 1962c, p. 5).

[...]

[...] festa cuja finalidade principal é arrecadar fundos para a caixa escolar que comprará, antes de mais nada, um fogão (Jean, 1962d, p. 9).

As passagens citadas dão o tom do olhar da jornalista Yvonne Jean para as mazelas da escola pública brasileira. Mesmo na capital federal planejada, com escolas pensadas por um dos maiores intelectuais e por grandes agentes públicos entre os mais ativos no desenvolvimento da educação brasileira, as carências revelavam as necessidades vistas e contadas por Yvonne quinze anos antes no Rio de Janeiro. A alimentação escolar continuava a ser problema sério, a ponto de obrigar a comunidade escolar a reagir, ante a ação mínima do Estado. Embora fossem comemorações festivas, capazes de encantar a colunista, as motivações não eram louváveis, pois denunciavam o estado de coisas da educação que era muito precário. É como se alunos, carentes de roupas e materiais, se equivalessem ao grupo de alunos carentes de alimento que chegavam a escolas do Rio de Janeiro no momento em que a jornalistas os visitava (Jean, 1947).

Mais do que noções de representação (abstrata) pelo olhar jornalístico de Yvonne Jean, as celebrações escolares deixavam entrever problemas mais mundanos que afetavam o cotidiano das escolas. É o caso de condições como a existência do caixa escolar e da necessidade de arrecadar fundos para mantê-lo. Seria o caso de se pensar na fragilidade do conjunto de escolas de Brasília, ainda dependente da comunidade escolar para assegurar oportunidades educacionais a todas as crianças.

Esse aspecto tem sido abordado por estudiosos da festa junina, a exemplo de Campos (2007, p. 592), que endossa a compreensão de que “[...] a finalidade da realização dessas festas, além de seu aspecto de ludicidade, adquiriu outros objetivos, como a arrecadação de numerário para que as unidades escolares pudessem financiar seus projetos”. Ou seja, ante “[...] a insuficiência de recursos repassados pelo Estado ou pelas prefeituras[...]”, promover festas seria uma forma dos educadores resolverem os problemas da falta de recursos financeiros.

Considerações finais

O artigo teve por objetivo analisar algumas festas escolares em Brasília conforme foram descritas e comentadas em textos de colunas da jornalista Yvonne Jean entre os anos de 1962 e 1968.

Uma leitura superficial dos seus textos sobre as escolas de Brasília na década de 1960 evidencia uma jornalista encantada com o que viu, sobretudo a espontaneidade e a autenticidade cultural das manifestações festivas da escola pública. Não se notam em seus textos palavras que denunciem um julgamento crítico ou prescritivo. Antes, o tom é de elogio e reconhecimento de esforços e que a imprensa deveria evidenciá-los. Contudo, uma leitura mais contextualizada em sentido diacrônico, de modo que se possa captar as origens do interesse de Yvonne Jean pela educação escolar, mostra o quanto seus textos devem ser lidos com rigor histórico-interpretativo para serem tomados como documentos históricos relevantes. Devem ser lidos com intenção de conhecimento e revisão crítica do passado, tendo em vista o presente. Isso porque, na superfície dos textos, as colunas deixam entrever um estado de coisas algo pacífico no meio escolar. Mesmo ante problemas estruturais, é como se estes fossem menores que a vontade de concretizar ações festivo-comemorativas, a festa saciava as demandas.

Lidos em contexto e nas entrelinhas (em segundo plano), os textos das colunas contêm informações reiterativas das razões reais subjacente às comemorações e celebrações: arrecadar fundos para a manutenção das escolas. Na leitura da literalidade textual, tal motivação pode ser vista até como louvável, mas na leitura histórico-interpretativa, a insistência em dizer das razões da festa parece revelar uma tentativa de expor os problemas do funcionamento das novas escolas da nova capital federal, problemas que Yvonne Jean conhecia de perto. Assim, quando entrava nas novas escolas, ela o fazia com uma concepção prévia de como eram as escolas da antiga capital federal que a levavam a constatar o enfrentamento de problemas similares como a escassez de alimentação para crianças em fase crítica de seu desenvolvimento.

Portanto, o valor histórico-educacional dos textos de Yvonne Jean como representação da cultura escolar se evidencia à medida que se faz deles uma leitura histórica, fundada na contextualização das fontes e em sua leitura analítico-interpretativa. É dessa leitura que advém a compreensão da educação segundo a lógica das normas e práticas, das estratégias e táticas, dos comportamentos e das apropriações, seja de professores, seja de alunos e demais indivíduos que atuam no processo educacional intraescolar, isto é, advém de uma representação da cultura escolar.

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Recebido: 25 de Setembro de 2023; Aceito: 25 de Novembro de 2023

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